2
princípio, orientava a con- clusão da medicação, aceitou as súplicas da mulher e reco- mendou que voltasse à Maternidade Lucrécia Paim, onde tinha sido operada. Marisa Raimundo dirigiu- se ao Banco de Urgência da referida maternidade com a última ecografia. “Perguntaram-me se tinha dinheiro para fazer uma nova ecografia. Eu disse que sim e logo fui à área vocacionada”, disse. O resultado do exame condizia com o do ante- rior, solicitado pela médica de Viana. Já no Banco de Urgência, as dores ganhavam contor- nos incontroláveis, lembra. Uma enfermeira pediu, deli- cadamente, ao médico para que Marisa fosse assistida de imediato, devido à pres- são alta. “Puseram-me numa maca. Em seguida, fui sub- metida a uma curetagem, porque acharam um líquido no útero. Suportei aquela dor toda...”, conta, virando- se para o chão. O tratamento foi sol de pouca dura. A dor retornou no terceiro dia. Marisa recorreu a casa da mãe, porque não se sentia muito bem. “O meu esposo trabalha fora de Luanda e tive de pedir ajuda aos meus pais para ir a uma clínica”, salientou. Já numa outra unidade privada, o médico pediu Rodrigues Cambala Marisa Raimundo, caminha aos solavancos, até aproxi- mar-se do cadeirão. A mão direita finca a coluna verte- bral e a esquerda descerra os punhos e adianta-se no assento, para manter o tronco firme. Um gemido meio dis- farçado deixou brechas para que se dê conta das dores. Os movimentos frouxos tam- bém. Marisa está, apenas, há 12 horas desde que recebeu alta de uma segunda cirurgia, que ocorreu, como diz, por culpa de um erro médico. Foi na noite de uma sexta- feira, dia 22 de Fevereiro deste ano, que a mulher, de 35 anos, foi submetida a uma cesariana, na Maternidade Lucrecia Paím, em Luanda, para dar vida ao quarto filho. Conta que lhe foi dada alta médica dois dias depois. Em Abril, Marisa Raimundo começou a sentir ligeiras dores na região abdominal, que aos poucos se foram tor- nando mais fortes. “Eram dores muito estra- nhas, que pareciam agu- lhas a picar”, relatou, numa voz roufenha. Numa manhã do mês de Maio, deslocou-se a um posto de saúde, em Viana, próximo de casa, tendo a médica de serviço solicitado uma eco- grafia. O exame dava conta da existência de uma infla- mação. A receita baseou-se em antibióticos para com- bater as dores. Apesar dos remédios, disse, as dores na região abdominal não paravam. De regresso ao posto de saúde em Viana, a médica, que, a “DISTRACÇÃO MÉDICA” ABALA PARTURIENTES Vidas em risco por “coisas” esquecidas no corpo depois da cesariana Quatro evidências de que entre as paredes de unidades hospitalares abundam procedimentos que colocam em risco a vida de pacientes. E o problema ganha maior dimensão, se juntarmos o testemunho de um médico: o Hospital Josina Machel recebe pacientes com algum instrumental ou material gastável esquecidos durante a operação 4 DESTAQUE Segunda-feira 5 de Agosto de 2019 nova ecografia, sugerindo, por outro lado, a realização de um TAC, porque presumia haver um tumor no intestino. Depois do exame, orientou uma consulta de Cirurgia. Marisa Raimundo explica que a marcou dias depois, numa outra clínica. A ope- ração não foi realizada, por- que o médico dizia que o TAC estava inconclusivo. “O médico tinha receio que fosse um tumor e pediu para fazer novos exames”, lembrou. No dia 10 de Junho, voltou à Maternidade Lucrécia Paim, para marcar uma con- sulta com o médico que a tinha operado. “Pelo cor- redor, cruzei-me com o doutor. Mostrei-lhe os exa- mes para que avaliasse a minha situação”. Conta que o médico obser- vou-a, em seguida, nas con- sultas externas, tendo pedido apoio a outros dois colegas (um cirurgião e uma gine- cologista). Os três concluíram haver uma massa, de acordo com a ecografia. O médico informou que o problema não era ginecológico, pro- pondo o regresso à clínica onde o fez, para obter um relatório conclusivo do TAC. O médico insistiu, dizendo: “não é um pro- blema ginecológico e vou fazer-te o favor de aten- der-te na próxima quarta- feira, 17 de Julho.” “Pedi-lhe que me recei- tasse alguma coisa por causa das dores, mas ele disse que não”, afirmou a mulher, recordando que o médico que fez o TAC ficou estupe- facto por saber que os seus colegas não conseguiram fazer a leitura”. Marisa conta que regressou a casa em sofrimento e lágri- mas. Inconformada, no dia seguinte, 11 de Julho, foi à consulta de Cirurgia que tinha agendada numa uni- dade privada. O médico tam- bém recorreu aos colegas para determinar o resultado dos exames que tinha em mãos. Não tardou, veio a resposta: tinha de ser eva- cuada a uma outra clínica, por, supostamente, haver uma inflamação. Transferida, mal a médica observou os exames, ordenou a sua entrada no Bloco Ope- ratório. “Eram 19 horas e só despertei às 23 horas e logo disseram-se que a operação foi um sucesso.” A causa de tanto sofrimento chocou-a: “A senhora não tinha nenhum tumor; eram com- pressas esquecidas no abdó- men, aquando da cesariana”, informou-lhe a médica. “Disse-me que a compressa já estava deteriorada e foi reti- rado pus em quantidade”, explica. Marisa Raimundo afirma que não tem, até agora, acompanhamento de um psicólogo. “Senti-me muito mal (…), tive um trans- torno psicológico muito grande. Sofri muito…”, sus- surra, numa voz melancólica com lágrimas a cobrirem os olhos. Durante o período que durou a situação, a jovem teve de deixar de amamentar o filho, que tem apenas quatro meses. “Só quero justiça”, acres- centa, de forma pausada, a Numa paróquia da Igreja Cató- lica, em Luanda, a reportagem do Jornal de Angola conversou com uma missionária, que, sob anonimato, descreveu as 24 horas mais difíceis da sua existência, devido a um erro médico que por pouco lhe tirava a vida. Em 2012, foram-lhe detec- tados miomas uterinos, ainda em fase inicial. A recomenda- ção da equipa médica de tomar os medicamentos para vencer os miomas não surtiu efeito. Dois anos depois, já em missão em São Tomé e Príncipe, durante uma consulta de rotina, uma médica informou- lhe que não precisava de ope- rar, porque muitas mulheres convivem com miomas. Em 2015, depois de tratar de um problema no ouvido, em Portugal, a madre apro- veitou a oportunidade para fazer outra consulta de rotina. O médico avaliou os resulta- dos dos exames e sentenciou: “não te enganes a tomar a medicação, pois todo o mioma é um corpo estranho e tem de ser retirado”. “Comecei a notar que havia opiniões diferentes”, contou a madre, que, no regresso a Angola, em 2016, trouxe também na memória a inten- ção de resolver o problema dos miomas que estavam em progressão. Antes de fazer a cirurgia, foram-lhe recomendadas duas injecções, que custaram 250 mil kwanzas. “As ampolas eram muito caras, mas não tive outra saída”, avança. Apa- rentemente, os remédios, comprados numa farmácia na cidade do Lubango, Huíla, estavam prontos para lhe serem aplicados, até que a mãe da missionária, uma enfermeira, observou algo de errado nas ampolas. “Já não me lembro do nome dessas ampolas, mas as que foram adquiridas destina- vam-se a homens. A farmácia pediu desculpas pelo erro”. Sexta-feira, 18 de Agosto de 2017, numa clínica no Lubango, cujo nome a mulher prefere não citar, as condições para a cirurgia estavam criadas. “Pare- ceu-me ser uma equipa boa. Já no Bloco Operatório, todos rezaram antes de começar a operação”, recorda. Depois da cirurgia, a missionária ardia de dores no abdómen. Dada a afli- ção, chamou a enfermeira, que disse serem as dores normais e passageiras. Contudo, inten- sificaram-se entre as 13 e as 16 horas. Conta que nem posição para dormir encontrava. O médico observou e corroborou com a enfermeira: “é normal essa dor, vai passar”. A equipa médica só não adi- vinhava que as dores na zona da operação avolumavam-se a cada minuto. “Às 16 horas, notei que a barriga estava a ter um outro formato e fechava- se no centro, como se tivesse um cinto apertado”. A persistência da mãe da paciente forçou os médicos a realizarem uma ecografia. Parecia haver sangue acumu- lado. Ainda assim, o médico pediu 24 horas para avaliar a evolução. A madre conta que arfava e já não conseguia andar. “Sentia uma vontade de ir à casa de banho. Não conse- guia colocar-me em pé. Quando coloquei a cabeça no ombro da minha mãe, 'apa- guei”, disse. Ao despertar, olhou para os lados, pois já não se lembrava do que suce- deu. “Um médico perguntou- me como me sentia, eu disse-lhe que queria ter o mesmo descanso...” No dia 19, sábado, voltou ao Bloco Operatório. “Despertei e já estava na unidade de cui- dados intensivos. Um técnico do laboratório gritou: “ela acordou, ela acordou...”. Fez- se um ligeiro silêncio. Ele vol- tou-se à missionária, sem dizer uma palavra. À pergunta sobre o que acon- teceu tem duas versões. A pri- meira: esqueceram-se de algum material de cirurgia no abdómen. A segunda: esque- ceram-se de canalizar um órgão no abdómen. “As enfermeiras disseram que tive sorte, porque a equipa médica ainda não tinha deixado o hospital”, afirma. “Quando vivemos momentos de perigo, per- cebemos que a vida é pas- sageira. Por isso, é essencial fazermos sempre o bem”, diz a mulher, lamentando que os médicos não tenham admitido o erro. “As 24 horas mais difíceis” de uma missionária

“DISTRACÇÃO MÉDICA” ABALA PARTURIENTES Vidas em risco …imgs.sapo.pt › jornaldeangola › img › 980645066_reportagem.pdf · 2019-08-05 · O porta-voz da Ordem dos Médicos

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: “DISTRACÇÃO MÉDICA” ABALA PARTURIENTES Vidas em risco …imgs.sapo.pt › jornaldeangola › img › 980645066_reportagem.pdf · 2019-08-05 · O porta-voz da Ordem dos Médicos

princípio, orientava a con-clusão da medicação, aceitouas súplicas da mulher e reco-mendou que voltasse àMaternidade Lucrécia Paim,onde tinha sido operada.Marisa Raimundo dirigiu-

se ao Banco de Urgência dareferida maternidade coma última ecografia. “Perguntaram-me se tinha

dinheiro para fazer uma novaecografia. Eu disse que sime logo fui à área vocacionada”,disse. O resultado do examecondizia com o do ante-rior, solicitado pela médicade Viana.Já no Banco de Urgência,

as dores ganhavam contor-nos incontroláveis, lembra.Uma enfermeira pediu, deli-

cadamente, ao médico paraque Marisa fosse assistidade imediato, devido à pres-são alta. “Puse ram-me numa

maca. Em seguida, fui sub-metida a uma curetagem,porque acharam um líquidono útero. Suportei aquelador toda...”, conta, virando-se para o chão. O tratamento

foi sol de pouca dura. A dorretornou no terceiro dia.Marisa recorreu a casa damãe, porque não se sentiamuito bem. “O meu esposotrabalha fora de Luanda etive de pedir ajuda aosmeus pais para ir a umaclínica”, salientou.Já numa outra unidade

privada, o médico pediu

Rodrigues Cambala

Marisa Raimundo, caminhaaos solavancos, até aproxi-mar-se do cadeirão. A mãodireita finca a coluna verte-bral e a esquerda descerraos punhos e adianta-se noassento, para manter o troncofirme. Um gemido meio dis-farçado deixou brechas paraque se dê conta das dores.Os movimentos frouxos tam-bém. Marisa está, apenas, há12 horas desde que recebeualta de uma segunda cirurgia,que ocorreu, como diz, porculpa de um erro médico.Foi na noite de uma sexta-

feira, dia 22 de Fevereirodeste ano, que a mulher, de35 anos, foi submetida a umacesariana, na MaternidadeLucrecia Paím, em Luanda,para dar vida ao quarto filho.Conta que lhe foi dada altamédica dois dias depois. EmAbril, Marisa Raimundocomeçou a sentir ligeirasdores na região abdominal,que aos poucos se foram tor-nando mais fortes. “Eram dores muito estra-

nhas, que pareciam agu-lhas a picar”, relatou, numavoz roufenha.Numa manhã do mês de

Maio, deslocou-se a um postode saúde, em Viana, próximode casa, tendo a médica deserviço solicitado uma eco-grafia. O exame dava contada existência de uma infla-mação. A receita baseou-seem antibióticos para com-bater as dores.Apesar dos remédios,

disse, as dores na regiãoabdominal não paravam. Deregresso ao posto de saúdeem Viana, a médica, que, a

“DISTRACÇÃO MÉDICA” ABALA PARTURIENTES

Vidas em riscopor “coisas”

esquecidas nocorpo depois da

cesarianaQuatro evidências de que entre asparedes de unidades hospitalares

abundam procedimentos quecolocam em risco a vida de

pacientes. E o problema ganhamaior dimensão, se juntarmos o

testemunho de um médico: oHospital Josina Machel recebe

pacientes com algum instrumentalou material gastável esquecidos

durante a operação

4 DESTAQUE Segunda-feira5 de Agosto de 2019

nova ecografia, sugerindo,por outro lado, a realizaçãode um TAC, porque presumiahaver um tumor no intestino.Depois do exame, orientouuma consulta de Cirurgia.Marisa Raimundo explicaque a marcou dias depois,numa outra clínica. A ope-ração não foi realizada, por-que o médico dizia que oTAC estava inconclusivo.“O médico tinha receio

que fo s s e um tumor epediu para fazer novosexames”, lembrou.No dia 10 de Junho, voltou

à Maternidade LucréciaPaim, para marcar uma con-sulta com o médico que atinha operado. “Pelo cor-redor, cruzei-me com odoutor. Mostrei-lhe os exa-mes para que avaliasse aminha situação”.Conta que o médico obser-

vou-a, em seguida, nas con-sultas externas, tendo pedidoapoio a outros dois colegas(um cirurgião e uma gine-cologista). Os três concluíramhaver uma massa, de acordocom a ecografia. O médicoinformou que o problemanão era ginecológico, pro-pondo o regresso à clínicaonde o fez, para obter umrelatório conclusivo do TAC.O méd i c o i n s i s t i u ,

dizendo: “não é um pro-blema ginecológico e voufazer-te o favor de aten-der-te na próxima quarta-feira, 17 de Julho.”“Pedi-lhe que me recei-

tasse alguma coisa por causadas dores, mas ele disse quenão”, afirmou a mulher,recordando que o médicoque fez o TAC ficou estupe-facto por saber que os seuscolegas não conseguiramfazer a leitura”.Marisa conta que regressou

a casa em sofrimento e lágri-mas. Inconformada, no diaseguinte, 11 de Julho, foi àconsulta de Cirurgia quetinha agendada numa uni-dade privada. O médico tam-bém recorreu aos colegaspara determinar o resultadodos exames que tinha emmãos. Não tardou, veio aresposta: tinha de ser eva-cuada a uma outra clínica,por, supostamente, haveruma inflamação.Transferida, mal a médica

observou os exames, ordenoua sua entrada no Bloco Ope-ratório. “Eram 19 horas e sódespertei às 23 horas e logodisseram-se que a operaçãofoi um sucesso.” A causa detanto sofrimento chocou-a: “A senhora não t inha

nenhum tumor; eram com-pressas esquecidas no abdó-men, aquando da cesariana”,informou-lhe a médica.“Disse-me que a compressajá estava deteriorada e foi reti-rado pus em quantidade”,explica. Marisa Raimundoafirma que não tem, atéagora, acompanhamento deum psicólogo. “Senti-memuito mal (…), tive um trans-torno psicológico muitogrande. Sofri muito…”, sus-surra, numa voz melancólicacom lágrimas a cobriremos olhos. Durante o períodoque durou a situação, ajovem teve de deixar deamamentar o filho, que temapenas quatro meses.“Só quero justiça”, acres-

centa, de forma pausada, a

Numa paróquia da Igreja Cató-lica, em Luanda, a reportagemdo Jornal de Angolaconversoucom uma missionária, que,sob anonimato, descreveu as24 horas mais difíceis da suaexistência, devido a um erromédico que por pouco lhetirava a vida.Em 2012, foram-lhe detec-

tados miomas uterinos, aindaem fase inicial. A recomenda-ção da equipa médica de tomaros medicamentos para venceros miomas não surtiu efeito.Dois anos depois, já em missãoem São Tomé e Príncipe,durante uma consulta derotina, uma médica informou-lhe que não precisava de ope-rar, porque muitas mulheresconvivem com miomas.

Em 2015, depois de tratarde um problema no ouvido,em Portugal, a madre apro-veitou a oportunidade parafazer outra consulta de rotina.O médico avaliou os resulta-dos dos exames e sentenciou:“não te enganes a tomar amed icação, po i s todo omioma é um corpo estranhoe tem de ser retirado”.“Comecei a notar que havia

opiniões diferentes”, contoua madre, que, no regressoa Angola, em 2016, trouxetambém na memória a inten-ção de resolver o problemados miomas que estavamem progressão.Antes de fazer a cirurgia,

foram-lhe recomendadas duasinjecções, que custaram 250mil kwanzas. “As ampolaseram muito caras, mas nãotive outra saída”, avança. Apa-rentemente, os remédios,comprados numa farmáciana cidade do Lubango, Huíla,estavam prontos para lheserem aplicados, até que amãe da missionária, umaenfermeira, observou algo deerrado nas ampolas.“Já não me lembro do nome

dessas ampolas, mas as queforam adquiridas destina-vam-se a homens. A farmáciapediu desculpas pelo erro”.Sexta-feira, 18 de Agosto de

2017, numa clínica no Lubango,cujo nome a mulher preferenão citar, as condições para acirurgia estavam criadas. “Pare-ceu-me ser uma equipa boa.Já no Bloco Operatório, todosrezaram antes de começar a

operação”, recorda.Depois dacirurgia, a missionária ardia dedores no abdómen. Dada a afli-ção, chamou a enfermeira, quedisse serem as dores normaise passageiras. Contudo, inten-sificaram-se entre as 13 e as 16horas. Conta que nem posiçãopara dormir encontrava. Omédico observou e corroboroucom a enfermeira: “é normalessa dor, vai passar”.A equipa médica só não adi-

vinhava que as dores na zonada operação avolumavam-sea cada minuto. “Às 16 horas,notei que a barriga estava ater um outro formato e fechava-se no centro, como se tivesseum cinto apertado”.A persistência da mãe da

paciente forçou os médicos arealizarem uma ecografia.Parecia haver sangue acumu-lado. Ainda assim, o médicopediu 24 horas para avaliar aevolução. A madre conta quearfava e já não conseguia andar. “Sentia uma vontade de ir

à casa de banho. Não conse-gu ia co locar-me em pé .Quando coloquei a cabeça noombro da minha mãe, 'apa-guei”, disse. Ao despertar,

olhou para os lados, pois jánão se lembrava do que suce-deu. “Um médico perguntou-me como me s en t i a , e udisse-lhe que queria ter omesmo descanso...”No dia 19, sábado, voltou

ao Bloco Operatório. “Desperteie já estava na unidade de cui-dados intensivos. Um técnicodo laboratório gritou: “elaacordou, ela acordou...”. Fez-se um ligeiro silêncio. Ele vol-tou-se à missionária, sem dizeruma palavra.À pergunta sobre o que acon-

teceu tem duas versões. A pri-meira: esqueceram-se dealgum material de cirurgia noabdómen. A segunda: esque-ceram-se de canalizar um órgãono abdómen.

“As enfermeiras disseramque t ive sorte, porque aequipa médica ainda nãotinha deixado o hospital”,afirma. “Quando vivemosmomentos de perigo, per-cebemos que a vida é pas-sageira. Por isso, é essencialfazermos sempre o bem”, diza mulher, lamentando queos médicos não tenhamadmitido o erro.

“As 24 horas mais difíceis” de uma missionária

Page 2: “DISTRACÇÃO MÉDICA” ABALA PARTURIENTES Vidas em risco …imgs.sapo.pt › jornaldeangola › img › 980645066_reportagem.pdf · 2019-08-05 · O porta-voz da Ordem dos Médicos

O porta-voz da Ordem dos Médicosde Angola, Jeremias Agostinho,esclareceu que, em situações ligadasa erros médicos, o paciente podequeixar-se à Inspeção Geral da Saúdee à Ordem dos Médicos. Estas enti-dades avaliam se houve negligênciapor parte do médico. “Analisamos, se for reincidente,

se a instituição tem condições paraa realização de tal cirurgia e se foifeita da melhor forma possível ouse houve negligência”.Além de medida disciplinar, os

profissionais podem ver a carteiracassada. O médico salientou quenão se encerra a cirurgia sem quese faça contagem, mesmo que omaterial esteja com sangue.“Se o enfermeiro entregar 20 pares

de compressas, depois do procedi-mento, ele tem de contar se os 20pares foram retirados, bastando faltaruma para não se encerrar”, explica.Acrescenta que algumas complicaçõessurgem também por falta de cuidadosdo paciente depois da operação.

O director-geral do HospitalRegional do Huambo, Hamil-ton dos Prazeres Tavares, disse,ao Jornal de Angola, desco-nhecer a existência de um casocom parturiente, em cujo orga-nismo tenha sido esquecidaqualquer compressa.“Não e x i s t e , n a n o s s a

maternidade, qualquer casoocorrido com parturiente emquem foi esquecida qualquercompressa por altura da rea-lização de uma cesariana noperíodo evocado pela senhoraIsabel”, afirma.A posição do clínico surge

no seguimento da denúnciada senhora identificada porIsabel, cuja irmã terá sofridouma cesariana, na Mater-n i d ade d o Huambo , e aequipa médica terá deixadouma compressa.“A unidade materno-infantil

do nosso hospital não dispõede registo deste caso, porque,durante esse meio ano apon-

tado pela senhora Isabel comotendo ocorrido a situação,não há, nos nossos relatórios,qualquer situação registadanos nossos serviços operató-rios da maternidade. E maisdificil fica porque a pessoanão se identifica”, afirma.Em relação à morte do bebé,

o clínico explica que a situaçãorelatada por Isabel não dálugar à contamição dos mami-los, por se tratar de órgãoscompletamente diferentes.Segundo o médico, a infec-

ção verificada no mamilo deuma mulher após o períodode parto é quase sempre resul-tado de incumprimento deregras elementares, que devemser tidas em conta no períododa amamentação. Se não forem observadas,

acrescenta, dão lugar à cha-mada “mastite purperar, queprovoca uma colecção de puse incha os mamilos.”

Fernando Cunha, no Huambo

Não se encerra a cirurgia sem a contagem

O médico cirurgião RenatoPalma admitiu que os errosacontecem devido à demandadas instituições e, sobretudo,das maternidades, que aindasão em número reduzido,principalmente com quali-dade assistencial.“Estas unidades têm uma

demanda a duplicar ou triplicare com um pessoal reduzido eque muitas vezes faz turnosrepetidos”, disse, argumen-tando que a demanda faz comque a perícia médica diminua,porque o organismo atinge oesgotamento. O especialistaacrescenta que a demanda fazcom que se esqueça um ins-trumento ou material dentrodo abdómen da paciente.Ao corroborar com a opinião

do porta-voz da Ordem dosMédicos, Renato Palma defendea realização de verificação domaterial, antes e depois dacirurgia, para evitar consequên-cias que coloquem em risco avida do paciente e do recém-nascido. Explicou que a pacientecom parto por cesariana ficainternada entre três e cinco

dias, para acompanhar-se aevolução. Antes da alta médica,acrescenta, a paciente devepassar por uma revisão da cavi-dade, que pode incluir análisesdas secreções a nível da feridae órgão genital, Raio X, examede sangue e ecografia. Renato Palma disse, por

outro lado, que o país não dis-põe de normas de actuaçãopara o mesmo tipo de presta-ção de cuidados, pois o corpoclínico de cada instituição desaúde decide da sua forma.Logicamente, afirma o espe-

cialista, “se cada instituiçãotiver a sua norma, é muito difícilhaver um documento que vaireger as formas de prestaçãode uma mesma patologia efica um terreno fértil para ocor-rência de situações do género”.Ao indicar que a elaboração

das normas é responsabilidadedas academias ou institutos,disse que o médico, como qual-quer ser humano, tem a capa-cidade de esquecer, mas apresença de uma norma de actua-ção permite seguir os passosantes e depois de cada cirurgia.

Pacientes no Josina MachelO médico admitiu que o HospitalJosina Machel recebe pacientes,provenientes de outras unida-des, com algum instrumentoou material gastável esquecidodurante a operação.Ao apontar que situações

deste género não podem suce-der, Renato Palma disse que,nalguns casos, a compressaesquecida é expelida pelas fezese, outras vezes, pode apodrecerna cavidade abdominal.

“Quando isto acontece,causa uma quantidade de puse pode provocar uma falênciamúltipla de órgãos, insufi-ciência cardíaca e renal ,levando o paciente à morte”.Acrescentou que as com-

plicações podem ser pioresnaqueles casos em que seesquece de uma lâmina debisturi, pinças ou um sepa-rador, porque com o movi-mento o paciente pode terum órgão perfurado.

“Deixaram uma compressa”

Caso do Huambo é desconhecido

Quer ser apenas identificadapor Isabel. Acedeu falar emnome da irmã - esta não ofaz, por temer represálias -,que, há um mês, perdeu ofilho e vive acamada desdeo dia em que foi dar à luz porcesariana, na Maternida doHuambo.Depois da cirurgia, em Feve-

reiro deste ano, Isabel contaque a irmã, de 30 anos, rece-beu alta. Não obstante a medi-cação, no mês seguinte,começou a queixar-se de doresfortes no abdómen, propria-mente na zona da operação.No princípio, os familiares

deduziram tratar-se de capri-chos. Depois de uma semanae meia, o que parecia “birras”

estava a ganhar contornospreocupantes. “Voltamos aohospital, mas os médicos diziamque era normal, qu e mais tardepassava”, conta a irmã.Em Junho, as dores propa-

garam-se. A zona de cirurgiacheirava a podre, o leite dopeito estava misturado compus e sangue. “Os médicos voltaram a fazer

outra cirurgia e encontraramuma zona completamenteinfectada com sangue e pus.O leite materno estava conta-minado com pus. Após algunsdias, o bebé teve de ser inter-nado e acabou por morrer.Isabel revela que a morte do

sobrinho aconteceu no mesmodia do internamento, “em razão

das complicações provocadaspelo leite materno 'estragado'e pela má assistência médica”. Nem a segunda cirurgia

resolveu o problema. A pacientecontinua acamada, agora emcasa. A zona da cirurgia nãoestá cicatrizada e a ferida con-tinua dorida, sem sinais demelhoria. Nesta altura, osfamiliares estão a amealharalguns trocados para procurarum tratamento rigoroso noexterior do país. A mãe estáem Luanda, à procura de apoiona Junta de Saúde.“Ela não está bem...”, balbucia

em tom amargo. “Os médicosdeixaram uma compressa enão fecharam correctamenteum órgão”, denuncia a irmã.

“A minha irmã perdeu o filho”

Segunda-feira5 de Agosto de 2019 5DESTAQUE

Há 14 anos, Ana Paula entrouna Maternidade Lucrécia Paim,para dar à luz. Por algumascomplicações, foi levada aoBloco Operatório. Três diasdepois, estava em casa, já noseio da família.Paula descreve que, apósum mês, começou a sentirdores estranhas no abdó-men. Ao retornar ao hospital,os médicos apalparam azona da cirurgia e percebe-ram que tinham deixadouma compressa.“Fui submetida a uma novacirurgia e retiraram a com-

pressa”, recorda com o rostocarregado de alívio.“Não tive problemas no aten-dimento quando voltei parareclamar. A zona não tinhainfectado”, acrescenta AnaPaula, lembrando que não pro-cessou a Maternidade porquetudo terminou bem e eles pedi-ram desculpas.Admitiu que já acompanhoumuitos casos de esqueci-mento de compressas, erecentemente uma amigaviveu a mesma situação, quelhe causou grandes problemasde saúde.

Erros médicos por negligência podem levar a cassação da carteira profissional

Cirurgião defende verificação do material depois da operação

Hamilton dos Prazeres nega o caso de compressa esquecida

| EDIÇÕES NOVEMBRO

DR

DR

DR

mulher sobre quem ummau procedimento fez comque anulasse o Curso deCiências Políticas e Rela-ções Internacionais. Como apoio da família, pensaem intentar uma acçãojudicial contra o hospital.

Advogada e MaternidadeMarisa Raimundo constituiuuma advogada, que está atratar do processo para umaacção contra a MaternidadeLucrécia Paím.

Nancy André, a advo-gada , d i s s e que da r i aentrada, na Procuradoria-Geral da República, de umaqueixa contra a Materni-dade, para que a sua cons-tituinte seja indemnizada.

A advogada afirmou aindaque vai remeter uma cópiaà Maternidade, para o casode a instituição querer nego-ciar, antes que o processo

tramite em julgamento. “Estamos a concluir a par-

ticipação e logo que estiverconcluída vamos entregarà PGR”, reiterou a advogada.

Entretanto, a nossa repor-tagem deslocou-se à Mater-nidade Lucrécia Paím, pararecolher a reacção sobre ocaso. A secretária de direc-ção, Maria Agostinho, infor-

mou que a directora só fala-ria deste assunto se MarisaRaimundo fizesse umareclamação ao hospital.

“Não temos nenhumainformação. Assim que apaciente informar o que sepassou, a direcção do hos-pital estará em condiçõespara prestar declaraçõesao Jornal”, acrescentou.

Parte frontal do edifício da Maternidade Lucrécia Paím

“Não existem normas de actuação na prestação de cuidados”