25

Aos meus pais, pelo amor compartilhado · onsidero o encontro com o autoconhecimento um caminho sem volta. ... Vários foram os obstáculos que enfrentamos ao longo de praticamente

Embed Size (px)

Citation preview

Aos meus pais, pelo amor compartilhado

SUMÁRIO

Prefácio 9

Introdução 11

CAPÍTULO I: Autoconhecimento 15

CAPÍTULO II: O sentido da vida 30

CAPÍTULO III: Felicidade (parte I) 44

CAPÍTULO IV: Evolução da consciência 58

CAPÍTULO V: R-evolução e civilização (parte I) 68

CAPÍTULO VI: Deus 84

CAPÍTULO VII: Iluminação 98

CAPÍTULO VIII: O grande mestre 110

CAPÍTULO IX: Drogas e plantas de poder 122

CAPÍTULO X: Morte 134

CAPÍTULO XI: Livre-arbítrio, destino e karma 148

Interlúdio: Beleza e arte 159

CAPÍTULO XII: Felicidade (parte II) 169

CAPÍTULO XIII: Saúde e bem-estar 183

CAPÍTULO XIV: Dor e sofrimento (parte I) 192

CAPÍTULO XV: O amor 206

CAPÍTULO XVI: Maternidade e paternidade 220

CAPÍTULO XVII: R-evolução e civilização (parte II) 231

CAPÍTULO XVIII: Dor e sofrimento (parte II) 247

Agradecimentos 258

Sobre os participantes 262

Sobre o documentário Eu Maior 269

Sobre o organizador e editor do livro 270

9

PREFÁCIO

O

Considero o encontro com o autoconhecimento um caminho sem volta. Em minha própria existência – e na vida de tantos que acompanho como educador e irmão de jornada –, fica claro que, uma vez nesse caminho, não há como voltar aos condicionamentos e fronteiras do eu menor de outrora. Através do autoconhecimento, o Eu Maior invoca em nós uma marcha adian-te, honrando o que ficou para trás, não excluindo nada do que veio antes. Mas o campo que se abre na dimensão do Ser é tão fértil que não há como o ego seguir imperando.

Sinto-me feliz em escrever este prefácio. É realmente muito especial con-templar a maneira como a vida vem encaminhando e abençoando o projeto Eu Maior desde o início, primeiro através do documentário e agora na forma deste livro.

Lembro-me bem de quando eu e meus irmãos, Fernando e Paulo, ambos cineastas de profissão, e o amigo André, engenheiro de formação, decidimos fazer um filme sobre autoconhecimento. Para nós, mais do que uma obra cinematográfica informativa ou artística, o projeto estava a serviço de algo maior e essencial. Queríamos verdadeiramente tocar o coração das pessoas. Mas como realizar algo dessa natureza sem cair na armadilha das nossas cren-ças, idealizações e projeções? Como honrar o Eu Maior em cada um – e em todos? Naquele momento não tínhamos uma resposta fácil nem um caminho traçado e estabelecido. Tínhamos, sim, uma profunda vontade e uma sincera disposição de servir.

Vários foram os obstáculos que enfrentamos ao longo de praticamente qua-tro anos de produção. Na minha percepção pessoal, os desafios não só foram bem-vindos como também necessários, pela própria proposta da obra. Pre-

10

cisávamos daquele karma exatamente como ele se apresentou. E, de fato, foi através do processo, às vezes fácil, às vezes difícil, às vezes tão claro, às vezes sombrio, que a vida nos tornou “maiores”. Tivemos que superar limites, exer-citar aceitação, desapego, perdão, gratidão e estender as fronteiras dos nossos “eus menores”. Consequência? Eu Maior.

Também acho importante mencionar dois detalhes. Primeiro, o fato de o filme contar com trinta entrevistados, pessoas com diferentes expressões e pontos de vista, representando parte da diversidade do mundo em que vive-mos. Apesar das nossas diferenças, há algo que compartilhamos pelo simples fato de sermos humanos. Sinto que o filme, ao juntar todas aquelas pessoas, mais as imagens, a música, nos deu a oportunidade de vivenciar algo muito especial, um estado de empatia e pertencimento. Simplesmente Eu Maior.

Finalmente, vale lembrar, com muita reverência, que a manifestação do fil-me foi possível graças ao apoio de empresas e mais de seiscentas pessoas que contribuíram com um valor substancial para podermos produzi-lo. Não foi fácil; diria até que foi desconfortável pedir ajuda, mas levamos adiante uma proposta de financiamento coletivo – iniciativa também utilizada na viabi-lização do livro. Precisávamos do apoio não só financeiro, mas energético e emocional das pessoas. A colaboração de tanta gente, de forma tão generosa e solidária, foi uma prova concreta de como é possível, sim, realizar juntos. Comum, unidade. Comunidade. Eu Maior.

A realização deste livro era inevitável. Sentimos que era um dever compar-tilhar o conteúdo das entrevistas que não pôde ser visto no filme. Mais uma vez, honro o Fernando por assumir tamanho trabalho de organização e edi-ção. Ele não só abraçou o desafio, mas ousou apresentá-lo de forma criativa. O resultado, surpreendente, vocês irão contemplar nas páginas a seguir.

Espero, humildemente, que o projeto esteja de fato servindo ao propósito do Eu Maior, nutrindo e inspirando a busca de cada um de nós por uma vida realmente plena, de responsabilidade, liberdade e amor. Que assim seja.

Marco Schultz

11

INTRODUÇÃO

O

Desde que o documentário Eu Maior foi lançado, em novembro de 2013, recebemos inúmeras mensagens de pessoas solicitando acesso ao conteúdo das entrevistas não aproveitado no filme. É como se essas pessoas soubes-sem que as trinta entrevistas gravadas tiveram, em média, oitenta minutos de duração, enquanto no filme nenhum entrevistado apareceu por mais do que cinco minutos. Como codiretor e editor do Eu Maior, eu sabia mais do que ninguém que muita coisa interessante tinha ficado de fora e entendia o porquê. Quando se monta um documentário, a escolha das falas e das ima-gens não se dá apenas em função da qualidade individual delas, mas tendo em vista a conexão que fazem com o restante da obra. O ideal é que o todo fique maior do que a soma das partes, e, no caso de uma obra de longa-me-tragem, espera-se que esse todo tenha duração aproximada de duas horas. Se ficar mais comprido, o filme pode encontrar dificuldades para ser exibido no cinema ou na televisão.

Passados alguns anos do lançamento, chegamos à conclusão de que a ma-neira mais interessante de disponibilizar esse conteúdo inédito seria num livro, cuidadosamente organizado e editado. Como eu já conhecia bem a ma-téria-prima, assumi a responsabilidade pela empreitada. Ao longo do proces-so, percebi que a edição de um livro de entrevistas tem muito em comum com a edição de um documentário. É inegável que o formato literário é mais flexí-vel, permitindo sínteses e recortes que no audiovisual pareceriam demasiado abruptos. Todavia, em ambos os casos a edição se dá sobre um registro espe-cífico e é limitada (ou potencializada) por ele. No caso do livro Eu Maior, as entrevistas foram pensadas e concebidas para um filme, não para um livro. Muitos entrevistados foram escolhidos não por sua eloquência ou notório

12

saber de autoconhecimento, mas porque poderiam ajudar a compor um rico e colorido mosaico de experiências humanas no tocante ao tema.

As entrevistas foram gravadas entre dezembro de 2009 e setembro de 2011. Na medida do possível, gravamos os entrevistados em suas residências ou lo-cais de trabalho, que costumam ser lugares mais reveladores. Já no livro eles aparecem conversando entre si, numa roda, debatendo questões propostas por um mediador. Evidentemente, esse encontro nunca aconteceu, mas as fa-las são verdadeiras e foram organizadas de tal forma que a conversa em gru-po literalmente ganhou vida. Foi um trabalho minucioso, realizado ao longo de doze meses e permeado de consultas e pedidos de esclarecimentos aos en-trevistados. A propósito, eles não só apoiaram esse conceito para o livro, mas tiveram a oportunidade de ler os capítulos e, em alguns casos, propor ajustes em suas falas. No caso dos entrevistados falecidos, o trabalho de edição foi submetido à aprovação de seus sucessores. Estimo que 90% do conteúdo do livro é inédito, ou seja, não está no filme. Desse percentual, cerca de 10% veio das consultas pós-filme, realizadas na preparação do livro.

A presença de entrevistados com experiências e perfis distintos – alguns deles com mais perguntas do que respostas – humanizou o filme e o livro. Talvez o maior mérito do projeto Eu Maior seja justamente este: ter desmis-tificado o autoconhecimento, mostrando que o processo está ao alcance de todos, de inúmeras formas. Penso também que a simpatia que muitas pes-soas nutrem pelo filme – e que espero que ganhem pelo livro – deriva mais da identificação que elas sentem com a “busca” dos entrevistados do que com os próprios. De qualquer forma, há no livro um pouco de tudo, para todos os gostos. Quem está atrás de uma obra mais técnica sobre autoconhe-cimento será contemplado, porque o livro certamente aborda os assuntos com mais profundidade do que o filme. Quem, por outro lado, está buscando his-tórias de vida inspiradoras – e muitas vezes engraçadas – também será aten-dido por sua leitura.

Finalmente, alguns anúncios de ordem prática. Não foi possível atender às demandas de Leonardo Boff para que participasse do livro. Para que a egrégo-ra original de trinta indivíduos não fosse prejudicada, Paulo Schultz, codire-tor do filme, foi convidado a juntar-se a ela no livro. Cabe mencionar também que alguns capítulos, por tratarem de temas mais específicos, têm um número menor de participantes, pois, durante as filmagens, nem todos os temas foram abordados em todas as entrevistas. Quanto à leitura dos capítulos, ela não pre-

13

cisa se dar na ordem sugerida pelo sumário, embora isso seja recomendável, principalmente na primeira vez. E não é preciso ter visto o filme antes de ler o livro. As duas obras são independentes e complementares. Provavelmente quem gostou de uma vai gostar da outra, mas certo mesmo é que ambas foram feitas com o mesmo cuidado e, por que não, o mesmo amor.

Honrando a valiosa contribuição de todas as pessoas que participaram do projeto – e foram muitas –, desejo a todos uma ótima leitura e muito autoco-nhecimento.

Fernando Schultz

A organização e a edição do livro Eu Maior foram finalizadas na Pousada Quinta dos Pinhais, em Santo Antônio do Pinhal, São Paulo. Foi lá que o autor imaginou a conversa entre os entrevistados do filme se desenrolando.

15

CAPÍTULO I

OAutoconhecimento

O aforismo “Homem, conhece-te a ti mesmo” encontrava-se inscrito na entrada do Templo de Apolo em Delfos, onde ficava o famoso oráculo a quem as pessoas recorriam para fazer perguntas aos deuses, na Grécia Antiga. O edifício não existe mais. Sabe-se de sua existência por conta dos relatos de via-gem da época, cerca de quinhentos anos antes de Cristo. Tampouco se conhece o autor da inscrição, que séculos mais tarde seria lembrada por Sócrates e Platão – e por uma infinidade de pensadores desde então.

Tema central do projeto Eu Maior, em torno do qual todos os outros gravi-tam, o autoconhecimento pautou a primeira das várias conversas que o livro idealizou, utilizando trechos das entrevistas gravadas para o filme. Como se verá a seguir, a reflexão começa mais técnica e contextual, ganhando subjeti-vidade à medida que os entrevistados compartilham as experiências de vida que os ajudaram, se não a responder, pelo menos a entender melhor a grande pergunta: “Quem sou eu?”

Paulo Schultz: Essa não é uma pergunta que costuma se manifestar de fora para dentro, mas sim de dentro para fora. Ou seja, não é porque alguém escreveu “Conhece-te a ti mesmo” numa pedra, há 2.500 anos, que você vai começar a pensar sobre o assunto. O chamado do autoconhecimento vem de dentro, quando a pessoa começa a perceber que, por trás da sua existência, existe uma essência, intimamente ligada a uma sensação de paz e plenitude. Por exemplo, as pessoas me conhecem como Paulo, mas quem é que está por

16

trás dessa personalidade transitória chamada Paulo? Que Presença é essa, em mim, que quando se manifesta não está nem aí para os condicionamentos men-tais do Paulo? De alguma forma, já me dei conta dessa Presença, e a partir daí senti um chamado cada vez mais forte para conhecê-la melhor. Estou interes-sado na sensação de paz e plenitude que ela tem a oferecer.

ari raynSford: Como a personalidade é transitória por natureza, talvez a grande pergunta do autoconhecimento não seja “Quem somos?”, mas sim “O que somos?”. Somos corpo, mente e espírito? Nem todo mundo faz distinção entre mente e espírito, mas quanto mais sutil, mais evoluída parece ser a auto-consciência do sujeito. Um conceito que ilustra bem como se dá essa evolução é “O Grande Ninho do Ser”. Ele está presente em várias tradições de sabedo-ria antigas, mas também faz sentido à luz do que a ciência vem descobrindo sobre a evolução do Universo. Posso falar um pouco sobre isso, se for o caso.

Mediador: Por favor.

ari raynSford: De acordo com a teoria científica mais aceita hoje em dia, há 15 bilhões de anos não havia nada. Foi quando aconteceu o Big Bang e o Uni-verso surgiu. Enxergando o processo evolutivo à luz dessa grande explosão, vem à mente uma metáfora interessante. Quando você joga uma pedra num lago de águas tranquilas, o que acontece? Formam-se ondas concêntricas. A partir do Big Bang também se formaram ondas, por assim dizer, e a primeira delas foi a onda da matéria. Matéria essa que surgiu sob a forma de energia: partículas subatômicas que formaram átomos; átomos que formaram moléculas, galá-xias, sóis, e assim por diante. Passaram-se 10 bilhões de anos até o surgimento do planeta Terra. E com o aparecimento da Terra desencadeou-se a segunda onda, que foi o surgimento da vida. Há 3,5 bilhões de anos, surgiu a vida na Terra, e essa vida começou com organismos unicelulares que foram evoluindo por uma cadeia filogenética vegetal e animal até aparecerem os animais supe-riores, que são os mamíferos. Isso tudo levou bastante tempo, tanto é que foi só há 1 milhão de anos – veja bem: não é mais bilhão, é 1 milhão – que veio a terceira onda, que a gente poderia chamar a onda da mente. Foi quando sur-giram os primeiros hominídeos, ancestrais do Homo sapiens, que desenvolve-ram, pela primeira vez, uma noção clara de individualidade. O ser humano é o único animal que não só sabe que existe, mas sabe que vai morrer e entende

17

o que isso significa. Então a inteligência humana pode ser vista como um des-dobramento da evolução do próprio Universo. O interesse da ciência por essa evolução parou na terceira onda, mas tudo indica que o processo vai continuar. O mais provável é que a quarta onda seja marcada pela transcendência da men-te. A “consciência do ser” passaria a incluir não só a mente – que nos dotou do senso de individualidade –, mas algo mais, que é ao mesmo tempo mais com-plexo e mais sutil. Chame isso de espírito, se você quiser.

ricardo lindeMann: Gosto muito de uma expressão de Annie Besant, que presidiu a Sociedade Teosófica no início do século XX: “Vida é Consciência voltada para dentro; Consciência é Vida voltada para fora.” Parece que o nosso grande desafio, enquanto seres humanos, é perceber que existe somente uma Vida no Universo, ou seja, Vida e Consciência são essencialmente a mesma coisa. Num determinado momento, a Vida se revestiu da forma, ou seja, de um corpo material, e, ao se identificar com ele, adquiriu uma consciência indivi-dual. Em corpos materiais primitivos, como os minerais, predomina a forma, sendo difícil perceber neles qualquer vestígio de Vida. No outro extremo, que poderíamos chamar de hierarquias angélicas, acontece o inverso: é difícil per-ceber a forma, pois os corpos são extremamente sutis. Prevalece, então, a Vida. O que se percebe em ambos os casos, subjacente, é a existência de uma Lei da Evolução, determinando que a Vida, revestida da forma, resgate a consciência de si mesma à medida que evolui lentamente pelos reinos elemental, mineral, vegetal, animal, humano, angelical e divino. Em outras palavras, o Espírito se une à matéria para desenvolver as potencialidades latentes em si mesmo, assim como nos corpos de que se reveste. É a Vida que dirige a evolução da forma. Essa compreensão pode ser novidade para alguns, mas ela vem sendo manifes-tada por diferentes tradições de sabedoria há milênios. Patañjali, por exemplo, já falava sobre o assunto nos Yoga Sutras, que são o tratado clássico de codifi-cação do Yoga, compilados há mais de 2 mil anos na Índia. A lógica da Lei da Evolução também pode ser verificada em trabalhos científicos, como na teo-ria da seleção natural, de Charles Darwin, embora ele atribuísse a evolução ao acaso. Já Albert Einstein afirmava que Deus não joga dados com o Universo, e foi de grande valia nesse sentido, ao demonstrar que toda matéria é, funda-mentalmente, energia, ou, por exemplo, luz condensada. Não existe, portanto, matéria “morta”. Há uma inteligência ordenadora que faz os elétrons orbitarem em torno do núcleo do átomo. Tudo está em movimento evolutivo.

18

Mediador: Já que estamos falando de evolução de consciência, relembre-mos alguns fatos históricos, aqui mesmo no Brasil.Em 1888, a Lei Áurea abo-liu a escravidão. Em 1932, as mulheres conquistaram o direito ao voto. Em 2013, os cartórios passaram a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Há quem veja nesses processos de justiça, inclusão e respeito às dife-renças sinais claros de que há, sim, uma evolução de consciência em curso – pelo menos em termos coletivos. Eu pergunto a vocês se, individualmente, as pessoas estariam nascendo com consciências mais sutis ou simplesmente se adaptam aos costumes vigentes?

Marcelo GleiSer: Como cientista, sou levado a crer que a evolução moral não é transmissível geneticamente. Ou seja, criança nenhuma nasce sabendo o que é ética ou justiça; ela absorve esses conceitos da sociedade. Felizmente, esses avanços, quando se dão, parecem ser irreversíveis. Por mais que um re-gime autoritário tente suprimir valores como liberdade e igualdade, se a po-pulação já os assimilou, ela continuará lutando por eles.

WaldeMar falcão: Acho que é uma via de mão dupla. O indivíduo é mol-dado pela cultura em que vive e, ao mesmo tempo, ajuda a moldá-la. Agora, essa dinâmica não precisa se resumir ao intervalo de uma única vida. Pelo contrário, ela pode e deve continuar, vida após vida, de modo que o indivíduo, ao renascer, já traga embutida nele a consciência adquirida na vida anterior.

richard SiMonetti: A reencarnação é fundamental para entender esses temas. Não me parece razoável que as nossas características individuais obe-deçam simplesmente à formação biológica ou ao ambiente em que vivemos. Faz mais sentido conceber que somos, no presente, o somatório do que fomos no passado, em vidas pregressas. Estamos colhendo hoje o que semeamos on-tem, tanto quanto colheremos amanhã o que semearmos hoje.

Mediador: Se a reencarnação é um fato, por que não nos lembramos de vi-das passadas?

WaldeMar falcão: Provavelmente porque essa lembrança atrapalharia, ao invés de ajudar, o nosso desenvolvimento pessoal. Se você estiver muito curio-so a respeito disso – para saber quem você foi em outra vida –, basta se olhar

19

no espelho. O que estiver à sua frente, em termos de virtudes e imperfei-ções, é um reflexo dessa história. Em todo caso, num sentido mais profundo de autoconhecimento, qual seria a relevância de lembrar de personalidades transitórias passadas? Quase nenhuma, porque não é uma carteira de identi-dade, por assim dizer, que nos define.

PreM BaBa: Ao nascer, o ser humano recebe diversos rótulos ou carimbos. O nome, a filiação, o local de nascimento, entre outras referências com as quais ele constrói uma identidade – uma história – que ele acredita ser. E aí está a raiz do sofrimento: a identificação com um falso “eu”; uma personalidade construída de fora para dentro. Em algum momento, a entidade humana em evolução vi-veu choques de dor, exclusão, humilhação, abandono e rejeição. Para anestesiar a dor causada por esses choques, ela desenvolveu mecanismos de defesa, entre os quais estão as máscaras. A máscara é um “fingir ser” que a pessoa usa, muitas vezes sem perceber. Por exemplo, há a máscara da vítima e a máscara da pessoa que se acha caridosa. Há a máscara do tirano. Há também a máscara daqueles que se acham bondosos e evoluídos, mas que maltratam a própria família em casa. São muitas as máscaras, mas para haver evolução de consciência é preciso removê-las. É preciso reconhecer a realidade transitória do eu inferior para en-tão manifestar a realidade permanente do Eu Superior.

Mediador: Quem – ou o que – seria esse Eu Superior?

PreM BaBa: O Eu Superior é o nosso Eu Maior, ou seja, a nossa verdadeira identidade. É Deus em nós. Costumo dizer que, enquanto a pessoa acredita ser qualquer outra coisa que não esse Eu Maior, ela vive num estado de sono. Ela está dormindo e sonhando. Às vezes o sonho é bom, às vezes é ruim, mas ine-vitavelmente ele nos leva ao sofrimento, pelo fato de se manifestar no plano da mente, que é dual, gerando a ilusão de que somos separados do Todo. Essa ilusão de separação é que dá origem ao egoísmo, a doença do ego. O Eu Maior está além da dualidade e da separação, portanto está além da mente e do ego.

Mediador: O ego, então, seria a personalidade transitória de cada um?

roBerto creMa: Krishnamurti dizia que o ego é um pacote de memórias. É a identidade ilusória que a nossa mente sustenta a respeito de si mesma. Nem

20

por isso o ego deve ser visto como um inimigo. Como se diz no Oriente, ele é um péssimo patrão, mas um ótimo empregado. A primeira tarefa evolutiva é, de fato, a consolidação de um bom ego, porque é ele que nos enraíza na matéria, na sociedade. Porém, se nós ficarmos apenas no ego, ficaremos apenas no pó. É preciso partir de um bom desenvolvimento do ego – um ego integrado – para ir além. A psicologia transpessoal fala justamente da transcendência do pessoal rumo àquilo que é o potencial de asas em cada um de nós. Então eu gosto de me referir a essa possibilidade de inteireza humana como a integração das raízes do ego às asas do Self. Nesse sentido, não é preciso destruir o ego; é preciso abri-lo para os horizontes do amor, do cuidado e do serviço.

Paulo Schultz: É interessante perceber como a civilização ocidental lidou com essa dicotomia entre ego e Self ao longo da história. Até a Idade Média, as pessoas acreditavam ser filhas de Eva e Adão, porque era isso que a Igreja dizia e ponto final. O autoconhecimento que havia, se é que podemos falar assim, era baseado em crenças religiosas. Depois veio o Renascimento, que substi-tuiu a fé pela ciência. No século XVII, o filósofo francês Descartes fez uma proposição que, de certa forma, continua a nos definir: “Penso, logo existo.” Essa associação entre ser e pensar é característica de um nível de consciência que enxerga o pensar – o ego – como a identidade última do ser. A psicolo-gia tradicional foi construída em cima dessa percepção, mas há um número cada vez maior de pensadores ocidentais que, influenciados por tradições de sabedoria orientais, estão fazendo questão de marcar a diferença entre pen-samento e pensador. Eckhart Tolle é um deles. Segundo ele, nós não somos o que pensamos, e sim a Consciência na qual nossos pensamentos se manifes-tam. Aliás, para se chegar a esse nível de autoconhecimento, não basta pensar; é preciso adotar práticas que transcendam o pensamento, como a meditação. Só assim se perceberá que a proposição “Penso, logo existo” não está errada, mas é menos verdadeira do que “Estou consciente, logo existo”. Essa Cons-ciência seria o nosso Eu Maior, o nosso “Eu Sou”.

Marcelo yuka: É uma pena que a gente não viva numa sociedade em que esse tipo de conhecimento seja disseminado, inclusive nas escolas. É eviden-te que o ser humano não precisa de um telescópio, de um microscópio ou de uma caverna numa montanha para se conhecer. Essa busca deveria ser mais trivial e acessível a qualquer pessoa.

21

Gloria arieira: Falar mais sobre o assunto ajudaria, mas o problema não é a falta de informação, e sim a falta de interesse das pessoas. A maioria delas ainda não se questionou com relação ao tema, e esse questionamento é um processo individual. Prova disso é que muitas vezes os pais são “buscadores” e os filhos, não, ou vice-versa. Então a busca do autoconhecimento não é uma questão de ser convencido; é uma questão de entendimento. O indivíduo precisa entender que a raiz do seu sofrimento está na visão incorreta que ele tem de si mesmo.

Mediador: Na sua opinião, qual seria a visão correta?

Gloria arieira: Na visão do Vedanta, que é a minha tradição, nós já so-mos seres livres e completos, embora não nos demos conta disso. O que falta é o entendimento de que somos a própria Consciência. Para se chegar a esse grau de autoconhecimento, há um estudo e uma contemplação que precisam ser feitos. Isso está ao alcance de todos, desde que haja iniciativa própria. Ha-vendo vontade, o indivíduo naturalmente se mobiliza, abrindo mão de dese-jos secundários em prol do principal: o autoconhecimento que acaba com o sofrimento e traz uma felicidade mais definitiva.

Mediador: O despertar pode ser individual, mas o processo do autoconhe-cimento como um todo sempre envolve terceiros, vocês concordam? No mí-nimo, envolveria os mestres que sabem mais do que nós e apontam o caminho.

Marina Silva: Tem um escritor americano, chamado Leo Buscaglia, que diz: “Somos todos anjos com uma só asa, e só conseguimos voar quando estamos abraçados.” Essa frase me acompanhou durante muitos anos. Eu olhava para as pessoas e pensava: Olha a minha outra asa aí. Só que às vezes a outra asa tem um esporão ou não quer balançar na hora que você quer e é aquela con-fusão. Mas é assim mesmo que funciona: sem o outro, ninguém voa para lugar nenhum. Hoje eu venho pensando mais numa frase do Sócrates: “A verdade não está com os homens, ela está entre os homens.” Para mim, essa frase é tão verdadeira quanto a do Leo – e o mundo está mostrando isso. A gente imagi-nou que a verdade estava no capitalismo, depois achou que estava no comu-nismo, e veja o que aconteceu. Então o problema é achar que a verdade está com os homens, quando na verdade ela está entre os homens. É nesse espaço “entre” que a gente estabelece o trânsito uns com os outros – e o trânsito com a

22

gente mesma. É nesse espaço “entre” que a gente exercita a nossa criatividade e a nossa capacidade de brincar. E é ali, também, que a gente pode ficar a sós, cada um consigo mesmo, seguro na presença do outro disponível.

Mediador: Quem seria esse “outro disponível”?

Marina Silva: O outro disponível é aquele que está por perto, pronto para nos auxiliar. Imagine uma criança recém-nascida brincando sozinha. Ela olha para a mãozinha, depois para o pezinho e depois para os brinquedinhos no berço. Ela não tem nada com que se preocupar, porque existe um outro dispo-nível por perto. Qualquer problema que aconteça, esse outro virá em socorro. Isso é fundamental, e não só para uma criança. Cada um de nós, em determi-nados momentos da vida, ficará a sós consigo mesmo. Tanto melhor se, sus-tentando essa solitude, houver um outro disponível, de modo que, se eu me perder na minha própria escuta, eu possa me encontrar na escuta dele. Se eu me perder no meu próprio olhar, eu possa me encontrar no olhar dele.

Monja coen: No Budismo, fala-se em buscar refúgio na joia tríplice: Buda, Darma e Sanga. Buda é o ser iluminado. Darma são os ensinamentos da ver-dade. Sanga é a comunidade; um grupo de pessoas que compartilha a mesma busca espiritual. Fazendo uma analogia, a Sanga é como se fosse uma flores-ta, onde as árvores crescem para cima em direção à luz. Se uma delas começa a entortar, tem uma arvorezinha do lado escorando, de modo que ela chegue à luz também. A ideia de comunidade é esta: praticarmos juntos, nos fortale-cendo no propósito comum, para um bem que é maior do que o individual.

carloS Burle: O “outro” não precisa ser necessariamente uma pessoa. Ele pode ser o trabalho da pessoa ou a própria natureza. O surfe, para mim, é uma ótima ferramenta de autoconhecimento. Como qualquer profissional do esporte, eu preciso me conhecer física e mentalmente para ter bom ren-dimento. Mas o surfe também me dá a oportunidade de viajar e conhecer pessoas novas. Ele faz com que eu saia do meu casulo e enxergue o mundo grande como ele é.

WaldeMar niclevicz: Eu poderia falar a mesma coisa do alpinismo. De certa forma, precisei ir até a montanha para me encontrar, para me ver diante de

23

um espelho. Há pessoas que não conseguem entender isso. Elas chegam lá em casa perguntando: “Cadê os seus troféus?” Eu não ganho um troféu nem uma medalha por ter chegado ao cume de uma montanha. Só aquela vista maravi-lhosa já é uma grande recompensa, pelo que me traz de contemplação. É na-quele momento que me encontro e faço minha comunhão com Deus. Fora que, numa situação-limite – a mais de 8 mil metros de altitude, por exemplo –, você é obrigado a lidar com todo tipo de limitação física e psicológica, e tem uma oportunidade única de se superar.

Mediador: Você poderia dar um exemplo de um desses momentos?

WaldeMar niclevicz: Uma grande montanha é um ambiente dinâmico, em constante transformação. O clima pode mudar repentinamente, pode che-gar uma tempestade, pode haver uma avalanche. Você lida com isso de duas formas: fazendo gerenciamento de risco e trabalhando o medo. Eu trabalho muito o meu medo, que às vezes se manifesta mesmo quando o grau de di-ficuldade da escalada está dentro do meu nível técnico. Há lugares de uma montanha que nem são tão difíceis de escalar, tecnicamente falando, mas são muito perigosos. Trechos que a gente chama de “expostos”, porque ali não há como usar grampos ou fazer uma ancoragem. Se você errar, você cai e morre. Nesses casos, qual é o maior desafio? Superar o medo. Este é um aspecto mui-to legal do alpinismo: a oportunidade que você tem de trabalhar o seu controle mental. Às vezes, antes de encarar um trecho exposto, eu fico tenso, travado. Dá para sentir o ácido lático doendo nos músculos. O que eu faço então? Res-piro fundo e digo para mim mesmo: “Eu sei que escalo muito mais do que isso. Não há por que ter medo.” Aí eu sigo em frente. Com a prática, você se dá conta de que é maior do que o seu medo. Ele pode até continuar presente, mas deixa de definir você como pessoa.

tatiana clauzet: Tudo o que se faz com consciência pode ser útil para o au-toconhecimento. Quando eu pinto, estou o tempo todo lidando com coisas de dentro e colocando-as para fora. Como pinto há dez anos, já deu até para perce-ber um processo cíclico que acontece dentro de mim. Um movimento de con-tração e de expansão, que fica evidente nas próprias pinturas. Quando elas estão muito povoadas de elementos, é porque estou me sentindo cheia, passando por uma fase de expansão. Invariavelmente, na sequência virá uma fase de contra-

24

ção, que é quando fico mais introvertida e o vazio me agrada mais. O meu mo-mento hoje é de expansão, de transbordamento, mas eu sei que mais tarde virá a contração. Descobrir que funciono dessa forma me trouxe estabilidade e me deu confiança na minha própria maneira de me expressar.

Marcio liBar: O trabalho do ator também pode ser um processo de auto-conhecimento. Por exemplo, para fazer o papel de Romeu em Romeu e Julieta, você tem que “visitar” profundamente o seu amor. Se você não souber amar, lamento, mas não vai conseguir interpretar Romeu. Afinal, como é que você vai comunicar amor para a plateia se não consegue comunicar amor nem para a sua mulher?! (Risos) Como palhaço, eu também aprendi muito sobre mim mesmo. O circo é um espetáculo que desafia a lei da gravidade. As pessoas voam, se equilibram num fio, jogam sete objetos para o ar, fazem aparecer e desaparecer coisas. Todo mundo é habilidoso e todo mundo tem um corpo perfeito. O que é que o palhaço está fazendo ali então? Ele está ali justamente porque ele cai; justamente porque ele erra. Na vida real, quem é que não cai, quem é que não erra? Ser palhaço me ajudou a resgatar a minha própria hu-manidade, porque errar é humano.

Mediador: Você costuma dizer que ser palhaço redimiu a sua “mediocrida-de”. Poderia falar sobre isso?

Marcio liBar: Veja a situação: eu, jovem, negro, morando no Rio de Ja-neiro. Inicialmente, eu quis ser ator, apesar de não ter um padrão de beleza televisivo. Se eu ralasse muito, talvez me escalassem para fazer um papel de bandido. Melhor não, pensei; vou fazer circo. Então lá fui eu aprender a jogar malabares. Eu olhava para os lados e todos os moleques ali eram melhores malabaristas do que eu. Fui fazer acrobacia então. Com muito esforço, conse-gui dar um mortal. Enquanto isso, o moleque do lado já tinha dado três. Foi quando descobri que tinha uma arte voltada para a mediocridade. O palha-ço é um especialista em ser medíocre! Não que isso seja fácil; como palhaço, você desenvolve técnicas para fazer o público acreditar que você realmente caiu da cadeira, que você realmente tropeçou, etc. O público só ri se ele acre-ditar, não é verdade? Quando descobri que existia uma arte do imperfeito, isso abriu uma janela enorme na minha vida. Eu comecei a aceitar a minha pró-pria imperfeição.

25

ruBeM alveS: Uma vez, um aluno me pediu uma entrevista. Ele chegou à mi-nha casa e me fez a seguinte pergunta: “Como é que o senhor planejou a sua vida para chegar aonde chegou?” Eu logo vi que ele me admirava e queria seguir o meu caminho, mas o fato é que cheguei aonde cheguei porque tudo o que plane-jei deu errado! É verdade: sou escritor por acidente. Já fui outras coisas também: professor de filosofia, teólogo, pastor. Hoje, sou apenas um velho. (Risos)

letícia SaBatella: Acho tão importante saber rir de si mesmo! Deixar de lado aquele ideal de quem você deveria ser e se permitir ser quem você real-mente é. Aliás, tempos atrás, eu saberia dizer quem sou, o que faço, para que faço, etc. Hoje não tenho mais essa certeza. (Risos) Eu só sei que, para manter o equilíbrio, não basta ter saúde física e mental. Às vezes preciso de uma ex-periência mais dionisíaca. Um momento em que eu saia com os amigos, beba, dance, cante e desequilibre um pouco a ordem das coisas. Eu preciso disso, se-não vou ficando muito séria.

Mario SerGio cortella: Uma pessoa que não é capaz de rir de si mes-ma não tem senso de humor. Além disso, a capacidade de sentir-se ridículo no passado nos dá compreensão de nós mesmos, para ir em direção ao futuro. Eu fico preocupado quando começo a me levar muito a sério. É sinal de que es-tou ficando velho. Eu quero ficar idoso; não quero ficar velho. O velho não ri de si; o idoso, sim. O idoso é aquele que tem bastante idade; o velho é aquele que acha que já está pronto e não precisa mudar.

Mediador: Você ouviu isso, Rubem? Você não é velho; você é idoso!

Mario SerGio cortella: Aliás, se tem algo que me chateia é encontrar al-guém que não me vê há muito tempo e ouvir: “Cortella, você continua o mes-mo!” Tem cabimento isso, num mundo dinâmico como o atual, alguém ficar congelado no tempo? Para usar uma frase antiga, eu não me envergonho dos homens que fui, mas gosto de lembrar que já tive muitas vidas, que foram sen-do feitas, refeitas e reinventadas. Ao contrário do que muita gente imagina, a gente não nasce pronto e vai se gastando. A gente nasce não pronto e vai se fa-zendo. Eu não nasci pronto em 1954 e vim me gastando até hoje. Eu nasci não pronto e vim me fazendo. O que nasce pronto é fogão, sapato, geladeira. Isso, sim, vai se gastando. Eu quero, sim, mudar o meu senso estético. Quero am-

26

pliar minha capacidade de ouvir, de enxergar, de fruir sabores. Também quero ser capaz de mudar a minha conduta em relação às pessoas com as quais eu convivo, para que essa convivência melhore. Ser do mesmo modo sempre não é sinal de coerência; é sinal de tacanhice mental.

Mediador: Muito bom, pessoal. Proponho que a gente encerre esta primei-ra conversa por aqui. O que ficou de fora provavelmente será abordado nos próximos encontros, que, de uma forma ou de outra, também terão a ver com autoconhecimento.

Intervalo com o Professor Hermógenes

Quando foi entrevistado para o documentário Eu Maior, José Her-mógenes de Andrade Filho tinha 89 anos. Mais conhecido como Professor Hermógenes, o maior expoente do yoga no Brasil teve contato com a prática já adulto. Tudo começou na década de 1960, quando superou uma grave crise de saúde justamente com o auxílio do yoga. A experiência resultou na publicação do livro Autoperfei-ção com Hatha Yoga, seu maior sucesso editorial. A esse livro segui-ram-se outros trinta, além da tradução de seis volumes de cunho filosófico e espiritualista.

O projeto Eu Maior teve o privilégio de contar com a participa-ção desse senhor cuja trajetória pessoal se confunde com a história do yoga no Brasil. Apesar de ser mais conhecido como uma práti-ca de exercícios físicos, o yoga é uma tradição de sabedoria milenar, originária da Índia, com múltiplas vertentes que têm como foco, fundamentalmente, o autoconhecimento. A própria raiz da palavra, em sânscrito, quer dizer “união” – consigo mesmo, com a natureza, com Deus. Para se chegar lá, além do corpo, é preciso trabalhar a mente, por meio de estudos e contemplação.

Mediador: Professor, além de mestre do yoga, o senhor é um

27

poeta que já comparou o desenvolvimento do ser humano a uma fruta que amadurece. Com 89 anos, como é que o senhor vê a sua maturidade?

ProfeSSor herMóGeneS: Sou uma fruta que está amadurecen-do. Percebo isso porque, com o passar dos anos, ganhei uma maior capacidade de não mentir, de não furtar, de não machucar ninguém. Já aprendi muitas coisas, mas o amadurecimento leva tempo; é pre-ciso ter paciência. Estarei maduro quando me livrar da ilusão de que sou um indivíduo chamado Hermógenes. O ser humano pre-cisa se identificar com a sua essência, não com a sua existência. O Hermógenes se transforma com o passar do tempo. A essência é eterna e não precisa de nome próprio.

Mediador: É nisso que consiste o autoconhecimento, num ama-durecimento?

ProfeSSor herMóGeneS: A vida nos é concedida para que pos-samos diminuir a distância que separa a nossa consciência da nossa essência. Evidentemente, a minha vida não tem mais o viço nem o brilho da juventude, mas eu continuo trabalhando, aprendendo a cada hora, no sorriso e na dor. Estou buscando uma verdade que me liberte, porque, felizmente, já adquiri consciência suficiente para perceber que estou preso.

Mediador: Preso a quê, exatamente?

ProfeSSor herMóGeneS: Preso ao meu ego, que se vê separa-do de tudo e de todos. Você já ouviu falar de egoesclerose? É uma doença muito séria! A pessoa perde o contato com a sua essência. E o que é a essência? É a nossa verdadeira identidade. Eu estou Her-mógenes; eu não sou Hermógenes. Enquanto houver essa confusão, estarei preso.

28

Mediador: Se o senhor não é o Hermógenes, quem é o senhor?

ProfeSSor herMóGeneS: Estou procurando saber. Me ajude! (Risos) A personalidade é transitória, mas a essência não. Personali-dade, cada um tem a sua, mas a essência é a mesma para todos. Para entender melhor, pense numa joia de ouro. Há muitos tipos de joias – o anel, o colar, o brinco –, mas todas elas são feitas do mesmo metal, que é o ouro. O Hermógenes está em busca desse “ouro”.

Mediador: Além da “egoesclerose”, o senhor também fala de “nor-mose”, não é? Do que se trata?

ProfeSSor herMóGeneS: A primeira vez que ouvi falar de nor-mose foi numa palestra do Roberto Crema, muitos anos atrás. É a doença de ser “normal”, no sentido de que a pessoa se acomo-dou com um autoconhecimento mais raso e é incapaz de enxergar além do próprio nariz. Deus me livre de ser normal! O normótico se acostumou com a visão distorcida que tem de si mesmo. Só que um dia ele vai acordar para o fato de que é prisioneiro de uma ilu-são. Mais cedo ou mais tarde, ele vai se dar conta de que a verdadei-ra liberdade está na consciência da unidade.

Mediador: O senhor é um mestre do yoga, que em sânscrito quer dizer justamente união, consigo mesmo, com Deus. O que é Deus para o senhor?

ProfeSSor herMóGeneS: Sinceramente, quem fala de Deus não sabe – e quem sabe não fala.

Mediador: Falemos então dessa união com Deus que o yoga fa-vorece. O senhor concorda que a maioria das pessoas ignora esse aspecto da prática?

ProfeSSor herMóGeneS: Quem não conhece o yoga pensa que

29

ele é apenas uma atividade física. Sem dúvida, a atividade física faz parte do yoga, e ela é muito bem-vinda, porque faz bem para a saú-de. Ela traz bem-estar. O ser humano precisa cuidar do corpo, por-que ele manobra com o corpo – mas não é o corpo. Tanto é que alguns dos principais mestres do yoga nem trabalhavam o corpo. Você já viu alguma imagem do grande iogue Jesus Cristo fazendo uma postura de cabeça para baixo? Não viu. Por acaso ouviu falar das posturas da devota Santa Teresinha? Também não. Mesmo na velhice, quando o corpo fica cheio de dores e limitações, a prática do yoga pode continuar. Veja o meu caso. Oitenta e nove anos. Eu con-tinuo praticando, mas sem trabalhar o corpo.

Mediador: Como é a sua prática hoje em dia?

ProfeSSor herMóGeneS: Isto que nós estamos fazendo agora é yoga, você percebe? Esta busca por uma visão mais bela e verdadeira da vida é yoga.

Mediador: Para terminar, o senhor teria um ditado ou frase fa-vorita?

ProfeSSor herMóGeneS: Entrego, confio, aceito e agradeço.

Para saber mais sobre os títulos e autores da Editora Sextante, visite o nosso site.

Além de informações sobre os próximos lançamentos, você terá acesso a conteúdos exclusivos

e poderá participar de promoções e sorteios.

sextante.com.br