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Ponto Urbe (2008) Ponto Urbe 3 ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Tim Ingold Pare, Olhe, Escute! Visão, Audição e Movimento Humano Ingold, Tim. Stop, look, Listen! Vision, hearing and human moviment. In. : The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, 2000. ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Aviso O conteúdo deste website está sujeito à legislação francesa sobre a propriedade intelectual e é propriedade exclusiva do editor. Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digital desde que a sua utilização seja estritamente pessoal ou para fins científicos ou pedagógicos, excluindo-se qualquer exploração comercial. A reprodução deverá mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e a referência do documento. Qualquer outra forma de reprodução é interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casos previstos pela legislação em vigor em França. Revues.org é um portal de revistas das ciências sociais e humanas desenvolvido pelo CLÉO, Centro para a edição eletrónica aberta (CNRS, EHESS, UP, UAPV - França) ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Referência eletrônica Tim Ingold, « Pare, Olhe, Escute! Visão, Audição e Movimento Humano », Ponto Urbe [Online], 3 | 2008, posto online no dia 31 Julho 2008, consultado o 20 Abril 2015. URL : http://pontourbe.revues.org/1925 ; DOI : 10.4000/ pontourbe.1925 Editor: Núcleo de Antropologia Urbana http://pontourbe.revues.org http://www.revues.org Documento acessível online em: http://pontourbe.revues.org/1925 Documento gerado automaticamente no dia 20 Abril 2015. © NAU

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Tim Ingold. Visão Audicao e Movimento Humano.

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  • Ponto Urbe3 (2008)Ponto Urbe 3

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    Tim Ingold

    Pare, Olhe, Escute! Viso, Audio eMovimento HumanoIngold, Tim. Stop, look, Listen! Vision, hearingand human moviment. In.: The perception of theenvironment: essays on livelihood, dwelling and skill.London: Routledge, 2000.................................................................................................................................................................................................................................................................................................

    AvisoO contedo deste website est sujeito legislao francesa sobre a propriedade intelectual e propriedade exclusivado editor.Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digitaldesde que a sua utilizao seja estritamente pessoal ou para fins cientficos ou pedaggicos, excluindo-se qualquerexplorao comercial. A reproduo dever mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e areferncia do documento.Qualquer outra forma de reproduo interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casosprevistos pela legislao em vigor em Frana.

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    Referncia eletrnicaTim Ingold, Pare, Olhe, Escute! Viso, Audio e Movimento Humano, Ponto Urbe [Online], 3|2008, postoonline no dia 31 Julho 2008, consultado o 20 Abril 2015. URL: http://pontourbe.revues.org/1925; DOI: 10.4000/pontourbe.1925

    Editor: Ncleo de Antropologia Urbanahttp://pontourbe.revues.orghttp://www.revues.org

    Documento acessvel online em:http://pontourbe.revues.org/1925Documento gerado automaticamente no dia 20 Abril 2015. NAU

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    Tim Ingold

    Pare, Olhe, Escute! Viso, Audio eMovimento HumanoIngold, Tim. Stop, look, Listen! Vision, hearing and human moviment. In.:The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling andskill. London: Routledge, 2000.

    Traduo de Ligia Maria Venturini Romo, Marcos Balieiro, Luisa Valentini, Eliseu Frank,Ana Leticia de Fiori e Rui Harayama

    Sobre ouvir sons e ver objetos1 Prximo casa na qual cresci, existia um caminho que eu costumava usar e que cruzava a linha

    do trem. Ao lado dos trilhos existia um aviso aos pedestres que dizia: pare, olhe e escute"antes de tentar cruzar a linha. Posso no ter seguido esse aviso tanto quanto deveria, mas, aomenos, eu sabia o que ele significava. Para mim, e sem dvida para outros que utilizavam ocaminho, ele fazia todo o sentido. Na ausncia de dispositivos automticos de sinalizao, deque outra forma algum saberia se um trem estivesse vindo, a no ser olhando e escutando?Somente depois descobri que o que era bvio aos pedestres era, para os filsofos, inteiramenteconfuso. Para ser exato, o filsofo pode admitir que nosso conhecimento sobre o mundo spossa surgir atravs de alguma forma de percepo. Ainda assim, parece que a nica coisa queno percebemos a prpria percepo. Voc pode at argumentar que v o trem, mas somentepor meio da luz que alcana seus olhos. E voc s o ouve atravs do som que alcana seusouvidos. Sendo assim, como voc pode saber que o trem existe a uma certa distncia, como umobjeto material independente, por trs de imagens perceptivas, moldadas em luz e som, quevoc tem dele? E se existe somente em sua percepo em seus olhos e ouvidos, ou mesmo emseus pensamentos ento, como ele pode te atropelar? Isso no tudo. Olhando e escutando,recebemos um conjunto de sensaes atravs dos olhos, e outro, bem diferente, atravs dosouvidos. Supondo que o nosso conhecimento seja fundado em uma experincia sensorial,como sabemos que as vises e os sons que vm nossa percepo so, todos, manifestaes damesma coisa, o trem, avanando em nossa direo? Se podemos ouvir sons em vez de coisas(como trens), ento como eu sei que esse som que eu escuto pertence quele trem que eu vejo?

    2 Esses so alguns dos mais antigos dilemas filosficos e no minha inteno resolv-los aqui.Quero sugerir, no entanto, que o modo como eles so apresentados carrega a marca de um certomodo de imaginar o sujeito humano a saber, como um lugar de conscincia, limitado pelapele e definido em oposio ao mundo que est profundamente sedimentado no pensamentoocidental tradicional. O problema da percepo, ento, diz respeito a como algo pode sertraduzido, ou atravessar de fora pra dentro, do macrocosmo do mundo para o microcosmo damente. por isso que a percepo visual e a auricular so descritas, usualmente, nos escritosdos filsofos e dos psiclogos, como processos de ver e ouvir. A viso comea no pontoem que a luz entra nos olhos do perceptor estacionrio e a audio no ponto em que o somatinge os ouvidos na interface, em resumo, entre fora e dentro. No entanto, o aviso ao ladodos trilhos do trem no dizia ao pedestre fique de p, veja e oua. Ele dizia: pare, olhee escute; ou seja, que interrompesse uma atividade corporal, andar, e iniciasse outra, olhar-e-escutar (como mostrarei adiante, melhor v-las como aspectos de uma mesma atividadeque como duas atividades distintas). Em qu, ento, consiste essa atividade? No em abriros olhos, j que eles esto abertos de qualquer modo; nem em abrir os ouvidos, j que elesno podem ser fechados a no ser tapando-os com os dedos. Consiste, antes, em um tipo deesquadrinhamento de movimentos, realizado pelo corpo todo ainda que de um local fixo ena qual os dois procuram por, e respondem s, modulaes ou inclinaes no ambiente ao qualest sintonizado. Como tal, a percepo no uma operao dentro-da-cabea, executada

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    sobre o material bruto das sensaes, mas ocorre em circuitos que perpassam as fronteirasentre crebro, corpo e mundo.

    3 Estou me adiantando, contudo. Existe ainda muito a ser esclarecido antes que a idia depercepo, delineada acima, possa ganhar corpo. Para iniciar esse esclarecimento, precisamosinvestigar mais de perto as suposies que tendemos a fazer sobre nossa experincia de vere ouvir. Voc pode tentar descobrir o que elas so executando um simples experimento depensamento. Suponha que voc esteja ao lado dos trilhos enquanto o trem passa. Voc va locomotiva e os vages passando em grande velocidade e voc ouve o barulho do motorseguido pelos estalidos dos vages enquanto eles passam pelas junes dos trilhos. Essasvises e sons so comumente to emaranhados em sua experincia que no fcil de descrev-los separadamente, para imaginar como o trem poderia ser sem o barulho que ele produz,ou como seria o barulho dele sem a aparncia que ele apresenta. Todavia, voc pode tentar.Imagine voc vendado, ou numa noite escura como breu, na qual o componente visual daexperincia eliminado. O som do trem se aproximando, medida que cresce, parece tomar deassalto e, por ltimo, dominar, cada fibra do seu ser. Voc no resiste e se deixa levar por eleat que, por fim, medida que o trem se distancia, voc deixado pelo caminho, sem ar e tonto,exatamente no mesmo lugar em que, na verdade, voc esteve o tempo todo! Mas agora, emum segundo experimento, imagine voc com os seus ouvidos tapados, como que para eliminaro componente auditivo da experincia. Desta vez o trem parece passar diante dos seus olhoscomo se fosse um espectro cuja existncia mesma residisse em dimenses diferentes daquelasdo mundo ao qual voc pertence. Voc o v , registra sua presena e passagem, mas no movido por ele. A viso s uma outra apario para adicionar sua coleo.

    4 Se os resultados desses experimentos, assumidamente fictcios, tm qualquer validade, elessugerem que, longe de serem equivalentes, ou mutuamente substituveis, viso e audio soradicalmente opostas; to diferentes quanto estar beira do rio vendo a gua correr e serarremessado dentro da correnteza. Como um observador participante no evento constitudopelo trem passando pelo local onde voc est, na interseco do caminho e dos trilhos,pareceria que participando atravs dos ouvidos, voc, ao mesmo tempo, observa visualmente.De fato, a noo de que o som pode entrar e sacudir voc de um modo que a luz no conseguetem um longo e distinto pedigree na histria das idias. Repetidamente, os ouvidos soimaginados de modo topogrfico,como aberturas na cabea que realmente permitem penetrare tocar as superfcies mais reclusas do ser. Por contraste, supe-se que atrs dos olhos existamtelas que no permitem a qualquer luz passar, deixando a mente no escuro como os habitantesde uma caverna, na celebrada alegoria de Plato, que no podem ver nada alm das sombrasna parede projetadas pela luz do prprio fogo. Diz-se que o som alcana diretamente a alma,ao passo que na viso tudo que se pode fazer reconstruir uma imagem de como o mundo defora poderia ser, baseado nas sensaes induzidas pela luz. Mas, da mesma maneira, somosmais prontamente convencidos de que ouvimos som do que de que vemos luz. Supomos queos objetos da viso no so fontes ou manifestaes da luz, mas coisas que a luz ilumina parans. Os objetos da audio, por outro lado, no so coisas, mas sons ou fontes de som1.

    5 verdade, houve vozes dissidentes. Uma delas foi a de Martin Heidegger. Em seu ensaiosobre A origem da obra de arte, Heidegger argumenta que somente quando desviamos nossasatenes dos objetos, ou escutamos abstratamente (por exemplo, com os olhos fechados, comofazemos com a msica clssica), que ouvimos som bruto. Na vida cotidiana, ele insistia,no ouvimos sons, mas as prprias coisas a porta fechando na casa, a tempestade na chamin,o Mercedes como distinto do Volkswagen (Heidegger, 1971:26). Do mesmo modo, Heideggerpoderia ter dito, antes escutamos o trem do que o som que ele faz. Mas esse ponto de vistano se concilia facilmente com a experincia diria. Pois o que dizemos escutar, ao menosquando falamos sobre esses assuntos, o bater de uma porta, o assobio do vento, o zumbidoou a exploso do motor do carro e o rudo da locomotiva. Estrondear, assobiar, zumbir, entreoutras, so palavras que no descrevem coisas, mas aes ou movimentos os quais, devidos vibraes que causam, na verdade sentimos como barulhos de diferentes tipos. Ou, parausar outro exemplo, considere a palavra cuco. Ela , em primeiro lugar, uma expressoonomatopica de um som que eu normalmente escutava no campo e que sempre parecia

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    emanar de um lugar distante e escondido no meio do bosque. Dizemos que o cuco um pssaro,mas na minha experincia o pssaro existe, pura e simplesmente, como seu som. Eu nuncavi um (a no ser em livros ilustrados de ornitologia). Mas somente ao ser visto que o cucochega a ser apreendido como uma coisa que produz um som, ao invs do som em si2.

    6 No devido tempo continuarei a qualificar a idia de que vemos antes coisas que luz, e de queouvimos antes sons que coisas. Devo faz-lo mostrando que o som, estritamente falando, no um objeto de audio mais do que a luz um objeto de viso. Pelo contrrio, assim comodizer que existe luz um outro modo de dizer que se pode ver, dizer que existe som umoutro modo de dizer que se pode ouvir. Luz e som so, em essncia, os lados avessos3dasexperincias de ver e ouvir, respectivamente. Agora, como os deficientes visuais podem nosdizer, de fato possvel ouvir coisas assim como v-las. E, para pessoas com viso, os olhosso parte do sistema perceptivo para escutar, tanto quanto os ouvidos so parte do sistemapara olhar. At esse ponto, viso e audio so mais intercambiveis do que diferentes. Mas,por trs da descoberta, seja ela visual ou auditiva, de um mundo j feito est um nvel depercepo profundo e pr-objetivo, um nvel no qual a ateno sensitiva se encontra no picedo movimento mesmo do vir a ser do mundo. Nesse nvel, como mostrarei, as experinciasda viso e audio no so mutuamente substituveis do mesmo modo que por exemplo a lngua de sinais dos surdos substituvel pelo discurso oral. Pelo contrrio, elas sovirtualmente indistinguveis: viso um tipo de audio e vice e versa. Esse argumento melevar por fim a rejeitar a tese que atribui a dominncia do pensamento objetivo no ocidente auma obsesso pelo olho. Por enquanto, no entanto, deixe-me continuar com o contraste entrever e ouvir, como ele normalmente entendido, para examinar suas implicaes no nossoentendimento, primeiro, sobre pessoas e coisas; segundo, sobre lngua, fala e escrita; e terceiro,sobre as prticas sensoriais de pessoas em sociedades no-ocidentais.

    Viso objetifica, som personifica7 De todas as implicaes do contraste entre viso e audio, a que mais teve conseqncias

    tem sido a noo de que a viso, j que no contaminada pela experincia subjetiva daluz, produz um conhecimento do mundo exterior que racional, independente, analtico eatomstico. Por outro lado, diz-se que a audio, j que se baseia na experincia imediata dosom, arrasta o mundo para dentro do perceptor, produzindo um tipo de conhecimento que intuitivo, engajado, sinttico e holstico. Para aqueles que gostariam de celebrar o mtodode indagao cientfica positiva como a realizao mxima do esprito humano, a viso sem dvida o sentido superior. Todavia, por todas essas razes, no se deve confiar nela. Ocaminho visual para a verdade objetiva , ao que parece, pavimentado de iluses. Precisamenteporque a viso produz um conhecimento que indireto, baseado na conjectura dos dadoslimitados disponveis na luz, ela nunca poder ser nada mais que provisria, aberta a futurostestes e possibilidade de refutao emprica4. Mas conquanto nunca possamos ter certezado que vemos, no existe dvida em relao ao que ouvimos. Uma vez que o som nos faladiretamente, a audio no mente. No sofremos de problemas auriculares da mesma maneiracomo sofremos de iluses pticas (Re 1999:46). Em resumo, quando se trata de assuntos daalma, da emoo e da sensao, ou das questes introspectivas da vida, a audio supera aviso, assim como o entendimento ultrapassa o conhecimento e a f transcende a razo.

    8 Nada ilustra melhor essas atitudes em relao viso e audio, to profundamenteincrustadas nas sensibilidades ocidentais, que esse trecho extrado do Prefcio para oclssico estudo de percepo musical deVictor Zuckerkandl,Sound and Symbol. Aqui elecompara o comportamento do cego e do surdo:

    A quietude, a tranqilidade, a confiana, pode-se quase dizer a piedade, to comum nos cegoscontrastam estranhamente com a irritabilidade e a suspeita encontrada entre tantos surdos... Pareceque, pelo fato do homem cego confiar na orientao do ouvido em vez do olho, outros modosde conexo com o mundo lhe so revelados; modos que, de outra forma, so ofuscados peladominncia do olho como se, no domnio no qual ele entra em contato, os homens fossem menossozinhos, mais bem providos, mais em casa do que num mundo de coisas visveis para as quais ohomem surdo direcionado e s quais um elemento de alienao sempre se liga. (1956:3).

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    9 Como representao estereotpica do comportamento das pessoas cegas e das surdas, essapassagem , obviamente, ultrajante. Ela diz muito, no entanto, sobre como tendemos aperceber a audio como calorosa, comunicativa e solidria; e a viso como fria, distanciadae insensvel. No por acaso, ento, inmeros comentadores procuraram culpar a obsessopela viso dos males da civilizao ocidental moderna. (Jay1993,Levin1988, 1993). Maisdo que qualquer outra modalidade de percepo, dizem eles, a viso nos leva a objetificarnosso ambiente, a consider-lo como um repositrio de coisas, alheias ao nosso eu subjetivo,que esto l para serem apreendidas pelos olhos, analisadas pela cincia, exploradas pelatecnologia e dominadas pelo poder. Se ao menos pudssemos restaurar o equilbrio devolvendoa audio ao seu devido lugar no sensrium, alega-se, poderamos recuperar uma atenomais harmoniosa, benevolente e emptica ao nosso entorno. Ento, quem sabe, poderamosredescobrir o que significa pertencer5.

    10 Essas queixas no so novas; ao contrrio, a depreciao da viso to antiga quanto a suaelevao ao topo da hierarquia dos sentidos. Como Don Ihde aponta em seu estudo sobre afenomenologia do som, existe uma antiga e arraigada tradio de que a viso objetifica, e, demodo oposto e no amplamente notado, existe uma tradio de que o som personifica (Ihde,1976:21). A essa ltima tradio pertencem os argumentos de muitos estudiosos clssicosde que a prpria palavra pessoa deriva do Latim personare, que significa, literalmente,soar atravs de. Se a derivao bem fundada etimologicamente no nos importa6; o queconta so, antes, as razes que a tornam to convincente. Essas, afirmo, encontram-se emsua concordncia com a noo amplamente sustentada de que por trs do aspecto visvel dapessoa, sobretudo da face, reside um ser interior que se revela pela voz. Quando se fala,a voz soa atravs de, de dentro para fora; quando se ouve, ela penetra inversamente defora para dentro. Onde a viso coloca um e outro vis--vis, cara-a-cara, deixando cada qualconstruir a representao interna do estado mental do outro com base em sua aparncia externa,a voz e a audio estabelecem a possibilidade de uma intersubjetividade genuna; de umacomunho participativa do eu com o outro por meio da imerso no fluxo de som. A viso,nessa concepo, define a individualidade do eu em oposio aos outros; a audio define oeu socialmente em relao aos outros.

    A palavra escrita e os sons da fala11 Em nenhum lugar a ambivalncia em torno das atitudes perante a viso e a audio

    to evidente quanto nas idias ocidentais sobre linguagem e, sobretudo, sobre a distinoentre fala e escrita. A desconfiana na escrita um tema recorrente ao longo da histriado pensamento ocidental. Desde Plato e Aristteles, os filsofos tenderam a considerar aescrita como uma fachada exterior e visvel para a realidade interior e sonora das palavrasfaladas. Plato, noFdon(274-7), faz Scrates declarar que a escrita no oferece mais quea aparncia e no a realidade da sabedoria [wisdom] (Plato 1973). Para Aristteles, apenasa palavra falada representa verdadeiramente a experincia mental, enquanto a palavra escritarepresenta a falada (Aristteles 1938:115). Rousseau, para quem a escrita no era nada almda representao da fala, queixava-se amargamente (escrevendo, claro) do prestgio eateno oferecidos por seus contemporneos escrita quando esta no era mais que uma capafabricada [contrived] e inautntica para a coisa real (Derrida1974: 36). E dois dos gigantes dalingstica do sculo vinte tinham a mesma opinio. ParaBloomfeld(1933:21), a escrita erameramente uma forma de registrar a linguagem por meio de marcas visveis, enquanto deacordo comSaussure(1959:23), a linguagem e a escrita so dois sistemas distintos de signos:o segundo existe com o nico objetivo de representar o primeiro. Numa famosa imagem,Saussure localizou a linguagem numa interface entre pensamento e som, como se a conscinciahumana o domnio das idias flutuasse sobre um oceano de som como o ar sobre a gua(1959:112).

    12 Em todas estas afirmaes existe uma priorizao implcita da audio sobre a viso, comose a primeira desse acesso a intimidades da experincia humana das quais a ltima poderiaapenas oferecer um plido reflexo. A nica ligao verdadeira, escreveu Saussure, aligao do som(1959: 25) 7. Ironicamente, contudo, ao mesmo tempo em que a escrita

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    apresentada como no tendo outra razo de ser seno o modelamento da fala num meio visvel,a apreenso da fala , ela mesma, modelada sob a inspeo da palavra escrita. Assim, entra umvis visual,pela "porta dos fundos", na nossa prpria noo do que a linguagem. Lembre-se deque a suposio subjacente, compartilhada tanto pelos maiores defensores da percepo visualcomo por seus crticos, a de que ns no vemos a luz, mas os objetos que ela ilumina. Vocpode no ser capaz de ler, por exemplo, sem uma fonte de luminosidade, mas o que voc v no a luz e sim as palavras na pgina. Igualmente, voc no pode ouvir a fala a no ser que ela sejavocalizada em som. Entretanto, sua familiaridade com a palavra escrita o leva a acreditar queo que voc ouve no o som ele mesmo, mas as palavras formadas nele. Linguagem-como-palavra, com nota Ihde, mesmo enquanto soa, no chama a ateno a si mesma enquantosom (1976: 161). Antes, o som entrega ou profere as palavras que alegamos ouvir. Assim,supe-se que palavras podem ser extradas do meio do som, e podem ser preservadas, sejacomo impresses na mente ou como inscries na pgina, independentemente de seu som.

    Figura 14.1 Retrato feito por Saussure da linguagem na interface entre o plano do pensamento (A) e o plano dosom (B). O papel da linguagem cortar a interface em subdivises, como indicado pelas linhas verticais pontilhadas,estabelecendo dessa forma uma srie de relaes entre idias particulares e sons particulares. Visualize o arem contato com uma lmina dgua, diz Saussure, se a presso atmosfrica muda, a superfcie da gua serdespedaada numa srie de divises, ondas: as ondas parecem a unio do pensamento com a substncia fnica.(Retirado de F. de Saussure,Course in general linguistics, Nova Iorque: The Philosophical Library, 1959, p.112).

    13 A linguagem, ao que parece, a exceo que prova a regra de que vemos coisas (no luz) eouvimos sons (no coisas). Quando ouvimos msica, prestamos ateno ao som enquanto tal,pois , certamente, no som, nem mais nem menos, que a msica consiste. Mas, quando setrata de fala, estamos inclinados a tratar a audio como uma espcie de viso um tipo deviso com o ouvido, ou viso do ouvido que reage ao som da mesma maneira que a visodo olho reage luz. Assim, estamos convencidos de que apreendemos palavras, no sons. quase como se os sons da fala fossem vistos em vez de ouvidos. Isto, claro, exatamenteo que Saussure tinha em mente quando descreveu o significante verbal o padro de somregistrado na psique como um som-imagem (1959: 66). De acordo com ele, reconhecemosuma palavra da fala da mesma maneira que reconhecemos uma palavra da escrita, combinandoo padro percebido com um esquema mental pr-existente. Mas e se jamais tivssemos vistouma palavra, se no tivssemos noo da palavra como um objeto da viso? Dado que nossafamiliaridade com a escrita nos leva a modelar a audio da palavra falada sobre a visodaquela escrita, como o poder da fala poderia ter sido experimentado por pessoas sem oconhecimento da escrita, ou para quem a palavra escrita foi feita para ser disseminada, nomximo, atravs de sua leitura em voz alta em vez de sua reproduo impressa?

    14 Em seu influente estudo, The Gutenberg Galaxy,Marshall McLuhan(1962) argumentou quea inveno da prensa8conduziu a uma era inteiramente nova na histria da cultura humana,marcada pela dominncia absoluta do olho e, com ela, a um vis em direo a uma maneira depensar que objetiva e analticae que segue um caminho linear de conexes lgicas explcitas.Mesmo antes da introduo da tecnologia da impresso -durante o estgio quirogrfico decultura precedente-, a substituio de palavras escritas por faladas havia comeado a pender

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    o equilbrio entre viso e audio em favor da primeira. Mas, entre povos em nvel oral-aural de cultura, para quem a escrita era desconhecida, o ouvido exercia uma esmagadoratirania sobre o olho (McLuhan1962: 28). Alm disso, sustentava McLuhan, seu pensamentocarecia da elaborao lgica, da discriminao analtica e da objetividade que, no Ocidenteletrado, so normalmente consideradas os marcos da racionalidade. Baseando-se nessas idias,um dos colegas de McLuhan, Walter Ong, buscou derivar todas as caractersticas essenciaisdo pensamento e expresso baseados oralmente dos traos que distinguem a audio daviso. A cultura oral, afirmou ele, tem um carter agregativo; harmnica e holstica emvez de dissecadora, analtica e atomstica; concreta e situacionalmente especfica, em vez deabstrata e independente do contexto; focada em pessoas, em vez de em coisas. A audioliga as pessoas em comunidade; a viso isola o indivduo vis--vis o mundo. Finalmente, afora interiorizante da palavra oral se relaciona de maneira especial ao sagrado, s questesltimas da existncia. Com a ascendncia da viso, contudo, a religio d lugar cinciasecular (Ong1982: 73-4).

    15 Em suas localizaes de culturas orais e civilizaes letradas de cada lado de um grandedivisor, tanto McLuhan como Ong efetivamente reproduziram uma dicotomia entreparticipao oral e observao visual que, como j mostrei, est profundamente incrustado natradio ocidental. Assim, o som, de acordo com Ong, registra a interioridade das coisas deuma maneira que no possvel com a luz, que meramente reflete suas superfcies externas:

    16 A vista isola, o som incorpora. Enquanto a vista situa o observador fora do que ele v, distncia, o som se derrama para dentro do ouvinte... A viso chega ao ser humano de umas direo por vez... Quando eu ouo, entretanto, reno som de todas as direes de uma svez: sou o centro do meu mundo auditivo, que me envolve, assentando-me num tipo de ncleode sensao e existncia... Voc pode se imergir na audio, no som. No h maneira de seimergir similarmente na viso. (Ong, 1982:72)

    17 na sua afirmao de que o ouvinte numa cultura predominantemente oral ouve as palavrascomo som, em vez de imagens na forma de som, que Ong polemiza Saussure (1982: 17).As pessoas numa tal cultura, totalmente intocadas por qualquer conhecimento da escrita ouimpresso, no ouvem palavras como se estivessem olhando para elas. Em sua fala, todapalavra um movimento fugidio carregado na crista de um som que existe apenas quandoest deixando a existncia. Foi a escrita, afirma Ong, que amarrou as palavras e as fezparecerem coisas, objetos estanques... para a assimilao pela viso (1982: 91). Assim, aescrita transforma a palavra em vez de, como pensava Saussure, meramente represent-la nummeio alternativo.

    Viso e audio em Antropologia18 Outro colaborador de McLuhan foi o antroplogo Edmund Carpenter. Escrevendo com base

    em trabalho de campo conduzido entre os esquims Aivlik (Inuit), da ilha de Southampton nortico canadense, Carpenter afirmou que o mundo dos Inuit definido, acima de tudo, pelosom em vez da vista (Carpenter1973: 33). Habitar um tal mundo no se deparar com umespao de objetos prontos, mas participar de dentro no movimento perptuo de sua gerao.No existem coisas, estritamente falando, no mundo Inuit; apenas seres que estabelecem suapresena, antes de tudo, por meio de suas aes contnuas. A audio o par ressonantedessas aes com o movimento da ateno do ouvinte. Assim, os Inuit ouvem som em vezde coisas e so movidos pelo som, ele mesmo, como o so pelo canto. De fato, a distinoentre fala e canto, to central concepo letrada de linguagem, no faria qualquer sentidopara eles (Carpenter, 1966: 212 ). Falar e cantar so aes que, do mesmo modo que caar ouentalhar, externam ou liberam aspectos do ser na plenitude do espao acstico que envolve apessoa. Diferentemente do espao pictrico restrito e investigado pelo olho, o espao acstico dinmico, sempre em fluxo, criando suas prprias dimenses momento a momento (1973:35; ver tambm Carpenter e McLuhan 1960). Sua forma a de uma esfera, estendendo-se parafora da pessoa, igualmente, em todas direes. Porm, essa esfera no tem superfcie externa oufronteira: ela no pr-existe nem cerca o falante e o ouvinte; mas como que toma forma voltadeles no processo mesmo de seu envolvimento auditivo um com o outro e com o ambiente.

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    19 Efetivamente, McLuhan, Carpenter e Ong estabeleceram entre eles os fundamentos para umcampo de pesquisa, atualmente vibrante, que veio a ser conhecido como a antropologia dossentidos (Stoller, 1989;Howes1991a; Classen 1993, 1997). verdade que certos aspectosde seu programa tm acarretado crticas justificadas de grupos antropolgicos: a atribuiode mentalidades pr-lgicas a sociedades tribais no nvel oral-aural, o relativo desprezo deoutras modalidades sensoriais alm da visoe da audio e a conseqente eliso de diferenasentre as culturas de cada lado do grande divisor, entre oralidade e letramento (Howes1991b: 172-3, Classen 1997: 403-4). Entretanto, a idia bsica de que as culturas podem sercomparadas em termos do peso relativo dos sentidos atravs dos quais as pessoas percebemo mundo sua volta foi mantida. Assim, no tanto no qu elas percebem, mas em comoelas percebem, que as culturas diferem. No ser mais possvel identificar variaes culturaiscom vises de mundo alternativas, como se todos percebessem seus entornos da mesma forma(visualmente, vendo-o), mas vissem coisas diferentes por conta de seus diferentes modos deorganizar informaes perceptivas em representaes. Pois a prpria idia de que o mundo conhecido pela sua representao mental est atada a pressupostos sobre a preeminncia daviso que no so aplicveis interculturalmente. Discuto abaixo, brevemente, trs estudos daantropologia dos sentidos, que atribuem uma proeminncia particular audio. O primeiro,de Paul Stoller, trata dos Songhay do Nger, na frica Ocidental; o segundo, de AnthonySeeger, trata dos Suy de Mato Grosso, no Brasil; e o terceiro, de Alfred Gell, dos Umedade Papua Nova Guin9.

    20 Para os Songhay, afirma Stoller, o som um fundamento da experincia. Diferentementeda viso, que estabelece uma distncia entre o espectador e o objeto visto, o som penetrao indivduo e cria um senso de comunicao e participao (1989: 103, 120). Para mostrarcomo isso se d, Stoller examina o significado que os Songhay atribuem aos sons de doistipos de instrumentos musicais o godji (violino monocrdio) e o gasi (tambor de cabaa) ambos tocados durante cerimnias de possesso, da poesia de louvao, que acompanha essascerimnias e das palavras ditas na feitiaria. O godji produz um rangido agudo, enquanto ogasi, dependendo de como batido, produz um claque ou um rufar. Tanto pessoas comoespritos so excitados por esses sons, considerando-os irresistveis. De fato, para os Songhay,os rangidos do violino, e o claque e rufar do tambor so as vozes dos espritos que, em rituais depossesso, penetram e abalam os corpos daqueles possudos. E enquanto os instrumentos estosoando, o cantor de louvaes (sorko) recita os nomes dos espritos, gritando-os diretamentenos ouvidos do mdium pretendido. A fora snica do grito afeta o corpo do mdium damesma maneira que o vento afeta o fogo, incendiando-o em paroxismos que indicam o incioda possesso (Stoller 1989: 108-12). Na feitiaria, tambm, o prprio som do encanto mgicoque atua, poderosamente, para o bem ou para o mal, no corpo da vtima ou do paciente. Apalavra mgica som que existe (e sai da existncia) no ato de sua enunciao. Como tal, umfenmeno da mesma ordem do rangido, claque ou rufar do instrumento musical, ou do gritodo cantor de louvaes. Em todo caso, o som em si que as pessoas ouvem e ao qual elasrespondem. Supe-se que esse som tenha uma existncia prpria, separada dos domnios davida humana, animal e vegetal (1989: 112).

    21 Entre os Suy, de acordo com Seeger, a faculdade da audio altamente valorizada, como oso as faculdades complementares da fala e do canto. A fala distinta do canto na classificaoSuy, no nos termos do destacamento das palavras com relao ao som, mas como plos numcontnuo de combinaes alternativas entre fontica, texto, tempo, tom e timbre (Seeger1987: 46, 51). A primazia atribuda audio, assim como fala e ao canto, enfatizada pormeio da enorme expanso dos lbulos das orelhas e (para homens) dos lbios inferiores, nosquais so inseridos grandes discos de madeira ou folha de palmeira enrolada. A palavraku-mba, na lngua Suy, pode ser traduzida no apenas como ouvir, mas, tambm, comoentender e conhecer. a habilidade de bem ouvir-entender-conhecer que define apessoa como um ser plenamente social. E onde ns podemos descrever a memria at depalavras faladas em termos visuais, como imagens na mente, os Suy descrevem at mesmoum fenmeno visual, como um padro de tecelagem que foi aprendido e lembrado, como se

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    estivesse alojado no ouvido (Seeger 1975: 213-14). O sentido da viso no pensamento Suy,pelo contrrio, associado a tendncias moralmente delinqentes e anti-sociais. Uma pessoaque possua poderes extraordinrios de audio um ideal de virtude; mas algum com visoextraordinria um bruxo. O bruxo v tudo seu mundo transparente e no oferece barreiras viso. Ele pode olhar para cima e ver a aldeia dos mortos no cu; ele pode olhar para baixoe ver os fogos das pessoas que vivem sob a terra; e pode olhar sua volta e ver ndios inimigosem suas prprias aldeias muito longe. (1975:216). Em sua elaborao da audio como osentido moralmente superior, os Suy parecem estabelecer algum tipo de oposio entre visoe virtude social que, sugere Seeger, pode ter ressonncias em outros lugares at mesmo nastradies ocidentais (1975: 222).

    22 Os Umeda, como muitos outros povos de Papua Nova Guin, habitam um ambiente defloresta densa e virtualmente intocada, no qual as coisas so visveis apenas num curtoalcance; normalmente poucas dezenas de metros. Tal ambiente, argumenta Gell, impe umareorganizao da sensibilidade, dando o lugar de honra audio, junto ao olfato (Gell1995: 235). Assim, ao sair para caar, os Umeda caminham com os olhos no cho, ouvindoa caa em vez de busc-la com os olhos, j que por seus sons que os animais anunciamsua existncia e presena no mundo do caador. Este no um mundo de objetos visuaise espaciais pr-constitudos, mas, em vez disso, apreendido dinamicamente. No apenasanimais e plantas, mas tambm elementos da paisagem - como cadeias montanhosas, colinase charcos - so apreendidos em primeiro lugar como movimentos mais do que como formasestticas. Alerta a esses movimentos, o corpo ressoa como uma caixa acstica e responde,similarmente, atravs de sua prpria atividade de fala (1995: 240). Assim, o som da palavrafalada ecoa o movimento do ser ou elemento do ambiente ao qual ele corresponde, dandoorigem ao iconismo fonolgico que, mostra Gell, uma caracterstica pronunciada da lnguaUmeda. Por meio de sua fala, os Umeda no apontam e rotulam coisas no mundo l fora,mas, continuamente, trazem o mundo existncia em torno de si ao mesmo tempo em que sode contnuo trazidos existncia atravs de sua prpria imerso num ambiente sonoro. MasGell vai mais alm ao propor que a predominncia da audio sobre a viso conduza a umvis em direo expresso da solidariedade para com os membros da comunidade (1995:235). A cultura auditiva dos Umeda, afirma Gell, uma cultura da solidariedade.

    23 A Antropologia dos Sentidos: Uma primeira crtica24 O que mais chama a ateno nos estudos descritos acima que em todos os trs h um

    contraste radical entre a audio e a viso em linhas que, como vimos, esto inseridas natradio Ocidental. Entre os critrios de distino, para recapitular, esto: que o som penetraenquanto a viso isola; que o que ouvimos so sons que enchem o espao nossa voltaenquanto o que vemos so objetos abstrados ou 'recortados' do espao diante de ns; que ocorpo responde ao som como uma cavidade ressonante e luz como uma tela refletora; queo mundo auditivo dinmico e o mundo visual esttico; que ouvir participar enquanto ver observar distncia; que a audio social enquanto a viso associal ou individual; que aaudio moralmente virtuosa enquanto a viso intrinsecamente inconfivel; e, finalmente,que a audio solidria enquanto a viso indiferente ou, at, traioeira. Contudo, existemenigmas e inconsistncias que sugerem que essas distines podem refletir mais sobre as pr-concepes de analistas antropolgicos do que sobre a prpria experincia sensria dos povosentre os quais eles tm trabalhado. De fato, difcil evitar a suspeita, levantada por NadiaSeremetakis (1994;124), de que a atribuio aos 'Outros' no-Ocidentais de sensibilidadesauditivas (bem como tteis e olfativas) aguadas, os esteja levando a carregar o peso dasmodalidades sensoriais exiladas da estrutura sensria da modernidade Ocidental, por conta daatribuio de hegemonia viso pelo Ocidente.

    25 Stoller, por exemplo, dedica um captulo inteiro defesa da necessidade dos antroplogostransformarem-se de 'espectadores em videntes10etnogrficos por meio de uma abertura aomundo do outro, permitindo-se ser penetrado por ele. Ele est to convencido, no entanto, deque "o 'olhar' espacializado de uma pessoa cria distncia "que ele pode seguir seu prprioconselho somente por meio de aprender a ouvir, em vez de ver como fazem os Songhay(1989;120). Nisso, sua abordagem est inteiramente de acordo com a conveno de que para

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    atingir o conhecimento verdadeiro deve-se abandonar as iluses da viso e ceder orientaodo ouvido. O verdadeiro 'vidente' da tradio Ocidental o profeta cego: nas palavras deSeeger, 'aquele que fisicamente no consegue ver' (1975;222). Contudo, pelo relato de Seeger,isso no acontece para os Suy, dentre os quais o feiticeiro certamente um vidente ao invs deum espectador, apesar de um carter moral indesejvel. Pois a viso completa do feiticeiro nov o mundo pelo lado de fora, mas abre-o pelo lado de dentro. Uma inconsistncia parecida,entre pr-concepes analticas e experincia nativa, aparece no estudo de Gell sobre osUmeda. Tendo reafirmado a agora familiar proposio de que 'viso (relativamente) ntima',concreta e tangvel, enquanto a viso promove a abstrao', ele avana dizendo-nos que osprprios Umeda 'tratam a viso... como um sentido de clmax com conotaes de intimidadee perigo' (1995; 235,239, grifos meus). A intimidade da viso, para os Umeda, encontradano curto alcance, no olho-no-olho e seu perigo est ligado possibilidade, sempre presente,de um ataque de feitiaria. Um olhar furioso pode aterrorizar aquele a quem foi direcionado.Os Umeda, ao que parece, seriam os ltimos a concordarem que a viso promove abstrao!

    26 Comentando o caso dos Suy, David Howes sugere que 'pode haver uma conexo entreauralidade e sociabilidade, por um lado, e visualidade e individualidade (ou uma "disposioassocial") por outro'. Essa conexo, argumenta ele, pode at ser reformulada como uma leigeral: 'quanto mais uma sociedade der nfase ao olho, menos comunal ela ser; quanto maisela enfatizar o ouvido, menos individualista ela ser'. (Howes 1991b: 177-8). Mais uma vez,no entanto, essa 'lei' apenas reproduz uma homologia entre duas dualidades: individual versussocial e viso versus audio, que tem sido por muito tempo axiomtica da tradio Ocidental.E ela evita falar das diferenas fundamentais entre concepes Ocidentais e (por exemplo)Suy, tanto do 'indivduo associal' como da viso. O 'feiticeiro' Suy no , de maneira alguma,como Howes (1991b: 177) imagina, a contraparte do 'indivduo' Ocidental. Para comear, aviso do feiticeiro penetra o mundo ao invs de capturar reflexos de suas superfcies exteriores;ademais, ele no se posiciona, como o faz a sociedade Ocidental, vis--vis os outros nasociedade, mas encarna em seu ser a negao ativa de socialidade como um princpio derelacionamento. Nesse sentido, o feiticeiro mais anti-social do que associal.Como o feiticeiro Suy, o xam, entre os Inuit, possui poderes de viso extraordinrios,embora possam ser usados tanto para fins benficos quanto para fins prejudiciais. Tambmele um vidente, ao invs de um espectador, cuja viso pode abrir caminhos para mundosparalelos de animais e espritos. Na cosmologia dos Esquims Yup'ik, de acordo com AnneFienup-Riordan, 'viso era um ato constituindo conhecimento e testemunhar era um atopotencialmente criativo' (1994: 316). O cosmos Esquim transpira, fervilha, com olhos sempreatentos. Entre os Inuit, em geral, h uma associao estreita entre ver e caar: atravs desua viso clara e penetrante que o caador prepara um encontro com o animal a ser caadoque por sua vez consumado com o fato do animal se oferecer de bom grado ao caador(Oosten 1992: 130). Essas observaes nos trazem de volta ao estudo seminal de Carpentersobre a experincia sensria dos Inuit. Por que que Carpenter, face evidncia esmagadorada centralidade do olhar para a percepo dos Inuit de seu ambiente, insistia, ao contrrio, emque para eles o olho subserviente ao ouvido (Carpenter 1973:33)? Seria porque ele levou parao seu estudo uma noo preconcebida de viso, como analtica e reflexiva ao invs de ativae generativa (Schafer 1985;96), que era fundamentalmente incompatvel com sua apreciaorefinada do potencial dinmico e a topologia esfrica do mundo vivo dos Inuit? E se, comosugere a etnografia Inuit, for perfeitamente possvel combinar a percepo de um mundo vivodesse tipo com um 'ocularcentrismo' consumado de um tipo, contudo, radicalmente diferentedaquele com o qual estamos familiarizados no Ocidente , ento como poderemos atribuirpor mais tempo tal percepo predominncia da audio sobre a viso no equilbrio dossentidos?

    27 Lembre-se que precisamente nesses termos que Gell relata a percepo dos Umeda emrelao aos animais, plantas e paisagens. A julgar pelas descries de Gell e Carpenter,os paralelos entre os modos pelos quais os Umeda e os Inuit constituem seus mundos deexperincia so notavelmente prximos. Seus respectivos ambientes, no entanto, no poderiamser mais diferentes; a floresta tropical densa contra a tundra rtica e sem rvores. No

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    de surpreender que, nessas condies, o caador Umeda seja obrigado a depender dos seusouvidos, e o caador Inuit de sua excelente viso. De fato, Carpenter admite que quandoseus companheiros Inuit usavam seus olhos 'era, muitas vezes, com uma acuidade que mesurpreendia' (1973: 36). Porm, at o ponto no qual ele depende dos poderes da viso em vezdos da audio, o caador Inuit no v, conseqentemente, sua relao com o mundo virada doavesso. Ele permanece, como sua contraparte Umeda, no centro de um cosmos dinmico, emmeio ao processo de sua regenerao perptua. Os seres no lhe parecem a um tempo inertes ereificados, nem tampouco o caador se sente mais um observador, ou menos um participante.

    28 Desta maneira, comparando o perfil sensrio dos Inuit ou dos Umeda ou, ainda, dos Songhayou Suy - com o do Ocidente, fica claro que o que est em jogo no a predominncia daviso sobre a audio, mas o entendimento da prpria viso. evidente que a primazia daviso sobre a audio no pode ser usada para responder pela objetificao do mundo. Antes,o contrrio; atravs de sua cooptao a servio de um projeto peculiarmente moderno deobjetificao que a viso tem sido reduzida faculdade de reflexo pura e desinteressada, cujopapel meramente o de entregar "coisas" uma conscincia transcendente. Mas enquantoo olho, como argumentou Theodor Adorno, precisou se acostumar percepo da realidadedos objetos, (ou, mais especificamente, das commodities), o ouvido ficou para trs nessedesenvolvimento. Existe algo quase 'arcaico', diz Adorno, sobre a audio (Adorno 1981:99). Uma das ironias da crtica contempornea do visualismo que ao clamar pela restaurao daaudio a seu devido lugar na proporo dos sentidos, ela, na verdade, reproduz essa oposioentre a audio e a viso e, com ela, um conceito de viso muito limitado e empobrecido para oqual seu alistamento no projeto da modernidade nos trouxe. Tendo estabelecido a viso comoo instrumento principal do conhecimento objetivo e deixando a audio a flutuar nos camposprimordiais da emoo e do sentimento, sabemos o que significa ouvir som, mas perdemos,efetivamente, o contato com a experincia da luz. Para mostrar como isso se deu, voltar-me-ei, em seguida, a uma figura cujo pensamento amplamente conhecido por ocupar um lugarcentral nessa transio - Ren Descartes.

    A ptica de Descartes29 Descartes comea sua ptica de 1637 declarando seu entusiasmo pelo telescpio. "J que a

    viso", ele escreveu, " o mais nobre e mais abrangente dos sentidos, invenes que servempara aumentar o seu poder esto sem dvida entre as mais teis que podem haver" (1988: 57). Eque inveno mais maravilhosa se poderia imaginar que o telescpio, que aumentou o poder daviso a ponto de abrir novos horizontes para a compreenso humana da natureza e do universo?Atribuindo viso um lugar de honra entre os sentidos, Descartes estava seguindo os passosde uma longa linhagem de filsofos iniciada por Plato e Aristteles11. Apesar das contnuasdvidas referentes confiabilidade da viso em oposio audio, a superioridade tanto daviso quanto da audio sobre os chamados sentidos de "contato", que compreendiam o tato,o paladar e o olfato, nunca esteve em questo. At aqui, no tenho nada a dizer sobre estesltimos. Paladar e olfato levantam, por si mesmos, toda uma gama de problemas que estoalm de minhas preocupaes presentes, e, ainda que eu admita que eles deveriam ser includosem qualquer discusso da experincia sensorial humana que se pretendesse verdadeiramenteabrangente, no pretendo lidar mais com eles aqui. Mas no posso adiar algumas consideraessobre o tato. Pois nos tratamentos da percepo realizados pela tradio filosfica ocidental,foi sobretudo ao tato, e no audio, que a viso foi comparada. E, nesse ponto, Descartesno foi exceo. De fato, foi por uma analogia com o tato que ele escolheu introduzir osmecanismos da viso.

    30 Descartes nos convida a imaginar um homem que, cego de nascena, tem uma prticaconsidervel na arte de perceber, por meio de um basto, os objetos em seu entorno e os queesto prximos de si. O que acontece o seguinte: quando a ponta do basto atinge um objeto(quer isso se deva ao movimento do basto, do objeto ou de ambos), um impulso mecnico passado mo e ,a partir da, registrado pela regio do crebro a partir da qual os nervosda mo se originam. Esses estmulos do crebro, ento, fornecem os dados acerca dos quais feito um ato mental de clculo. Suponhamos, por exemplo, que o homem cego deseja julgar a

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    distncia de um objeto o qual ele toca ao mesmo tempo com dois bastes, um em cada mo.Conhecendo a distncia entre suas mos, bem como o ngulo formado por cada basto coma linha que os conecta, simples determinar quo distante do corpo est o objeto. Como oprprio Descartes observa, o trabalho mental de clculo envolvido na estimativa da distnciaexige "um tipo de raciocnio bastante similar quele usado pelos exploradores quando medemlugares inacessveis por meio de dois pontos de observao diferentes" (1988:67).

    31 A importncia da analogia que, para Descartes, isso equivale precisamente ao que acontecena viso. Tudo o que se tem que fazer substituir raios de luz refletida por bastes, e osdois olhos por duas mos12. Flutuaes nos padres de luz refletida que atingem os olhos,devido ao movimento de objetos no ambiente ou dos prprios olhos, so registradas nofundo da retina e, ento, na parte do crebro em que as fibras nervosas pticas se originam.A mente - ou o que Descartes chama de alma (em francs, me) -, ento, trabalha comesses padres de estmulo, o que resulta naquela conscincia dos objetos que nos permitedizer que os "vemos". Em defesa de Descartes importante reconhecer dois aspectos dessaformulao que so freqentemente negligenciados. Em primeiro lugar, era claro para eleque a percepo - seja ela visual ou ttil - dependia do movimento. Se no houvesse nenhummovimento do corpo e de seus rgos sensoriais em relao ao ambiente, nada seria percebido.Ironicamente, esse ponto se perdeu em grande parte da psicologia subseqente da viso, apenaspara ser redescoberta por defensores de uma abordagem ecolgica da percepo visual queadotam uma postura tipicamente anticartesiana. Retornarei a esse assunto posteriormente. Emsegundo lugar, Descartes no defendeu, como comumente se supe, que a funo dos olhos estabelecer representaes internas de objetos externos, que ficam, ento, disponveis paraserem inspecionados pela mente. Na verdade, ele estava muito consciente do absurdo de terque colocar outro conjunto de olhos dentro do crebro para ver a imagem interna. O que querque chegue ao crebro e nos leve a ter conscincia sensorial dos objetos no se assemelha maisaos objetos do que os movimentos do basto do homem cego se assemelham aos objetos comos quais ele entra em contato (1988:64)13.

    32 Resta ainda o problema, no entanto, de que, para Descartes, o ato da percepo se dividenaturalmente em dois estgios: o primeiro, que leva do encontro fsico com um objeto a umpadro de estmulo nervoso no crebro, e o segundo, que leva desses impulsos nervosos a umaconscincia mental do objeto na linha de viso do perceptor. Em qual desses dois estgios,ento, reside a essncia da viso? A comparao com o tato sugere o primeiro. Assim, a visoemprega olhos e raios de luz, enquanto o tato emprega mos e bastes. Em uma passagemcrtica de sua exposio, porm, Descartes muda seu ponto de apoio. Pois transparece que no mais no funcionamento dos olhos que reside a essncia da viso, mas, antes, nas operaesda mente sobre o que levado a ela pelos sentidos. " a alma que v", ele declara, "e noo olho; e ela no v diretamente, mas apenas por meio do crebro" (1988:68). Inicialmenteintroduzida como um modo ativo da explorao do ambiente pelo corpo, a viso - como se diz-"vai para o lado de dentro", e por motivos de fora maior tem que construir uma imagem domundo exterior com base nas informaes recebidas via sistema nervoso. Essas informaesnem mesmo precisam ser recebidas exclusivamente por meio dos olhos. Como uma faculdadepuramente cognitiva, a viso tambm pode funcionar sobre os dados do tato. Equipado comum basto, ou at mesmo com as mos livres, o cego pode ver! Assim como pessoas dotadasde vista andando sem luz em uma noite escura como o breu (1988:58).

    33 Chegamos, assim, extraordinria concluso de que a viso, agora concebida como umaconquista exclusivamente intelectual, no est mais condicionada, de modo algum, pelaexperincia corprea de habitar um mundo iluminado14. O papel da luz, sendo precisamenteequivalente ao do basto de um homem cego, o de causar uma transduo puramentemecnica. No vemos a luz mais do que o homem cego v seu basto. Antes, vemos as coisaspor meio da luz e do basto. Pois o que registrado no crebro na forma de padres de estmulonervoso informao - no a respeito da luz ou do basto -, mas a respeito dos corpos noambiente, com os quais estes entram em contato, ou dos quais so defletidos. Uma vez queessa informao est no crebro, no ponto em que a viso propriamente comea, a luz - comoo basto - j fez seu trabalho e no tem mais efeito nos procedimentos em virtude dos quais o

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    perceptor "v" o mundo se desdobrar diante dele. Nesse ponto, os olhos, que olham mas nopodem ver, rendem-se ao "eu", o cogito cartesiano, que v mas no pode olhar. Por intermdioda luz, meus olhos podem tocar o mundo e ser tocados por ele; mas eu no posso. Ainda assim,posso ver. evidente, ento, que a superioridade da viso sobre o tato no a de um sentidosobre outro, mas a da cognio sobre a sensao. por isso que Descartes escolhe explicara viso tomando por exemplo o homem cego. Esse era seu modo de mostrar que a luz , porsi mesma, incidental para a viso.

    34 Sobre o significado da luz35 Tudo isso, no entanto, ainda nos deixa com um quebra-cabea. Se o poder da viso reside

    nas operaes cognitivas da mente em vez de no trabalho fsico dos olhos, ento por queDescartes ficou to animado com o telescpio, que certamente aumenta o poder dos olhos,mas no faz nada para assistir a mente? a alma que v, diz Descartes. Mas o telescpio,que no um aparelho de computao, no ajuda a alma a ver! Se fossemos sustentar,pelo contrrio, que o poder da viso reside, primeiramente, no trabalho dos olhos e no nasoperaes da mente, ento o telescpio poderia, sim, ser de alguma ajuda. Contudo, peloargumento de Descartes, no haveria razo para elevar o senso de viso acima do sentidodo tato. Se algum pudesse, com toda equanimidade, substituir bastes por raios de luz, oque a viso teria, ento, de to especial? A ambivalncia, no argumento de Descartes, entreo olho e a mente como o lcus primrio da viso ou, em outras palavras, entre viso comoobservao corporal e especulao mental (Jay 1993a:29), nunca foi resolvida e permanececonosco at hoje. Ademais, tem se confundido, em nosso pensamento, com outro dilema,igualmente desconcertante, que diz respeito ao prprio significado da palavra luz. Essapalavra refere-se aos raios retilneos que, refletidos na superfcie das coisas, atingem o olho e,conseqentemente, originam certas sensaes? Ou ser que seu significado est na experinciasubjetiva que temos em conseqncia dessas sensaes de uma luminosidade dentro da qualas coisas so apresentadas conscincia como objetos visveis? Em suma: a luz brilha nomundo ou na mente?

    36 Essa questo no foi levantada pelos filsofos da antiguidade; pelo menos no dessa maneira.A fsica deles colocava a figura do homem senciente no centro do cosmos e cada captulodesta fsica correspondia a uma rea especfica de sensao corporal. Um desses captulosera a ptica, que tratava de como o conhecimento do mundo circundante podia ser obtidoatravs do olho. Luz, denotado pelo termo lux, era tanto a fonte de iluminao como o meiono qual esse conhecimento devia ser representado. Como tal, ela se originava do centro,com o homem, em vez de se originar da periferia csmica. Mas a revoluo Copernicanaderrotou essa cosmologia antropocntrica. At a primeira metade do sculo XVII, quandoDescartes escrevia, a humanidade havia sido relegada periferia de um universo supostamentegovernado por princpios completamente indiferentes s sensibilidades humanas. A tarefa dafsica, agora, seria descobrir esses princpios. Entre eles, aqueles por meio do quais algumimpulso fsico propagado de modo a, juntamente com outros efeitos, estimular a reao dosolhos. Esse impulso veio a ser conhecido comolumen. Nesse momento, quando Descartes nosdiz que a alma que v sob a luz da razo, em vez de os olhos sob a luz do mundo fsico,a luz qual ele se refere , claramente, a lux dos antigos a luz que brilha na mente15. Masquando, ao longo da ptica, ele diz o contrrio, referindo-se luz como raios refletidos queestimulam o olho, refere-se, evidentemente, ao lumen dos fsicos. O paradoxo da ptica que,enquanto a viso vai para dentro, do mundo para a mente, a luz vai para fora, da mentepara o mundo. E como Descartes mostrou, essa luz externa lmen a nica coisa que nopodemos ver. O resultado uma curiosa disjuno entre luz e viso: aquela do lado de fora,essa do lado de dentro, de uma interface entre a mente e o mundo. Em poucas palavras, a visocomea onde a luz termina.

    37 Embora mais de trs sculos tenham se passado desde que Descartes escreveu, ainda noestamos esclarecidos em relao ao significado de luz. Da fsica contempornea aprendemosque luz uma forma de radiao que consiste em ondas ou ftons. Isso entender luz no sentidode lumen. Ainda assim, a maioria das pessoas, de modo natural, continua a equiparar luz como faziam os pensadores da antiguidade com a lux que ilumina o mundo de sua percepo.

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    Elas esto convencidas, no entanto, de que essa lux o mesmo que o lumen dos fsicos e,portanto, de que ela tem uma existncia externa bastante independente de seus prprios olhos.Assim, diz-se que a luz viaja dos objetos externos para os olhos e que vemos por causa dela.E mesmo que fechemos os olhos supomos que o ambiente permanea iluminado, como estavaantes. Mas sabemos que, na verdade, o que quer que seja que atinge os olhos vindo do exterior(ondas, ftons), no vai alm da parte de trs da retina. E a experincia que relatamos, a de ummundo iluminado, aparentemente possvel graas ao que acontece alm daquele ponto, nosnervos pticos e no crebro. Ento s h luz em conseqncia de um estmulo da superfcieda retina? Ela existe somente no lado de c da viso? E, se sim, como podemos afirmar, aomesmo tempo, que a luz alcana os olhos de longe? A fsica teve a sua parte nessa confuso,ainda que na direo inversa. Pois, apesar de sua redefinio de uma fisiologia dos sentidospara uma cincia objetiva da natureza, ela continuou a descrever como ptica aquele ramode estudo que lida com a luz e sua propagao, mesmo quando, na prtica, ela nada tem aver com o olho.

    38 Vasco Ronchi, na introduo da sua ptica, de 1957, ilustra esses problemas na concepo daluz desenhando um intrigante paralelismo com o som. O equivalente, nesse caso, da distinoentre lumen e lux a distino entre vibrao mecnica no meio externo e o som queafirmamos ouvir quando nossos ouvidos so colocados dentro do seu campo de ao. Pordireito, no deveria haver tal coisa como a fsica do som. Pois como no h som sem umouvido e um crebro, o estudo do som isto , a acstica poderia ser empreendida somentepela combinao da fsica do movimento vibratrio com a fisiologia do ouvido e a psicologiada percepo aural. No entanto, os fsicos, ansiosos para reservar a acstica para si prprios eno se envolverem com o fenmeno subjetivo da mente e da percepo, persistem em igualaras vibraes que induzem no ouvinte uma experincia de som com o som em si, perpetuando,assim, o erro de que o som na verdade um fenmeno fsico, e no mental (Ronchi 1957:17).E, ento, todos ficam felizes em concordar com a iluso de que o som realmente viaja peloar e recebido como tal pelo ouvinte quando, na verdade, tudo o que alcana os ouvidos sovibraes e no h som at que essas vibraes tenham se transformado em impulsos nervosose levadas mente-crebro.

    39 Se, todavia, realmente, no h som no mundo fsico para alm do crebro, devemos concluirque esse mundo silencioso? E, do mesmo modo, se, realmente, no existe lux no mundoexterno, devemos concluir que o mundo l fora escuro? Essa , de fato, a concluso para aqual Ronchi se desloca. Nossa mente est cheia de som e luz mesmo se vibraes nem raiosas alcanam, enquanto o mundo vibrante e radiante , na verdade, silencioso e escuro. Mas oque significa o silncio em um mundo sem ouvidos, ou a escurido em um mundo sem olhos?Questes sobre o significado da luz, bem como do som, so certamente mal formuladas se nosforam a escolher entre considerar a luz e o som como um fenmeno fsico ou mental. Elasso mal formuladas porque continuam a considerar os rgos dos sentidos como portais entreum mundo externo e fsico e um mundo interno da mente.

    40 Deste modo, Ronchi, como Descartes antes dele, pensa a viso como um processo que comeacom o movimento em um mundo que, por meio da propagao de ondas ou partculas queporventura entram nos olhos, faz com que impulsos viajem pelo nervo ptico at o crebro,terminando com esses impulsos sendo passados para a mente que com base na comparaocom a informao j em sua posse cria uma figura luminosa e colorida (Ronchi 1957;288). De acordo com essa idia, uma fisiologia da viso pode nos dizer o que acontece no ladoafastado do ponto de passagem, e uma psicologia da viso pode nos dizer o que acontece nolado mais prximo. Nenhum dos dois relatos, no entanto, pode abarcar a prpria passagem.Como os impulsos nervosos so passados para a mente ou como eles fazem ccegas naalma, como Descartes singularmente descreveu (1988:65) permanece um mistrio.

    41 Meu argumento o de que no existe tal interface entre o olho e a mente. Longe de comearcomo radiao incidente e terminar como uma imagem mental, o processo da viso consiste emum processo interminvel, um engajamento de mo dupla entre o perceptor e seu ambiente. isso que queremos dizer quando falamos de viso, coloquialmente, como olhar ou observar. E o que Ronchi apresenta como um ponto de passagem no nada disso, mas um nexo crtico

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    nesse processo. nesse nexo, em vez de no lado prximo ou afastado dele, que o fenmenoque conhecemos como luz gerado. Esse fenmeno no o lumen externo e objetivo, nem olux interno e subjetivo. antes um fenmeno de experincia daquele completo envolvimentono mundo que precondio necessria para o isolamento do observador como um sujeitocom uma mente e do ambiente como um domnio de objetos a serem percebidos. Estabeleceresse entendimento do processo de viso e da natureza da luz ser nossa prxima tarefa.

    42 Trs pensadores do sculo vinte43 Com o objetivo de preparar o terreno para uma metafsica alternativa da viso, embarcarei,

    em seguida, em uma espcie de triangulao terica. Farei isso por meio da avaliao dasidias de trs pensadores de meados do sculo vinte, todos os quais tm coisas importantesa dizer sobre a viso e que so crticas, de um modo ou de outro, a Descartes. O primeiro,Hans Jonas, fez um grande esforo para estabelecer as diferenas entre viso, audio e tatoenquanto modalidades sensoriais. Para ele, a viso era, de fato, o sentido superior, no devido sua identificao com a razo, mas s suas propriedades fenomnicas peculiares. O segundo,James Gibson, rejeitou o modelo em dois estgios da percepo visual e, com ele, o dualismocartesiano clssico de corpo e mente. Gibson argumentou que a percepo uma atividadeno da mente, a partir daquilo que os sentidos lhe oferecem, mas de todo o organismo em seucenrio ambiental. A viso no , portanto, indireta, como sustentava Descartes, mas direta.O terceiro, Maurice Merleau-Ponty, talvez tenha ido mais longe que qualquer outro pensadorrecente ao reconhecer que a viso no diz respeito apenas a ver coisas, mas , crucialmente,uma experincia da luz. Recusando-se a estabelecer qualquer fronteira absoluta ou linha dedemarcao entre o perceptor e o percebido, Merleau-Ponty sustentou que a luz equivalenteao que experienciamos, na viso, como uma abertura do corpo para o mundo.

    Hans Jonas44 O que torna a viso distinta, para Jonas, consiste em trs propriedades que pertencem

    unicamente a essa modalidade sensorial, a saber: simultaneidade, neutralizao e distncia(Jonas, 1966: 136). A primeira se refere habilidade de absorver o mundo com um olhar derelance, de modo que a diversidade que est presente toda de uma vez possa ser apreendidatoda de uma vez. Nem a audio nem o tato podem conseguir isso. Reiterando um ponto devista bem estabelecido, a que j nos referimos, Jonas argumenta que, enquanto podemos vercoisas, ouvimos sons e no as entidades cuja atividade d origem a eles. Assim, ouvimos olatido, mas no o cachorro, cuja presena pode ser inferida apenas com base em informaesno acsticas. E no h som que no esteja suspenso no correr do tempo. A durao do som queouvimos a mesma que a do tempo em que o estamos ouvindo; o que se desenlaa no tempo, tambm, apreendido no tempo. verdade que sons distintos podem coexistir ou estaremjustapostos, mas cada qual pertence a um entre vrios fios que ocorrem concorrentemente,e no pode ser apreendido separadamente do fluxo temporal. Pare o fluxo e o que voc terno um instantneo coerente, mas uma coleo de fragmentos atmicos. O tato compartilhacom a audio essa qualidade da temporalidade, ao menos no que diz respeito ao perceptor.Ainda assim, diferentemente da audio, os dados do tato podem ser sintetizados de modoa revelar a presena estvel dos objetos. Nesse sentido, o tato se aproxima mais da viso.Assim, at certo ponto, os cegos podem conseguir por meio de suas mos aquilo que os queenxergam conseguem com seus olhos. Ainda assim, a diferena entre o tato e a viso continuaa ser fundamental. A descoberta de objetos pelo tato necessita de uma explorao ativa doambiente, o que exige movimento e toma tempo. Com a viso, tem-se apenas que abrir osolhos e o mundo est l, j desdobrado como um terreno para qualquer explorao posterior.Somente com a viso, portanto, que possvel distinguir ser de tornar-se e, a partir da, teruma concepo de mudana. Para a audio e o tato, que podem conhecer o mundo somentepor meio do movimento da atividade perceptiva, no h mudana nem estase, apenas tornar-se (Jonas 1966: 136-45).

    45 A segunda propriedade da viso, que Jonas denomina de neutralizao, consiste no desapegoentre o perceptor e o que visto. Tocar algo exige uma ao de sua parte, qual o objetoresponde de acordo com sua natureza. Escutar pressupe uma ao da parte do objeto que gera

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    o som, ao qual voc responde de acordo com sua sensibilidade. Assim, na medida em que oequilbrio da ao muda do sujeito (no tato) para o objeto (na audio), h, entre ambos, umengajamento de um tipo que est inteiramente ausente no caso da viso. O objeto no precisade nada para ser visto, j que a fonte da luz pela qual ele revelado est em outro lugar.E para ver o objeto, no precisamos assumir uma atitude em relao a ele. Ao ver, Jonasescreve, o perceptor permanece inteiramente livre do envolvimento causal das coisas a serempercebidas (1966:148). Assim, a viso neutralizadora, j que revela o objeto simplesmentepelo que ele . O que se perde em termos de uma compreenso intuitiva da conexo dascoisas compensado por um ganho em termos de objetividade. Em vez de afetar o perceptor,como fazem o tato e a audio, a viso oferece ao perceptor uma imagem que, transmitidaao pensamento, pode ser manipulada vontade, sem maiores conseqncias para o prprioobjeto. Mas precisamente por conta de sua neutralizao, os objetos da viso so, em certosentido, mudos, j que eles no falam conosco ou se endeream s preocupaes humanasquando revelam sua presena (Jonas, 1966: 145-9).

    46 A terceira propriedade da viso, a distncia espacial, relativamente auto-evidente. Em umambiente livre de obstruo, podemos ver a uma grande distncia. O tato no se estende almdo alcance do corpo, aumentado, talvez, por bastes ou outras prteses desse tipo. O somvai alm, mas tem limites, e especialmente suscetvel a distores em suas margens. Almdisso, quando ouo um som distante, ainda que eu possa ser capaz de estimar a direo ea distncia de sua fonte em relao ao lugar em que me encontro, ainda no tenho idia unicamente pela informao acstica do que est entre mim e o som. peculiar viso,por outro lado, revelar no apenas objetos distantes, mas tambm uma paisagem abrangente,que se estende do meu presente local at o horizonte. Eu poderia, ento, enveredar por umatrilha que me levasse a qualquer um desses objetos com algum conhecimento anterior do queestivesse me esperando pelo caminho (Jonas 1966: 149-52). Ainda, em um apndice, Jonasadiciona uma qualificao crucial a esse argumento. Como ele admite, ento, a viso nuncarevelaria o mundo do modo como ela o faz, organizado em profundidade e se estendendopara longe de ns, se j no estivssemos acostumados a nos mover atravs dele e, ao faz-lo,incorporar suas caractersticas em estruturas de conscincia ttil. O tato, em suma, confirmaa materialidade do visvel. Da a mobilidade do corpo ser um fator da prpria constituio daviso e do mundo visto. primeira vista, essa proposio parece estar em descompasso com atese da simultaneidade da percepo visual, que afirma que o mundo pode ser apreendido porum relance a partir de um ponto fixo. A soluo de Jonas para esse paradoxo argumentar quesomos capazes de ver o mundo como um espetculo, de uma posio de repouso, precisamenteporque o fazemos luz da experincia acumulada do movimento realizado (1966: 154),resultante de uma histria de atividades anteriores. Em resumo, a dinmica do movimentocorporal estabelece a fundao essencial para a experincia esttica da viso, mas no , elamesma, parte dessa experincia (Jonas 1966: 152-6).

    James Gibson47 Gibson se discordaria fundamentalmente com relao a este ltimo ponto. O Movimento, do

    modo como ele v, integral viso tanto quanto ao tato; alm disso, no h necessidadede um sentido ser validado por outro (Gibson 1966: 55). No tentarei oferecer uma avaliaocompleta da abordagem ecolgica que Gibson faz da percepo visual, dado que outros j ofizeram (Michaels e Carello, 1981, Reed 1988b). Entretanto, h trs aspectos dessa abordagemque me interessa expor aqui. Primeiramente, explicarei de modo mais preciso o que Gibsonqueria dizer ao afirmar que a modalidade visual, assim como outras modalidades de percepo, direta ao invs de indireta. Em segundo lugar, mostrarei como a concepo de Gibson dossentidos como sistemas perceptuais, e no como registros de experincia especficamenterelacionados a estmulos, torna as distines entre viso, audio e tato muito menos clarasdo que estamos inclinados a pensar. Em terceiro lugar, pretendo explorar os argumentosespecficos pelos quais Gibson nega que vemos a luz enquanto tal. Nesse ponto, sugiro, suasidias ainda esto firmemente enraizadas na tradio cartesiana.

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    48 Para Descartes, como devem se lembrar, a mente incapaz de se misturar ao mundo. Trancadano confinamento do corpo, tudo que ela pode fazer executar vrias manobras de clculo,com base em estmulos registrados no crebro, de modo a construir uma representao maisou menos precisa do mundo exterior. Era isso que Descartes queria dizer quando descreveua percepo seja ela visual ou ttil como indireta. Gibson sustenta, pelo contrrio, que apercepo direta. Com isso, ele no quer dizer que ela pode, de algum modo, trespassar ocrebro; qualquer sugesto desse tipo seria obviamente absurda. O que ele afirma , antes,que deveramos deixar de pensar na percepo como a atividade computacional de uma mentedentro de um corpo e v-la, em vez disso, como uma atividade exploradora do organismodentro de seu ambiente. Como tal, ela no fornece imagens ou representaes. como se elaguiasse o organismo ao longo do avano de seu projeto. O organismo preciso perceptualmente aquele cujos movimentos esto bem afinados e so sempre responsivos s perturbaesambientais. Por esse motivo, a percepo visual jamais pode ser desinteressada ou puramentecontemplativa, como afirmara Jonas. O que vemos inseparvel de como vemos; e comovemos , sempre, dado em funo da atividade prtica na qual estamos presentementeengajados.

    49 Face a tudo isso, Gibson pareceria concordar com Descartes em que a viso e o tato somodos estritamente comparveis de contato sensorial com o ambiente. Em muitos aspectos,escreve ele, o sistema [hptico] funciona em paralelo com a viso (1966: 134). Almdisso, vimos que o ponto de vista de Gibson, segundo o qual a percepo de qualquer tipodepende do movimento do perceptor em relao coisa percebida, tambm tem ressonnciasem Descartes. Por trs da aparente convergncia, entretanto, suas respectivas posies sodiametralmente opostas. Pois, no eixo de contraste que Jonas entalha entre a neutralizao e oenvolvimento, e que para ele distingue viso e tato, a perspectiva cartesiana poria juntos tatoe viso do lado da neutralizao, enquanto a perspectiva gibsoniana pe juntos viso e tato dolado do engajamento. Ou, para resumir:

    Tato VisoDescartes Neutralizao Neutralizao

    Jonas Engajamento Neutralizao

    Gibson Engajamento Engajamento

    50 Seria errado, argumenta Gibson, pensar nos olhos, nos ouvidos ou nas superfcies sensveisda pele simplesmente como loci para bancos de clulas receptoras que esto, por sua vez,vinculados a centros de projeo no crebro. Em vez disso, eles devem ser entendidoscomo partes integrais de um corpo que est continuamente em movimento, ativamenteexplorando o ambiente na busca prtica de sua vida no mundo. A viso, por exemplo, no um efeito do estmulo de fotorreceptores na retina, aliado a processadores localizados nocrtex visual. Ela , isso sim, uma conquista de um sistema que tambm abrange as ligaesneuromusculares que controlam o movimento e a orientao dos rgos nos quais os receptoresesto localizados. Esses rgos podem ser especificados em vrios nveis de inclusividadecrescente. Assim, o olho parte de um rgo dual, um de um par de olhos mveis, e eles estolocalizados em uma cabea que pode virar e que est vinculada a um corpo que pode mover-se de um lugar para outro. Juntos, esses rgos compreendem o que Gibson denomina osistema perceptual para a viso (Gibson 1979: 53, cf. 1966). Muito disso compartilhado como sistema para a audio e com o sistema para o tato. A cabea, por exemplo, comum viso e audio; a ao de virar a cabea de modo a equilibrar a entrada auditria do som emitido poruma fonte, fazendo com que chegue igualmente s duas orelhas, localizadas uma de cada lado,tambm vira os olhos, na frente, de modo que eles sejam orientados diretamente na direo dafonte. Como esse exemplo mostra, os sistemas perceptuais no apenas se imbricam em suasfunes, mas tambm se submetem a um sistema total de orientao corporal (Gibson 1966:4, 49-51; 1979 :245). Olhar, ouvir e tocar, portanto, no so atividades separadas; elas soapenas facetas diferentes da mesma atividade: a do organismo todo em seu ambiente.

    51 Por isso que a idia proposta por Jonas - segundo a qual tendo feito uma explorao exaustivado mundo por meio do movimento, dependendo apenas de um sentido, poderamos, ento,

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    ficar inertes e absorv-lo em um relance por meio dos olhos - no teria feito qualquer sentidopara Gibson. Isso por duas razes. Primeira, exploramos o mundo com nossos olhos abertos(mesmo quando paramos de olhar ao redor); segunda, a viso no fornece um instantneo, oumesmo uma srie de instantneos. Em vez disso, ela fornece uma apreciao dos objetos detodos os lados. No vemos um objeto, assim como no o sentimos, de um nico ponto devista. Em vez disso, fazendo correr os olhos sobre ele - do mesmo modo que poderamospassar os dedos sobre ele na percepo ttil descobrimos sua forma como o invlucro deum movimento, ou seja: da modulao contnua do arranjo de luz refletida que alcana osolhos. De fato, porque a viso, como o tato, ocorre no tempo, ao longo do que Gibsonchama de trilha de observao (1979: 197), que podemos ver aspectos de objetos que,em qualquer momento particular, podem estar escondidos por beiradas que os bloqueiam. Ej que a informao oferecida pela operao de sistemas perceptuais especfica das coisasencontradas, e no do registro sensorial particular que ativado, uma mudana no equilbriodo estmulo digamos, do ttil para o visual pode causar diferenas pouco relevantes naquiloque realmente percebido. claro que as sensaes da viso no so as mesmas que as dotato e da audio. Mas os padres no fluxo de som, de toque e de luz do ambiente, queespecificam os objetos de nossa ateno, podem ser estritamente equivalentes (Gibson 1966:54-4; 1979: 243).

    52 Esse argumento implica um importante corolrio. Pois, se o que vemos delineado pelapadronizao ou modulao da luz refletida medida que ela capturada pelos rgos visuaisem movimento, ento, a nica coisa que nunca veremos deve ser a prpria luz. questo Detodas as coisas que, provavelmente, podem ser vistas, a luz uma delas?, Gibson respondecom uma negativa categrica (1979: 54). Em vez disso, diz ele que vemos coisas por meio daluz. Tendo em vista a atitude resolutamente anticartesiana de Gibson, essa concluso queest completamente de acordo com o ponto de vista de Descartes sobre o assunto parece algosurpreendente. De fato, ele admite estar perplexo com a questo de como certos fenmenosparecem anunciar sua presena diretamente, como a luz radiante, e no por meio da iluminaode suas superfcies (19066:220). No assim que percebemos uma fogueira flamejante, aluz de um lampio, o sol e a lua, um feixe de luz solar passando atravs das nuvens, umarco-ris, o brilho do sol refletido em uma superfcie brilhante ou as cintilaes da luz nagua? Intuitivamente, parece que em cada um desses casos a luz o que realmente vemos.Ainda assim, para cada um deles, Gibson tem sua resposta: o fogo e o lampio so objetosespecficos e esto especificados dessa maneira, do mesmo modo que os corpos celestes. Novemos realmente os feixes de luz solar, mas apenas partculas iluminadas no ar. Deslumbradospelo sol, o que realmente percebemos um fato sobre o corpo, a saber, seu excessivoestmulo ptico, experienciado como um tipo de dor. Quanto aos arcos-ris, cintilaes e outrascoisas do tipo, essas so manifestaes da luz, no a luz enquanto tal (1979: 55).

    53 medida, entretanto, que os exemplos aumentam em nmero, a defesa de Gibson se tornacada vez menos plausvel. Em que sentido podemos, de modo aceitvel, ver a chama comoum objeto? Ignorando o conhecimento da cincia e dos livros escolares, como sero o sol ea lua explicitados?16 No que diz respeito aos feixes de luz solar, o senso comum nos diz quevemos a luz por meio de partculas que pairam no ar, e no o contrrio. Se o estmulo pticoexcessivo causa dor, isso basta para fazer com que ele seja menos digno de ser consideradouma experincia da luz? E se o brilho fosse menos intenso e no causasse nenhum desconfortoconsidervel? Deixaramos, ento, de estar cientes dele? Finalmente, difcil ver de quemaneira manifestaes da luz podem ser distintas da luz enquanto tal sem recorrer anoes altamente redutivas do que realmente a luz. De fato, exatamente isso que Gibsonfaz. Tudo que vemos, insiste ele, o ambiente, ou fatos acerca do ambiente; nunca ftonsou energia radiante (1979: 55, grifos meus). A luz de Gibson, em resumo, o lmen dafsica moderna17 Em nenhum momento ele pensa nela como qualquer coisa alm de um tipode impulso energtico, uma fonte de estmulo que, se excede um certo limiar faz com que asclulas fotorreceptoras entrem em chamas. As sensaes resultantes, insiste, no constituem,em si mesmas, a base para a percepo visual. Nenhuma quantidade de luz far com quevejamos, a no ser que a luz seja estruturada por conta de seu reflexo em superfcies iluminadas

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    no ambiente. Assim, a luz carrega a informao para a percepo, mas nunca percebidaenquanto tal.

    Maurice Merleau-Ponty54 nesse ponto, sobretudo, que a psicologia ecolgica de Gibson diverge da fenomenologia

    de Merleau-Ponty. Ainda que falem lnguas intelectuais bem diferentes, h muito em comumentre o que Gibson e Merleau-Ponty tm a dizer. Para ambos, os sentidos existem no comoregistros distintos, cujas impresses separadas so combinadas apenas em nveis mais altosdo processo cognitivo, mas como aspectos do funcionamento do corpo todo em movimento,integrados na prpria ao de seu envolvimento com o ambiente. Qualquer sentido, ao sedirecionar a um objeto particular de ateno, traz consigo as operaes concordantes de todosos outros. Em sua Fenomenologia da Percepo, Merleau-Ponty compara essa integrao dossentidos em ao colaborao dos olhos na viso binocular (1962: 230-3). Assim como aunidade do objeto da viso no o resultado de algum processo em terceira pessoa queproduz uma imagem nica a partir de duas imagens monoculares, mas , antes, dada pelo modocomo os dois olhos so usados como um nico rgo por um nico olhar, a unidade de umacoisa enquanto entidade inter-sensorial no reside na fuso mental de imagens fundadas emdiferentes registros de sensao, mas na sinergia corporal dos sentidos em sua convergnciarumo a um objetivo comum. Assim, meu olhar, meu tato e todos os meus outros sentidos so,juntos, os poderes de um mesmo corpo, integrado em uma mesma ao (1962: 317-8). Emsuma, para Merleau-Ponty, assim como para Gibson, em sua postura colaborativa em relaos feies do mundo, no em sua relao comum a centros de processamento na mente, queos sentidos so unidos.

    55 Assim como Gibson, Merleau-Ponty concebe o tato e a viso como modos comparveis deenvolvimento sensorial com o ambiente. Isso no quer dizer que eles sejam equivalentes, j quecada um traz consigo uma estrutura de ser que nunca pode ser exatamente transposta (1962:225). por isso que pessoas anteriormente cegas e cuja viso foi restaurada consideram,inicialmente, sua situao to espantosa. A experincia ttil se revela um guia fraco para omundo visual; no porque ela seja relativamente empobrecida, mas porque o mundo ttil estestruturado de modo diferente (1962: 222-4). Ainda assim, Merleau-Ponty admite que o olharvisual funciona como um instrumento natural de percepo, praticamente do mesmo modoque o basto de um homem cego (1962: 153). A analogia, claro, extrada de Descartes.Ainda assim, em seu clebre ensaio O Olho e o Esprito, Merleau-Ponty a toma como oponto de partida para um ataque com fora total a todo o programa cartesiano (Merleau-Ponty,1964a: 169-78). Sua objeo, entretanto, no comparao do olhar visual sonda ttil,mas idia de que ambos esto atrelados ao projeto de construir representaes internas deuma realidade externa. A verdade, sustenta ele, bem outra. Pois, como o basto, o olhar capturado em um encontro exploratrio dialgico, entre o perceptor e o mundo, em quecada movimento por parte do perceptor uma questo e cada reao da parte do percebido uma resposta. Assim, o olhar obtm mais ou menos das coisas conforme o modo como asquestiona, percorre-as ou se detm sobre elas (1962: 153).

    56 Tanto Gibson quanto Merleau-Ponty so ferrenhos em sua rejeio da idia cartesiana daviso; nas palavras de Merleau-Ponty, como uma operao do pensamento que colocaria antea mente uma imagem ou uma representao do mundo (1964a: 162). De fato, o perceptor,diriam eles, no precisa de uma tal imagem para agir de modo afinado com as feies de seusarredores. J que meu corpo habita o mundo, e j que para todos os efeitos e propsitos eu e meu corpo somos um s (Merleay-Ponty 1962: 206), segue-se que tambm eu souum habitante do mundo e no de um espao dentro da minha cabea. E, pelo mesmo motivo,sempre posso consultar o mundo para orientar meus movimentos, em vez de uma representaocognitiva interna. Como Gibson, Merleau-Ponty afirmou que, ainda que no possa haverviso sem movimento, esse movimento tambm deve ser visualmente guiado. Ele deve tersuas antenas, sua clarividncia (1964a: 162). Mas enquanto Gibson se perguntava como erapossvel que o perceptor visse objetos no ambiente, Merleau-Ponty ainda retrocedeu um passo.Pois, como poderia haver um ambiente cheio de objetos, ele se perguntava, exceto por um ser

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    que j est imerso no mundo da vida, no solo do sensvel (1964a: 160) e, portanto, preso emum campo visual que dado pr-objetivamente? Tal envolvimento deve ser ontologicamenteanterior objetificao do ambiente que Gibson toma como seu ponto de partida. Em suma:antes de eu vejo coisas, deve vir eu posso ver. Ento, o que quer dizer ver?

    57 O ensaio de Merleau-Ponty, O Olho e o Esprito, seu ltimo trabalho publicado, umatentativa de responder a essa questo. Os argumentos do ensaio no so fceis de seguir, maspodemos ter uma idia deles realizando um experimento simples. Feche seus olhos por umtempo e, ento, abra-os novamente. Voc tem a impresso de estar olhando o mundo atravsde um buraco (ou talvez dois) na frente de sua cabea? Seria como se voc estivesse olhandopelas janelas de sua casa, cujas luzes esto apagadas, depois de ter aberto as persianas?18Longedisso. O que parece que voc mesmo quem est l fora, misturando-se de modo desenvoltoa tudo o que v e passando por a como um esprito gil de um lugar para o outro medida queo foco de sua ateno muda. como se as paredes e o teto de sua casa tivessem desaparecido,simplesmente, deixando-o exposto ao exterior. Resumindo, voc no experimenta o ato de vercomo ver o lado de fora, mas como estar do lado de fora quer dizer, at que voc fecheseus olhos novamente, fazendo com que seu esprito seja instantaneamente capturado e postopara dentro de novo, aprisionado nos confins escuros e lgubres de um claustro fechado: suacabea. Para Descartes, a luz da mente (lux) estava nessa escurido e por isso ele pensava queos cegos poderiam ver. Mas a experincia nos ensina algo diferente. Ocorre, como escreveMerleau-Ponty (p.264), que pela viso entramos em contato com o sol e as estrelas, estamosem todos os lugares ao mesmo tempo. Ou, ainda, a viso o meio que me foi dado paraestar ausente de mim mesmo (1964a: 186-7). Temos, agora, uma pista para compreender oque Merleau-Ponty pretendia com sua repetida insistncia na indistinguibilidade do ver e dovisto ou do sensor e do sensvel (cf. 1962: 214). Isso primordialmente evidente no caso demeu corpo, que tanto v como visto, mas igualmente verdadeiro no caso de todo o tecido domundo em que ele est inserido. E podemos entender o que ele quer dizer com sua asserode que a viso no das coisas, mas acontece em meio a elas. Pois ela constitutiva de todoo campo perceptual estabelecido ao redor de mim (que estou em seu centro) e que tanto ascoisas quanto eu habitamos.

    58 Tudo isso est muito distante do quadro pintado por Jonas do espectador imvel e desapegado,que contempla um mundo com o qual ele no tem nenhum engajamento causal. Voltando a umaoposio que eu j havia introduzido no contexto de minha discusso inicial da antropologiados sentidos, Merleau-Ponty substitui a imagem do espectador pela do vidente. Imersono visvel pelo seu corpo, ele escreve, o vidente no se apropria das coisas que v; elemeramente se aproxima delas ao olhar, ele se abre para o mundo (1964a: 162). Erga suasplpebras e voc se encontrar quase literalmente no espao aberto. De fato, essa pequenafrase captura perfeitamente o que Merleau-Ponty retrata como a mgica ou o delrio (1964a:166) da viso. Vivemos em um espao visual do lado de dentro, ns o habitamos e, aindaassim, esse espao j est do lado de fora, aberto at o horizonte. Deste modo, a fronteira entreo interior e o exterior, ou entre o eu e o mundo, dissolvida. O espao da viso tanto noscerca quanto passa atravs de ns (1964a: 178). Em outro trecho, Merleau-Ponty se imaginaolhando para o cu azul:

    medida que contemplo o azul do cu no estou me posicionado em oposio a ele como umsujeito acsmico; eu no o possuo em pensamento, ou espalho em relao a ele alguma idia deazul tal que poderia revelar o seu segredo... Eu sou o prprio cu enquanto ele considerado unoe unificado e enquanto ele comea a existir por si mesmo; minha conscincia est saturada como seu azul ilimitado. (1962: 214, grifo original)

    59 Comparemos isso com Gibson, que d sua prpria questo sobre como poderamos percebervisualmente um campo luminoso, tal como o cu? a resposta: Parece-me que eu vejo o cu,no luminosidade enquanto tal (1979: 54).

    60 O cu apresenta um problema para Gibson precisamente porque ele incapaz de dar contado ambiente de qualquer outro modo que no como um mundo de objetos dispostos emoposio ao perceptor e revelado pelos padres da luz ambiente refletida a partir de suassuperfcies externas opacas. Ainda assim, o cu no tem superfcie. Ele no uma coisa, como

  • Pare, Olhe, Escute! Viso, Audio e Movimento Humano 21

    Ponto Urbe, 3 | 2008

    um edifcio ou uma rvore, no exterior da qual a luz ricocheteia. Pelo contrrio, o cu aprpria abertura ou transparncia, pura luminosidade, contra a qual as coisas se destacam porvirtude de sua opacidade ou seus contornos. Supor, como faz Gibson, que vemos o cu comodistinto de sua luminosidade como pretender que ouamos um trovo em oposio ao seusom, ou sintamos o vento em oposio a uma corrente de ar. O que o trovo seno som, ou ovento seno uma corrente de ar? Ao ouvir o trovo, ou sentir o vento, como se nossos prpriosseres se misturassem com os meios que nos cercam e ressonassem com suas vibraes. Domesmo modo, a luz do sol e a luz da lua se apresentam viso, nas palavras de Merleau-Ponty,como espcies de simbioses, certos modos que o exterior tem de nos invadir e certos modosque temos de reagir a essa invaso (1962: 317). Isso no reduzir a luz a energia radiante oua ftons, como em uma descrio fisicalista; tambm no concluir, no outro extremo, quea luz brilha apenas na mente enquanto o mundo bem poderia estar em completa escurido. reconhecer que, para as pessoas que podem ver, a luz a experincia de habitar o mundo dovisvel, e que suas qualidades de brilho e de sombra, tonalidade e cor, e de saturao sovariaes dessa experincia19.

    61 Talvez Gibson estivesse certo, no fim das contas, em dizer que no vemos a luz enquantotal, j que a luz no um objeto. Antes, ela constitui, para aqueles que vem, a fundao pr-objetiva da existncia, aquela unio do sujeito com o mundo sem a qual no poderia havercoisas visveis, ou fatos sobre o ambiente. A luz, em suma, a base do ser, a partir da qualtodas as coisas coalescem - ou da qual elas se projetam como objetos de ateno. Assim,como escreve Merleau-Ponty (1964a: 178), no vemos tanto a luz como vemos nela. E paratodos que podem ver nela, a experincia da luz perfeitamente real. De fato, no temos maismotivos para duvidar da realidade da luz do que para questionar a experincia da cegueira paraaqueles que no podem ver nela. Ainda assim, estamos todos demasiadamente predispostos adesprez-la. a prpria familiaridade de nossa experincia, dessa abertura do mundo sentidocomo luz, que faz com que ela se esconda de ns. Preocupados que estamos com todas ascoisas que a viso nos revela, esquecemos a experincia fundacional sobre a qual ela jaz. Oprocesso de ver na luz engolido