52

Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Texto publicado na Revista Urbe em dezembro de 2012

Citation preview

Page 1: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe
Page 2: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe
Page 3: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe
Page 4: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe
Page 5: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

CULTURA VISUAL URBANA E CONTEMPORANEIDADE

EFEMERIDADES URBANAS

Page 6: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

Quando o tempo e o espaço são colocados entre parênteses: efêmero

A cidade é também tudo aqui-lo que eu não conheço. Já notou que sabemos tudo sobre o habitat ideal dos gorilas, girafas, chimpan-zés e até dos ornitorrincos, mas que quase não temos conhecimento so-bre o que seria um bom lugar para o homo sapiens viver?2

A cidade é lugar de partida. De retorno. De meio. De tudo e até de um pouco mais. Assim, dizem alguns, confirma-se a hipótese de que cada pessoa tem em mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças preenchidas por cidades particulares3. Por vezes, redundan-tes. Por vezes, coincidentes. O fato é que viver em uma cidade significa

habitar o lugar. Ter presente a terri-torialidade. A maior e mais louvável invenção humana, “o passado, o presente, o futuro”, divide-se por camadas de tempo assimétricas e até em contrassenso. Mas o que é o efêmero? O tempo que passa? O tempo codificado em registros? A memória já saturada de informa-ções? Eis o efêmero urbano: toda a novidade parece convencer de que é preciso esquecer de tudo para recomeçar. Impossível reco-meçar o presente sem o passado porque a cada segundo já não se tem o primeiro. Então, será que tudo pode ser efêmero menos a imaginação?

Eu crEio na EtErnidadE da artE, única pErmanência da nossa transitória individualidadE. 1

Page 7: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

A revista URBE tem como missão editorial tornar pública as ideias, opiniões, interpretações so-bre cultura visual urbana e contem-poraneidade construídas do ponto de vista de críticos, pesquisadores, acadêmicos, especialistas e artistas, com textos de caráter reflexivo.

A #4, que fecha o ciclo de edi-ções por ano, traz o tema efemerida-des urbanas para refletir sobre o que eu vejo e o que me vê como no arti-go Apartamentos com vista... para onde? de LETÍCIA LAMPERT {04}.

DÉBORA FANTINI {12}, em arti-go intitulado Tchau, tchau, belo ho-rizonte, apresenta o que acontece no meio ambiente urbano da capital mineira percorrendo as memórias que a cidade vai deixando com o avanço imobiliário e as intervenções promovidas por coletivos e artivistas.

Em O meio digital como possi-bilidade de permanência do efême-ro, a CASA DE CULTURA DIGITAL {20}, analisa como as ferramentas digitais proporcionam uma nova percepção do espaço e do tempo, o modo de viver e de se relacionar com o outro e com a cidade em que vivemos.

A efêmera arte urbana como produto e o consumo na pós-mo-dernidade é o artigo de CLARISSA EIDELWEIN e KELLEN LAZZARI {26} que propõe uma leitura sobre o efêmero urbano como resultado

também do consumo cada vez mais incentivado em nossa época.

O tempo nunca vem para per-manecer de VITOR MESQUITA {34} re-flete sobre a possibilidade do efême-ro como algo praticado e promovido pela constante expectativa ao novo.

FABRIANO ROCHA {38} coloca em discussão o ideal transitório para todas as coisas e o conceito de ima-terialidade no artigo A cidade real é imaterial.

Como diria Montaigne: “Eu não observo a paisagem, eu obser-vo a passagem”.

vitor mesquita

CULTURA VISUAL URBANA E CONTEMPORANEIDADE

EFEMERIDADES URBANAS

1 Fundação Iberê Camargo., p. 7. São Paulo: Banco Safra, 2009.2 Essa foi a questão que norteou a vida e o trabalho do urbanista dinamarquês Jan Gehl, inspirador do projeto Cidades

para Pessoas. http://cidadesparapessoas.com3 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.

Curador editorialVITOR MESqUITA

Editora executivaCLARISSA EIDELwEIN

Produtora executivaANDREA COSTAProdutor gráfico

JOÃO PEDRO qUADROSRevisora

GRACE PRADOEditora de fotografia

KáTIA COSTATiragem

1000 ExEMPLARES

FINANCIAMENTO

PRODUçãO E ExECUçãO

APOIO E IMPRESSãO

APOIO CUlTURAl

Page 8: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

4

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

Apartamentos com vista... para onde?

lETÍCIA lAMPERT

A cidade muda, cresce, se transforma. Como um organismo vivo, com suas cé-lulas/moradores em constante multipli-cação, ela vai aumentando para todos os lados. E não apenas para os lados, cresce para dentro, para o alto, principalmen-te. Afinal, todos querem estar na área central. É a lógica da metrópole, quanto mais gente por metro quadrado, melhor.

Para dar conta disso, casas anti-gas de bairro, cheias de histórias e de

um olhar para as vistas, cada vEz mais cEgas, da cidadE contEmporânEa.

personalidade, são derrubadas e trans-formadas em altos edifícios, sempre iguais, ainda que tentem ser diferentes. A cidade vai perdendo suas referên-cias, sua identidade e memória. Vai se transformando numa cidade qualquer, numa cidade cada vez maior.

A paisagem, efêmera, se dissolve em concreto. Já não se identificam mais as referências geográficas que deram origem a sua fundação. Pra que lado

Page 9: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

5

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

agora vEnha vEr EstE lado: a gEntE já não tinha vista para o nascEntE, mas vEja o novo tElhado quE aparEcEu; pois bEm, agora o sol da manhã chEga mEia hora dEpois.

fica o rio? Onde nasce o sol? Tem uma serra naquela direção... ou seria para o outro lado? Desnorteados e desconec-tados da natureza, é a programação da TV que passa a anunciar as horas do dia.

Assim como a paisagem se dis-solve, a ideia de vista, de vista da janela, vai perdendo o sentido também. Mes-mo que ela tenha sido posicionada cui-dadosamente no momento da constru-ção, com o objetivo de dar ao morador uma bela paisagem, pontos turísticos ou marcantes da região, nada impede que, de uma hora para a outra, sua vista seja tapada por outro edifício. A menos que você, precavido, já tenha compra-do o espaço aéreo do terreno vizinho. É a especulação imobiliária que torna o que antes parecia coisa de religiões du-vidosas, vender terreno no céu, questão protegida por lei, que pode ser inclusive assinada e lavrada em cartório.

Na série Vista para, que até o mo-mento foi realizada em Florianópolis, Porto Alegre, Buenos Aires e São Paulo, a impossibilidade de enxergar além de alguns poucos metros, que é dividida pelas janelas fotografadas em cada uma das cidades, confunde a memória, ou a ideia que temos do lugar, fazendo com que dificilmente consigamos identificar a qual cidade pertence cada conjunto de imagens. O único detalhe que de-nuncia a localização é a legenda, dado que se torna incongruente se levarmos em consideração o que a imagem de Vista para Florianópolis, Letícia Lampert

fato está mostrando. Na verdade, o que as fotografias sugerem é uma vista que, um dia, existiu. Hoje, tapada, escondida, é uma vista que já não se pode mais ver. Soterrada pelo concreto, foi relegada da visão ao âmbito da imaginação, ou da memória dos antigos moradores que um dia puderam apreciar alguma paisa-gem daquele ponto.

Esta antiga vista, possivelmen-te bela (já mal consigo imaginar como pode ter sido), é hoje um feio paredão de concreto. Um paredão com muitas outras janelas. Algumas, às vezes, pró-ximas demais. E aí, além da vista, outra questão entra em jogo, esta intimida-de forçada com vizinhos que é cada vez mais pungente nas cidades atuais. E assim a vida dos outros passa diante dos nossos olhos, como se fosse mais um canal da TV, aquela mesma que indica as horas. Um canal, porém, que não conseguimos desligar ou trocar por outro que tenha uma programação me-lhor, quando a que estamos assistindo não está agradando.

Page 10: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

6

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

Vista para Buenos Aires, Letícia Lampert

E a vida na cidade vai seguindo nesses moldes, já entendidos como na-turais ou inevitáveis. Alguns se incomo-dam mais com essas janelas tão próxi-mas, outros menos. Alguns olham com curiosidade, outros com receio. Amiza-des e inimizades surgem e se desen-volvem entre janelas. Quem será aque-la pessoa que mora do lado de lá? De quem é aquela janela que vejo todos os dias acender e apagar sua luz? Será que de lá eles também me observam?

Envolto no castelo de andaimes como

um amontoado confuso de tábuas, cor-

das, baldes, peneiras, tijolos, massas de

areia e cal, o edifício crescia no outono.

Sobre o jardim já tombava sua asa de

sombra; o céu nas janelas da casa esta-

va murado. Mas ainda parecia uma coi-

sa provisória, uma tralha que depois se

abate assim como se ergueu; era desse

modo que a mãe tentava considerá-lo,

concentrando o descontentamento em

aspectos transitórios, como os objetos

que caíam dos andaimes nos canteiros,

ou a desordem das traves na rua, evitan-

do considerar o edifício como edifício,

algo que ficaria plantado ali para sem-

pre sob seus olhos.

As fachadas e as paredes das ca-sas e dos prédios passam a significar um limite entre mundos, tão próximos e tão distantes ao mesmo tempo. Eu, de fora, pouco sei, ou nada sei, sobre o ou-

tro lado dessas tantas paredes que me circundam, que circundam cada um de nós, diariamente, pelas ruas da cidade. O que tem do outro lado?

Se as paredes de fora nada reve-lam, é a janela que aparece como elo entre esses dois lados, como ponto de contato entre o que é público e o que é privado, o que deve ser escondido e o que pode ser revelado. Afinal, é da na-tureza da janela que olhem através dela, é para isso que ela existe. Mas se ela foi feita para olhar para fora, não tem como evitar que de fora se olhe para dentro também. Toda moeda tem dois lados. E esse pouco que vejo pela janela (onde também me deixo ver, querendo ou não) é a única pista que tenho de todos esses moradores, esses tantos vizinhos que dividem seu CEP comigo.

Entretanto, essa proximidade física não costuma se refletir na proxi-midade das relações subjetivas. Pelo contrário, parece que, para nos prote-ger dessa intimidade forçada com um outro desconhecido, criamos mecanis-mos e atitudes para nos afastar o má-ximo possível, cultivando um neutro distanciamento. Por isto fechamos a janela, puxamos a cortina, baixamos a persiana, na busca por um pouco de privacidade, na tentativa de fugir de ruí-dos incômodos ou dos olhares curiosos daqueles anônimos conhecidos que passam a habitar nosso dia a dia. Des-conhecidos já tão íntimos que muitas

lETÍCIA lAMPERT

Page 11: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

7

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

vezes poderiam tecer longas descrições sobre nossos hábitos mais banais.

– Conhece o vizinho da frente? – pergunto a uma moradora. – Não, ela me diz.

– Quer dizer, conheço de vista. Não sei o nome, mas sei, por exemplo, que todo dia de manhã ele toma seu café na sacada e gosta de comer um pãozinho junto. Vejo ele quase todo dia, mais ou menos no mesmo horário. Mas o pessoal dali é meio esnobe, sabe? Quando veem que tem gente na jane-la da frente, já entram novamente em casa, nem cumprimentam.

Fato é que é mesmo difícil esta-belecer esse tênue equilíbrio entre ver e ser visto, entre o que é bisbilhotice e o que é atenção, nessa intimidade for-çada que a configuração da cidade es-tabelece. Esse distanciamento criado, na verdade, nunca consegue ser tão grande a ponto de não ser tocado pela existência do outro. Ele está ali, muito próximo, querendo ou não. E assim ou-vimos barulhos, percebemos hábitos, trocamos olhares ou saudações.

– Ali na frente mora uma senho-ra de idade, sozinha. Eu me preocupo com ela. Cuido dela daqui. Todo dia de manhã olho se ela abriu a janela. Então fico tranquila, sei que está tudo bem. Se um dia ela não abrir, é por que algo aconteceu – me conta outra moradora. Elas nunca se falam ou se encontram de fato. Na correria dos dias de hoje, só

cria-sE um paradoxo: sE a vista é EfêmEra, a situação Em si é uma constantE.

Page 12: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

8

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

sobra tempo para se cuidarem assim, pela janela. Um olhar de carinho no meio de um entorno que se imagina sempre mais hostil.

A obsessão por ver a cidade por dentro, por ver a vista da janela dos outros, a estas alturas, já havia se trans-formado em projeto (ainda bem que tudo pode virar arte!). Numa flânerie às avessas, passei a perambular pelos apartamentos da cidade. Apartamentos de gente que não conhecia, mas onde identificava essa proximidade entre as

janelas dos prédios. A cidade do aves-so. Já não me interessava mais pelas fachadas, pela vista de fora, conhecida de longa data e compartilhada por to-dos. Queria ver o outro lado, queria ver como vê o morador lá daquela janeli-nha que acaba de fechar a cortina. Será que ele se incomoda com a janela do vizinho tão perto? Será que são amigos ou pelo menos se conhecem?

Nessas visitas e andanças, nem todos são receptivos, é claro. Afinal, além do tempo, cada vez mais escasso

e contado na vida de cada um, receber um estranho em sua casa não é bem assim. Não seria um golpe, um assalto, um louco com intenções diabólicas? A insegurança reina, com tantas notí-cias de violência em todos os jornais. Mas depois de algumas explicações e de vencer olhares desconfiados e curio-sos de porteiros e zeladores, eu própria me surpreendi com a receptividade da maioria. Da maioria em uma certa re-gião da cidade, é interessante apontar. No centro e nas imediações, consegui

lETÍCIA lAMPERT

Page 13: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

9

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

diversas visitas e olhares simpáticos ao projeto. Já em prédios da Nilo Peçanha, por exemplo, nem mesmo apresentar a proposta ao síndico foi possível. A or-dem para os porteiros é barrar qualquer estranho ou intrometido que queira se aproximar. Eu era as duas coisas. A bar-reira, pelo menos para os bem-intencio-nados, é quase intransponível.

No entanto, é interessante notar também que esta situação de janelas próximas demais não acontece só em determinada faixa de apartamento ou

nível de desenvolvimento social de bairros e regiões. Dos mais luxuosos aos mais simples, a vista de todos está cada vez mais comprometida.

Aquela frase sobre o prédio não muito

bonito tinha deixado a mãe alarmada.

– Mas antes nós queremos ver o proje-

to – disse – e ter o direito de aprová-lo.

O senhor sabe, vamos ter esse prédio

sempre diante dos olhos... (…) Quinto

fizera uma expressão ao mesmo tem-

po de fatalismo e de altivez, como de

um homem que sabe muito bem que

se poderia pedir tudo à futura constru-

ção, menos que fosse bonita; aliás, era

preciso torcer para que fosse anônima,

inexpressiva, que se confundisse com

os edifícios mais anônimos do entorno,

marcando sua total estranheza em rela-

ção à casa deles.

– Fique à vontade minha filha, não repare na casa. A casa é velha, sabe? Quer dizer, eu sou bem mais velha que a casa. Com estas palavras, a senhora do

Page 14: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

10

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

nono andar me convida para entrar. Ela me conta que, da bela vista que tinha quando se mudou, há mais de 50 anos, já não resta mais nada. Tudo virou este edifício sem graça (palavras dela) com este monte de janelas que vemos a nos-sa frente. E a senhora conhece alguém do outro prédio? Pergunto. Não, tam-bém, não para ninguém nestes apar-tamentos, estão sempre se mudando. Apenas ela permanece. Uma raridade no meio da cultura do inquilinato, do movente, do fugaz. E ela, quase anacrô-nica naquele contexto, já não consegue fazer amizade com as vizinhas como fa-zia tempos atrás. Fechada em seu apar-tamento, vê o tempo passar pela janela, sendo marcado agora pelos vizinhos que vêm e que vão.

Não é apenas a vista da janela que se torna cada vez mais efêmera, com o perigo eminente de uma nova constru-ção muito próxima surgir da noite para o dia, mas as relações entre os vizinhos nes-se microcosmos que os edifícios formam, também são cada vez mais passageiras. Casas onde gerações e gerações de uma mesma família passaram, deixando suas marcas e histórias por todos os cantos, parecem hoje uma realidade distante, incompatível com a cidade e seu fluxo sanguíneo, sempre corrente. Algumas relações ainda se equilibram neste con-texto, como as senhoras que se cuidam para conferir se uma e outra abriu a janela todo dia de manhã. A maioria, no entanto, parece preferir voltar os olhos para o ou-tro lado, para não ter que cumprimentar

lETÍCIA lAMPERT

Vista para São Paulo, Letícia Lampert

Page 15: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

11

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

letícia lampert é mestranda em Poéticas Visuais pelo PPGAV/UFRGS, bacharel em Artes Visuais – Fotografia pela mesma instituição (2009) e bacharel em Design – Programação Visual pela Ulbra (2000). Faz parte atualmente do grupo de pesquisa em artes .p.a.r.t.e.s.c.r.i.t.a., coordenado por Elida Tessler. Tem participado de diversos salões e exposições e, em 2010, recebeu o Prêmio Açorianos de Artes Plásticas na categoria Fotografia, sendo indicada também como Artista Revelação.

mais um vizinho que se põe a sua frente e que, sabe-se lá até quando, vai morar ali.

Se pensarmos que a vista da janela é uma forma de ver e perceber a cidade, sua constante transformação demonstra o quanto essas referências facilmente se esvaem. A maioria das fotografias ob-tidas, nas diferentes séries, poderia ter sido tirada em qualquer cidade. A vista já não localiza mais. As situações se re-petem, comuns a todos os lugares, num mundo cada vez mais globalizado, cada vez mais padronizado. Cria-se um para-doxo: se a vista é efêmera, a situação em si é uma constante. Na série Vista para, coloco em contraponto cidades diferen-tes que poderiam ser entendidas como sendo uma só. Neste novo projeto1, no qual a relação entre os vizinhos é o mote

principal, falo a partir de Porto Alegre, mas muito mais por uma questão cir-cunstancial do que por ser um dado re-levante ou um estudo de caso de uma região específica. O lugar geográfico é o que menos importa, é uma situação co-mum não só a diferentes bairros, mas a diferentes cidades também.

Resta pensar como fica a percep-ção do tempo e do espaço em que vive-mos quando as referências se apagam cada vez mais rápido. Se a configuração da cidade é alheia a nossa vontade, se ela vai se transformando sem podermos in-terferir, a forma de se relacionar e se po-sicionar frente a determinadas situações ainda depende de nós. No fim, é tudo mesmo uma questão de ponto de vista, basta não deixar que tapem o seu.

REFERêNCIACALVINO, Ítalo. A especulação imobiliária. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

NOTA1 Sigo coletando vistas e histórias entre janelas para

este projeto, que foi selecionado pelo II Prêmio IEAVI e tem exposição prevista para junho de 2013. Se você se reconhece nessa situação e gostaria de compartilhar a sua, entre em contato pelo [email protected]. Será um prazer contar com novas participações.

Page 16: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

12

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

Tchau, tchau, belo horizonte

DéBORA FANTINI

12

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

Em paralelo ao boom de grandes obras, a capital mineira também é reconstruí-da em intervenções urbanas que po-dem não durar na paisagem, mas têm potência para se impregnar na memó-ria de forma poética.

Não tenho me cansado de repetir “tchau, tchau, belo”, para me despedir do horizonte da minha cidade, desapa-recendo atrás de arranha-céus. Em Belo Horizonte, até o rio sumiu em alguns trechos, canalizado e coberto pelo as-falto que se alastra com a abertura e a ampliação de vias, num boom de obras que vêm modificando a paisagem da ca-pital mineira na última década, sobretu-do nos últimos cinco anos, na urgência do Programa de Aceleração do Cresci-mento (PAC) e na iminência da Copa do Mundo de 2014, da qual BH é uma das cidades-sede.

Essa Belo Horizonte (re)construída pela iniciativa privada e pela administra-ção pública não corresponde à cidade desejada por alguns de seus habitantes, que partem para a criação de suas pró-prias intervenções na capital. Sem per-seguir o caráter perene fundado sobre o conceito de propriedade, cidadãos co-muns ou artistas adotam táticas de uso da urbe como interferências imagéticas, ocupações móveis, ações temporárias, por meio das quais se tenta escapar, mesmo que momentaneamente, ao controle do capital e do Estado. Essas in-tervenções urbanas não duram na paisa-

Foto: Dereco M

achado

Page 17: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

13

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

13

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

gem, mas têm potência para se impreg-nar na memória de forma poética.

A cada “tchau, tchau, belo” que re-pito, parafraseio minha amiga Dastenras, portuguesa que vive em Belo Horizonte há alguns anos. “Bye bye beautiful”, diz a legenda da fotografia de um inacaba-do arranha-céu com a fachada coberta de pichações, no centrão da cidade, ti-rada por ela em 9 de outubro de 2011 e publicada em seu Flickr1. Espécie de cartão-postal que ela deixou, aos amigos “beagaenses”, antes de uma viagem a Portugal. Em seu regresso a BH, um mês depois, o registro já se tornara histórico, pois o motivo da foto não estava mais lá.

Após 30 anos largado no ostracis-mo pela especulação imobiliária, o espi-gão de 32 andares, em plena Avenida do Contorno, uma das principais da capital mineira, vai cumprir sua vocação para hotel de luxo. No entanto, nessas três décadas de abandono pelo capital que se criou o “belo” ao qual minha amiga se referia: a mais clássica “agenda” de “pixo” da cidade, com “prezas” garrafais.

As pichações começaram a ser apagadas das fachadas, deixando-se apenas ler “PAVOR” no heliponto, refe-rência geográfica no skyline belo-ho-rizontino. “Apenas nos resta o Pavor”, comenta minha amiga a respeito de outra foto2. Pavor da gentrificação que nos persegue, tentando calar quem deseja se expressar na pele da cidade, com verniz antipichação, aplicado nas

praças “revitalizadas”, no jargão urba-nístico dominante.

Mas a pele de vidro que revestirá o novo velho hotel não deve ofuscar a memória daquele que, até o início de 2012, era considerado um dos maiores elefantes brancos de BH. O artista Ci-dadão Comum reproduziu fielmente, “pixo” por “pixo”, a fachada principal do prédio ainda inacabado em um estêncil, que foi aplicado em papel e grudado ao lado do próprio edifício, localizado numa área “degradada” em vias de “revitaliza-ção”. Um antimonumento ao antimo-numento, não apenas por serem, tanto os “pixos” quanto o sticker, extraoficiais, mas, sobretudo, por não terem, ambos, a pretensão de alcançar a posteridade, e, sim, o desígnio da efemeridade, sem ilusão quanto à própria decomposição.

A despeito da repressão que a prefeitura e a polícia vêm adotando em relação à pichação – aproveitando-se do

fato de se tratar de uma prática gregá-ria para enquadrar pichadores no crime de formação de quadrilha – segue-se traçando linhas de fuga por BH. “Teve maluco que passou lá e deixou sua presa de caneta bic no stencil!”, conta Cidadão Comum em seu mural no Facebook.

A menos de cinco quilômetros dali, na Avenida dos Andradas, já na re-gião leste da capital, será construído, anunciou-se recentemente, o mais alto prédio da América Latina, com 85 anda-res, cinco vezes o número de pavimen-tos de cada uma das Torres Gêmeas que hoje ocupam o terreno.

Esqueletos de edifícios, as torres ainda assim foram a moradia de 180 fa-mílias por quase 15 anos, até o despejo, em 2010, em truculenta ação da polícia, como tem sido a praxe em outras ocu-pações pela cidade – talvez tenha che-gado a Porto Alegre a notícia da prisão, em BH, do rapper paulista Emicida, após o músico ter protestado, durante um show, contra o despejo de outra ocupa-ção, Eliana Silva, a oeste da cidade.

Na capital mineira, o déficit habi-tacional é de 62 mil moradias, segundo levantamento de 2011 da Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel), menos da metade dos 150 mil lares es-timados pelo Movimento de Luta nos Bairros (MLB). Isso abrange quase 1 mi-lhão de pessoas, parte das quais busca abrigo nas ruas, onde não são bem--vindas pela prefeitura, que as recebe

Page 18: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

14

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

14

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

com pedras pontiagudas, como as que foram instaladas debaixo de um viaduto na Avenida Cristiano Machado, ligação entre o centro e a região nordeste.

Diante das várias manifestações artivistas em contrário, acabei me lem-brando de que, sete anos atrás, quan-do o espaço comum em BH era menos controlado, viadutos da cidade foram mobiliados e decorados com stickers, representando cômodos como cozinha, sala de TV e quarto de criança, na inter-venção Ambientes3, realizada pelo cole-tivo Pão com Durex durante o 3º Fórum de Arte das Américas, em 2005.

Além de abordar o problema da falta de moradia, ao conceber-se a rua como casa, resgata-se a ideia desse es-paço público como lugar de convívio e não apenas de circulação. Localizada entre esses dois territórios, a Kasa Kian-da, construída desde 2011 em diferentes pontos de BH, tem marquises como te-lhado, calçadas como piso e é mobiliada com cama, mesa, assentos e utensílios domésticos recolhidos em derivas pela cidade por seus criadores, os artistas Le-andro Acácio e Saulo Salomão, integran-tes do Obscena4.

Pode causar estranhamento o fato de seus habitantes não aparentarem o estereótipo de moradores de rua, mas a Kasa Kianda é aberta a estes e a quem mais quiser entrar, para um café, um dedo de prosa, um descanso no meio da cor-reria cotidiana. Certa vez, armada na Rua

Aarão Reis5, foi visitada por meninos que acabaram dormindo lá dentro. E aí, como desmontar a “obra”? Mais fácil é descons-truir a ideia de arquitetura, que se torna sinônimo de “(…) pertencimento e não mais uma estrutura, uma forma de conter física ou concretamente um espaço. (…) Em vez de nossos corpos se adaptarem à geometria dada realizada no espaço, o corpo produz seu mundo, suas formas, sua casa”, como observou Davi Pantuzza, outro integrante do Obscena.

MORTES DAS CASASRessignificar a arquitetura não quer dizer desprezar o patrimônio arquitetônico de Belo Horizonte. “Beagaense” adoti-va, nasci e cresci em cidades coloniais mineiras (Sabará, Mariana e Ouro Preto), acostumada ao fato de que estragos em imóveis do século XVIII virassem notícia em rede nacional. Já na capital, debu-lhei-me (e ainda me debulho) em lágri-mas introvertidas diante de casas e até predinhos de três andares demolidos.

Meu choro foi compartilhado em um velório de quatro casarões, que, mes-mo em processo de tombamento, foram derrubados na surdina, numa madruga-da de um final de semana de agosto de 2005, pela Igreja Universal do Reino de Deus, para a construção de um estaciona-mento para seu megatemplo na Avenida Olegário Maciel.

As casas datavam de 1946 e re-presentavam o início da ocupação de

Lourdes, bairro nobre na região centro--sul de BH. Uma delas foi projetada por Raphael Hardy Filho, nome relevante da arquitetura moderna em Minas Gerais, embora sua assinatura não faça dessas construções mais importantes do que outras, anônimas, em bairros onde o me-tro quadrado é menos valorizado.

O velório das casas, realizado na noite seguinte à demolição por dezenas de pessoas, incluindo integrantes do Movimento SalveoVHS e Partidomeio, foi uma intervenção que acabou sendo chamada “A Minha Vela Apagou”, frase que encerra a fala de um dos presentes em vídeo que registra a ação6.

A morte das casas de Belo Horizon-te também é tema da intervenção “Era Uma Casa...”, na qual imagens das cons-truções ainda de pé foram projetadas nos tapumes dos terrenos onde seriam erguidos os edifícios que as substituirão. Fantasmas a chamarem a atenção de vi-zinhos e passantes, que não haviam tido tempo de fazer um reparo pela última vez nos imóveis, antes que fossem ao chão.

O projeto, realizado pelo artista Fá-bio Batista desde o início de 2011, também inclui um site7, com imagens de casas de-molidas captadas no Google Street View, num esforço de guardá-las antes que, com uma atualização da ferramenta, sejam perdidas para sempre. O inventário vem sendo criado de forma colaborativa, com indicações de outros belo-horizontinos de endereços de casas recém-demolidas.

DéBORA FANTINI

Page 19: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

15

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

15

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

Foto: Fábio Batista

Page 20: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

16

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

1616

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

Enquanto quarteirões são “revita-lizados” em cima de escombros, o ribei-rão Arrudas, principal curso d’água da ci-dade, é enterrado. Em vez de despoluir o rio, que já era um canal com margens de concreto, o poder público optou por se-pultá-lo de vez, em um caixão chamado Bulevard, e abrir pistas para mais carros – crescente em ritmo acelerado há cinco anos, a frota da Grande BH apresenta o maior aumento por habitante do país.

Por mais sujo e fétido que o Arru-das se encontre hoje, há quem deseje que o rio continue a fazer parte de Belo Horizonte, e bem vivo, com suas águas apropriadas para nado e pesca. Num trecho que ainda estava descoberto em 2011, uma turma de pescadores – inte-

grantes do coletivo Os Conectores8 e do já citado Obscena – lançou suas linhas para fisgar quem passava de carro sem se lembrar de que ali, debaixo das novas pistas da avenida, existe um rio.

PRAIA SAzONAlE não apenas rio, em Belo Horizonte também existe praia. Neste estado in-terior que é Minas Gerais, as praias são como as ondas, vêm e vão, numa série de experimentações que foi identifica-da como uma “tradição praieira insur-gente”9 pelo Conjunto Vazio.

A Praia da Estação é a mais recen-te, reunindo banhistas vestidos a ca-ráter para curtir sábados de sol e água fresca, de fonte ou de caminhão-pipa.

Surgiu como mais um questionamen-to da gentrificação pela qual BH passa, expressa no decreto municipal10, já re-vogado, proibindo “eventos de qual-quer natureza” na Praça da Estação, que havia sido criada, 10 anos antes, com a transformação de um estacionamento em esplanada dotada de infraestrutura para manifestações culturais com gran-des aglomerações.

Ficando entre uma ação direta, festiva e lúdica e um evento espetacula-rizado, a Praia da Estação conseguiu pro-mover alguns encontros, articulações e pensamentos em torno da construção do comum, respingando em outras ações até hoje, quase três anos após sua primeira edição, em janeiro de 2010.

DéBORA FANTINI

Foto: Rogério Araújo

Page 21: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

17

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

Um mês antes, o decreto já havia sido colocado em questão na Rotatória Praia da Estação, com shows de Retrig-ger11, Monster Surf e banca de cartazes e livros do grupo 4e2512, que também imprime suas criações em muros e fa-chadas. Realizadas entre 2005 e 2009, as rotatórias foram ocupações relâmpago desses não lugares em “festas feitas na rua com intuito de tornar realmente pú-blico o espaço urbano”, segundo o cole-tivo Azucrina13, que as promoveu.

Rotatórias, além de canteiros cen-trais de avenidas e praças, também fo-ram ocupados para ações banais, como tomar banho de sol, na série de interven-ções A Ilha14, que o já citado Conjunto Vazio realizou em meados de 2008.

CIDADE-JARDIMUma das primeiras cidades planejadas da América Latina, cuja construção se iniciou na última década do século XIX, Belo Horizonte até hoje ostenta o título de “cidade-jardim”. Mas ainda nos anos de 1930, quando Carlos Drummond de Andrade podia “debaixo de cada árvore” fazer sua cama, “em cada ramo” pen-durar seu paletó, iniciou-se a poda dos frondosos fícus da Avenida Afonso Pena, que acabariam sendo totalmente corta-dos, em 1963, assim como árvores em muitas outras avenidas e ruas da cidade, ao longo daquela década.

O real motivo era o alargamento das vias para comportar a explosão de automóveis, mas, diante da desaprova-

ção da população, o prefeito da época, Jorge Carone Filho, usou a justificativa de que as árvores estavam contamina-das por uma praga. Ironicamente, quase 50 anos depois, essa lenda urbana vol-tou a ser evocada em um telejornal para denunciar uma (falsa) ameaça de derru-bada dos fícus centenários e tombados da Avenida Bernardo Monteiro, no Bairro Santa Efigênia (centro-sul).

Em maio de 2011, as árvores ama-nheceram com placas em seus troncos anunciando sua extração para exporta-ção pela Vecana15, apresentada como uma empresa de “corte e venda de ma-deiras nacionais”, mas, na verdade, um empreendimento de terrorismo poético, articulado por uma rede de colaborado-

Foto: Luiz Navarro

Foto: João Perdigão

Page 22: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

18

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

res e grupos de arte autônomos, que se apresentam como Ajuricaba (ajunta-mento de marimbondo), um pseudôni-mo compartilhado, como Luther Blissett.

Se conseguiu enganar mídia, pre-feitura e polícia por um lado, por outro, a ação provocou a mobilização de pes-soas que “denunciaram a ação da em-presa, sentiram de certa forma que são capazes de lutar contra as forças dessas megaestruturas empresariais”, segundo afirmou Ajuricaba em entrevista ao site Ah!Cidade16.

Também acirrou o debate, em re-des sociais e em bares, sobre a flexibiliza-ção do Código Florestal, cujas alterações – como a conversão de multas para cri-mes ambientais cometidos até julho de 2008 em serviços ambientais – àquela época acabavam de ser aprovadas na Câmara dos Deputados. No âmbito lo-cal, engrossou as discussões sobre arbi-trariedades que prefeitura e vereadores vêm praticando, a favor de interesses privados, como a desapropriação de matas e a venda de ruas e mercados pú-blicos para a construção de empreendi-mentos imobiliários.

Entre um tropeço e outro em to-cos de árvores cortadas pelos passeios do meu bairro, Anchieta (centro-sul), é outra placa que me chama a atenção: “Mudas: jardim e pomar. É sua, pode le-var”. A tabuleta está fixada, ao lado de vasos, alguns improvisados em emba-lagens, no muro da casa do seu Ernani

Façanha di Latell, advogado aposentado de 85 anos.

Tem árvores frutíferas – limão-ca-peta, graviola, jabuticaba e até pêssego – e flores – antúrio, beijinho, camarão, manacá e orquídea. E qualquer um pode pegar mesmo, não precisa nem bater. Mas seu Ernani não se incomoda se um neófito na jardinagem quiser di-cas sobre como plantar as mudas para semear seu gesto.

O epíteto de “cidade-jardim” não alude necessariamente aos atributos paisagísticos de Belo Horizonte. A ex-pressão traduz mesmo é o ideário do-minante de higienização, atrelado ao de modernização, presente desde o surgi-

mento da então nova capital, que subs-tituiria Ouro Preto.

Na região onde Belo Horizonte foi implantada, ficava um arraial chamado Curral del Rei, nome emblemático de um passado rural não tão distante – a ci-dade completa 115 anos em 2012 – com o qual os belo-horizontinos costumam lidar de forma controversa. Ainda ouço ou leio, com frequência, BH ser chamada de “roça grande”, ora com desprezo, ora com orgulho.

Mas eis que um dia as vacas liber-taram-se do curral, do rei e saíram tro-tando pelo asfalto belo-horizontino. Tão inusitadas quanto animais de verdade num ambiente urbano, as artesanais va-

DéBORA FANTINIFoto: D

aniel Silva

Page 23: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

NOTAS1 www.flickr.com/photos/dastenras/6242847143/in/photostream2 www.flickr.com/photos/dastenras/6743109745/in/photostream3 www.flickr.com/photos/paocomdurex/872589485/in/set-72157601485946895/4 obscenica.blogspot.com.br5 Aarão Reis (1853-1936), engenheiro e urbanista paraense, foi o chefe da comissão que construiu Belo

Horizonte, entre 1894 e 1897. A rua que leva seu nome, talvez a única ainda hoje calçada e não asfaltada, está localizada entre a Avenida dos Andradas e os trilhos da ferrovia e do metrô, próximo à Praça da Estação e ao Viaduto Santa Tereza (famoso pelos arcos), numa região tensionada entre a gentrificação para a criação de um polo histórico-cultural e manifestações de resistência.

6 www.youtube.com/watch?v=s-GvvgctYiw 7 www.eraumacasa.blog.br 8 www.osconectores.ato.br 9 comjuntovazio.wordpress.com/2011/05/28 10 portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=101773211 retrigger.net12 4e25.org/13 www.blog.azucrina.org14 comjuntovazio.wordpress.com/2011/05/2815 www.grupovecana.com16 ahcidade.com/2011/06/marimbondo-na-cena-do-crime17 www.overmundo.com.br/banco/vacas-magras-a-cow-parodia 19

Débora Fantini é jornalista e especialista em Artes Plásticas e Contemporaneidade pela Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Estuda e pratica artivismo relacionado à urbe e ao feminismo em Belo Horizonte, onde vive. É coeditora do zine Mixsórdia (mixsordia.com), agenda cultural on-line de BH. Em 2010, participou da realização do Vendendo Peixe (urubois.org/vendendopeixe), ocupação artivista no terceiro andar do Mercado Novo, no centro da capital mineira.

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

da intervenção, estava sendo realizado pela primeira vez no Brasil, em São Paulo.

Em uma cidade de horizontes cada vez menos belos e mais restritos, com praças e parques cercados e vi-giados, na qual, em detrimento da hu-manidade dos sujeitos, atitudes contra a ordem e o capital são criminalizadas, desde a pobreza de um sem-teto até a liberdade de expressão de um picha-dor, as vacas magras representam, para mim, a liberdade. Inspiram-me a rumi-nar táticas para escapar do poder pelas vias do artivismo urbano, juntando-me à manada dos que também se engajam com a cidade e opõem-se às políticas de controle.

cas irromperam num cortejo nonsense que parecia bloco de Carnaval, mas fora de época.

Cerca de 20 pessoas, artistas ou não, fizeram vacas com materiais reci-clados ou baratos e passearam com elas por ruas da cidade: havia esculturas, fantasias, uma pessoa vestida de vaca doente em uma cadeira de rodas e outra empurrando um carrinho de mão com esterco, como se estivesse à venda. No final do trajeto, as vacas foram deixadas pastando pelas ruas.

Realizadas duas vezes, em 2005 e 2006, as Vacas Magras – Cow Paródia17 sa-tirizavam o evento internacional Cow Pa-rade, que, na ocasião da primeira edição

fEstas fEitas na rua com intuito dE tornar rEalmEntE público o Espaço urbano.

Foto: Daniel Silva

Page 24: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

20

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

O meio digital como possibilidade de permanência do efêmero

CCD POA

Este ano, Porto Alegre foi pre-senteada com algumas intervenções urbanas efêmeras, que ilustraram o mo-mento artístico e questionador do atual contexto cultural que a cidade respira.

Intervir usando a arte como meio para expressar opiniões e indagações sobre a cidade não é algo novo. Porém, a possibilidade de articulação e de pro-pagação das causas que estamos viven-do através do meio digital é recente e de um alcance que ainda não temos condições de mensurar.

O advento das tecnologias di-gitais e a sua popularização, somado a uma nova geração criativa que enxerga e não se conforma com os problemas ou a falta de opções na cidade, pro-porciona um ambiente extremamente favorável para a criação de novas redes de contatos. E são a partir dessas redes que surgem as ideias para as manifesta-ções urbanas.

O movimento Occupy Wall Street foi um dos precursores dessa tendência, com suas atividades ganhando força pela rede social Facebook, e conseguin-do reunir milhares de pessoas presen-cialmente num protesto contra a de-sigualdade econômica e social. Assim como essa iniciativa, outras surgiram e utilizaram o meio digital para sua co-municação e organização. Porto Alegre é uma das capitais do Brasil que abriga vários coletivos criativos com o propósi-to de promover ações culturais e sociais

interferindo positiva e efemeramente no dia a dia da cidade.

A interferência cultural na cida-de pode ser transitória na ação, mas, ao usar o meio digital em seu processo – para criação ou registro – acaba por ressignificar a questão de efemeridade, já que, de alguma forma, o digital deixa rastros, memórias on-line e oportuniza conexões entre pessoas que podem continuar a ter contato ou até mesmo a criar novas intervenções.

É aí que as intervenções urbanas cruzam com a cultura digital, reforçando os conceitos de compartilhar e construir. E o impacto dessas ações – meio físicas, meio digitais – é sentido em real time.

Diversos pensadores e autores se empenham em definir o que é exata-mente a Cultura Digital, como ela vem modificando nosso comportamento e nossa maneira de se relacionar com as pessoas, com o ambiente em que vive-

mos e com o próprio tempo. Gilberto Gil, na época em que era ministro da Cultura, afirmou que:

O uso pleno da internet e do software

livre cria fantásticas possibilidades de

democratizar os acessos à informação

e ao conhecimento, maximizando os

potenciais dos bens e serviços culturais,

amplificando os valores que formam o

nosso repertório comum e, portanto, a

nossa cultura.1

Já os pesquisadores Bianca San-tana e Sergio Amadeu da Silveira cita-ram que:

(...) a cultura digital é uma realidade de

uma mudança de era. Como toda mu-

dança, seu sentido está em disputa, sua

aparência caótica não pode esconder

seu sistema, mas seus processos, cada

vez mais auto-organizados e emergen-

tes, horizontais, formados como des-

continuidades articuladas, podem ser

assumidos pelas comunidades locais,

em seu caminho de virtualização, para

ampliar sua fala, seus costumes e seus

interesses. A cultura digital é a cultura

da contemporaneidade.2

Percebe-se que tanto a realida-de vivenciada no espaço físico quanto a realidade vivenciada no ciberespaço estão interligadas. Essa conexão estrei-ta torna mais difícil separar o digital das

Page 25: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

21

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

nossas vidas. E as novas tecnologias aca-bam sendo onipresentes nas interações que acontecem no nosso cotidiano.

A partir dessa ótica, em que as ferramentas digitais disponíveis modi-ficam comportamentos e abrem dife-rentes possibilidades, serão apresen-tadas algumas intervenções urbanas realizadas em Porto Alegre durante o ano de 2012. A larga utilização das re-des sociais, documentos de edição co-laborativa, grupos de discussão on-line

e álbuns de imagens digitais têm in-fluenciado o processo como um todo e alterado a percepção de permanência, cristalizando na web essas intervenções urbanas efêmeras.

POESIA PARA QUEM TEM PRESSADez amigos, organizados pelo grupo RUA – Rastro Urbano de Amor, saíram num domingo à noite para realizar a intervenção Poesia Ex-Pressa3, “distri-buindo” poesias em locais de grande

fluxo de pessoas e em outros, às ve-zes, invisíveis aos olhos dos habitan-tes. A ideia era tornar mais prazeroso o trajeto apressado e rotineiro de mi-lhares de pessoas, transformando o começo da semana em algo especial, além de lançar foco a lugares esqueci-dos da cidade.

O grupo selecionou 11 locais para a ação, entre eles: as escadarias do viaduto Otávio Rocha, na Avenida Bor-ges de Medeiros; o Mercado Público; a

Foto: Felipe Rosso

Page 26: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

22

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

Cinemateca Capitólio; o Cine Coral; o Bar Ocidente; a Lancheria do Parque e algumas faixas de segurança, como a do cruzamento da Rua 24 de Outubro com a Rua Hilário Ribeiro.

Poemas de Carlos Drummond de Andrade, Caetano Veloso, Arnaldo Antunes, Cartola e até letras de mú-sicas, foram escritos no chão e em al-guns muros dos locais escolhidos. As frases se relacionavam com os espaços. A Cinemateca Capitólio, por exemplo, fechada desde 1994 e sem data para reabertura, recebeu o trecho de um poema de Drummond, “Tenho razões para sentir saudades de ti” .

Para escrever, foram usadas las-cas de gesso (cal), que não agrediram as superfícies. A escolha deste material aciona a efemeridade da ação, já que as frases irão apagar-se com o passar do tempo, seja pela água da chuva, pela limpeza das calçadas ou pelo sim-ples caminhar das pessoas que ali cir-culam. Os interventores usaram as re-des sociais como plataforma de apoio, criando um grupo fechado no qual foi discutida a ideia da ação, sua organiza-ção, referências, trocas de materiais de pesquisa e a seleção dos poemas.

Durante a execução da inter-venção, os observadores e transeun-

tes questionaram onde poderiam en-contrar os registros do trabalho que estavam vendo naquele momento, nascendo a necessidade da ação estar presente também no meio digital. O desejo daquelas pessoas era acessar, pela internet, o conteúdo da interven-ção, tanto para ver e entender o proje-to como um todo, quanto para divul-gá-lo em suas redes pessoais.

Esse comportamento ilustra a ân-sia de participação, mesmo que passiva, de indivíduos que não estão envolvidos diretamente nas intervenções urbanas. Essas ações provocam diálogo entre os habitantes e a cidade – entre o coletivo

CCD POAFotos: Felipe Rosso

Page 27: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

23

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

e o individual – mostrando que todos, de certa forma, querem participar como divulgadores ou até mesmo interferin-do na concepção dessas ações.

QUANDO A POlUIçãO vISUAl vIROU ARTEDurante as eleições de 2012, veio das redes sociais a inspiração para outra intervenção. Após observarem que artistas urbanos, num ato de protesto, modificaram alguns cavaletes de pro-paganda eleitoral, dois jovens paulis-tas decidiram criar um evento no Fa-cebook para reunir e expor em local público, com data e horário marcados,

cavaletes estilizados por seus amigos. A ideia era recolher os cavaletes irre-gulares, que ficavam nas ruas depois das 22h ou que atrapalhavam a circula-ção de pedestres, e estilizá-los a gosto. Nascia assim a Cavalete Parade4, que misturou subversão, protesto, diver-são, arte urbana e cultura digital.

Com essa química, o evento se multiplicou rapidamente, dando vazão à revolta com a poluição visual que acompanha o período de campanhas eleitorais. Várias cidades aderiram ao projeto: Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Cuiabá, Recife e João Pessoa.

Em Porto Alegre, a ideia foi aco-lhida por uma parceria entre a Casa da Cultura Digital POA (CCD POA), um es-paço e rede de trabalho colaborativo, e o Núcleo Urbanoide, um coletivo de ar-tistas urbanos. Nas redes sociais, combi-naram-se saídas para o recolhimento de cavaletes irregulares e oficinas de pintura orientadas por artistas que aconteceram na sede da Casa de Cultura Digital POA5, localizada na Casa de Cultura Mario Quin-tana. Os cavaletes foram expostos no dia 29 de setembro, próximos à Usina do Ga-sômetro, e recolhidos no mesmo dia.

O entrosamento e adesão à pro-posta foram tão bem-sucedidos que,

Page 28: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

24

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

além da Cavalete Parade POA, os grupos organizaram uma segunda edição no dia das eleições, com um número maior de cavaletes, que transformou pontos da cidade que sofreram com lixo eleitoral em canteiros de arte urbana.

Embora tenha acontecido no meio físico, foi pelo meio digital que a intervenção, num curto espaço de tem-po, ganhou sobrevida, reverberando em novos possíveis formatos como ex-posições em museus e, inclusive, leilão de algumas peças.

NOvAS ExPERIêNCIAS NO ESPAçO AO lADOIdealizado pela arquiteta Márcia Braga, o Projeto Vizinhança6 propõe ocupar temporariamente espaços ociosos em

Porto Alegre, gerando ambientes pro-pícios para novas experiências e apren-dizados entre a comunidade. Projetos semelhantes já acontecem em países como Estados Unidos e Espanha, in-clusive com parceria do poder público, como é o caso da cidade de Sevilha.

No Brasil, o projeto Lotes Vagos aconteceu nas cidades de Belo Hori-zonte e Fortaleza entre os anos de 2005 e 2008. Louise Ganz, uma das idealiza-doras, explica que a intenção foi “gerar uma dinâmica urbana, transformando lotes privados de uma cidade em espa-ços públicos de uso coletivo”. Os forma-tos das ocupações foram os mais diver-sos: estruturas de redes para descanso, praia artificial, espaços para oficinas, grandes mesas para refeições coletivas e palco para apresentações.

Em sintonia com o Lotes Vagos, o Projeto Vizinhança pretende resgatar, mesmo que de maneira efêmera, algo que se modificou consideravelmente em tempos de cultura digital: o encontro presencial de vizinhos e amigos, compar-tilhando experiências e troca de saberes. As atividades desenvolvidas proporcio-nam uma análise de como podemos in-teragir com os espaços urbanos e, con-sequentemente, reconfigurá-los visando a um melhor aproveitamento.

A primeira edição do Projeto Vizi-nhança aconteceu em agosto de 2012. Uma casa, disponível para locação no bairro Boa Vista, foi gentilmente cedida

altErando nosso modo dE vivEr, dE sE rElacionar com o outro E com o local Em quE vivEmos, as fErramEntas digitais proporcionam uma nova pErcEpção do Espaço E do tEmpo.

CCD POA

Page 29: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

25

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

pela proprietária para que fosse ocupa-da temporariamente. Durante aproxima-damente um mês, uma galeria de arte virtual expôs suas obras pelos cômodos, ocorrendo mais uma vez o cruzamen-to entre o digital e o “real”, já que uma galeria de arte antes só visitada virtual-mente, tinha ganho um suporte físico. Nos finais de semana, a casa abriu suas portas para as crianças participarem de oficinas de desenho e pintura com ar-tistas locais.

Na segunda edição, que aconte-ceu no mês de outubro, os locatários de uma casa no bairro Petrópolis empres-taram dois quintais para as atividades do Projeto Vizinhança. Durante nove dias, várias oficinas para adultos e crian-ças, almoços coletivos, pocket shows, contação de histórias e palestras deram vida a espaços antes ociosos.

Boa parte da articulação dos parceiros e mobilização da comunida-de ocorreu através do Facebook e de documentos colaborativos do Google. Sem a facilidade proporcionada por tais ferramentas, a intervenção teria seu alcance bastante limitado. A cada ima-gem compartilhada, novos interessa-dos apresentavam-se para participar da ação. Por meio de um formulário on-li-ne, foram inscritas as atividades que se-riam realizadas nos quintais. Um segun-do formulário foi disponibilizado para o cadastro daqueles que quisessem ceder seus espaços para outras edições.

Ao usar o meio digital para am-pliar sua divulgação, o Projeto Vizinhança pôde atingir um público maior do que os moradores dos bairros em que foram realizadas as ocupações efêmeras. Os participantes se sentiram acolhidos pela proposta de reunir a comunidade de ma-neira simples, e demonstraram interesse em expandir para outros locais da cidade.

O EFêMERO REvISITADOVale ressaltar que nenhuma dessas in-tervenções tiveram fins lucrativos. A proposta dos grupos e indivíduos que as conceberam era oferecer aos habi-tantes um outro olhar da cidade e seus elementos, algumas vezes mais poético e artístico, outras vezes mais agregador e comunitário.

Esse olhar, que no espaço físi-co durou um tempo limitado, ganhou memória permanente ao ser registrado nos meios digitais. O que foi passagei-ro ou teve fruição para apenas alguns transeuntes, tornou-se vivo e disponível a todos na web, possibilitando sua visi-tação contínua, disseminação e repro-dução, além de prolongar e maximizar a existência de uma intervenção urbana que parecia isolada e condizente ape-nas a uma cultura local.

O processo criativo das interven-ções fica mais rico quando acontecem as trocas de experiências das ações urbanas nacionais e internacionais, co-nectando grupos ou indivíduos e esti-mulando novas criações ou reprodu-ções. Nada surge de uma ideia banal, mas de somatórias de inspirações e re-ferências. É indiscutível o quanto a web e suas ferramentas potencializam essas trocas de conhecimento e fomentam o surgimento de novos agentes interven-tores e/ou coletivos.

A intervenção urbana física é catalisada, em sua grande magnitude, pelo meio digital, em que todas essas ações ganham outra dimensão tempo-ral e espacial. O compartilhamento vir-tual dos registros realizados pelos parti-cipantes ou observadores, enquanto as ações ocorrem, permanece depois que as intervenções findam, congelando aqueles momentos e tornando o que foi efêmero, permanente.

Casa da Cultura Digital (CCD) é um espaço e rede de trabalho colaborativo que desenvolve projetos sociais e culturais em diversos pontos do país. O artigo para a presente edição da revista URBE foi escrito colaborativamente (e virtualmente) por diversos membros da CCD de Porto Alegre. A proposta da CCD POA é ser um encontro de trocas e convívio, com atividades formativas e muito tempo livre. Seus integrantes vêm participando ativamente de projetos digitais e presenciais na cidade, alguns deles de intervenções urbanas efêmeras.

REFERêNCIAGANZ, Louise e SILVA, Breno. Lotes Vagos 1ª ed. Belo Horizonte: Instituto Cidades Criativas ICC, 2009.

NOTAS1 Citação de Gilberto Gil, na época em que era ministro da Cultura, em aula magna proferida na Universidade de São

Paulo (2004)2 Citação dos pesquisadores Bianca Santana e Sergio Amadeu da Silveira, no “Seminário Internacional sobre

Diversidade Cultural: Práticas e Perspectivas” (2007)3 https://www.facebook.com/RUApoa4 http://www.cavaleteparade.com/5 https://www.facebook.com/ccdpoa6 http://projetovizinhanca.wordpress.com/

Page 30: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

26

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

ClARISSA EIDElwEIN E KEllEN lAzzARI

A efêmera arte urbana como produto e o consumo na pós-modernidade Foi-se o tempo do durável, do herdei dos meus pais essa geladeira, esse equi-pamento fotográfico ou essa máquina de escrever. Hoje, as coisas têm prazo de validade, tempo de consumo, de duração, ficam obsoletas ou simples-mente não resistem à passagem dos anos. Penso que já se pode falar em meses, estamos na era dos descartá-veis, na era do lixo – mesmo que para alguns o produto ainda funcione, esteja inteiro, tenha vida útil dentro da valida-de, simplesmente, não importa –, por-que a tecnologia apresenta algo novo, com mais funções ou apenas com um design moderno, mesmo que sejam as arestas arredondadas.

Para não ser obsoleto, é neces-sário estar atento a mudanças e inova-ções. O consumismo deixou de ocorrer pela satisfação das necessidades, pas-sou pelo desejo – mais efêmero – e hoje é fundado na noção do querer, um que-rer simplesmente, sem nenhuma inten-ção subliminar, um querer instantâneo. Conforme Maria Rita Kehl (2007, p. 303),

as referências produzidas através da

transmissão entre as gerações perde-

ram sentido sob o império da novidade,

da obsolescência programada das mer-

cadorias que obriga o sujeito, sempre na

posição de consumidor, a renovar conti-

nuamente os objetos e as atitudes asso-

ciadas a eles (pois são os objetos que co-

mandam nossas atitudes e não o inverso).

Vive-se como se o que importas-se fosse só o presente, no qual predo-mina o instantâneo, a velocidade das informações. A efemeridade do mundo – fala-se até no seu fim, será? – traz in-certezas, e o momento atual passa a ser o mais importante e o desejo é vivê-lo com qualidade. A preocupação pela so-brevivência impede o pensar, o refletir sobre qualquer coisa, a temporalidade faz com que o agir, o modo de ser, o querer mude constantemente, incenti-vado, muito, pela sociedade de consu-mo, que bombardeia a todo instante mensagens para consumir indiscrimi-nadamente. Kehl fala em uma socieda-de que aposta na euforia como valor agregado a todos os bens em oferta no mercado. Tem-se, então, a eterna insa-

tisfação do ser humano, neste caso, do consumidor.

“O caminho da loja à lata de lixo deve ser curto e a passagem, rá-pida” (Bauman, 2007, p. 108), sem re-morsos, com a predominância da cul-tura hedonista, sem estabilidade, sem passado, com possibilidades ilimitadas para o desejo, valorizando o novo em detrimento do durável. É assim que se descartam as coisas e a sede por novos produtos, por nova vida, aumenta cada vez mais. Pelo medo de ser considerado anormal, entra-se no ciclo do consumo. Mas como manter esse ciclo, essa eter-na insatisfação do consumidor, como torná-lo, sempre, disposto a enfrentar a selva do capitalismo? Para o sociólogo polonês, com o excesso de ofertas, com

Glory 2, intervenção de Slinkachu em Grottaglie, Itália, 2009 http://little-people.blogspot.com.br/

Page 31: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

27

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

Glory 1, intervenção de Slinkachu em Grottaglie, Itália, 2009 http://little-people.blogspot.com.br/

Page 32: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

28

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

a temporalidade ou sem nenhuma cor-respondência das expectativas, com a desqualificação do produto logo após ele ser alcançado, enfim, essas são al-gumas das formas que os produtores e comerciantes prendem o consumidor na constante busca pelo novo.

A era do consumo, da tecnologia da informação, vida de consumo, não só levou o indivíduo a desvalorizar o perma-nente, as tradições, a valorizar o relativis-mo, mas produziu, também, uma cultura local ligada, por meio da globalização, à cultura internacional. A arte deixou de se preocupar com o original, passou a mis-turar estilos, hibridizando-se. Dessa for-ma, a cultura deixou de ser um acessório para ganhar dinheiro, para ser a principal atividade. A afirmação vale para o artis-

ta, que hoje vive, e bem, da sua arte, e para o Estado. Em países como os Esta-dos Unidos, a participação da cultura na economia é próxima, por exemplo, a da indústria farmacêutica, em posição de destaque. Claro que o cinema abocanha uma fatia grande nesta estatística.

O movimento pós-moderno trou-xe a democratização da arte, exemplo disso é a arte urbana. “Nada há a dese-jar para além de uma arte sem preten-sões, sem elevação nem pesquisa, livre e espontânea, à imagem e semelhança da sociedade narcísica e indiferente”, como escreve Lipovetsky (1989, p. 116). O pós-modernismo ou hipermodernis-mo, como prefere o filósofo francês, é um período de expressão para todos e nada melhor do que se expressar nas

ruas, na cidade. “Cidade é, sobretudo, materialidade erigida pelo homem, é ação humana sobre a natureza. Cidade é, pois, sociabilidade: comporta atores e relações sociais, personagens, grupos, classes, práticas de interação (...)” (Pesa-vento, 2002, p. 23). A arte entra como um dos canais de comunicabilidade e, como sabemos, ela pode se manifestar de diversas formas.

DE TRANSgRESSãO A OBJETO DE CONSUMO Por volta de 1980, o ex-policial civil To-niolo começou a pichar seu nome por muros e paredes da cidade de Porto Alegre como “um grito contra a falta de liberdade para se expressar”2. Transfor-mado em lenda urbana, Toniolo é con-

(...) todas as formas sE mudam, dEcaEm, E pErEcEm ou sE transformam, todas são EfêmEras E caducas, ao passo quE a idEia ou substância é sEmprE viva, vErdE E EtErnal. 1

ClARISSA EIDElwEIN E KEllEN lAzzARI

Page 33: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

29

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

Giacometti, Coisas do Cotidiano, 2012. Projeto fotográfico de Leandro Selister

Page 34: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

30

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

ClARISSA EIDElwEIN E KEllEN lAzzARI

siderado o precursor da arte de rua na capital gaúcha. Manifestação, esta, que surgiu efêmera, transgressora, com ca-ráter de protesto ou mesmo denúncia. Logo, incomodava e não tinha vida longa. As pichações foram promovidas a grafites, ainda uma atividade margi-nal, até atingirem na última década do século 20, consolidando-se nos anos 10 do terceiro milênio, o patamar de arte urbana.

O que começou como um movi-mento que aflorou das ruas gerou íco-nes, entre eles, os ingleses Banksy e Stik, o francês Space Invader, SpY, de Madri, OsGêmeos, do Brasil, que hoje têm suas obras espalhadas pelo mundo inteiro – exemplo disso é uma intervenção em um muro da Faixa de Gaza atribuída a Banksy, o mais anônimo e misterioso dos artistas pós-modernos. As institui-ções, atentas, passaram a promover ações para perpetuar esta arte, que passou a produto de consumo, chegou às galerias, ganhou preço, deixando de ser de rua.

A institucionalização da arte ur-bana também ocorre por parte do po-der público. A prefeitura de Londres, para preservar uma obra de Banksy, determinou o tombamento do muro de um prédio condenado à demolição para construção de um grande empre-endimento. No Brasil, na tentativa de humanizar as cidades cada vez mais frias e sem identidade, muros de pré-

dios públicos e viadutos em capitais como São Paulo e Porto Alegre tornam--se suportes oficiais para obras de artis-tas de rua, com autorização e tudo.

Com a transformação da antes marginal arte urbana em produto de consumo, os artistas passaram a colher os louros dessa mudança de comporta-mento da sociedade. Porém, há quem questione a postura “capitalista” de al-guns artistas. Stik, um ex-morador de rua para quem a arte urbana é o maior movimento de arte da história huma-na, foi criticado por alguns fãs por ter se “vendido ao sistema” na abertura

de uma exposição em uma importante galeria londrina. O americano Shepard Fairey, autor de um dos cartazes de di-vulgação do movimento Occupy Wall Street3, recentemente foi alvo de críti-cas grafitadas sobre suas obras acusan-do-o de fazer parte do 1% da população que concentra grande parte da riqueza dos Estados Unidos, a quem se desti-na o protesto pacífico antiglobalização considerado por Lipovetski o grande acontecimento do século 21 até então.

A longevidade das intervenções na rua em forma de grafite, stêncil, stickers, colagens já é uma realidade; entretan-

Hanging on 2, intervenção de Slinkachu em Mong Kok, Kowloon, Hong Kong, 2011 http://little-people.blogspot.com.br/

Page 35: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

31

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

to, há outro tipo de arte com data de validade próxima do vencimento des-de a sua produção. O artista londrino Slinkachu em seu projeto Little people in the city4, desde 2006, realiza instala-ções que são fragmentos do cotidia-no em miniatura. A partir de qualquer elemento da cidade, uma poça d’água, uma bagana de cigarro, uma casca de bergamota, uma pomba, um inseto, um copo de Mac Donald’s ou um osso de frango do KFC, o artista cria um cenário em que pequenos bonecos interagem, muito frequentemente, com o lixo ur-bano, o excedente do capitalismo. Não

há como a obra ser mais efêmera, já que dura o tempo que a lesma leva para se deslocar, a ave voar ou as moscas to-marem conta, o que pode até formar outra obra. Tudo é registrado em foto-grafia, em plano fechado, intermediário e aberto. As imagens geram exposições, livros, catálogos etc.

A SOCIEDADE CONTRA-ATACASe os consumidores – a ideia era falar em população, sociedade, mas a palavra re-trata melhor como somos vistos e trata-dos na era do consumo – não têm tem-po de decidir o que de fato necessitam

ou o que melhor preenche os requisitos do seu desejo, vence quem convencer o cliente da indispensabilidade do seu pro-duto ou serviço ou quem oferecer uma promoção imperdível em que realmente não há tempo para pensar, ou ainda pelo cansaço. Existe até ferramenta para tal. São os programas utilizados pelos prin-cipais anunciantes da internet que, pelo IP do consumidor, rastreiam suas poten-ciais aquisições e bombardeiam o cliente a cada site patrocinado com a imagem daquele tênis, skate, som, batedeira pla-netária, panela elétrica para arroz, i-tudo que é coisa e segue a lista. Difícil é encon-

Hanging on 1, intervenção de Slinkachu em Mong Kok, Kowloon, Hong Kong, 2011 http://little-people.blogspot.com.br/

Page 36: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

32

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

NOTAS1 RIBEIRO, João apud FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, p. 715.

Curitiba: Positivo, 2004. 2 Frase retirada de uma entrevista produzida para o curta quem é Toniolo?, de André Moraes e Caco Pacheco

(2010). http://www.youtube.com/watch?v=vkUaoEnzTjc3 “Occupy wall Street é um movimento de resistência pacífico, sem líderes, formado por pessoas de muitas cores,

gêneros e convicções políticas. A única coisa que temos em comum é que somos os 99% da população que não vai mais tolerar a ganância dos outros 1%.” Tradução livre de texto do site http://occupywallst.org/

4 Little people in the city, de Slinkachu, http://little-people.blogspot.com.br/5 Entrevista concedida ao site Planeta Sustentável e publicada em setembro de 2012. A íntegra está em http://

planetasustentavel.abril.com.br/noticia/cidade/entrevista-enrique-penalosa-defensor-bicicletas-sistema-diversificado-onibus-702248.shtml

ClARISSA EIDElwEIN E KEllEN lAzzARI

trar espaço pra tudo que se vende (e se compra) nos apartamentos de 87 metros quadrados com três quartos. Assim como nas cidades, a parte social fica relegada a um segundo plano.

A cidade, que desde a Antiguidade foi espaço de convivência e porto segu-ro para seus habitantes, no fim do século 20, passou a ser mero local de passagem de um lugar privado para outro, do traba-lho para o condomínio para o shopping, cada um em seu carro. A vida dos sonhos idealizada pelas grandes corporações. Ah, nos condomínios, além de toda a segu-rança ainda há grande áreas de convivên-cia para suprir a falta de espaço nas casas coladas uma as outras. Claro que existem outros tipos de condomínios, espaçosos e confortáveis, só que custam bem mais caro. Para Bauman (2007, p. 78), numa curiosa mudança de seu papel histórico e em desafio às intenções originais de seus construtores e às expectativas de seus moradores, nossas cidades se trans-formaram rapidamente de abrigos contra perigo em principal fonte desse mesmo perigo. “As cercas têm dois lados. O que está ‘dentro’ para as pessoas de um lado da cerca está ‘fora’ para pessoas do outro lado. Os moradores dos condomínios se cercam ‘fora’ da vida da cidade.”

Mas se o consumismo como uma espécie de terapia é a alternativa para combater a insatisfação gerada pelo próprio sistema, uma parcela da popu-lação está empenhada em mostrar que

não existe apenas porque consome. Vi-ver não é consumir. Na contramão da oferta da vida em condomínios, minici-dades, como solução de segurança para proteger seus bens vendidos como imprescindíveis, uma parcela da popu-lação está se organizando para ocupar os espaços públicos, parques, praças, auditórios, antes que sejam cercados e repassados para a iniciativa privada explorar. Alguns já foram. O objetivo é uma retomada da vida em comunida-de, de conhecer os vizinhos, resgate de um velho hábito já experimentado por moradores de apartamentos que passeiam com seus cães pelas ruas dos bairros, de tornar as áreas públicas hos-pitaleiras, espaços de convivência.

Em Porto Alegre, entre muitos outros movimentos, destacam-se os pi-queniques noturnos nos parques com o objetivo de chamar a atenção para a necessidade de iluminar e ocupar em vez de cercar. Iniciativas como estas atraem até mesmo os moradores de condomí-nios, desejosos por atravessar a cerca no sentido contrário depois de perceberem que só o que têm em comum com seus vizinhos é o que Bauman chama de para-noia mixofóbica. Para ele, se a segregação é oferecida e aceita como a cura radical para os perigos representados pelos es-tranhos, conviver com estes se torna cada vez mais difícil. “Os medos contemporâ-neos mais assustadores são os que nas-cem da incerteza existencial.” (2007, p. 97)

Na maioria das ações de resgate da solidariedade nas cidades, as inter-venções urbanas estão inseridas no contexto de humanização dos espa-ços. Aliás, em Londres, bem antes da administração prever que a maior par-te dos investimentos para a Olimpía-da de 2012 seria no lado leste, o mais deteriorado, os artistas de rua, empur-rados pelos altos preços da moradia na parte mais nobre, de forma espon-tânea, já tinham iniciado a revitaliza-ção, senha para que a especulação imobiliária termine o trabalho, torne o preço dos imóveis impraticáveis para pessoas comuns e faça com que os verdadeiros autores da revitalização, migrem para outro local, iniciando novamente o processo.

Há cidades, porém, que a inicia-tiva de torná-las mais aprazíveis parte dos próprios governantes, como deve-ria ser ao natural. Estas servem de ins-piração aos criadores dos movimentos sociais urbanos, como a Massa Crítica, que não se conformam com o rumo que grande parte das cidades seguiu, distante da solidariedade. Copenhage, na Dinamarca, é um exemplo emble-mático. Nos anos de 1960, o prefeito anunciou que fecharia o tráfego para veículos em uma das principais aveni-das da cidade, incentivando o convívio proporcionado por pessoas a pé ou de bicicleta. A população esbravejou con-tra a iniciativa, alegando que o clima

Page 37: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

33

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

REFERêNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.______. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.______. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.ELIAS, Norberto. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.FISCHER, Rosa Maria Bueno. Mídia e produção do sujeito: o privado em praça pública. IN: FONSECA, Tania Mara Galli e FRANCISCO, Deise Juliana. Formas de ser e habitar a contemporaneidade. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2000.LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio. Lisboa: Relógio D’água, 1989.PESAVENTO, Sandra Jatahy. Memória, história e cidade: lugares no tempo, momentos no espaço. Uberlândia: Art Cultura, 2002, Vol. 4, p. 23.KEHL, Maria Rita. Depressão e imagem do novo mundo. IN: NOVAES, Adauto (orgs). Mutações: ensaios sobre as novas configurações do mundo. São Paulo: Edições SescSP, 2007.KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

Clarissa Eidelwein é jornalista e editora das revistas Arte Sesc – Cultura por toda parte e Urbe – Cultura Visual Urbana e Contemporaneidade. Kellen lazzari é bacharel em Direito com especialização em Direito do Consumidor (UFRGS) e mestranda em Memória Social e Bens Culturais (Unilasalle).

nórdico não era convidativo. Conforme a expectativa do autor da polêmica so-lução, a avenida virou um efervescente ponto de interação entre as pessoas e, hoje, a capital dinamarquesa orgulha--se de ser a de maior número de usuá-rios cotidianos de bicicletas.

Para o prefeito de Bogotá no pe-ríodo de 1998 a 2001, Enrique Peñalosa, conhecido pelas soluções ousadas que adotou, entre elas, a restrição do esta-cionamento no centro da capital co-lombiana, além da construção de 300 quilômetros de ciclovias e da instalação de um sistema de ônibus rápido seme-lhante ao de Curitiba, é a sociedade quem deve decidir o que quer da sua cidade; no entanto, os setores funda-mentais não são consultados. Segundo ele, a igualdade está no centro do pro-blema. “Por que há mais bicicletas na Holanda ou Dinamarca que na Espanha ou Itália, onde o clima é melhor, não faz tanto frio e não neva em boa parte do ano? Porque são sociedades muito mais igualitárias. A cidade, da maneira como é desenhada, reflete os valores e a estrutura de uma sociedade. Uma ciclovia diz que ela é mais igual, que se preocupa com os mais pobres, com quem não tem um carro.”5

A cidade que queremos é mais igualitária e solidária, e as intervenções urbanas – não apenas elas – contri-buem para que estas qualidades não sejam efêmeras.

Foto: Carolina Eidelwein

Intervenção em um muro de Ipanema, Rio de Janeiro, 2012

Page 38: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

34

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

vITOR MESQUITA

34

O tempo nunca vem para permanecer 1

O que é efêmero, aquilo que é de pou-ca duração, transitório, o que passa ou o desejo de que queremos que passe?

Pensar sobre efemeridade tem essa coisa da visão em perspectiva res-ponsável pelo futuro e de outro pelo passado. Há sempre um quarto vazio à espera. Há sempre um estado de es-pera. Uma constante expectativa para o fim. E a sensação de que também va-mos perdendo a espessura; “um vento que não sente soprar senão pela pró-pria direção”. Eis uma agonia tipica-mente urbana: negar o efêmero, mas não ao ponto de eliminá-lo, pois tudo está fora e se torna reflexo na medida em que tentamos uma rotina. A todo custo desejamos impor durabilidade ao tempo. Vive-se dentro do tempo, con-ta-se dentro do tempo. Mas ele pode permanecer em exílio por conta de não olharmos o entorno. O que há de trá-gico no efêmero é que existe em dois extremos: o início e o fim. Nada menos.

Ser é estar-no-mundo... ser é ter cons-ciência do mundo3.

Colagens de imagens efêmeras fazem parte do concreto urbano como lugares desdobrados. Lugares e antilu-gares. Imagens, peso e superfície con-correndo com as pessoas sempre “em obras”. O todo está nas paredes e as pa-redes estão no todo. É preciso olhar a cidade. Ela também possui suas efeme-ridades. A cidade nos dá signos. É um lugar onde a referência não cessa e há a possibilidade de reflexão. E o lugar?

Será que é próprio da pouca du-rabilidade das coisas da nossa época o convencimento ao desejo de que elas passem? Assim, se cria a expectativa do novo. Essa expectativa – talvez empres-tada do mundo do consumo “essencial-mente urbano” que se encontra oculta no cotidiano – pode ser um lugar do fictício, do simultâneo. Uma metáfora feita por sobreposição de camadas de tempo como uma tentativa de manter por mais tempo as mesmas 24 horas.

ECONOMIA DE ExPECTATIvAS: UM MAl-ESTAR URBANOO modelo capitalista de produção ba-seado na propriedade (espaço) e na produção, distribuição e circulação de mercadorias (tempo) foi potencializa-do com a tecnologia. Reduziu distân-cias (comprimiu o espaço) e ampliou o lucro baseado no consumo (compri-miu o tempo).

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

como é quE 24 horas Às vEzEs parEcEm EscorrEgar dEntro do dia. 2

Page 39: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

35

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

35

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

O Apagador de Memórias. Coisas do Cotidiano, 2012. Projeto fotográfico de Leandro Selister

Page 40: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

36

Com isso, vamos reproduzindo o efêmero em tudo o que vemos.

Cada vez mais o sentido de algu-ma coisa se deduz mais da época a que se reporta do que daquela em que surge. Talvez por isso esteja tão em moda uma vanguarda terapêutica. Na contempora-neidade, tudo possui discurso, mas ope-ra sem o tempo necessário para a escala humana de cognição. A falta de reflexão leva ao efêmero por incompreensão. Como medida estimulante do transitó-rio, temos o ctrl+S e HDs externos.

As memórias virtuais como apên-dices de nossa própria memória dão aporte para que executemos mais coisas em menos tempo para que sobre mais tempo e assim executemos mais coisas em menos tempo para que sobre mais tempo e assim...

Para evitar o escape de todas as coisas, chegará o momento em que o

vazio será uma droga em falta! Perceber o efêmero e lidar satisfatoriamente com ele são coisas bem diferentes.

É preciso também não estar pron-to para o sol e não estar pronto para a chuva. Porque se o efêmero nos dá a sensação de fim também proporciona o percurso até a memória do começo. Uma espécie de assimetria perfeita.

Todos começamos com o realismo ingê-

nuo, isto é, a doutrina de que as coisas

são aquilo que parecem ser. Achamos

que a grama é verde, que as pedras são

duras e que a neve é fria. Mas a física

nos assegura que o verdejar da grama,

a dureza das pedras e a frieza da neve

não são o verdejar da grama, a dureza

das pedras e a frieza da neve que conhe-

cemos em nossa experiência própria, e

sim algo muito diferente (Russel, apud

Mlodinow, 2009, p. 14)

Com todas as crises e fissuras do contemporâneo em nosso ambiente urbano, qualquer instante de ordem en-che de inquietação. Talvez, pelo fato de praticarmos cotidianamente o fim do dia. Ou, ainda, por estarmos saturados de informações somos exigidos a colo-car o mundo mínimo em movimento. Convidar o tempo a ser espaço, a ser peso, a ser transcurso, porque o tempo não existe sozinho, o tempo somente existe quando uma coisa se movimenta. A cidade se movimenta. Revela um peso

vertical. Daí a necessidade da interven-ção sensível para realizar a desintegra-ção poética do peso. Colocar o senso em crítica. Reconhecer diferença entre pro-ximidade e distância. E ver não é ape-nas a apreensão da materialidade da obra; é também penetrar na tessitura de significados na qual cores, linhas, formas, transparências e texturas são veículos.4

O efêmero é a força invisível que torna possível o devir. Aparentemente incondicionada e abstrata em sua essên-cia, a efemeridade pertence a todos e a ninguém. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas.5

Em tudo o que é urbano se es-conde uma parcela de desamparo e sensação efêmera. A cidade não ensina como explorá-la. Se você não conhece o lugar em que vive, e este lugar não te proporciona como explorá-lo, passa a não habitá-lo. Torna a sua relação com o espaço urbano tão efêmera que não estabelece momento de memória. Re-conhece apenas a transitoriedade das coisas. Repetindo necessidades inédi-tas que dizem tudo, mas não explicam nada. É por meio da sobreposição de imagens que se constrói o sentido ur-bano e efêmero do contemporâneo baseado em cinética e o consumo. Uma espécie de sinestesia com inflação de informações, imagens e sons que não significam informações a mais, pois o

numa sociEdadE quE rEvErEncia um banco dE dados dE informaçÕEs é Exigida uma nova dirEção.

vITOR MESQUITA

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

Page 41: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

37

REFERêNCIASBELTING, Hans. O Fim da História da Arte. São Paulo: CosacNaify, 2003.FERREIRA GULLAR. Relâmpagos: dizer o ver. São Paulo: CosacNaify, 2008.

tempo para transformá-las em compre-ensão não aumenta proporcionalmen-te, gerando uma saturação cognitiva.

Por enquanto as intervenções no ambiente urbano parecem ser a palavra-que-falta e que provoca o ato de habitar o lugar em que vivemos. Um hiato extemporâneo.

Medimos o tempo que passa pela quantidade de coisas que nos são oferecidas. Precisamos evitar que a ex-

pectativa se torne um hábito. Evitar o consumo indiferente do que é sempre novo e sempre igual. O que no efêmero se pode admirar é que é um trânsito e um ocaso.

O desaparecimento do espaço comu-

nitário e da intersubjetividade política

configura o vazio que nos separa do

valor que poderia conferir base sólida à

dignidade humana.6

Então, como as pessoas podem ser alheias às mudanças e ao mesmo tempo ter toda a sua vida pautada por elas?

É sempre bom “lembrar” que a memória é também um vasto conjunto de experiências subjetivas.

Sugiro: pratique a cidade. Pratique o efêmero. Mas pratique com calma para que

tudo tenha a devida narrativa, ocupe lu-gar e relevância.

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

Vitor Mesquita é formado pela UFRGS em Artes Plásticas – História, Teoria e Crítica de Arte com especialização em Economia da Cultura PPGE/UFRGS. Designer gráfico e editorial na Ideativa Cultural. Diretor editorial da Pubblicato Editora e coordenador do projeto Pubblioteca (direito autoral/domínio público).

NOTAS1 BELTING, Hans. O Fim da História da Arte, p.182. São Paulo: CosacNaify, 2003.2 TEA FOR ONE (Led Zeppelin. Tea for one, Presence, Swan Song Records, 1976) How come twenty-four hours Sometimes seem to slip into day3 GIACOIA, Oswaldo Jr. Mutação: As duas mutações de Nietzsche, p, 171. São Paulo: Ed. Boitempo, 2008.4 HEIDEGGER apud SARTRE, p. 156, 2005. Sâo Paulo: CosacNaify.5 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis, p.17. Biblioteca Folha.6 LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Mutações. In: Mutação. São Paulo: Agir, 2008.

Passatempo para dias chuvosos. Coisas do Cotidiano, 2012. Projeto fotográfico de Leandro Selister

Page 42: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

38

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

A afirmação de que a cidade real é imaterial – assim como este texto a que tal afirmação serve como título – surgiu da tentativa de responder a uma dúvida suscitada pela leitura de um trecho do livro O mundo codifica-do: por uma filosofia do design e da comunicação, de Vilém Flusser. No capítulo intitulado Forma e material, em que se propõe a, seguindo uma li-nha de raciocínio fundamentalmente idealista, “recuperar o conceito, atual-mente distorcido de imaterialidade”1, Flusser atribui ao termo “imaterial” – como já o faziam os antigos filósofos gregos – o mesmo sentido que ao de “ideia” e “forma” para concluir dizen-do que imaterialidade não é o oposto de materialidade. Em suas palavras, a “‘imaterialidade’ ou, no sentido estri-to, a forma, é precisamente aquilo que faz o material aparecer.”2

A ideia básica é esta: se vejo alguma coi-

sa, uma mesa, por exemplo, o que vejo

é a madeira em forma de mesa. é verda-

de que essa madeira é dura (eu tropeço

nela), mas sei que perecerá (será quei-

mada e decomposta em cinzas amorfas).

Apesar disso, a forma “mesa” é real e o

conteúdo “mesa” (a madeira) é apenas

aparente. Isso mostra, na verdade, o que

os carpinteiros fazem: pegam uma forma

de mesa (a “ideia” de uma mesa) e a im-

põem em uma peça amorfa de madeira.

Há uma fatalidade nesse ato: os carpin-

teiros não apenas informam a madeira

(quando impõem a forma de mesa),

mas também deformam a ideia de mesa

(quando a distorcem na madeira).

Transcrevo esse parágrafo para contextualizar a sentença que o encer-ra e que suscitou a dúvida que originou este artigo:

A fatalidade consiste também na impos-

sibilidade de se fazer uma mesa ideal.

Reduzida a afirmação de Flusser a seus termos constitutivos, “a mesa ideal é uma impossibilidade material”, preci-samos saber se tal impossibilidade se deve ao fato de que os ideais mudam conforme mudam os tempos e os in-divíduos, ou se, como acreditavam os filósofos platônicos, ao fato de que os artífices humanos são incapazes de ma-terializar o ideal.

Antes de seguir, seria útil estabe-lecer um significado e um alcance para a palavra “ideal”. A noção de “ideal”, atri-buto daquilo que é desejável, sinônimo de modelo, de meta a ser alcançada, de objetivo a ser realizado, é uma das mais resistentes heranças da tradição filosófica grega para o pensamento e para a cultura ocidental. Na raiz dessa antiga concepção, situa-se o princípio platônico de que, subjacente ao mun-do material, existe outro mundo que lhe é anterior, que lhe dá origem e que é constituído de ideias primordiais.

Importa ter esse significado em mente para que não se confunda “ideia” com “ideal”. Se ideal fosse sinô-nimo de ideia, uma mesa não precisa-ria ser material para existir, porque o que caracteriza uma mesa não é a sua configuração formal nem a matéria de que é feita, nem mesmo a ideia que lhe indica a forma, e sim o melhor uso que

FABRIANO ROCHA

A cidade real é imaterial

a cidadE idEal não é vErdadEira nEm falsa, é apEnas mais um limitE a sEr transposto na dirEção do rEal.

Page 43: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

39

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

Foto: Fabriano Rocha

Page 44: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

40

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

dela se pode fazer – este será sempre o ideal transitório para todas as coisas. Lançando mão do primeiro dicionário que encontramos, lá está: “mesa: móvel comumente de madeira, sobre o qual se come, escreve, trabalha, joga etc.”3 Esta definição, ainda que possa gerar discordâncias, se for aceita como váli-da, ajudará a sustentar a tese de que o que define uma mesa é o uso que dela se faz, e não a sua configuração ou sua materialidade – a formulação “geral-mente de madeira” nos diz que poderia muito bem ser de qualquer outro mate-rial, desde que o artefato correspondes-se ao que sobra da definição, ou seja, o uso que dela se faz. Ideal, então, será a satisfação de uma necessidade, e ideia, a solução apresentada para que se satis-faça essa necessidade.

Aqueles que afirmam não ser possível determinar de antemão o uso de determinado artefato terão que con-cordar que, em se ampliando seus usos indefinidamente, ter-se-ia que, mais ou menos obrigatoriamente, a partir de certo ponto, mudar sua designação – como se faz com uma mesa de cabecei-ra, por exemplo, que naquele mesmo dicionário se grafa “mesa-de-cabeceira” e se define como “pequeno móvel, com o feitio de armário, que se tem rente à cabeceira da cama, e dentro do qual e sobre o qual se põem objetos utilizá-veis durante a noite.”4 Essa definição se faz necessária por ser o uso dessa

última levemente diferente daquele de uma apenas “mesa”. Portanto, uma mesa que fosse usada para, por qual-quer motivo, flutuar sobre a água, por exemplo, e, a partir de então, tivesse esse uso como sendo o seu definidor, deixaria de ser “apenas mesa”, e, por conseguinte, dever-se-ia ou adaptar o seu nome para algo como “mesa--de-flutuar” ou criar-se-ia para ela um

nome totalmente novo, ou, ainda, como é costumeiro fazer, empregar--se-ia para designá-la um nome de em-préstimo, já usado para designar outro artefato, com outra configuração, mas que tivesse o mesmo uso. Talvez fosse, então, neste caso, a antiga mesa, por causa do seu novo uso, chamada de “barco”. E o ideal deste artefato seria flutuar sobre a água.

FABRIANO ROCHAFoto: Fabriano Rocha

Page 45: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

41

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

Enquanto isso, a “apenas mesa” ideal será aquela que, sem ser material, nem ter uma configuração específica, ainda assim possua a capacidade de ser usada para a mesma finalidade que se usaria uma mesa material com qual-quer configuração. Nos termos da defi-nição do nosso dicionário, seria “móvel que, sem ser material ou ter configura-ção particular, permite que sobre ele se coma, escreva, trabalhe, jogue etc.”

Quando se pensa na efemerida-de das cidades e no infindável ciclo de materialização e desmaterialização dos espaços urbanos, os problemas do ideal e da imaterialidade se introduzem natu-ralmente. À tendência natural à desagre-gação que desafia as iniciativas de pro-longar a permanência e a durabilidade da matéria urbana somam-se a violência, a delinquência e o vandalismo, que esca-pam a toda tentativa de controle estatal, inviabilizando qualquer pretensão de se concretizar uma cidade ideal. Amplian-do a formulação de Flusser ao ponto de abarcar a cidade toda – incluindo as me-sas que porventura se fizerem presentes – ela sugere que jamais viveremos fisica-mente em uma cidade ideal.

A fim de verificar se é mesmo as-sim, enfrentemos o problema de saber o que seria uma cidade ideal.

Começaremos buscando uma de-finição de “cidade”. Na Wikipédia, é pos-sível encontrar definições mais atualiza-das do que no nosso velho dicionário:

A cidade é um habitat humano que

permite que pessoas formem relações

umas com as outras em diferentes níveis

de intimidade, enquanto permanecem

inteiramente anônimas.5

E também:

(...) estrutura material e conceptual, com

dimensionamento e dinâmica próprios,

que estrutura aglomerações populacio-

nais, conferindo-lhes um sentido, uma

função e uma finalidade.6

Sendo assim, desde o ponto de vista da finalidade, poderemos aceitar que a cidade ideal, materializada ou não, será preferencialmente um espa-ço de relacionamentos – afinal, tudo na cidade parece existir para favorecer ou impedir relações.

Entretanto, a cidade física cons-tantemente recomenda a fuga como alternativa à dura realidade: fuga para as férias, para casa, para o virtual. Curio-

samente, espaços relacionais virtuais (espaços de relações desmaterializadas) tipo Facebook e afins se constituem, re-velando as mesmas problemáticas das relações físicas, pelos mesmos motivos que se constituem as cidades.

O mundo virtual deixa de ser imaginação e se mostra tão real quanto o mundo material. Para Hannah Arendt (se ela tivesse tratado do assunto), seria provavelmente um “artefato condicio-nante da mundanidade da existência humana”, algo como um enclave vir-tual da vida pública no espaço priva-do concreto, repleto de divergências, violências, isolamentos, silêncios, into-lerâncias e, claro, repleto também do contrário disso tudo.

Enquanto para Flusser, um sítio virtual de relacionamento não será ima-terial, será, sim, um espaço de relações desmaterializadas – relações que, para Bauman, se tornam descomprometidas pela liquidez do tempo presente7. Se-riam, assim, os espaços virtuais de rela-cionamento, embriões de cidades des-materializadas, igualmente suscetíveis à efemeridade que assola a urbe material.

Pela ótica idealista, uma cidade seria, antes de tudo, apenas uma “for-ma” passível de materialização. Dessa afirmação, decorre-se que a cidade ideal, seja qual for a sua configuração, ou materialização, seria primeiramente imaterial e, por não ser mais que um ideal, essa cidade se revelaria pelo me-

Page 46: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

42

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

lhor uso que dela se fizesse, ou seja: pela satisfação que pudesse propor-cionar aos seus cidadãos. Aceitar que existe uma ideia anterior à constituição de uma cidade é o mesmo que aceitar que a cidade é a materialização das re-lações potenciais dos futuros cidadãos, e que o aspecto imaterial da cidade será o resultado daquelas mesmas rela-ções. (Dizer que uma cidade não é mais que uma forma a ser materializada, não define o que é uma cidade, posto que, do mesmo modo, qualquer artefato, descartadas as suas diferentes configu-rações e possíveis materializações, não é, igualmente, mais do que possibilida-des de uso.)

Por que, então, os indivíduos ten-dem a materializar espaços de relação?

Enquanto o cinema e a literatura têm com frequência exibido assustado-ras possibilidades de uso para os espa-ços virtuais, a resposta para os espaços materiais, segundo Bauman, foi apre-sentada já no século XVIII:

Mais de dois séculos atrás, em 1784,

Kant observou que nosso planeta é

uma esfera, e extraiu conseqüências

desse fato reconhecidamente banal:

como permanecemos na superfície

dessa esfera e nela nos movemos, não

temos outro lugar para ir e portanto

estamos destinados a viver para sem-

FABRIANO ROCHA

pre na vizinhança e companhia de

outros. A longo prazo, manter a dis-

tância, que dirá ampliá-la, está fora de

questão: nosso movimento em torno

da superfície esférica acabará redu-

zindo a distância que pretendíamos

alargar. E assim die volkommende

bürgeliche vereinigung in der Mens-

chengattung (a perfeita unificação

da espécie humana por meio de uma

cidadania comum) é o destino que a

Natureza nos reservou ao nos colocar

na superfície de um planeta esférico.

A unidade da humanidade é o derra-

deiro horizonte de nossa história uni-

versal. Um horizonte que nós, seres

humanos, estimulados e guiados pela

NOTAS1 FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: CosacNaify, 2007, p. 23.2 FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: CosacNaify, 2007, p. 32.3 Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988, p. 150.4 Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988, p. 150.5 In http://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade, acessado em 10/11/2012.6 In http://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade, acessado em 10/11/2012.7 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.8 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

Page 47: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

43

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

razão e pelo instinto de autopreserva-

ção, estamos destinados a perseguir e,

na plenitude do tempo, alcançar. Mais

cedo ou mais tarde, advertiu Kant, não

haverá uma única nesga de espaço va-

zio onde possam procurar abrigo ou

resgate os que considerem os espaços

já ocupados muito apinhados, inóspi-

tos, inconvenientes ou inadequados. E

assim a Natureza nos obriga à visão da

hospitalidade (recíproca) como o pre-

ceito supremo que precisamos – e aca-

baremos sendo forçados a – abraçar e

obedecer para pôr fim à longa cadeia de

tentativas e erros, às catástrofes causa-

das por esses erros e às devastações que

elas deixam em sua esteira.8

Considerado o fator natureza, so-mente será possível aceitar o ponto de vista idealista para a cidade quando, de algum modo, ela for projetada. Caso con-trário, parecerá sempre que as cidades se formam simplesmente por impulsos relacionais inconscientes. Dito isso, quem projetará a cidade? Quem a programará se os temas se pulverizam em milhares de problemas e soluções possíveis?

Não importa tanto saber como chegamos a esse ponto, mas, sim, como vamos prosseguir impondo for-mas a uma cidade dividida entre tantos interesses particulares.

Retomando Flusser, a cidade ma-terial é a deformação da cidade imate-

rial das relações, essa é a fatalidade im-posta pela persistência da concepção idealista que se reflete gravemente nas ações transformadoras empreendidas pelas sociedades mercantilistas e indus-triais. O ideal de uma cidadania comum para a espécie humana somente será viável quando, conforme ele mesmo sustentava, for possível se promover uma “conversação” capaz de constituir a realidade para os cidadãos, sem lhes impor a felicidade como obrigação.

Da cidade ideal pode-se dizer o mesmo que Baudrillard disse da Dis-neylândia, que não é verdadeira nem falsa, é apenas mais um limite a ser transposto na direção do real.

Fabriano Rocha é artista plástico, designer gráfico, ilustrador e mestrando em design no programa de pós-graduação do Centro Universitário Ritter dos Reis. Edita, desde 2001, com periodicidade irregular, a revista de cultura MaisUmasCoisas. Como artista plástico já realizou três exposições individuais e participou de diversas coletivas..

REFERêNCIAS FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: CosacNaify, 2007.BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

Fotos: Fabriano Rocha

Page 48: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe
Page 49: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

44

URBE | # 04/04 | EFEMERID

ADES U

RBANAS

edição virtual | www.revistaurbe.com.bremail | [email protected] | +55 51 3013.1330 PORTO ALEGRE | RS | BRASIL

Editada e impressa em dezembro de 2012.

O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

Se você não se encaixa em categorias estritamente definidas: você é urbano! Demasiado urbano!

CULTURA VISUAL URBANA E CONTEMPORANEIDADE

Page 50: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe
Page 51: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe
Page 52: Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe