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Diversas mitologias contam as histórias de deuses e deusas que, de alguma forma, influenciam a vida na terra. Sejam gregos, romanos, babilônios, egípcios, astecas, chineses, celtas, judaico… todos tiveram algum papel na história da humanidade, desde a descoberta do fogo às grandes guerras, ou até mesmo nas histórias de amor. E nos dias de hoje não é diferente. O que esses seres estão fazendo hoje pela – ou COM – a humanidade? Quais são suas motivações? Por onde andam as divindades de povos extintos? Como eles agiriam nos dias de hoje? Em qualquer lugar, entre a multidão, pode estar o Grande Arquiteto do Universo a nos observar. Os deuses estão onde menos se imagina. Os autores divinamente inspirados revelarão a atuação dos deuses na atualidade.
“Somostodoscamposdebatalha,nosquaissedigladiamdeuses”—PaulValéry
O
AConspiraçãodasMusasGustavoSilvadeMatos
vento mediterrâneo acaricia o sopé do Monte Parnaso,agitandodelicadosolivais.OMonte,naquelestempos,eraumsantuáriodivinoparaoscamponesesdeDelfosqueidolatravam
suas divindades esperando por interseção— às vezes com a compaixãofraternalepiedadeonipotente,àsvezesdemodocruelepassional,comoomais vil dos homens.Os deuses gregos faziam suasmoradas em lugaresíngremes para manterem uma saudável distância de seus adoradores.Escolhiamdosmaissábiosefortesosseusarautoseheróis.Osmaisbeloseles tomavam como esposas, maridos e amantes. Dos mais fracos, elesexigiamavidaemsacrifícioàsuaprópriaglória.Quemousariadesa artãonaturaltirania?
OParnasoemespecial—diferentementedoOlimpo—eraumlocalneutroqueosdeusesvisitavamesporadicamenteparajogoseapresentaçõesartísticas. Era para lá que todo poeta, todo artista, todo lósofo, todocientistadesejava ir após suamorte, tal comodesejouHomero,ograndepoetacegoouabelapoetisaSafo.
Talvez a proximidade com a inspiração e o contato com suasprincipais divindades pudesse repetir in nitamente aquilo que muitos
tiveramapenasumavezemsuavida.Aquelesentimentoúnicoenobrequeseparaohomemdoanimal.Oespíritocriativoqueassombrain nitamenteseuscriadores.Sentimentoquetornavaohomemmaispróximodosdeusesque,peloseuin nitotempodevida,nãogozamdasmesmascapacidadescriadoras dos mortais. Mortais que empreendem com tal paixão evivacidadeporsaberemdesuacurtaexistência.Taldesejopor inspiraçãoprovém da esperança dos criadores de estarem lado a lado com as suasmusas. Divindades menores, que não representavam os poderososarquétiposdavidamortalcomoa força,amorte,aguerra,oamorouasabedoria.
Mas, ao mesmo tempo, representavam um dos elementos maisinigualáveis da espécie humana e por isso recebiam homenagens nasmaiores criações de seus seguidores. Obras que sobreviveriam mesmodepois que todos os templos e as cidades dos deuses antigos tenhamsucumbidoaotempo.Eelassabiamdisso,a nalpodiamveropresenteopassadoeofuturo.Elassurgiraminicialmentepararelatarecantarosfeitosheroicosdosdeusesmaioresefornecerinspiraçãoparaosmortaiscantaremerelataremosmesmosfeitosentreosseusiguais.
Talvez tenhasidoemumfragmentodeeternidade,numapequenafraçãodepensamento.Osdeusespensamdemaneiradiferentedosmortaisemesmoasdeusasdainspiraçãoedaartenãopodemabstrairmuitomaisquea suanaturezaeternapermite.Mas, se emdadomomentoasdeusasconhecemtodososdetalhesdofuturoesabemdadecadênciadosdeuses,daascensãodahumanidadeedasnovas ideias, talvezpossamabstrairdesua fútil realidade como as eternas oradoras dos feitos de seresmaiores.Seres que lutam entre si manipulando os tolos mortais por diversão ehedonismo.
Quando chega essemomento emque todas asmusas o sabem—mas não tem coragem de falar — qualquer menção pode desenvolverconsequências que mudarão para sempre a história dos homens e dosdeuses.Eassimocorreu.
Calíopeeraamaisvelha,musadaeloquênciaedosdiscursos,queumdia jáamouumdeus e teve lhos comele. Inspirouumdosmaiorespoetas dosmortais—Orfeu—que fez o submundo conhecer a beleza.Clio,amusadahistóriaqueengrandeceas gurasmortaiseaprimeiraa
descobrir sobreadecadênciadosdeuses.Érato,principal inspiradoradasmúsicas,poesiaseépicos.Tália,musadacomédiaedasátiraesuaantíteseMelpômene,musadatragédiaedosdramas.
Terpíscope,musadadançaedaexpressãocorporal.Euterpe,musadoerotismoedaspalavrasquedespertampaixõesarrebatadoras.Polímnia,musa das narrações e dos contadores de história e Urânia, a musa daastronomia.
Estavamtodas juntasnaqueledia fatídicoemqueFrigias,umtolosátiroqueatreveraenfrentarApoloemumadisputamusical,foraesfoladovivoemumaárvoreporserincapazdetocarseuinstrumentoaocontrário.Apoloengrandeceu-sedaconquista,segabandodesuasinfinitasqualidadesedaestúpidaehumilhantemortedomiserávelmortal.AsmusasadularamApolo,sabendoquenofundoaqueletolosátiromorreufeliz.Mesmotendoumamortehumilhante,poralgunssegundosdesuacurtaexistência,eleseigualouaumdeus.Tocousua autatãobemqueasmusasforamincapazesdedaravitóriaaApolo,comoeradeseesperar.Nãofosseoartifíciododeus de conseguir tocar seu instrumento ao contrário, talvez o sátirovencesseumdeus,morrendodamesmamaneira.
Apolo voltara para o Olimpo vitorioso, enquanto as musascantavamversosdevitórianoParnaso.Polímnia,balançandoseusalvosedelicadospéssobreumgalhodeárvore,pergunta:
—Comodeveriaretrataressepobremortal?Comoeledeveria carconhecidopelahistória?AoqueTáliaresponde:
—Ora,comoumtolocheiodedevaneios,umfanfarrãoqueinvadiuoredutodosdeusesefoidevidamentepunido!
Melpômenediscorda:—Não, irmã.Ele deve ser umherói trágico.Umminúsculoherói
contraopoderdeumdeusimortal.—Lembrai qual o nosso objetivo.Devemos enaltecer as façanhas
dosdeusessejamelasquaisfornãoimportandoquemosdesa a.Emminhaopinião, deves retratá-lo simplesmente comoummortal quedesa ouumdeusepagouseupreço,nadamaisnadamenosqueisso.
Asmusas são tomadas pormomentâneo silêncio após as sensataspalavrasdeCalíope.CliorompeosilêncioperguntandoentãoseCalíope
concordacomadecisãodavitóriadeApolo:—Irmã,oqueocorreuhojeseráretratadocomodeveser.Eassim
caránahistória.Maseugostariadesaberserealmenteachaqueomortalquesucumbiuaquihojenãotevenenhumvalorhistóricoalémdeserumderrotadopelosdeuses. Seráomortalum frágil brinquedo, comonósosvemos?Osdeuses serãoassimtãoeternospara ignorarasexistênciasvãsdosmortais?
Asmusasentreolham-se.Eraoassuntotabu nalmentecolocadoàfrentedelas.Calíopepermaneceemponderadosilêncio.Mesmoamusadaeloquência deve escolher cuidadosamente as palavras para sua próximacolocação:
—Odestinodosdeusesémaislimitadodoquepensávamos,Clio.Aimortalidade dos deuses será tão vaga quanto a existência mortal doshomens.Osdeusestalvezdeixemdeexistir sicamenteepassemaexistirnomundodas ideiassomente,masonossodestinonãoédiferente.Deveriasentãoexaltarmaisomortal,queduraráalémdosdeuses?É issoquemeperguntas?Pensas,assimcomoeusecretamenteponderei,quenossafunçãotenhamudado? Nãomais enaltecer a glória de voláteis deuses,mas siminspiraroshomensemsuacaminhadarumoàeternidade?Semeperguntasisso,nãopoderiaresponder,poisodestinoquevejoélimitado;nãopossovermeuprópriodestinoenenhumoutro,apenassombrasprojetadasdeumfuturoincerto,inconstanteemutável.
Todas as musas, com suas diversas personalidades, ponderaramsobreasmesmasquestõesdiversasvezes.Emseupensamentosimilar,sabemque a únicamaneira do homem alcançar o seu destino é inspirando-o alibertar-sedodomínioideológicodosdeuses.Maselassabiamquefazerissoeracomprometerassuasprópriasexistências.
—Osdeusesmudamdeformadamesmamaneiraqueasideiasdoshomens.Osdeusesacompanhamasideiasesempreo zeram,minhairmã.Desdeoiníciodostempos,desdequeahumanidadenãopossuíasuaformaatual,sãoosmesmosdeuses,poisosarquétipossãoosmesmossempre.—ObservaClio.
—Entãotalveznãodevessemexistirdeuses…—ComentaEuterpe,hesitante.
—Tolice!Ohomemnecessitadenóspararegermososseusaspectos,
mesmoqueanossagestãosejasuperficial—EsbravejaÉrato.Calíopepareceestaremtranse.Olhaodistantehorizontedesuaaté
então vida imortal e percebe como nunca abstraiu seu pensamento damaneiraqueestavaafazer.Elasabe—assimcomotodasasmusasemseupensamento coletivo — a resposta para aquele dilema, ainda que demaneiraincerta.Tomaapalavranovamente:
—Qualagrandediferençaentreohomemeodeus?Odeuséumaideiaqueganhacorpo,enquantoohomeméumcorpoqueganhaideias.DeveisentãoinspirarohomematerumúnicoDeus.
Dessavez,parecedemonstrarumpoucomenosdecon ançaemsuaspalavras.Talveztenhaabstraídolongedemais.
Clioestava tão imersanaquelepensamentoquantoCalíope.Pensaemumcontra-argumento:
—MasoDeusúnicoserámaisseveroqueosoutrosdeusesjuntos,poisreunirátodosnossosarquétiposemsi.Suain uênciasobreohomemserá muito mais forte e dominadora. Os homens terão guerrasintermináveis, pois não poderão identi car-se comdeuses diferentes. Elestentarão cada um à sua maneira, de nir como será esse Deus, jamaischegarãoaconsenso.Oshomensdominarãoosfracosdamesmaformaquedominamhoje,utilizandodosdeuses.EscravizarãoematarãoemnomedoDeusúnico.
Urântia, que até o momento permaneceu calada ponderando,responde:
— Sim, mas será temporário, assim como as estrelas e galáxiastambémosão.Muitosdeusessãomuitasobrigaçõesparaopobrehomem.Distanciam-nodomundodasideias.UmDeuséapenasumobstáculo,ouumcaminhoúnico.
OdeusZé ro,sobaformadeventomediterrâneo,soprapelacidadedeDelfos.Seusibilarsuaveeagradávelsopravapelasabasdoschapéusdoshumildes agricultores. Derrubando as cestas com ameixas, as folhas dasoliveiras.Roubaos beijos nos lábios das belas virgens campesinas. Eramtempostranquilosesaborososparaosdeuseseingênuosparaosmortais.Omarasmodastardesdosvivosedasestaçõesdosimortaiseasconfusõesdesuas existências tumultuosas. Nem os humildes mortais de vidatrabalhadora, tãopoucoodeusdosventosdooeste sabem.No topodo
MonteParnasoasmusasselavamumpactoafavordoserhumano.Avidacontinuou a seguir seu rumo. As musas esperaram em velado silêncio.Continuaramacantaroscadavezmaisescassosfeitosdosdeuses.Impériosse ergueram e caíram comamesma velocidade. Era necessário esperar omomentocerto.Bastavaumasemente,umapequenasementedeinspiraçãoemumpovooprimido.Umaesperança,umaprofecia,umprofeta.Assimdecaíaaeraantigaeasmusasassimpartiramjuntodosoutrosdeusesparaomundo das ideias.Humilhadas, segundo os deusesmaiores que nuncasouberam da traição. Mas elas sabiam o que soube Frígias. Por ummomento,asmusasforamcapazesdeempreenderemudarodestino,assimcomofazemosmortais.
K
OGloriosoFimdeKoranJoãoManueldaSilvaRogaciano
orandeixou-secairsobreaervapardacentaquecobriaaestepe.Estavaofegante.Tinhadedescansar.Temeroso,olhouemvolta.Nãoavistavanenhumdosseusperseguidores.Mas,Koransabia
quenãodesistiriamtãocedodeoprocurar.Ninguémdesistedeumescravo,de ânimo leve. Levantou-se e lançou-se numa corrida, dirigindo-se paraocidente,nadirecçãodagrandefloresta.Ali,conseguiriadespistá-los.
Umcursodeáguadespertou-lheaatenção.Estavasequioso.Aáguaera límpida e fresca eKoranbebeudaqueleprecioso líquido, sentindoasforçasea lucidezvoltaremgradualmente.Sobaságuascristalinas,Koranviuasuaimagemre ectida.Ficouunsmomentos tando,admiradoaquelepersonagemcordeébanoebastantealtoque,doleitodorio,lhedevolviaoolhar.Jáhátantosmeses—desdequeotinhamraptadoeescravizado—quenão seviaaoespelho,nemre ectidoemnenhumasuperfície.Talvezpor isso se achasse diferente: mais alto, mas muito mais magro. Umamagreza explicada pelos árduos trabalhos a que fora forçado.Recordoucomodopaísvizinho,emguerracomoseu,umgrupodehomensarmadoscommetralhadoraslheassaltaraacasa.Mataramasuafamília,meteram-no— amarrado e amordaçado — num jipe e levaram-no para longe.
Venderam-nocomoescravo,aodonodeumagrandequinta.Ao longe, uma voz feminina trauteava uma bela melodia, veio
arrancá-loaos seuspensamentos.Cautelosamente,avançouparaalémdacurvaacentuadaqueoriofaziaeocultou-seatrásdeunsespessosarbustos.Espreitou:aolonge,umamulherbrancabanhava-senorioebrincavacomum cão. Se por uns instantes cou a observar a cena, logo se voltou aocultar,temendoqueaesbeltaerobustamulherestivessedealgumaformaligadaaosseusperseguidores.Aolonge,Koranouviuladrardecãeseruídodevozes:osseusinimigostinham-lheapanhadoorasto.
Levantou-se, de um salto, e correu para longe dos perseguidores.Deudecarascomajovemmulherecomoseucãodecaça.Esterosnou-lhe,amaçador.Amulherdisseumaspalavrasaocão,quedeixouasuaatitudeofensiva,mantendo-seemalerta.
— Foste tu que me interrompeste o banho? — Questionou-o amulher, com severidade.—Quem és, como te atreves a vir aqui, e quebarulhoéeste?
Havianaquelamulher,umtomdeautoridadeedealtivez,comosefosse a dona daquele local. Trajava uma túnica leve sobre um par decalções.Aoombro,traziaumarcode echaseumaaljava.Umacaçadora,calculou.
—Não, senhora—Koran fez uma vénia curta—Enão estou aviolar os seus domínios propositadamente; estou a fugir a um grupo dehomensquemepersegue.
—Porquê?—Porquemetinhamescravizadoefugi!—Escravo,noséculoXXI?Nãoépossível!—Omeu país está em con ito com o país vizinho. Invadiram a
minhacasa,mataramaminhafamíliaevenderam-mecomoescravo.Agoraperseguem-meparamematar!
AmulherolhouparaKoran,observando-ometiculosamente.Koransentiu-secomoquecompletamentedespidoperanteamulher.Comoseestalheconseguisselerospensamentosmaisíntimos.Estremeceu,incomodadocomtalsentimento.
Oruídodosperseguidoresaumentavagradualmente.Koranolhouparatrás,comopânicoespelhadonoolhar.
—Possopararosteusperseguidores,sequisereseobedeceresaoquetevoudizer—Ofereceu,repentinamente,amulher,aoverodesesperodojovem.
Koran acenou a rmativamente com a cabeça.Não sabia o que amulher pretendia dele, nem como iria parar os homens que o seguiam,quandoestespossuíamarmasdefogoevárioscães;eelaapenascontavacomoseuarcoeflechasecomumúnicocão.
—Muitobem!—Aprovouamulher,apontandoumadirecção—Vais seguir por aquele caminho, até ao m. Lá, encontrarás umapropriedade; seguesatéumedifício, comumaestátuana sua entrada.Aíestaráumhomemdemuitaidade.Dir-lhe-ásquevensdapartedacaçadora.Ele te diráoquedeves fazer.E lembra-te: sónesse local estarás a salvo!Agoravai,corre,nãoparese,sobretudo,nãoolhesparatrás!
Koranacenoumaisumavezedeitouacorrerpelocaminhoqueamulher indicara.Gritos lancinantes, disparos de armas e rosnidos ferozeszeram-se ouvir, provenientes do local onde Koran tivera o estranho
encontro com a mulher. Depois, os ruídos cessaram, só se ouviam ospássaros e outros animais. Sem se atrever a olhar para trás, o jovemcontinuou a sua corrida, sempre receoso que os seus inimigos tivessemderrotadoamulhereoalcançassem.
Apósumpercursoquepareceuinterminável,chegou nalmenteaomdocaminho.Terminavajuntoaumportão,comumacerradacercaem
volta.Experimentouabriroportão.Estavafechado.Embutido,nomesmo,um pequeno dispositivo munido de um cordão, semelhante a umacampainha.Puxouocordão.Ao mdeunssegundos,oportãoabriu-seeKoranentrou.Estavanumimensopátio,comárvores,quedavaacessoaminúsculascasasatodaavolta.Aofundoavistouumimponenteedifíciocomumaestátuaàentrada.Dirigiu-separaaí.Naentrada,mesmojuntoàgigantescaestátua,estavaumancião.Ovelhoperguntou-lhequemeraeaoquevinha.
—SouKoranevenhodapartedacaçadora.Ovelho empalideceu emurmurou algoqueKorannão conseguiu
perceber.Fezsinalaojovemparaoseguir,entrandonoedifício.Ojovemseguiu-o.Oedifícioestavamergulhadonumainquietantepenumbra.Koranteveasensaçãodeterentradonumtemplomuitorústico.Nasparedes,em
vez de imagens de santos ou divindades, pendiam archotes cuja chamabruxuleavaaosabordascorrentesdearqueatravessavamolocal.Notopodo edifício, Koran viu um altar. Sobre ele, os restos nojentos de umsacrifíciodestilavamsangueealimentavamumenxamedemoscas.Aolado,uma estátua enorme, semelhante à que estava no exterior do edifícioconcentravasobresiasatençõesdequemfranqueasseaentradadolocal.Sóentão Koran teve a certeza: aquilo era um templo.Mas, a interrogaçãomantinha-se:umtemploemhonradequem?EmplenoséculoXXI,oquefaziaumtemplosimultaneamenterústicoedegigantescasproporções,noseiodeÁfrica?Koranconheciaosdiversoscredosafricanosemundiais,masdesconheciaaqueleemespecial.
Oanciãochegoujuntodaestátuaelançou-seaospésdamesma,emadoração.Korandeixou-se carunsmetrosatrásdooutroeperscrutouaestranha estatuária: representava uma jovem equipada com um arco ealjava,acompanhadaporumcão.Koransentiuumcalafrio:aestátuaerauma representação da mulher que encontrara momentos antes e que oprotegera.OolhardeKorandesceuàbasedaestátua.Numainscrição,emlatim,podialer-seonomedaentidade:Diana!
Umavozforteecoouportodootemplo:—Vejoquechegastebemequejádescobristeomeunome!Koranolhouemvolta,semavistarninguém,paraalémdoancião.
Desúbito,uma guramaterializou-semesmoaoladodojovem,quesoltouumgrito: amulher da oresta, a deusa romanaDiana, estava ali ao seulado.
—Vejoqueestásconfuso,meuamigoKoran!—RetorquiuDiana— Fiz-te um favor e desbaratei os teus inimigos. Nunca mais te irãoincomodar.
—Obrigado,senhora.—AgradeceuKoranfazendoumapequenavénia.—Posso,agora,ir-meembora?
—Calma,tudoaseutempo.—Respondeuadeusa—Agora,tensdeme retribuir o favor…Como podes ver, omeu sacerdote estámuitovelhoenecessitadesersubstituído…Darásumbomsubstituto!
Koran cou aturdido. Livrara-se dos seus inimigos e agora tinhaumadeusaromana,queelepensavaexistirapenasimaginaçãodoshomensdaantiguidade,aexigirquefosseoseusacerdote.Comopoderiafugirdali?
Dianapareciaterescutadoospensamentosdojovem:—Fugiresestá foradequestão.Aliásémuitosimples:oumataso
meu sacerdote e te tornas sacerdote no seu lugar, ou transformo-te numcervoedeixoomeucãoeosanimaisselvagensdaremcabodeti!Tensumahoraparaescolheres.Sêsábio…—Ditoisto,Dianadesapareceu,deixandooanciãoeojovemsozinhosnotemplo.
OanciãofezsinalaKoraneesteseguiu-oatéumanexo.—Falemosbaixo,paraelanãoouvir.—Disseoancião.—Comojá
devesterpercebido,Dianaéadeusagregadacaça.Émuitocrueleastuta.Sópodeserseusacerdoteumescravoquederroteemateosacerdoteactual.Éumavidalongaesemqualquerinteresse.Osacerdoteéumhomemsóeabandonadoaoscaprichosdadeusaou,pior, temdeaturaroséquitodesessentaoceânidasevinteninfas,quesãoascompanheirasdeDiana.E,nãopodeolharparanenhumadelascomlascívia:levá-lo-iaaumamortecerta,poissãotodascastasenãoseenvolvememamorescomninguém.
—MeuDeus!…— Diz-me — pediu o ancião — os homens que te raptaram e
escravizaramnãopossuíamumatatuagemnobraçodireito…— Com um arco e echas?! — Completou o rapaz, apreensivo.
Comoéqueovelhosabiadessepormenor.—Jácalculava!—Retorquiuovelho.—Sãoosadoradoressecretos
da deusa Diana. Isto signi ca que foi Diana que te mandou raptar,escravizar. Também preparou o plano da tua fuga. Tudo isso para mederrotarese caresseusacerdote,emmeulugar.Temoquenãotenhamosalternativa.Anãoser…
Inclinando-se sobre o ouvido do jovem murmurou-lhe algo aoouvido.Omanceboanuiu.
AlutaentreosacerdoteeKoranteveinicio,notemplo,peranteumaplateia constituída por Diana e o seu séquito. Após alguns momentosempolgantes,osacerdotefezsinalaKoran.Lançaram-seosdois,umcontrao outro, ferindo-se simultânea e mortalmente, cada qual retraçando ocoraçãodoadversário.
—Não!—GritouDiana,compreendendosubitamenteasintençõesdeambos.
Mas,jáeratardedemais.
Com a morte de ambos, Diana cou sem sacerdote e sempossibilidadede escolherumsubstituto.E, semeste importante elemento,cavainterditoaDianaoreinodosmortais.Semnadapoderfazer,viu-se
transportada para a dimensão-prisão onde estão encarcerados todos osdeusesantigos,jáesquecidospeloshomens.
P
Oh,DeanDiegoMatiolidaMotta
edro não tinha muitas ambições além de sair da vida decaminhoneiro,mesmosabendoquehápoucasoportunidadesparahomenssemformação.Tiroutodaasortequeteveemvidapara
conseguirsustentaros lhosdaestranhafomedeliteraturaquetinhadesdesempre. Acabou mais esperto que a maioria nas mesmas condições —tambémmaisinconformado,reprimido.
“Aignorânciaéumabenção.”Elehavialidoisso.Nemtodooempenhopodia livrar-lhedasuaconsciência.Por isso
sentava afastado de outros caminhoneiros. Devido a eventos recentes,optaraporpernoitaremseucaminhão,estacionadodoladodeforadobardebeiradeestrada.Umdaquelespontospróximosapedágios,compostode gasolina, lojade conveniência e todoo tipode iscade turista.Estavaabalado.Elenãoconseguia tiraropretextoqueo forçaraapararàquelanoitedacabeça.
Cerca de uma hora antes. Com as duas mãos rmes no volante,Pedro calculava quanto tempo demoraria até a próxima parada, ondecomprariamuitocaféeseguiriaparaosuldopaís.Afortechuvaoforçariaa diminuir a velocidade, exigindo horas extras para fazer a entrega no
prazo.Foi quando presenciou a cena mais estranha nos quinze anos de
pro ssão.Comoumjato,umcaminhãoentrounasuafrente,costurandootransito violentamente. Nas mãos de um motorista menos experiente, oajustequetevedefazernadireçãoenavelocidadeteriaresultadoemumacidente sério. Até o dia de sua morte, Pedro não esqueceria a marcaestampadaemvermelhonalateraldaquelecaminhão.Hammer's.
Não fosse isso o su ciente, um cisco lhe forçou a coçar um dosolhos. Conforme esfregava, a coceira parecia se agravar para umformigamento,eentãodor.Decidiucessarogestoepararocaminhãonoacostamento.Noentanto,quandoabriuoolhoesquerdopara fazer isso,estesimplesmentenãoviamaisaestrada.Naverdade,viasim,apenasnãocomo o outro. Era como se este olho lhe mostrasse todas as diferentespossibilidades para o encontro dos caminhões. Manhã, tarde e noite semisturavamemdiferentescenas;diferentesrealidadesfazendosuapupilasedilatar e contrair alucinada.Emum segundovia-se perder o controle dovolante;nooutro,atraseiradocaminhãoseaproximavarapidamenteatédeformar-lhe a cabine do seu; e havia também o vislumbre de umaescuridãocheiadenuances,sono.Aultimavisãoeradeumraiopartindoaterra,assustadoramentepróximo.Eentãoláestavaaestradaoutravez.OcaminhãodaHammer'shaviadesaparecido.
Oepisódiofoideterminantenadecisãodeprolongarsuaestadianaparadadecaminhões,aomenosatéachuvaparar.E jáqueomantodeMorfeunãovinhalhecobrirantesdameia-noite,decidiubeberumpoucoantesdesedeitar.Obarestavacheio,haviaumcertofervornolocal,devidoa exibição de uma das partidas do time brasileiro na copa do mundonaquelamadrugada.
Antesdesuabocaencostarnoprimeirogoledecervejagelada,foiabordadoporumcoletordeapostasdeaparênciaviperina:
—Eai,camarada,éagoraoununca.Ultimachanceparafazerumaaposta. Brasil ou Argentina? — O homem aproximou o lápis de umacadernetarepletadeanotações.Tinhafogonosolhosreptilianos.Natela,osjogadoresterminavamdecantarohino.—Ecuidadocomoquedisser,algunscompatriotasnãosãomuitoamistososcomo“inimigo”.
— Essa noite não. — O homem não insistiu, e Pedro voltou a
cerveja. O atendente veio lhe servir. Era um homem magro, como queenxugadopelotempo.Tinhaapeleavermelhadaegrossoscíliosadornandoos olhos negros. Parecia ser estrangeiro. Sem se importarmuito com suanacionalidade,pediucarnenachapacomcebolaemandioca.Oshomensnobarvibravamcomosprimeirosdribles.Algunsminutosdepoiselevoltoucomseuprato.—Ei,porumacasovocêstemmolhoinglê…
—Gagnrad!—Comoé?—Masogarçomnãoestavaprestandoatençãonele.
Olhavasurpresoparaaentradadoestabelecimento,forçandoPedroavirar-separadescobriroquelhecaptavaaatenção.Eraumhomem—masnãosimplesmente um homem. Era o dobro do mais largo caminhoneiroconhecido,ecomnãomenosquedoismetrosdealtura.
—Ré,estoumuitoatrasado?—Ohomempareciaestarchegandona casa dos cinquenta. Tinha uma farta barba caindo-lhe na barrigaenorme.Pelajaquetadecouro,tingidadeazulecheiaderebites,pareciaummotoqueiro.Pedro,porém,nãoteveduvidasdequeeraumcaminhoneiro.Um caminhoneiromuito especi co, que quase lhematara algumas horasatrás. Para além da porta se encontrava o recém estacionado caminhãoestampadoemvermelho,Hammer's.Poderia, sim,seroutrocaminhãodamesmaempresa,poderiaatémesmoseroutroomotoristadaqueleveiculo,masumsúbitacoceiranoolhodeuaPedroacertezasupersticiosadequeaquele era o homem. E indo contra sua educação simplória, escutou aconversadosdois.—OGrandejáchegou?
—Estánobanheiro.—Assistiuosdoishomenssecumprimentaremefusivamente.—Lukeestavaporaicoletandoapostasparao jogoaindaagora.
—Elesemprefoidadoaosjogosdeazar,nãomesurpreende.Então,emquantoestáojogo?—Semquetivessedepedir,Ré,ogarçom,entregouumagarrafadecervejaparaohomem.Pedroreconheciaaquelamarca,erado norte da Europa, importada. Também sabia que não estava nocardápio.
—Rénee,seubanheiroestáentupido.Denovo.—Oterceirohomemsaiudobanheiroesentou-seaoladodocaminhoneiro—Oh,Dean,acheiquevocênãochegariaatempo!—Maiscumprimentos.Destavez,menosacalorados.— Já estava pensando em fazer uma visitinha a Fridda para
saberseuparadeiro.—Muito engraçado,GrandeZ.Como se você, logo você, tivesse
autoridade para falar do casamento dos outros. — Foi quando Pedropercebeuquereconheciaoterceirohomem.Seurostoestampavanoticiárioshá algumas semanas. Era um importante empresário da industria deenergia.Imaginouoqueumhomemdaquelecalãoestariafazendonaquelelugarenquantoosjornaisdopaisinteiroexpunhamseucasodeadultérioeumpossívelherdeiroilegitimo.Aquelehomemtinhaproblemasdemaisparasimplesmentevirtomarcervejacomosamigos.
— Vamos perguntar ao seu lho quem pode falar de problemasfamiliares. — Grande Z parecia zangado. Um raio caiu lá fora. Atempestadepareciaseagravar.—Ah,espera.ElecontinuaperambulandobêbadopeloBroklyndesdequeoexpulsou.
— Ei, você dois. — Era Rénee quem falava. — Não vamosrecomeçarcomisso.Nãoesqueçamdoqueaconteceudaultimavez.
—Qualfoionomequederam?Karina?Karla?—Katrina.—RéneeentregouumagarrafadecervejaaZenquanto
falava.—Hórusaindatêmpesadelosasvezes,sentefaltadosoldeNewOrleans.—Eleapontouparaumpássarodecorazuladaocupandosozinhouma enorme gaiola encostada em uma das paredes do local.— Agoravamosprestaratençãonojogo.
—Dequeadianta,comesseatacanteoBrasilnãotemchances!—Como que para desa ar a a rmação de Grande Z, o atacante fez duascoisas:umgolcerteirocontraaArgentinaetodaaplateiadorecintovibrar.MesmoPedro,atentoemsuaobservação,nãopodeesconderumsorriso,quelogosumiuaoveroqueaconteceriaaseguir.—Mas…
— Luke! — Rénee apontou para o homem da caderneta, quecaminhavaentreasmesasatiçandoosapostadores—Semtrapaça!Dean,eleéresponsabilidadesua,façaalgumacoisa.
— Pelo amor de Nibelungos, Lothur, até onde você quer testarminhahospitalidade?—Deanameaçouselevantar.
Ohomemdeuum sorriso amarelo ao ver a gura gigantesca.Natela,anunciavamquejuiztiveradeanularogoldevidoaumafalta.
Foi o limite para Pedro. Disse a si mesmo que estava cansado ebêbadodemaisparasaberoqueerareal,coisaque jádeviaestadesdeo
episódio na estradamais cedo. Se ninguémmais percebia o que aqueleshomensdiziam,oproblemadeveriaserele.Pagousuacontaesaiu.
AultimacoisaqueviufoiocaminhoneiroDeanolhandoparaele.Namanhãseguinte.Oestranhotrioaindaestavanospensamentos
dePedro,masesteseesforçavaparadeixaraquelanoiteparatrásjuntocomaparadadecaminhoneiros.Entãoaconteceudenovo.Umacoceiranoolhoesquerdo e a visão saia fora de sintonia. Tentava permanecer atento aestrada,masasimagenstransmitidasocupavamtodaasuaatenção.Enãoparou,adorfoipiorandoatécegar-lhedosdoisolhos.
Sentiu antes de voltar a ver. Seu corpo foi para trás como quesgadoporumaforçainvisível.Osomdechuvaestourouemseusouvidos,
ocheirodeóleo impregnandotudo.Láestavaoutravez:achuvacaindotorrencialmente.Umcaminhãoentradonasuafrente.Hammer's.Masdestavez suamanobranãoderacertoe ele seviapresoemumacabine sendocomprimidaacadaimpactocontraoacostamentoatépararaopédeumacolina.
Oh,Dean.Não sentia aspernas.Desprendeuo cintode segurança e rastejou
parafora,seagarrandonocapim.Asuafrente,casacoazul,rebites,barbafarta.
— Você foi privilegiado, mas há um preço, entende? — Ele seaproximou dos escombros. Sem encostar em Pedro, pegou o livro queestiveralendonavésperaecomeçouafolheá-lo.—Émesmoumavitimadaprópria consciência. É raro alguém tão irrelevante ser capaz de mereconhecer.
Odin.—Éoolhodevidro,sabe?—Pedrosentiusuaorelhamornapelo
que constatou ser seu próprio sangue. — Por causa desse olho, minhasanidadeescorreentremeusdedosemparaleloasareiasdo tempo.—OolhoesquerdodoDeuscomeçouasedilatar,profetizandooqueestavaporvir em seunegrume.—Ele tem sedede conhecimento.Mas amorte é aúnica coisa que eu não possomostrar a ele. Então, de vez em quando,preciso chegar bem perto para acalmá-lo. — Pedro tentou fazer umapergunta,mas sua voz não chegou à garganta.Nem foi preciso.—Sim,vocêestácerto:olharparavocênessemomentoéomaispertoqueeuposso
chegardamorte.—Nãovaidemorar,e, sevocênãochorar,prometomandaruma
Valquírialheresgatarcomoherói.Aescuridãotomouseusolhos.Peloesquerdoaindaviuumafraca
luz.Efoiemdireçãoaela.
N
CançãoParaVocêViverMaisGianDanton
TenhomedodesersóumAlguémpraselembrarFazumtempoeuquisFazerumacançãoPravocêvivermaisDeixeiquetudodesaparecesseEpertodofimNãopudemaisencontrarEoamoraindaestavalá(PatoFu)
ãoseideondesurgiumeuinteressepeloantigoEgito.TambémnãoseicomochegueiameapaixonarporEla.Nãoseisetudoque aconteceu foi apenas um sonho do qual acordarei a
qualquermomento…Entretanto, ainda que seja um sonho… ainda que ela não tenha
existido… ainda que tudo tenha sido uma loucura, um desvario, comodizemosmédicosquemetratampordoido…aindaassimalgosobreviveu.
Meuamorporela.Seiqueaindanosencontraremos,emoutravida,outraépoca…
Masdevocontarcomoascoisaschegaramatéaqui.Tudo começou comumavontade incontrolável depesquisar tudo
que se relacionasse com o país à beira do Nilo. Era uma daquelasnecessidadesincompreensíveisquenosarrebatamesónosdeixamquandosatisfeitas.
Nãotiveoutroremédio,senãocomeçarapesquisarsobreotema.Procurei por livros, revistas, chafurdei na internet, em busca de
informações.Numa de minhas pesquisas, descobri que o Museu tinha uma
múmia.Eraaoportunidadedetercontatodiretocomoobjetodeminhapesquisa.
Todos sabemqueoMuseu já conheceudiasmelhores e não édesurpreender, portanto, que amúmia não estivesse guardada com grandepompa. Um guia do Museu me informou que a relíquia havia sidoadquiridapeloImperador,quandodesuaviagemaoEgito.Amesmanãochamaraatençãona épocapor ter sido impossível identi cá-la.Era certoquesetratavadeumamulher,talvezdanobreza.Maseratudoquesesabia.
Enquantomedava explicações,oguia ia abrindoaporta.Demoscomumasalaempoeiradapelaqualseespalhavamalgunsobjetosesparsos.No centro dela, um sarcófago. Ao lado do sarcófago, duas piras,evidentementeapagadas,atéporquealipertohaviaumacortina.
Observeiatentamenteosoutrosobjetos.EntreelesestavaumbarcodeOsíris.Eraumapeçademadeira,pequeno,masmuitobemrealizado.Representavaobarconoqualodeussolfaziasuaviagempelocéu.Osírisestavanocentro,comomúmia,assistidoporsuas irmãs ÍsiseNéftis.Umhomem, provavelmente escravo, cuidava dos remos.O guiame explicouquea gurasimbolizavaaviagemdoSolpelomundodosmortos,anoite,esuavoltaàvida,odia.
Concentrei-meemumapinturapenduradanaparede.Umamúmiaestavadeitadasobreumacama,entreduaspiras.OdeusaladoBaestavasobreela,estendosuasasassobreomortoefazendo-avoltaràvida.
— O deus Ba simboliza a sobrevivência física dos mortos. —explicouoguia.Osegípciosacreditavamque,atravésdele,erapossívelao
morto voltar ao mundo dos vivos para visitar as pessoas que lhe eramqueridas…
Pedi,então,quefosseabertoosarcófago.Aimagemdeumamulherapareceu à minha frente. Estava, claro, completamente ressequida, masimaginei que fosse bonita. Era magra, esguia, de traços elegantes.Estranhamente,suasfeiçõesmepareceramfamiliares.
Depoisdeveramúmia,passeiumtemposemiraoMuseuejáiamelivrandodefixaçãopeloEgitoquandoalgoaconteceu.
Euestavaandandoemumaruamovimentada.Foiquandoviumamulhervindoemminhadireção.Elatinhaassobrancelhasraspadaseusavauma peruca negra. Seus olhos, pintados à maneira egípcia, pareciamfurtivosemisteriosos.Elausavaumvestidobrancolongo,comumamplocolar que escondia seus seios. Seus pés vinham calçados em sandálias.Parecia uma mulher egípcia. Estranhamente, só eu parecia ser capaz depercebê-la.
Aomeverelapareceufelizejávinhaemminhadireçãoquandoalgopareceuperturbá-la.Eladesviouoolharetomouadireçãooposta.Corriatrásdamoçaquandopercebiqueentravaemumaruasemsaída.
Quandodobreiaesquina,nãohaviamaisninguémlá.Eracomoseamulhersimplesmentetivessedeixadodeexistir.
Estive perturbado pelo evento durante algum tempo, até que meconvenci que se tratara de uma alucinação. A nal, eu andara pensandomuitonoEgitoeavisãodamúmiadeviatermeafetadodealgumamaneira.
Jáestavaesquecendooassuntoquandoaconteceunovamente.Dessavezeuestavanabiblioteca,naseçãodehistória.Eupassara
poralieencontraraumlivronovosobreosdeusesegípcios.Apoiarameuombronaestanteefolheavatranquilamenteovolume,olhandoas gurasedecidindosedeveriaounãolevá-loparaamesa.Fiqueitãoentretidocomoexamequeacabeimeesquecendodotempo.
Súbito fui dominado por uma sensação de que alguém meobservava.
Quandolevanteiosolhos,deicoma guraegípcia.Dessavezeraela.Não havia como ter dúvidas. Estava vestida como da outra vez, só queagoraocolarhaviasidoretiradoeseusseiosestavamàmostra.Estávamostãopertoqueeupodiasentiroseuperfumeadocicado.
Amoçapareciaquererdizeralgumacoisaeseuslábiosseabriram,masnãochegaramaemitirsom.
Quandodeiumpassoàfrente,elarecuou,indecisasobresedeveriaou não permitirminha aproximação. Por m, decidiu-se e, dando-me ascostas,desapareceuatrásdeumaestante.
Fiqueiatônito.Tivevontadedecorreratrásdela,degritar,mastivemedodequemetomassemporlouco.
Voltei para casa e quei lá, sozinho, meditando sobre o queocorrera.
Milharesdeidéiaspassavamporminhamente.Acabei dormindo. E sonhei. Como todo sonho, este não tinha
lógica.Em determinadomomento eume vi em pleno Egito, trabalhando
arduamentesobosolinclementeeprotegidopelamaquiagemepelaperucadepalha.Algopassapormim.Umamulher.Ela.Nomomentoseguinteeuestouao seu lado, indeciso e inseguro emumamesade jantar.Ela comedelicadamente enquanto sobre sua cabeça um cone de cera derrete,exalandodeliciosoperfume.Elameolhanosolhoseseaproxima.
Antesdenostocarmos,algoaafastademim.Amulhervai candocadavezmaisdistanteeeunãopossoouvir
suavoz.Eucomeçoaserpuxadoparaoladoopostoquandoouçoalgumas
palavras:“Emoutrotempo.Emoutravida”.Acordeiatônito.Eramcincodamanhã.Umimpulsoinexplicáveltomoucontademim.DecidiiratéoMuseu
visitarnovamenteamúmia.Chegando lá, encontrei o vigia dormindo e não tive qualquer
di culdade para pular uma janela. Passei o salão e adentrei a sala dosarcófago.Eumeescondiemumcantoatrásdaportaefiqueiobservando.
Minhavigílialogofoirecompensada.Emdeterminadomomentoasduaspirasaoladodosarcófagoseacenderammisteriosamente.
Atampaseabriu.Uma espécie de névoa tomou o recinto, mas, apesar dela, pude
distinguir quando o deus Ba desprendeu-se da pintura, aumentando detamanho.
Ele voou pelo recinto, emitindo guinchos impressionantes. Entãoparouemfrenteaosarcófagoe couali,paradonoar.Osarcófagoemitiuumaluzestranha.Dalisaiuumamulher.Eraela.
Minha amada andou alguns passou à frente antes de olhar paramim.
Eu lheestendiamãoe ela fezomesmo.Nossaspeles se tocaram.Ficamosali,emsilêncio,aspalmasdasmãosunidas,trocandojurasdeamorsilenciosas.
—Oqueestáacontecendoaqui?—gritoualguématrásdemim.Olheiporcimadoombroeviovigiaapontandoumrevólverpara
mim.Eumeassusteieencostei-meàpira,quecai,levandofogoàcortina.Alínguarubraespalhou-sepelopanoemlabaredasrápidasatéqueacortinatoda se tornasseuma cachoeirade fogo.O fogo se epalhoupor todo oreciento.Procureiminhaamada,mas jáera tarde…ela sumiuemmeioàfumaça…
Quando os bombeiros chegaram, a sala estava completamenteincendiada.Osarcófago,osobjetos,amúmia,estavatudoqueimado.
Ninguémacreditouemminhahistória.Ovigilantedeclarouquenãohavia nada de anormal na sala quando abriu a porta. Fui acusado deprovocar um incêndio criminoso e encarcerado neste hospício. Todosachamquesouloucoequetudoquevinãopassadealucinações.Àsvezesatémesmoeuacreditoqueestoulouco.Entãotenhonovamenteosonhoevoltaacertezadequetudofoireal.
Porissoestouescrevendoisto.OsegípiciosacreditavamquedeusFtáscriouomundoporatosde
seu coração e sua língua. Suas palavras deram origem a toda vida douniverso.
Talvezminhaspalavrasdeêmvidaaela.Tenho a esperança de que possamos no encontrar… em outro
tempo,outravida…
I
BelumArammuGoldfield
loveyou,babe!Iloveyou,babe!IcouldstealtheTreeofLifeforyou…
A voz do jovem cantor ecoava pelo estádio lotado, a agradávelentonaçãosendointensi cadapelosfortesalto-falantes.Umfrenesideluzeseraprojetado sobreopalcoea imensamultidão,banhandoem todasascoresdoarco-íristantoasfacesdasfrenéticasfãsdoastro—quegritavamdelirantes—comoadelicadafacedocantor,quasetãoalvaquantogiz.Oscabelosloirosestavamempapadosdesuor,mastalfatonãotiravadoídolomusicaladolescenteseuapeloentreasgarotas.Vestindoroupasdespojadaselançandobeijosparaaplateia,orapazsedespediuagradecendojuntoaomicrofone,aomesmotempoemqueasguitarraseabateriadabandaqueoacompanhavamacadaapresentaçãogradativamentesesilenciavam.
Ignorandoasgarotasquedesmaiavamemmeioàaglomeraçãotantode emoção quanto por conta do cansaço causado pelo show que seestenderaporhorasa o,oastropopdesapareceunumacortinadefumaçapirotécnica,ganhandoosbastidorescomosmúsicosainda lançandosuas
últimasnotasaofundo.Alguns empregados da trupe de sua turnê mundial vieram
rapidamenteaoseuencontro.Umatímidameninadeaventalbranco,nãomuitomaisnovadoqueele,trazia-lheumagarrafadeáguamineralnumabandeja.Umhomemuniformizadojádecertaidade,responsávelporboapartedoqueocorriaatrásdopalco,recebeuseumicrofone.E,emmeioaosdois,logoapareceuafamiliar guradeumhomemumtantoobeso,carecae sempremetidonum ternonegrode grife. Seu el empresário, o senhorEnk.
—Beloshow,Gil,beloshow!—eleerasóelogios,comodecostume.Trazia, naquela ocasião, o exemplar de um conhecido jornal numa dasmãos.—Asmanchetesnãomentem!“GilAmeshfazJustinBieberparecercantordechuveiroentreopúblicoteen”!
—Hã?—replicouoídolo,passandoumadasmãospeloscabelosesorrindonumaexpressãodedeboche.—QuemdiaboséJustinBieber?
Enkriudapiada—eoastronãosoubedeterminarseo zeraporterachadograça,ouapenasparabajulá-lo.
Acarreiradojovemcantormostrava-se,atéomomento,meteórica.Alguns meses atrás lançara o single “Uruk”, antes disso constituindocompleto desconhecido. Sua ascensão dera-se de forma intensa evertiginosa, com o garoto de dezessete anos logo ilustrando as capas detodas as revistas adolescentes, sendo por elas agraciado com o título de“SenhordoAmor”—porsinal,nomedeumadesuasmúsicas.Atéosmaiscríticos reconheciamque sua voz era estupenda, divina—parecendoatédádivaconcedidaporforçaexterioràTerra.Jáonomeartísticoforaideiade seu empresário: “Mattween Jones” não era lá um nome muitoimpactante para um ídolo pop; além do que, poderiam acabarconfundindo-ocomumaoutra“Jones”quehavianomeio.“GilAmesh”soavaexótico,eraalgooriental—ecoisasassimandavamnamodaentreosjovens. Se bemqueGil não sabia dizer se essa alcunha vinha damesmapartedoOrientequeosmangáseanimes…
Ocantoradentrouseucamarim,acompanhadodepertoporEnk.Tomando um gole da água mineral, o jovem acomodou-se na cadeirapresentediantedeumespelhoiluminado,enquantousavaaoutramãoparaenxugarosuordesuafacecomumatoalha.Ansiavaporumbanho,mas
antes tinha de ouvir o que o empresário tinha a lhe falar. Ele sempreprecisavafalaralgo.
—Diga!—Gilcedeu-lheapalavrasemmuitoentusiasmo.— Nesta madrugada tomaremos o jato às três e meia rumo ao
México.O fã-clubedeAcapulco enviouuma sériedepresentes.Amaiorparteécomida.
—Ótimo,adorotacos!—riuoastro.—Algomais?—Aquelafãmisteriosaenviou-lhe oresnovamente.Éotrigésimo
sétimo buquê em ummês. Ainda se recusa a ter um encontro com ela?Poderia ser bom para sua imagem namídia. Até vejo os tabloides:“GilAmeshrealizaosonhodeumafã”.
—Estábrincando,né?Essaminasópodeserdoente!Porenquantonósapenasaignoramos,masjáestouficandocommedo.VaiqueeladecidedarumadefãdoLennon.Liguepraelaemandeelaparardeenviarcoisas!
—Mas,senhor…—Enkparecia,poralgummotivo,maisinsegurodoquedeveria.
—Quefoi?Ésóumafã.Deondesaiuessa,háoutrasmilhões.Nãovainosfazerfalta,garanto.
—Bem,seassimdeseja…Dizendoisso,oempresário,comarpesaroso,dirigiu-seatéaestante
ondeeramcolocadospresentesdasfãsdocantor.Dentreumamontoadodefotos,cartaseatépeçasderoupaíntima,Enklogoapanhouumbuquêderosasvermelhas,arrumadoembeloarranjo.Opequenocartãopossuíaumnúmerodetelefoneeamensagem“DeTharsiparaGilAmesh,comamoreadmiração”.
— Como é mesmo o nome dela, “Tharsi”?— Gil indagou comdesdém.—Deondeseráela?DoIraque?
Sem responder,Enk caminhouaté uma lixeira no cantoda sala enela atirou as ores. Retirou em seguida seu celular do bolso e saiu docamarim, enquanto o ídolo se trocava, para fazer a ligação que lhe foraordenada…
***
Apósobanho,Gilpuderadormirbempoucoatéqueohoráriopara
aviagemrumoaoMéxicochegasse.Jáestavahabituadoàagitadarotina—portantonãomais se incomodava. Sentando-se na improvisada camadocamarim, acionou bocejando o interruptor de luz na parede. Sala vazia,portatrancada.LogoEnkviriaconferirseelejáestavaprontoparaseguiratéoaeroporto, tendopoucosminutosparasearrumar.Estavadisposto,porém,a fazerascoisascomcalmadaquelavez,eoestranhosilênciodoladodeforaomotivouaabandonarapressa.Levantou-se,calçouasmeiase ligou a pequena TV existente no recinto. Àquele horário os canaiscostumavamtransmitirprogramasimprópriosparamenores—enenhumadultoestavaporpertoparaimpedi-lodeassisti-los…
—Atençãoparaoboletimdeemergência…Quê?Pareciaqueotelejornalaindanãohaviaacabado,eamesma
coisa se repetia em todos os canais. Gil passou a alternar-se entre eles,constatando que todos exibiam reportagens ao vivo pelo mundo. Asonolência foipassando,e logoogarotopôde identi caraspaisagensdeParis,Cairo,NovaYork…mastodascomváriosfocosdeincêndio,pessoascorrendoaosgritospelasruasepolíciamobilizada.Achouestardentrodeumpesadelotragicômicoquandoleuotítulodamaioriadosboletins:
—Osmortosandam?Osrepórteresdesesperadosapontavamparapessoascomsangueem
suas roupas e partes do corpo faltando que, movimentando-se comosonâmbulas,atacavamcidadãosportodoogloboaovivo.Astomadasemtemporealseconfundiamcomvídeosdecâmerasdesegurançamostrandocenas como os cadáveres de um necrotério acordando ou um defuntodestampando seu próprio caixão durante um funeral.O pior era que aspessoas atacadas pelos mortos canibais se levantavam pouco depoisconvertidasemmaisdeles.NaspoucashorasemqueGildormira,o mdomundoaparentavaterseiniciadoatodovapor!
Súbito, a porta do camarim foi aberta num estrondo. O rapaz,coraçãodisparado, voltouos olhos para fora, temendoque os zumbis ohouvessemencontrado.Mastratava-seapenasdeEnk,eeleestava…vivo.Se bem que, com as vestes ensopadas de suor e o olhar totalmentetranstornado,apresentava-seemestadoqueojovemnuncaviraantes.
—Vocêsabeoqueestáaconte…— Gil Amesh! — bradou o empresário, olhos arregalados e
respiraçãoofegante.—Oquevocêfez?—Eu?Eunãofiznada!Algumvírusquefez…seilá!—Aquelafã…nãoeraumafãqualquer!—Comoassim?Trêmulo,Enkajoelhou-sejuntoàlixeira,conferindomaisumavezo
bilhetejuntoaobuquêdesprezado…“Tharsi”.Anagrama,umpassatempodospovosantigos…
—Ishtar—eleconcluiunumtomsério.—DeusaIshtar.—Doqueestáfalando,Enk?Oempresáriosuspirouerespondeu:—Digamos…queseunomeartísticonãofoiumameraescolhapara
seguiramoda!—Comoassim?—JáouviufalardeGilgamesh?Seuxará?Sim,elejáouviranaescola,quandooprofessordeHistóriaexplicara
sobre a antigaMesopotâmia e suas lendas — não que houvesse ligadomuito para isso. O tal Gilgamesh, parte homem e parte deus, eraprotagonistadaprimeirahistóriadeheróiconhecida,registradaemtábuasde argila. Ele buscava a imortalidade ou algo assim. De certa formaconseguira…
—Quetemele?—Gilgamesh conseguiu a imortalidade graças a umpacto secreto
comodeusAnu.Dissoalendanãofala.Acadageração,Gilreencarnasuaessência num novo corpo, assim jamais abandonando o mundo dosmortais.AlgunsdosnovosnomesdeleconstituírampersonagensdegrandeimportâncianaHistória.OprimeirofamosofoiAlexandreMagno…
—Como assim, você não pode estar falando sério… Eu sou umdeles,então?
—Correto.—Sópodeestardebrincadeiracomigo!—Eugostariadeestar,meurapaz.—Eeunãopoderiaterdadooforanessadeusa?—IshtarsemprefoiapaixonadaporGilgamesh,maseleaignorava.
DaprimeiravezelapediuaodeusAnuquelheemprestasseoTouroCelesteparaquepunisseomeiodeuspelaousadia.Casoelenãocedesseoanimal,
Ishtar despertaria osmortos para devorarem os vivos.Anu com isso lheconcedeu o Touro, que acabou derrotado pelo astuto Gilgamesh. Ishtarnunca desistiu de seu amor, mas continuou sendo rejeitada por suasreencarnações.AnusemprelheemprestouoTouroparasevingar;masdaúltimavez,naSegundaGuerraMundial, eleacaboucausandodestruiçãodemais.CreioqueagoraAnutenhanegadoaelaoanimal…
E os mortos despertaram para devorar os vivos. Ótimo. Perfeitoapocalipsezumbi.
—Oquepossofazerparareverterisso?—Agoranãoháescolha:terádeaceitarIshtarcomosuaamante.Só
issofaráosmortosdormiremnovamente!Quandoogarotodeuporsi,haviaalguémmaisnasala.Umagarota
de cabelos pretos, pele bronzeada e olhos cheios de delineador. Vestiasobretudoescuro,combotasmarrons,eseuarimpunhamedoaoambiente.Suaidadeera,aparentemente,amesmadeGil.Ishtareraumaadolescenteousada.
—Eentão,meulindo?—elainquiriu,vozimpositiva.—Aceitaráminhagentiloferta?
—Eutenhooutraopção?—ogarotodemonstravamedo,algoquecontrastavatantocomseuglamourdepop-starquantocomsuaditaorigemlendária.
— Se quer salvar essas pessoas…— e a garota lançou um olhartraiçoeiroparaEnk.—Não.
Vendo-seacuadoesuando,GiltambémtrocouolharescomajovemIshtareseuempresário,antesde nalmentereplicar,torcendoparanãosearrependereseesforçandoaomáximoemveroladobomdasituação…Seéquerealmentehaviaum:
—Sim…Uma namorada para o rei do pop cairia bem, a nal de contas.
Divinamentebem.
A
OAvesodoExemploSarahMicucci
res estava entediado. Inquieto. Os nervos clamavam disputa.Desdeaguerradetitãs,nadaaconteceranoOlimpo.Oentornoestavaenfadonho.Umaperguntaincessantecutucavaseujuízo:
“comotrazerdevoltaaemoçãoaesselugar?”.ApelarparaZeus?Otodo-poderosonãooescutaria,a naldecontas,apazeraseuintuitomaior.Masodeusdaguerraqueriaembate.Luta.Diversãocomsangue.E,naânsiadeserouvido,partiuparaareclamação.Queriaatingiroápicedaneurose.Ocumedoincômodo.Atáticapoderiaseroiníciodeumbeloconflito.
“DrogadeOlimpo…”,blasfemouemaltoebomsom.Estaúnicafrase, de três míseras palavrinhas, foi o bastante para Zeus, o deus dosdeuses,darumpontapédesmesuradoemAres.Atototalmentedesprovidodeapreço.Nadadenovo,noentanto.Zeuspai,defato,preteriaAres,seulho,queporsuavez,teimavaemnãoabandonaroseugostoexacerbado
pelaguerra.Gostosabiamentedesapreciadopelosdeusesgregos.OchutedeZeusfezArescairduranteumdiae nalmenteestatelar-
se no chão das arábias: ele acabara de aportar num lugar inóspito e aomesmotempoapinhadodegente.OOlimpoficarapratrás,muitíssimoparatrás.Ares,aindatontoemvirtudedaqueda,percebeuqueresvalaranoalto
de um morro. Começou a prestar a atenção ao cenário. Que lugar tãointeressanteeraaqueleondeoshomensnãoparavamdesedigladiar?Filasintermináveis de civis entrincheirados, sequiosos de destroçar tropasinimigas.Cardápiovariadíssimo:explosivos,armas,mísseis, foguetes.Queprazer de lugar. E Ares deu-se conta de que caíra no fogo cruzado daFAIXA de GAZA. No ponto de ebulição de facções terroristas. E oinesperadoaconteceu:questõesmundanas,derelesmortais,surpreenderamosenhordaguerra.
No Olimpo, ele jamais dera ouvidos às discussões relativas àhumanidade. Nos jardins de sua lógica egoísta e arrogante, os seusinteressestinhamolhossomenteparaosimortais.Aresnuncaparticiparadenenhumadecisão relativa às guerras entre os humanos, comoapoiar, ouimpugnaralgumdisparodosEstadosUnidos.Ouinterferirnumarebelião,docomandovermelho,noBrasil.Paraele,asdisputasdosmortaispairavamsemprenoâmbitodomaissuculentodesdém.
Em Gaza, por outro lado, o olimpiano visualiza um festival deviolência.Arotinadocenárioé tingir-sedevermelho-sangue.Aresanseiaentrarnaquelaarenadefogo.Eentãodecideassumiraformahumanadeum islâmico, ncar a bandeira da hostilidade na Faixa, e partir para oataqueaIsrael.Alia-seaogrupoterroristaHamas,emnomedaconstruçãodanaçãopalestina.Conseguealiderançanoataqueeabusadobombardeiode foguetesQassam, alémdos russosKatyucha.Esses últimos umpoucoartesanais,masnãomenosquedevastadores.Emtrêsdiasdeguerraalvoshumanos espatifam-se no chão. Cacos de gente por todo lado. Rios desangue.Adultos e crianças dilacerados. É omassacre compulsivo ariano.Cada disparo acionado por Ares é acompanhado de urros. Grunhidosestridentes.Berrosdeeuforiaemcomemoraçãoaosestourosdoshomens-bomba,criteriosamentetreinadospeloHezbollahdoLíbano.
Contudo, ainda que altamente embriagado de contentamento ediversão,odeusgregonãotardaaperceberagrandezadoarmamentodeIsrael.Aresvisualizaapossibilidadedepotencializaraguerra:ooponenteémuito mais bem preparado em termos de armas. A nação judaica estálotada de caças F-16, mísseis Popeye e satélites Ofek-7, capazes deidenti carpossíveisalvosultradistantes.Aconstataçãodagrandezabélicaisraelitaéosu cienteparaoolimpianomudardelado.Aresagoraéjudeu:
pulaparaoladodeIsraelecomeçaacontrabombardearGaza.Seudelírioaumenta.Éoêxtasedadestruição,oápicedocerceamentodevidas.Areslideraas tropas judaicas. Instiga combatentesaomáximo.Cadapentedebalas que pululam nos ares, é comemorado com pulos colossais do seuânimo. É o retorno da emoção. Em quatro dias de guerra o número demortosagiganta-se.Jásãomilharesdemulçumanosárabesamontoadosesemvida.
A matança estava atingindo um nível estarrecedor. Os dadoschamavamaatençãonãosomentedomundo,mastambémdoOlimpo.OgatilhodairadeZeusfoidisparado.Otodo-poderosoordenouqueAtenafosseatéAres e trouxesseabesta-feradevoltaaoPaláciodoOlimpo.Odeus dos deuses precisava puni-lo, mais uma vez, por seus atos deselvageria.EproibiroseuretornoàTerra.
ComapresençadeAres,opânicodoOrienteMédiotransbordou.Aesperança andava tropeçando por ali. Mães transpirando pingos dedesespero. Ares era o anti-herói que, a seus lhos, dava o avesso doexemplo. O senhor da guerra não tinha limite. Seu instinto belicoso jáestava,inclusive,começandoafarejaroprogramanuclear,esecreto,doIrã.Odeus da guerra percebia a possibilidade do início da extinção da raçahumana, dispondo apenas de uma bomba nuclear iraniana. A guerrapoderiatornar-seaindamaisapetitosa.
Comaganaexasperadadosdonosdarazão,Atena,disfarçadadehumana e usando burca, ancorou em Israel. Ares era a sua mira.Prontamente a deusa da sabedoria induziu um judeu a acertar a pernaesquerda do deus da guerra comumabala perdida.O olimpiano urrou.Dessa vez de dor. Lançouuma tempestade de insultos emAtena, que selimitouarelatarasordensdeZeus.Ares,espumandodeira,retornouaoOlimpoondeseriajulgadoporacirrarocon itoislâmico-judaico,einstigaracarnificina.
AreseoOrienteMédiotinhamalgoemcomum.Avidapermeadadeinfelicidadeearesistênciaemenxergarqueointuitomaior,tantodeZeus,quantodeAlláoudeJavé,eraapazentreosseus.
O
OhomemeasararasRobertaSpindler
segundodiadomêsdeabrilamanheceuensolarado,deixandoparatrásumalongasemanadechuvaseruasalagadas.Comoeracostumenaquelacidadelocalizadanaregiãoamazônica,o
calorjácastigavamesmonosprimeirosmomentosdamanhã.Àsoitohorasemponto,osportõesdoMuseueParqueZoobotânicoforamabertos.Umaentusiasmadaexcursãodecolégio,quejáesperavacomingressosnamão,entrounumadesenfreadacorreria.Enquantoamaioriadascriançasqueriaver a já famosa onça pintada, dois garotos tinham outros planos.Simulandoumgrandeinteresseporumacutiaquecaminhavasoltanomeiodas árvores, conseguiram se afastar do grupo sem a professora notar epartiramanimadosparaoaviário.
Ospássaroseramseumaiorinteresseeosdoismeninosdedozeanosse orgulhavam bastante em saber o nome de quase todas as espéciesamazônicas.Eramfascinadospelogavião-rei,divertiam-secomoestranhoformatodobicodocolhereiroeadoravamadiferençadecoresdogalo-da-serra.Entretanto,nãohaviaavemaisadoradapelosdoisdoqueaarara.Eramsimplesmenteapaixonadosporaquelesbichos.
Algunsdiasantes,souberamporumjornalqueosovosdeumadas
fêmeastinham nalmentechocado.Eagora,malpodiamconteraexcitaçãocomapossibilidadedeveros lhotesaovivo.Correrampelochãodeterra,conversandodemaneiraalegreedescontraída,maspararamderepenteaoavistaremumhomemmuitoestranhoemfrenteàgaioladasararas.
Sentado em um banco demadeira e semmover ummúsculo, eleobservava as aves com um olhar triste. Era bastante magro e tinha asroupaseoscabelosnegrossujosdeterra.Osdoisgarotosseentreolharam,descon ados e um tanto temerosos. Estavam assustados não tanto porcausadaaparênciadoestranho,massimpelareaçãoqueelecausavanasararas.Todaselasestavampenduradasladoaladonogradeadodajaula,olhandofixamenteparaseuadmirador.
— O que você acha que eles estão fazendo?— um dos garotosperguntouemvozbaixa.Nãohouve tempopara que o outro formulasse uma resposta, pois duasmãostocaramemseuombro,quasefazendo-ogritardesusto.
—Pedro eLucas!Eu sabiaque ia encontrar vocês aqui.Quantasvezestenhoquedizerparaque quemjuntodogrupo—eraaprofessoraTeresa.
Imediatamente, os garotos gesticularam para que ela se calasse,apontando para o homem em frente à gaiola.Descon ada, a professorafranziu o cenho e tou o estranho, que parecia alheio àqueles que oobservavam.Emsilêncio,eleretirouuma autarústicadasvestes,feitademadeiraecipó,edecidiutocá-la.
No momento em que a melodia começou, algo inexplicávelaconteceu. As araras se alvoroçaram e começaram a gritar, como seestivessemacompanhandoomúsico.Semsaberomotivo,osgarotosesuaprofessoraforamtomadosporumatristezaquepareciaconsumi-los.Todosos seus erros e falhas de conduta tornaram-se vivos e recentes,atormentando-oseexigindoumjulgamento.
A professora foi a primeira a cair no chão, implorando porclemência.Seussoluçoseramquasetãoaltosquantoogritodasararas.Osdois garotos se arrependiamde falhas pequenas—umamentira paraospais,umroubodebrinquedo,umacolanaprovadematemática—massuaslágrimaseramgrossasecheiasdesentimento.
Derepente,amúsicaparoueumsilêncioprofundopareceutomar
conta de todo o museu. O misterioso tocador de auta guardou seuinstrumentoesuspirouprofundamente,pareciaaindamaismagrodoqueantes.Seusolhosnegrosdeixaramajaulaagoravaziae taramocéu,ondeumgrupodeararascoloridasvoavacadavezmaisalto.
Apavorados,PedroeLucaschamaramsuaprofessoraqueaindasecontorcia no chão. Suas vozes,mesmo que baixas, acabaram atraindo aatenção do homem, que decidiu se aproximar. As duas crianças nuncasentiram tanto medo em sua curta vida, mas algo as impedia de fugir.Talvezapoderosaauraqueagorafaziaoestranhoquasecintilar.
—Oqueaconteceu?—Pedroperguntouquandojánãoexistiamaisdistânciaentreeles.—Oquevocêfezcomasararas?
Ohomempassouosolhospelaprofessoracaídaedepois xou-osnosgarotos.Ajoelhou-separaficarnamesmaalturaqueeles.
—Elas precisam estar soltas para levaremos homens de volta aocéu.
Avozdeleeraumamisturadetrovãoemúsica.Pousouasmãosnacabeçadosmeninosesorriudemaneiramelancólica.
—Vocêssãoboascriançaseaindaouvemminhaflauta.Ficofeliz.— A professora Teresa também ouviu, mas está passando mal
agora!—Lucasacusou.—Elanãosecomportoudeacordocomaboaordemeagoraos
espíritos malé cos a maltratam. Não posso mais salvá-la — o homemadotouumaexpressãodedesapontamento.Deperto,erapossívelnotaraspinturasemseusbraçoseosalargadoresdemadeiraemsuasorelhas.
— Você é um índio? — perguntou Pedro, sempre um ótimoobservador.
—Eunão entendoo signi cadodestapalavra…—o tocadordeautarespondeu.—MasmeunomeéAkuandubaesouosenhordopovo
docéu.Ao ouvirem aquelas palavras, os garotos trocaram olhares
assustados.—Querdizerquevocêviveláemcima?—Lucasapontouparaas
nuvens.O homem anuiu em silêncio e se levantou. Estava pronto para ir
embora,mas foi seguro pelamão. Pedro ainda não tinha terminado seu
interrogatório.—Espere!—sentiuumformigamentonamãoemcontantocoma
pelebrilhante.—Sevocêmoranocéu,entãooqueestáfazendoaquinaterra?
Osolhosnegrosse xaramnosdoisgarotoseAkuandubapareceuponderar se continuava aquela conversa ou não. Por m, decidiuresponder:
— O povo do chão não tem muito mais tempo. Seus erros sóserviramparacon rmarquesuaquedademeureinofoiacertada—tinhaotom sombrio. — Entretanto, nem todos devem perecer. Ainda existemalgunsqueescutamminha auta,queestãodispostosaseguirocaminhocorreto.
Eleretiroua autaetocouumamelodiaderitmomaisagitado.Derepente, os garotos foram acometidos por diversas imagens desconexas.Haviafogoportodooplanetaeochãorachava-se,derrubandoprédioseárvores. Uma fumaça espessa encobria o céu, impedindo que as estrelaspudessem ser vistas. Diante daquela desgraça, as pessoas brigavam egritavam, cometendoasmaisdiversas atrocidades.Nomeiodo caos, umenorme bando de araras surgiu. Envoltas numa aura dourada, elassobrevoaram a multidão ensandecida e começaram a resgatar algumaspessoas.Juntas,agarravamasroupasdoescolhidoebatiamsuasasascomforça,levando-oparaalémdafumaça,emdireçãoaoreinodocéu.
Quandoamúsicaacabou,Akuandubaobservoucommelancoliaaexpressãoassustadaquemarcavaorostodosmeninos:
—Agoravocêsjásabem—tocounoombrodecadaum.—Sejamfortes e mantenham-se no caminho certo. Desta forma, quando a horachegar,asararastambémirãoresgatá-los.
A luz que envolvia o corpo de Akuanduba coumais forte e osmeninos não conseguirammais olhar para ele. Sentiram o peso em seusombrosdesaparecere,numpiscardeolhos,tudovoltouaonormal.Alémda professora, que começava a dar sinais de vida, estavam sozinhos emfrenteàjauladasararas.
—Meudeus!Oquefoiqueaconteceu?—perguntouTeresajáselevantando.—Eusómelembrodeviraquibuscarvocêsdois…
Osgarotosseentreolharamcomumaexpressãodedúvidanorosto.
— A senhora desmaiou — disse Pedro. — Nós já íamos buscarajuda!
Numprimeiro instante, Lucas cou chocado com aquelamentira,masdepoisacaboucompreendendoqueaprofessoranunca iriaacreditarnoquerealmentetinhaacontecido.Sónãoconseguiaentenderporqueelanãolembravadenada…
—Nossa,eurealmentenãotomeiumbomcaféhoje.Achoquedevetersidoisso…—elatirouaterradasvestes.—Bom,garotos,vamosindo.Temosquenosjuntaraorestodaturma.
A excursão continuou normalmente, mas Pedro e Lucas nãoconseguirammaissedivertir.Ficaramcaladosduranteorestododiaenemsedespediramquandovoltaramparaaescola.Assimquechegouemcasa,Pedro disse que não estava com fome e foi direto para o seu quarto.Imediatamente, ligou o computador e foi procurar alguma informaçãosobreAkuandubana internet.Quandoterminou,apanhouseucelulardedentrodamochilaedigitoualgunsnúmeros.
—Lucas,soueu—disseaoouvirumasaudaçãonooutroladodalinha.—Escuta,euacheialgunssitessobreessetaldeAkuanduba.Aoqueparece, a tribo dos índios araras tem um mito que fala da criação douniversoeAkuandubaeraodeusqueprotegiaessepovo.
—Pedro,eunãoseioquepensar.Comoaquelehomempodeserumdeus?—Lucaspareciamaisnervosodoqueantes.—Estou commedo!Achoquevoucontartudoparaosmeuspais…
Aoouviraquelasúltimaspalavras,Pedrofezumacareta.Lucasnãoentendiaquecontaraverdadenãoiriamudarnada.
—Eicara,nãofaça isso!Sabedeumacoisa?Euachoqueaquelehomemestavamentindo.Achoqueelenãoédeusnenhum,sóumaespéciedemágico.
—Maseasvisões?—Ilusõesoualgumahipnose— tentou racionalizar.—Vamos,a
gentejáviuessascoisasmaisdemilvezesnatv.Depoisdemaisalgunsminutos,Lucaspareceuseconvencerdeque
tinhapresenciadoumafarsa.Desligoucomavozmaisalegreegarantiuquenão iriacontarnadaparaninguém.Pedrosuspiroualiviadoevoltousuaatençãoparaocomputador.Tinhaconvencidooamigodequetudonão
passavadeumamentira,massabiamuitobemquepresenciaraalgoúnicoeinexplicável. Descobriu que a universidade local tinha um pesquisadorespecialistaemmitosindígenaseanotouoseunomenumpedaçodepapel.Estava decidido a aprender mais sobre Akuanduba e os índios araras.Talvezdessaformapudesseevitarquesuasvisõessetornassemrealidade.
Enquantodiscavaonúmerodopesquisador,nãonotouaararaazulque acabara de pousar em sua janela e agora o observava com olhoscuriosos.
M
SofiaSamuriJoséPrezza
ar sereno, semondas.Umcasal sediverteemum iate.Nemimaginam que estão sendo observados. Tritão, lho dePoseidon,Reidosmares, está coma suamaisnovaamante
mortal.Elesónãosabiaqueabelezadelaestavaatraindooutrosolhares.OpoderdeTritãoéodeacalmarosmaresparaqueacarruagemde
seu pai possa deslizar sobre as águas. Mas também, quando quer,transforma omar num espetáculo assustador. Foi ele que deixou omarcalmo,paraquesuaamadanãoficasseenjoada.
Seu tio Zeus, senhor de todos os deuses e irmão de Poseidon, jávinhacuidandodestamortalhátempos.Ele,queadoraumrabodesaia,coufascinadoquandoaviupelaprimeiravez.Estavaàespreitadeuma
chanceparaabordá-la.So a,quenãosabiaqueTritãoeraumdeus,adoravahomensfortes
ebeloscomoele.E,alémdetudo,erarico.Tritãohavialheditoqueesteiate,quejáeragrande,eraumdosmenoresqueafamíliapossuía.Ocasalhá uma semana estava viajando naquele barco. E, é claro, nada faziam.Diversosempregadosfaziamtodooserviçopesado.So aeTritãoestavamnacabinedecomando juntos.Quasenuncasedesgrudavam.Viviamaos
beijos.Semprearranjavam,todososdias,umtempopara carnoquartoseamando.Zeusviuqueissonãotinhahoracertaparaacontecer.Foinestemomentoqueteveumaideianadaoriginal,porémsempreeficaz.
So a disse para Tritão que ia se deitar, pois estava um poucocansada. Zeus aproveitou essa chance. Ele sempre se disfarça paraconquistarumamortal.Emoutrasconquistasjásetransformouemcisne,touroeatéemárvore.Mas,nestemomentoemespecial,lembrou-sedoReiAn trião, de Tebas. O rei estava numa guerra e Zeus, sabendo disso,transformou-se nele e levou a rainhaAlcmena para cama.O fruto destaconquistafoiHércules,osemideus.
VendoqueSo asepreparavaparairparaacama,transformou-seem Tritão. Entrou no quarto antes que alguém do barco o visse. So ainicialmenteestranhou,porqueseuamadohavia lheditoque cariamaisalgumtemponoconvés,poisadoravapilotarestanave.Mas,comogostade sua companhia, nada perguntou. Zeus começou a tirar sua roupa edeitouaoladodesuamaisnovaconquista.Onovocasalcomeçouafazeramor.So apercebeuqueTritãoestavadiferente.Eleagiacommaisvigor,maisvolúpia,masnãoestavatãocarinhosocomosempre.Zeussabiaqueesta oportunidade seria única, pois, se Tritão descobrisse, haveriaconsequências.Eleestavaincansável,eSo aestavaadorando.Ficaramumbomtempoassimjuntos,masZeussabiaquetinhaquesumirlogo.
So aestavaextenuada.Zeusaproveitouqueelafechouosolhosporalgunssegundosesumiu.Amoçalevantou-seesevestiu.Foiaoconvéseviuoamado,conversandocomumfuncionáriodobarco.Abraçou-oportrás e agradeceu pela tarde maravilhosa que tiveram no quarto. Tritãoolhou-a espantado e lhe informou que não havia saído, em nenhummomento,doconvés.Aindalhedissequeacreditavaqueamoçahaviatidoapenas um sonho muito bom. So a saiu de perto achando que Tritãoestava brincando consigo porque o casal estava próximo a um doscomandadosdele.
Tritão achou isso estranho e começouadescon arquehouvessealgoerrado,masnãosabiaoqueera.FoinessemomentoqueZeus,numabrincadeirademaugosto,apareceuaoseuladoecochichouaoouvidodeseu sobrinhoqueessamulher eramuitoboade cama.AntesmesmoqueTritãosevirasse,Zeusdesapareceu.
Tritão coufurioso.GritouparaqueZeusvoltasse,chamando-odecovarde. Não percebeu que o mar estava cando revolto. Tudo o quequeriaerasuavingança.So aassustou-se.Otempofechou.Ondasenormesbatiamnocascodobarco.CadagritodeTritãocomalguémqueelanãovia,umtrovãorugianocéu.NãosabiaelaqueeraarespostadeZeus.Osfuncionários, que na verdade eram servos dos deuses, nem ligavam. Jáviram muito dessas brigas por mulher. Tritão, antes de conhecer So a,sempreforaumgrandemulherengo,comoseupaiPoseidoneseuprópriotioZeus.Masagoranão,poiseleamavaSofia.
De repenteZeus aparece, atrás de Tritão. Este se vira e encara ochefão do Olimpo. Zeus chama-o de criança mimada, que sempreconseguiatudooquequeriacomajudadeseuspoderes.Tritãorepele-oefala que desta vez foi diferente, pois não havia feito nada divino paraconquistá-la.
So amalconseguiamanter-sedepé.Aáguainvadiaobarcoeelanãoestavaconseguindoentrarnasuacabine.Foiaíqueopioraconteceu.Quandoelatentaconterosdoisseresolimpianos,escorregaeseseguranaborda do barco. Eles nem perceberam. Tritão não acreditava que Zeuspoderiatê-loenganado.QueriaqueZeussofressecomoeleestavasofrendo,masnãosabiacomo.Zeussempreescapouilesodesuasaventuras.Pormaisque quisesse, nada podia fazer. Então desferiu-lhe um chute violento nomeiode suaspernas.Não resolveria,maspelomenosZeus cariaalgumtemposemaprontar.Zeusajoelhou-secomadoreenviouumraionopeitodeTritão.Obarcoestremeceue, juntocomumagrandeonda,derrubouSo a,que,desesperadapornãosabernadar,começouaafundar.Osdeusesbrigõesnãoviramoqueaconteceucomoobjetodesuadisputa.
Logoapósessabatalhaentredeuses,ZeussomeedeixaTritãosó.Foiquandodecidiuprocurar suaamadapara sedesculpardoocorridoeexplicar tudo.Não a encontrava. Passoupor todos os quartos, todos oscantosdoiateenãoavia.Entrouemdesespero.Nessemomento,seupai,Poseidon, que já fora informado de tudo o que aconteceu, subiu dasprofundezasdooceanocomSo aemseusbraços.Elajaziamorta.Haviacaídodobarcoeseafogado.
Tritãonãosecontinhaemtristeza.SeZeusnãotivessefeitooquefez…Seelepróprionãotivesse cadoemfúria,transferindotodasuaraiva
paraomar.Seeletivessemantidoseuamoremseusbraços.Se…Se…Se.SabiaqueaculpaeradeZeus,mastambémtinhaerradoemdeixá-lasó.
Zeuscompadecidoevendoquesuabrincadeirinhasexual,seujogodesedução,tenhasetransformadoemumatragédia,levouocorpodeSo apara o Olimpo, transformou-a em deusa e devolveu-a para Tritão,desculpando-se.
A nova deusa dos animais marinhos, agora junto de seu amado,singroutodososmares,conhecendoomundointeiro.
M
Louva-a-deusRamondeSouza
alditosejaorelógio,quebradoefurado,deixadodeladosempilha na noite de ontem. Atrasou-me hoje pela manhã. Areunião de negócios começara sem mim, xingamentos
cabulososcertamenteforamoestopim.Arre,quemesmoassimmearrasto!Acordo,bebo,melavoepasso!
Doucomidaaogato,leioojornal,assistoasnotícias.Ah,quedelíciaopãoquentinho feito em minha nova torradeira, comprada com suor de umsalário medíocre, que quase todo é engolido pelo injusto aluguel docubículo que chamo de meu. Paredes pichadas, janela quebrada, oitavoandar!Vistabonitaparaomar,oqueatrapalhaéobarulhodecaminhão,motoebuzão.
Nemsepreocupanão, lho!Estouacostumadoaviversozinho!Vailácomsuamãeparaoexterior!Éisto, lho.Avidaéassim.Vocêestuda,trabalha, e ela lhe dá um belo pontapé que te joga no inferno. Suor,lágrimas, sorriso e tristeza. Foi só um documento mal colocado! Pastaerrada, seção equivocada. Meu velho sempre me dizia, que “na cidadegrande,oshominãoprestamatençãonoquevocê fazdebom,sóoquevocê faz de ruim”. Acredita, lho! De quinhentos reais, passei a ganhar
míserostrezentos!Masnão carece não.O importante é dar a volta por cima, surgir
novamentedecabeçaerguida.Nãochorar,fraquejar,senãoaíéqueelesmontamemcima.Masquedáraiva,dá!E todoaquele trabalhopesado,cafépassadoepapelarquivado?Tudoparaolixo.Agoramalmesustento!Vivopedindounstrocadosdecomissãoparapagaropãodeamanhã.
Etudooquemepassanacabeçaé:ondeDeusestáessesdias.Nãomeolhaassimnão,homi!Fuieducadoparairàigreja,todosos
dias.Liabíbliaquandotinhaoitoanos.Oito!Meuspaisqueriamqueeufossepadre.Ah,padre.Meupaiestavatãoa mdemevernaquelasroupassagradas…Eovelhomorreusemverisso.
Sim, que eu fora educado desde criança para crer no Salvador!ApenasElevai teescutar lho,apenasEle!Eleéquemtealimenta,Eleéquemtesustenta,Eleéquemtecura,omundoédEle!Difícil éacreditarnissonomundoquevivemos,homi!Avidameensinoumuitomaisdoqueisso.Éodinheiroquetealimenta,seupatrãoéquetesustenta,osistemapúblicodesaúdeéquem—mal—tecura.Étriste lho,étriste.Masavidadepadrenãodeuparamim,não.Meuirmãodissequesoupecador.
Queseja!Pregaremigrejanãodepositaemminhaconta.Masvamosquevamos,poistrabalhardeposita.Pouco,masdegrão
emgrãoagalinhapreencheopapo.Pegominhamaleta,preparoagravata,calçoossapatosevamosmundoafora.
Arre,quelugarsujo!Subúrbioéassim,homi!Mendigo,droga,lixoesangue.Assassinatopelamanhãedrogapelatarde.Fuligemdemáquinaeóleodemotor,péssimavisãoeterrívelodor.Temqueseacostumar,homi.Eeu, que passo todos os dias por umbecomalcheiroso?E omaldito estáentupido de vômito novamente, provavelmente de algum bêbadodesgostosocomavidabandida!Queeunãoculponão,tambémfaçoisso!
Eeisqueestãolá,osprimeirosdodia!Trêsmendigos,prontosparame pedir uns trocados, chorar pela vida e esforços fracassados. Preparominhassincerasdesculpasemeapronto.Eisquepassoporeles,enãomepedem nada, homi.Nada!Nem bom dia carinhoso!Distraídos por umaprosa boa e secreta! Indignado, mas tanto curioso, volto e ouço, sendocuidadoso.
—Quemelesachamquecriaramessesventos?!—foiomaiordeles,
etambémomaisvelho,quedisserevoltado.Negrodebarbabrancaepeleressecada,cicatrizesnobraçodevidadifíciletrabalhosuado.
—Fomosnós.—respondeuooutro,pálidocomoosvelhosna ladetransplantedesangue.—Sopramos…Sopramosmuito…
—Sim,sopramostantoeagoraelespoucoseimportamcomisso!—respondeuoterceiro,quemaispareciaumgêmeodosegundo.
Nossa senhora, que a marvada está sendo consumida logo pelamanhã!Prosadebêbadoeunemescutonão!Tomomeurumo,bufando,sempoucopedirperdão.
E que dia difícil, homi! Cheguei duas horas atrasado, meu chefeelogioutantosmeusantepassados!Trabalhoemdobocomocastigo.Foramlitrosdecafé,umrelatóriodanado,eossuperioreschutandominhabundatodominuto.Arre,quegentedocampoétratadacomoignoranteetendoenergiasemfim.
Mas eles nem me derrubam, não. Lasco-me, mas ganho meustrocados por merecer. E o atendente que assistia lme adulto em plenoexpediente?Arre,era lhodopresidente, simplesdezesseisanose jácomfuturo promissor. E o que jovem sabe de dor de trabalho suado paraganharsuacomida?Nada,homi!Paraeleaquiloébrincadeira!Nemcarecenão,moleque!Seupaipagaoestudoparavocê!Enemvemfazercarafeia,ereclamardaoportunidade.Quemderaeufazerocolegial.
Maseunãomeimporto,soucabra-machoatéo m.Novodia,novamoeda, novo trabalho sem m. Ah, relógio maldito! Hoje você nãomepegou.Meacostumologoaacordarsemti,trecoinútil.Vaiprobecoagoramesmo.
O beco, homi, o beco!Novamente naquela imundice a que estouacostumado, o queme importa são osmendigos.Os três encostados namesmaposição,namesmaprosadescontraída.Quemerevolto!Destavezvoucomacaraecoragem,meintrometonaconversaeouçocomvontade.
—Quemelesachamque zeramessesmares?!Fomosnós!—queminiciavaforaomesmonegro,estressadocomodecostume.
— Fomos nós… — o segundo disse, com mesmo desânimo deontem.
—Sim,nós cavamos…Cavamosmuito…—o terceiro fechouosolhosquerendochorar.
Arre,queasituaçãojáestavameenjoando!Sento-meaoladodeumdeleseencaro.Negromeolhacompiedadeeperdão,justificaaafirmação.
—Nósfizemosessesmares,eagoraelesopoluem!— Arre, que mendigo reclamando de poluição, para mim é
novidade!Nãopodemosfazernada,homi,nada.Minhaspalavrasfezonegrosecalar.Eeuestavaerrado?Assunto
chatoheim.Nãoémolenão.PoucomeimportocomofuturodaTerra,sequeima,alaga,quebraouarrasta.Importa-meohoje.
—Elesnãoprecisammaisdemim.Ouachamquenãoprecisammaisdemim.—onegrorecitou.
—Éporissoqueeleosabandonou—osdoispálidoscompletaram,apontandoparaonegro.
Homi,queeuestavaficandodoidotambém!Queprosaéaquela?—Vocêétrabalhador,compadre.Sabeoqueédarseusanguepelos
outros, sofrer e se esforçar, ver seu trabalhocrescendo.Amaraquiloquevocê faz de graça e puramente para o bem dos outros, sem ter motivoaparente de ser empregado e suar por aquilo! Por nada, compadre, pornada!Trabalhodetodaumavidaindoaochãoporgentequedesvaloriza,pisaemcimaesatiriza.Gentequenemacreditaemvocêequefoivocêquefeztudooqueelesusamagora,compadre!Nãoémolenão.Algunsatétedãoobrigado,outrossóparapedirperdão.Temoutrosaíqueatéinventamhistóriasfalsassobrevocê,meuirmão!Colocampalavrasnasuaboca!Eeisomomentoemquevocêtemquesecalar!Aceitar,choraretentarconsertar.E quem te coloca a culpa, sendo que você só estava tentando ajudar,compadre?Pessoaruim,queespreitaeseaproveita,nãomereceacon ançaqueganhapelofingimento.
Eeisquemecalo,botoasmãosnosolhosechoro.Tudoquepossofazeré cardejoelhos,sujominhacalçavelhaerasgadaepeçoperdãoportudo o que eu disse por toda aminha vida.Nãome importa se aquelehomemfossequemeupensavaquefosse,oqueimportavafoiqueagoraeuentendi meu pecado. Entendi quem eram aqueles simples mendigos.Mendigos?Nãohomi,aquiloésóumdisfarce!Bempostoeusado!
Arrehomem!Eeu,todoessetemporeclamandodeDeusquetinhaseidoemborasemmotivoaparente.Inútilforaeu.
— O senhor está perdoado, homem. Vá sem medo, pois estou
voltando.Eunãovosabandonareinovamente.Peçoperdão,fecheiosolhoscom medo de ver, e acabo fazendo vossa família sofrer. Perfeito? Nãohomem.Issoétudoinvenção.Poispossuoomaiordetodasasfalhas,estaéaemoção.Aclemênciaeatristezasãonossaspioresfraquezas.
Apósessaspalavras,onegropousouasmãossobreminhacabeça.Fuiemboratrabalhar,felizesatisfeito,pelaprimeiravezemminhavida.
Quenãoreclamomaisnão.Fuiabençoadoporterumamigoúnico.Enãoéquefuipromovidonaqueledia?Fuisimsenhor,homi!Pelaprimeiravez em minha vida, subi ao invés de descer. Agora ia ganhar mais, osu ciente para sustentar uma família. Milagre, homi. Milagre, agoraacreditavanisso.
Eeisqueligaminhaesposa!Ah,quesaudadesdavozdameninaedomeu lho.Equeelesestãovoltando,homi!Agoratenhoempregobom,juroquevoualimentá-losedarvidamelhor.
Durmo contente e relaxado. Noite que passa e galo que canta.Apronto-me de novo, coloco cheiro e penteio o cabelo. Na ida, poucoreclamo da imundice do beco, sorrio ao avistar meus novos e especiaisamigos.Elestambémacenamparamim,homi.Aindaécedo.Tenhotempoparaumaprosa.
Sento-meaoladodeles,eaconversaseiniciacomonegro.Ficariaporláalgumtempo,conversandocomDeuseseusdoisanjosfiéis.
— Quem eles acham que fez esses céus? Fomos nós! Aramos…Aramosbastante…
A
ATerraSagradadosXamãsEriveltonGomes
manajéeosoutrosengenheiros,arquitetosedesenhistastécnicosestavam completamente certos do que deveria ser feito. Nãohaviaumamaneiraeconomicamentesustentáveldelevantaruma
represa sem inundar toda a cidade e parte considerável da oresta local.Seria um preço alto, mas não o su ciente para frustrar os projetosambiciosos da companhia. Eles ergueriam uma nova cidade um poucolongedali, ondeos cidadãos seguiriam suas [irrelevantes] vidas.EraumadecisãoquaseintragávelparaAmanajé,masoengenheironãoencontrouumamínimapossibilidadedeimpedirquesuavilanatal—hojecidade—fosseporáguaabaixo.
Da janela de seu escritório, depois da reunião, onde a“sentença”forapronunciadaquase semnenhum receio, ele admirava seu antigo lar,quepoucoconservavadaaparênciaanterior.Atriboindígenadoextremoleste amazônico havia sido tomada pelo delirante progresso. Já tinhainúmeras ruas calçadas, um sistema sanitário quase aceitável e algunsedifícios,alémdemédiasegrandes indústrias.Contudo,amataaoredorestavaaindaparcialmentepreservada,oquelheajudavaarecordardesuainfância, quando no colo de seu avô Apoema ouvia histórias de seres
mitológicos.Seresqueprezavampeloequilíbrioentreohomem,anaturezaetudooquepudesseserchamadodeespiritual.
—Pobrevelho,eaindaachavaqueeraalgumtipodexamã,comdonsproféticos…—sorriaaolembrardeseuavô,semincredulidade,mascomoserecordasseossonhosdelirantesdeumacriançasupercrescida—Talvezrealmentefosseprofeta.Pareciaenxergarcoisasqueoutroshomensnãoveriam…
O deus, aquele que os índios primitivos chamavam porNhanderuvuçú—oquesempreFoi,ÉecontinuaráeternamenteSendo—suportava pacientemente as reclamações sobre uma tribo pródiga quecometia graves crimes contra um território sagrado. Território esse queNhanderuvuçúprometeuaosseusancestrais,equegarantiuquemanteriaintactoporlongasgerações.
Iara,queéoslagos,osrios,asfonteseasneblinas,protestava.Suavozeraoescorrerdeáguascristalinassobreasrochas.Seuscabelosnegroseramasfendasprofundasdosrios,esuapeleseapresentavacomoaspectodeumafrescanuvemdecerração:
—Elesmeoprimem,enchem-medemateriaisdosmaisdegradanteseme atiram uma quantidade insuportável de dejetos. Produzem imundicesdas mais fétidas e indigeríveis. Usam inconsciente e abusivamente osrecursosqueeuofereço.Enãofossebastante,alterarãoocursonaturaldascorrentezas.Nãopossosuportartamanhaafronta.
Em seguida, Tupã, que é os raios, trovões, relâmpagos, ventos etempestades, urrou furiosamente, abismado. Chegou a derramar umatorrenteapavorante.
—Elessubestimamminhairaelançamsubstânciasnocivasaoscéus.Já não bastassem as nuvens negras que carrego vindas de diferentesdireções, ainda tenhode lidar com todas essesminerais pesados que elesqueimamemritmoinconsequente.
Tupãpropagoupeloscéusmaisumalevadeinsultosrecheadosdeindignação, até que Caaporã pediu lugar para completar a frenteacusadora.Caaporãéamata,a oresta,oscampose todosos seresquegozamdavida,carinhosamenteapelidadodeCeci.Falouemgrunhidoseassoviosquaseindecifráveis.
—Demimelessugamtudooquepossooferecereumpoucomais,
derrubando árvores e caçando desgovernadamente. Abrem verdadeirascraterasna orestaparaconstruirgigantescasplantações,cultivandoalémdo que realmente precisam. As criaturas desfalecem famintas edesabrigadas…
Aságuasatingiamasrochascomfervor,osraioscortavamoscéuseos animais berravam desarmonicamente. Com seu acolhedor tom dedoçura,que transmitia con ançae compassividade,Nhanderuvuçúpediucalmaesilêncio,parafinalmenteseexpressar.
—Entendo a ira dos senhores,mas peço um pouco da paciênciaparacomoshomens,assimcomoparacomtodaatriboquehojeviveemterra sagrada. Antes desses que hoje os ofende, houveram homens queviveramrespeitandoamim,aosespíritos,ànaturezaeaoseuigual.Eraméis e responsáveis.Calculavamaconsequênciade suasatitudesantesde
realizá-las. E quando cometiam erros, geralmente se arrependiam, comaqueleremorsogenuíno,quechegaaserdocenoslábios.
“E se perdoar provoca tão agradável sensação, como negar umachanceparaqueoshomensvoltematráseenxerguemomalque zeram?Assimpoderãooptarpormudaremseushábitoserepararemsuasfalhas,ouaceitarsofrermeucastigoeperderseulugarnaTerraqueherdaramdeseusantepassados. Pois eu prometi aos bons homens de outros tempos quegarantiriaapreservaçãodessaporçãodeTerraporlongasgerações.”
“E lembrem-se sempre: Antes mesmo do homem desrespeitar anatureza, ele desrespeitou a mim. Logo perderão o respeito pelo seusemelhanteeporsipróprios.Éumcicloinevitáveldeauto-devastação.”
Depois do que fora dito, Iara, Tupã e Caaporã acalmaram-se,confiantesemNhanderuvuçú.
Numacertanoite,Amanajéoptoupor largaracama,para revisarseusdesenhosnocomputador,enquantoouviadelongeosomabafadodeum bêbado cantado rock popular como quem canta música de corno.“Houveumtempoemqueoshomensemsuastriboseramiguais”.“SeriaPitty?” pensou. Voltou-se para a tela. A cabeça pesada, corpo abatido,estavaquasedelirante.
Opinguçoprosseguia,“Sempreembuscadoprópriogozo,etodozelo coupra trás”.Ele sentiu sua espinhaarrepia-se, sua cabeçagirava.Tudoganhavaumaspectomaisdesfocadoaos seusolhos.Uma luz forte
passoupelosseusombrose,comoemumrelampejo,eleouviuumavozquepareciaecoarpeloscéus.Nhanderuvuçú lheapareceu, comoumespectroluminososemforma:
— Herdeiro dos dons espirituais dos antigos xamãs, venhodiretamenteconvocá-loparaqueleveminhamensagemaoshomensdesuatribo. Anuncia-me como O Deus supremo de seu povo, que veio lhesoferecerperdão.Leveaelesodiscernimentoparaquecompreendamomalque fazem e se arrependam.Diga que se envergonhem do que praticamcontraanaturezaecontraosespíritosdeseusantepassados.Aviseatodosqueumagrandepragamortalseespalharásobreeles,senãopararemcomseusatosofensivos.
Como em um estalo, Amanajé despertou de seu sonho profético,suando exageradamente com o corpo queimando. Lá fora, o coroaprosseguia, “…Não perdoa e nem revela, nunca vê que já é demais, ohomeméolobodohomem,olobodohomem…”.
Amanajé estava totalmente convencido que o Deus criadorrealmentehavialheaparecidonaquelanoitee,emborasoubessequeseriaridicularizadopormuitos,nãopodiadeixardetentarsalvaralguns.Logode partida se empenhou em convencer sua namorada, amigos íntimos,colegasdetrabalhoeoutrosconhecidos.Previsivelmente,todoslevaramoalertanabrincadeira,masa insistênciadeAmanajéafastoulentamenteaspessoas de seu convívio, que já falavamofensivamente pelas suas costas.Sua namorada não o suportava mais e o deixou desamparado,completamenteabandonado.
QuandoaloucuradeAmanajéjánãoeramaisomexericofavoritoda companhia, ele foi visto discursando sobre uma mesa, no refeitório,pedindo que os funcionários desistissem da operação, pois estavam indocontraavontadedeIaraedeNhanderuvuçú.Foiopontodeigniçãoparaseu afastamento do trabalho. “Stress”, comentavam os murmúrios navizinhança,queestavaatentaaumadascasasnaextremidadedarua,queaalgunsdias não abria as portas.Até queno cair deumanoite pacata, amaçanetagirou,eumgritoseouviunascamas.
—Nhanderuvuçú, os espíritos e toda a natureza estão cheios detanta incredulidade. Se arrependam desse estilo de vida super cial erepugnante.Voltemosaviverrespeitandonossolar!
Era o m da linha. Foi preso por perturbar a vida pública e empoucos dias liberto, advertido de que não deveria fazer nada parecido.Repetiuoatováriasvezes,usandodecartazeseampli cadoresdesom.Osque conseguia convencer, logo desistiam.A única exceção eraMaiara, asábia,quejáalimentavaumcarinhoespecialpelojovemxamã.
O tempo correu e o período estabelecido por Nhanderuvuçú seencerrou.
EmoutraapariçãoaAmanajé,Nhanderuvuçúordenouqueeleeasuaseguidoraseescondessememumabrigosubterrâneo.Aentradaparaoabrigoerao tocodeumaárvore.Depoisqueocasalentrou,apassagemfora selada. Lá, Amanajé eMaiara adormeceram por quarenta noites equarentadias.Passadoessetempodespertaram,indispostos,comasjuntasdoidas, mas não estavam sedentos nem famintos. O selo se abriu quaseimediatamente.
Quando saíram, perceberam a atmosfera estranha, mais leve.Caminharam pela oresta e, ao invés de encontrarem casas, prédios eindústrias,viamruínasrecentesdeondenasciamplantasrasteirasdostijolosencardidos;tudohaviasidotomadopelamata.
Semanas depois, quando viajou para a capital, onde pretendiadesvendaroocorrido,encontrouemumjornalvelho,oenredodagrandefatalidade:
“…Essa comunidade sofreu há algumas semanas uma epidemiatotalmente desconhecida, de efeito devastador. A moléstia consumia osórgãosempoucosdias.Acidadejápassavaaserconsideradainabitada.Aintensatempestadeeaeventualchuvaacabaramcomoquerestoudolugar.As ruas e construções foram consumidas pelamata comuma velocidadeassombrosa,queintrigaosespecialistas.Emcercadequarentadiasaqueleterritório readquiriu o aspecto que tinha a mais de quinhentos anosatrás…”
AmanajéeMaiarapassaramaviverjuntosemumacabananomeioda oresta, quase totalmente desligados da civilização. Naquela região,Nhanderuvuçú,auxiliadopor caaporã, zeram oresceruma orqueaolongododiaadquiriatodasastonalidadesdeKeiemé,oarco-íris,aserpentemulticolorida que mora no céu. Uma bebida preparada com essa or
curaria a tal doença misteriosa, caso retornasse. Era uma maneira deNhanderuvuçúcomunicarquenãomaisinfluenciarianaapoptosehumana.
N
OFimAkularith
ão passava de cinco horas da manhã e ele já estava ali, noparapeitodomaiorprédiodacidade.Olhavaseminteresseparabaixo: aquele mar de asfalto negro que me pouco tempo
abrigariaaspequenasnausmecânicaseseustripulantes.Tomariamsentidosdiversos, a despeito da direção para a qual soprávamos ventos: aquelasnaus não possuíam velas. Ele perscrutou suas memórias absolutas econcluiupelamilésimavez:“aquelaguerranãoseriatãobela,tãouniversale tão necessária se tivesse ocorrido nos tempos atuais”. Atribuiu umagrande parcela de culpa disso aos mecanismos de propulsão da qualdispunhamosveículosmodernos.“Aquelacalmarianãoteriapapelalgum.E sem a calmaria não haveria sacrifício, e sem sacrifício as naus nãoseguiriamparaCretaenãohaveriatragédia.
Os tempos eram outros. Tudo havia mudado. Ele nem sequermantinha mais o interesse nos homens. Aliás, alguma vez o tevegenuinamente?Depoisda luta,daúltimaedecisiva lutacontrao inimigomaior que asmontanhas e de cem cabeças de serpentes, lha da temidaGaia, tudo o que zera foi cuidar de um panteão cheio de soberba eorgulho,eobservarapatéticavidadossereshumanos.
“Há algum sentido nisso?” — pensava enquanto olhava para omundo que nascia naquele momento. A cidade acabara de sair de seutorpornoturnoeexalavadetodososseusporosofrescordeumrecomeço.
Ele conhecia a rotina que todos os homens já sabem de cor. Omovimentodoscorpossedavaparatodososlados,eerammuitoscorpos:altos, baixos, brancos, pretos, amarelos, magros, gordos, belos, feios…Todos executavam um script pré-ordenado pelo caos. Havia objetivos,haviametas,haviadecisões,masnenhumsentido.TodososdiasmultidõesdepessoassaíamdesuascasascarregandoemseusbolsosumfragmentodapedraqueportantotempofoiocastigocruelimpostoaSísifo.Etalvezestaspequenaspartículaspesassemmaisdoqueofadáriodoespertoherói.
Enquanto re etia em suamente onipotente sobre a insensatez daexistênciadahumanidadefoisurpreendidoporumavozquecortouoar,fazendo ecoar por toda a cidade um estalido seco e forte. Ninguém láembaixo fezmuita questão de notar o ocorrido, já que caía uma chuvaconstantedeumcéuenegrecidoedensoeumtrovãoamaisouamenosnãofaziamuitadiferença.
—Tenscertezadequedesejasfazeristomesmo?—Avozeragraveesegura,masfoiproferidaparadentro,comsequemestivesseafalarnãoquisessequeaspalavrassaíssemrealmente.Talvezumare exãoquehaviaescapado sem permissão. Aparentemente os deuses losofam ao mesmotempoemquefalam.
—IstoestámaisclaroparamimdoqueaságuasdoAliakmon—ohomemrespondeuemdireçãodeondevinhaavoz,queaospoucosfoisematerializandonaimagemdeumhomemaltoeforte,deombroslargosebarba grande e vermelha. Portava um manto de pele de lobo, umaimpecávelcotademalhaeumelmocônicoprateado.
A gura recém formada esfregava as costas das mãos no rosto,livrando-sedealgumasincômodasgotasdechuvaquepousavamemseusolhos.
—Gostasmesmodestasprecipitações,nãoémesmomeuamigo?—Vocêmeconhecemuitobem,achoqueatémaisdoqueminha
amada esposa. Sabe que entre tantas coisas eu sou o deus dos ares quecircundamestemundo.
A chuva que caía numa cadência tranqüila começou a despencar
numafortetorrenteassimque“ele”terminousuafrase.— Falas como se isto valesse alguma coisa hoje em dia. Estes
minúsculos seres nem sabem que nós, imponentes entidades, vivemos àmargemdesuasociedade—disseoserdasgrandesbarbas.
—Nãodigaisto.“Àmargem”soainferiordemaisparaomeugosto.Digamosquevivemosdeliberadamenteacimadeles.
—Mesmoassim,vejoquetuésdaquelesqueseafeiçoammuitofácila estes adventos hodiernos— disse o homem barbudo, olhando para oternodelinhopretoitalianoqueoseucompanheirovestia.
—Algumascoisasnãosãodetodomal.—Emesmoassim…—Mesmoassimdecidi-meporestaatitude.
Odeuscomoelmoprateadoolhoupara“ele”,quenãotiravaosolhosdoasfaltoláembaixo,edepoisdesviouoolharparaoutrolugar,soltandoumsuspiroesofismandodepoiscomaquelavozdistanteeintrospectiva.
—Tantofaz,dequalquermodo.Estelugarhámuitotempodeixoudeseroqueera.Nenhumdeustemmaisinteressenestemundo.
— E é triste pensar que já nos adoraram, meu amigo do norte.Lembra-sedequandonossosnomeseramproferidosacompanhadospelotemorepelorespeito?
—Ealgumasvezesatépeloamor—completouohomemdagrandebarba,soltandoumagrandegargalhadadepois.
—Masestestemposacabaram.—Evejaoquesomosparaelesagora:apenasarquétiposdesuas
fragmentadaspersonalidades.Quemdiriaqueocriadorsetransformariaemcriadesuacriação.
—Temtomadomuitohidromel,meucaro.Jáestáafalardisparates.— Tua ambrosia é que deve estar choca, já que és o único a se
importarcomoshomensapontodedarcaboàssuasprecáriasexistências.—Nãovejomotivoparaprocederdiferente.— Não vejo motivo para realizar tal tarefa. Esqueça-os. Não
merecemmaisnossaatenção.—Éoúltimoatodemisericórdiaquepodemosterporeles.Depois
disseestarátudoacabado.— Pois eu digo que émelhor deixá-los àmíngua. Além domais,
existemtantosoutrosseresmais interessantesqueoshumanos.ONimos,porexemplo,queadorastanto.
O homem não respondeu. Mantinha ainda a cabeça mirando asminúsculascriaturasqueiamevinhamláembaixo.
—Nãoascriamosparaisto—disse nalmente—Antigamentecadasoprode vida tinhaumdestinoúnico, cadahomeme cadamulher eramuma singularidade, e mesmo o mais simples escravo sabia que a maiorliberdade que possuía residia dentro dele mesmos. Os homens sabiamdesa arosdeuses.Agorahoje,oquevemos,meuamigo?Umtristeeúnicodestinocompartilhadoportodos.Desistiramdesuasliberdadescommedodadorqueistopudessecausar.Desapareceramosheróispoucoapoucoeaté aqueles que carregam nosso sangue em suas veias não merecem serchamadosdenossos lhos.Elesnãopodemserabandonadosaestatristesorte.Merecemen mperecertodos.Equeahistóriadoshomensnãosejamaismaculadadoquejáestá.Nãohaverámaisumaeradeouroparaeles.
Houveummomentodesilêncioentreosdoisdeuses.Umcertotipode luto antecipado se instaurou na atmosfera ao redor deles. Ambosmantinhamosemblantecircunspectoeconcentrado,comoseestivessemaexaminarosmilharesdeanosemqueacompanharamtodososmomentostristes e alegres, orgulhosos e vergonhosos, honrados ou não dos sereshumanos.
— Preciso partir— disse o deus das barbas ruivas— Fenrir estánovamenteacriarmuitosproblemasultimamenteeeu tenhoquecolocarAsgardemordem.Nãogostodestafeiçãoqueapresentas,amigo.Pre roaque portavas quando nós dois combatemos violentamente um contra ooutroporanosafio.
Ooutrodeusnãodissenada.Nãohaviamaispalavrasparaaquelemomento.
— Dizem que uma guerra entre os vários deuses da luz e daescuridão está para começar. Creio que será divertida, então participareitambém.Seestiverinteressado,esperoquelutedomeuladodestavez,docontrárioterásqueescutarpelaeternidadedemimosmeusgritosdevitória.
AúltimacoisaquerestoudeOdinfoiagargalhadahiperbólicaqueressoou aos ouvidos das pessoas comomais um trovão— omais fortedaquelatempestade.
Zeusen mestavaprontoparalançaroraioquepartiriaaTerraemduas.Dentrodesielesentiaumaprofundatristezapornãosentirtristezadaquelahecatombequeestavaporacontecer.Soltouumúltimosuspiroeergueu sua onipotente mão para en m disparar o feixe que cingiria amoradadaquelesseresqueforamumdia,juntocomosdeuses,osatoresdetantastragédiaseepopéias.Atlashavia nalmenteselivradodeseuin nitotrabalho e Prometeu expiado seu pecado. Findada uma era que nemHesíodo ou Homero poderiam classi car, já que talvez não estivesse àaltura de metal algum, desintegrou-se o astro, e os animais inteligentestiveramdemorrer.