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FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO Rua Alagoas 903 - Higienópolis São Paulo, SP - Brasil Desde 1947 FAAP - JURIS FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO Volume 2 – julho a dezembro/2009 ISSN 2175-2230 revista juris da FACULDADE DE DIREITO

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FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADORua Alagoas 903 - Higienópolis

São Paulo, SP - BrasilDesde 1947

FAAP - JUR ISF U N D A Ç Ã O A R M A N D O A LVA R E S P E N T E A D O

Vo l u m e 2 – j u l h o a d e z e m b r o / 2 0 0 9ISSN 2175-2230

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Revista Juris da Faculdade de Direito, Fundação Armando Alvares Penteado.Volume 2 - julho a dezembro/2009 – São Paulo: FAAP, 2009

Semestral ISSN 2175-2230

1. Direito – Periódicos. I. Faculdade de Direito, Fundação Armando Alvares Penteado.

CDD 340CDV 34

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Apoio Institucional da FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADOConselho de Curadores da FAAPPresidente: Sra. Celita Procopio de CarvalhoIntegrantes:Sra. Maria Christina Farah Nassif FioravantiDr. Benjamin Augusto Baracchini BuenoDr. Octávio Plínio Botelho do AmaralDr. José Antonio de Seixas Pereira NetoEmbaixador Paulo Tarso Flecha de LimaDiretoria ExecutivaDiretor Presidente: Dr. Antonio Bias Bueno GuillonDiretor Tesoureiro: Dr. Américo Fialdini Jr.Diretor Cultural: Prof. Victor MirshawkaAssessoria Administrativa e Financeira: Dr. Sérgio Roberto de Figueiredo Santos e MarcheseAssessoria de Assuntos Acadêmicos: Prof. Raul Edison MartinezDiretoria da Faculdade de DireitoDiretor: Prof. Álvaro Villaça Azevedo Vice-Diretor: Prof. José Roberto Neves Amorim Comissão EditorialEditor: Prof. Rui Carvalho PivaAssistente: Milene D. Mussi KruegerBibliotecária: Marilena CosciaConselho EditorialÁlvaro Villaça Azevedo José Roberto Neves Amorim Rui Carvalho Piva Antonio Cezar Peluso Carlos Blanco de MoraisCarlos Eduardo de Abreu BoucaultCláudio Salvador LemboDiego CorapiEneida Gonçalves de Macedo HaddadEnrique Ricardo LewandowskiFernando FacuryJorge MirandaJosé Geraldo de Sousa JuniorLuiz Edson FachinManoel Gonçalves Ferreira FilhoMarcos Fábio de Oliveira NusdeoMaria Helena DinizMaria José Constantino PetriMaria Lígia Coelho Mathias ArchanjoMario Julio de Almeida CostaSebastião Luiz AmorimZeno Veloso

Direitos e Permissão de UtilizaçãoTodos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte desta revista será permitida mediante prévia autorização. A reprodução indevida estará sujeita às penalidades previstas na legislação pertinente.

Editorial

A utilização intensa da incrível ferramenta eletrônica de comunicação entre professores e alunos denominada blackboard certamente vai acrescentar valor à qualidade do ensino que será oferecido na Faculdade de Direito da FAAP, em 2010. A realização já programada, também para 2010, dos testes de medida preparatória da oferta curricular regular da disciplina Inglês Jurídico, inova a oferta internacionalizada do ensino jurídico na FAAP.A Revista Juris da Faculdade de Direito, editada neste ambiente de inovação, repercute acontecimentos singulares da vida de renomados operadores do Direito e reflete a atualidade do conhecimento jurídico de seus articulistas, a maioria deles professores da casa. As entrevistas com o atuante Secretário da Justiça e Defesa da Cidadania do Governo do Estado de São Paulo, Luiz Antonio Guimarães Marrey, e com o singular Gilberto Passos de Freitas, que foi Desembargador e Corregedor Geral do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, dão um toque de intimidade na trajetória de pessoas que participaram efetivamente da cena jurídica de São Paulo nos últimos anos.Com a destreza de sempre, o nosso Diretor, Álvaro Villaça Azevedo, escreve sobre contratos que influenciam fortemente a ordem econômica mundial. Importantes questões jurídicas, sociais e econômicas relacionadas com a natureza do bem ambiental e com o licenciamento ambiental são analisadas com profundidade nos artigos dos articulistas Rui Carvalho Piva, Fernando Cardozo Fernandes Rei e Flávio Ribeiro.A resenha de Gabriela Corbisier Tessitore sobre a banalidade do mal e o vitorioso Daniel Albernaz de Paiva Brito, vencedor do XI Encontro de Iniciação Científica, ilustram a cultura dos alunos da Faculdade de Direito.Para encerrar, as sugestões de leituras não jurídicas de Juliano Spyer e Bill Tancer, que sinalizam as tendências de um novo mundo digital, e de Alessandro Baricco, narrando uma solução de conflito pela via da compreensão humana. Boa leitura.

Rui Carvalho PivaEditor

Tiragem:3000 exemplaresDados para correspondência:Revista Juris da Faculdade de DireitoRua Alagoas, 903 – Prédio 2 – Térreo Higienópolis – SP - CEP: 01242-001Fone: (11) 3662-7339E-mail: [email protected]://www.faap.br/faculdades/direitoPublicação SemestralSolicita-se permuta

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Sumário

ENTREVISTASLuiz Antonio Guimarãres Marrey Gilberto Passos de Freitas

I. ARTIGOS

Tradição e Contrato de Mútuo, de Conta Corrente e de Compra e Venda Álvaro Villaça Azevedo

Imaterialidade do bem ambiental Rui Carvalho Piva

Licenciamento Ambiental, produção mais limpa e melhoria de desempenho das Indústrias: a agenda climática na licença renovável no Estado de São Paulo Fernando Cardozo Fernandes ReiFlávio Ribeiro

Alterações da Lei de Locação – Primeiras ReflexõesJosé Fernando Simão

A Eficácia da ARBITRAGEM após 13 anos da “Lei – nº 9.307/96”Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme

A discussão acerca do estado civil do companheiroAntonio Rulli NetoRenato A. Azevedo

Função econômico-social da “in diem addictio” e do pacto de melhor compradorBernardo Bissoto Queiroz De Moraes

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Cultura e Diritto Commerciale: La Situazione ItalianaDiego Corapi Algumas observações sobre o estelionato: a questão da pessoa induzida em erroJosé Nabuco Galvão De Barros Filho

O Crime de GenocídioPedro Wilson Bugarib

II. Jurisprudência

Agravo de Instrumento - Execução de Alimentos. Desembargador José Carlos Ferreira Alves Sentença - Direito de imagem de nascituro Juiz Luiz João José Custódio da Silveira

Sentença - Medicamento Juiz João Agnaldo Donizeti Gandini

III. Resenha

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.Gabriela Corbisier Tessitore

IV. Trabalho Premiado em 1º lugar no XI Encontro de Iniciação Científica

O Amicus Curiae no ProcessoDaniel Albernaz De Paiva Brito

V. Sugestões de leituraCONECTADOJuliano Spyer

CLICKBill Tancer

SEM SANGUEAlessandro Baricco

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS E TRABALHOS PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA JURIS DA FACULDADE DE DIREITO DA FAAP

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.6

1. Como foi a passagem de V. Exa. Pela Faculdade de Direito da USP?R. Foi bastante ativa e agitada. Fui eleito representante de classe no primeiro ano e também fui eleito um dos três representantes dos alunos na Congregação. Participei ativamente do movimento estudantil. Era época do regime militar e nós fazíamos muita atividade pela volta do Estado democrático de direito ao país. Participei de manifestações públicas e fugi da repressão. Além disso, estudei bastante e passei a trabalhar em escritório de advocacia logo no primeiro ano. Para completar, joguei futebol de campo, como lateral-direito e fui campeão da USP, pela faculdade de direito, no torneio de calouros, a “Bichusp”. Fato inédito, pois a faculdade de direito jamais tivera tal conquista.

2. Quando se deu o ingresso de V.Exa. no Ministério Público de São Paulo e como foi a trajetória no parquet paulista?R. Ingressei no Ministério Público em 1980, no primeiro concurso que realizei e no qual fui 2º colocado. Sempre tive um temperamento agitado e muito idealismo, e achei que atuar como promotor de justiça (o nome na época era promotor público) preencheria a minha aspiração pessoal e profissional. Dei-me bem na escolha da instituição. Fui Promotor em São Caetano, Miguelópolis, Poá, Barueri e São Paulo. Na capital, fiquei vários anos no 1º Tribunal do Júri. Fui promovido a Procurador de Justiça e eleito membro do Conselho Superior do Ministério Público. Posteriormente acabei Procurador-geral de Justiça por três mandatos. Sempre gostei de atender o público, por onde passei. Visitei cadeias públicas e delegacias. Fiz júris longos e procurei não ser omisso, que é o pior erro profissional de um membro do Ministério Público. O erro por ação pode

ser corrigido pelo Judiciário. O erro por omissão por vezes não pode ser corrigido. É claro que o ideal é não errar, mas isto é impossível.

3. Qual a sensação íntima que a nomeação para o honroso cargo de Procurador Geral em 1996 provocou em V. Exa.? E na sua família?R. Fiquei honrado e preocupado ao mesmo tempo. O Ministério Público brasileiro e o paulista passavam por uma fase de transição e adequação ao perfil desenhado pela Constituição de 1988. Foi um momento de muito trabalho e de muitos desafios. Nunca fui de recusar responsabilidades e creio que, em conjunto como outros promotores e procuradores de justiça, demos um salto na história do Ministério Público, com abertura da instituição à sociedade, com presença ativa em todos os episódios importantes que exigiam a nossa intervenção. Fui eleito presidente do Conselho Nacional dos Procuradores-gerais de Justiça, em 1997, o que mostra que o Ministério Público brasileiro ansiava pelo perfil de atuação que nós estávamos desenvolvendo em São Paulo. A minha família acabou tendo que partilhar comigo o peso do exercício do cargo, as angústias de decisões difíceis, a tensão constante e muitas viagens pelo Estado e fora dele. Por outro lado, fiquei contente em ter podido dar ao meu pai, o desembargador Adriano Marrey, falecido poucos meses depois, a satisfação de ver o filho chefe do Ministério Público paulista.

4. Secretário de Justiça e Procurador Geral. Quais são as principais diferenças?R. A Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania faz a interlocução institucional do Poder Executivo com o Poder Judiciário, o Ministério Público, a OAB, a Defensoria

Luiz Antonio Guimarãres Marrey

ENTREVISTA COM O SECRETÁRIO DA JUSTIÇA E DEFESA DA CIDADANIA DO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

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Pública, em relação aos temas da Justiça, como construção de fóruns e outras instalações, e ainda projetos de lei sobre o tema. Obviamente, o Secretário da Justiça exerce um cargo de confiança do Governo e faz parte de uma equipe de governo. Além disso, a Secretaria da Justiça executa o programa de proteção da testemunhas, mantém os Centros de Cidadania, as Coordenadorias de Políticas para negros e população indígena e da Diversidade Sexual, e diversos programas de defesa dos direitos humanos. Já o Procurador-geral de Justiça exerce a chefia de uma instituição independente de fiscalização do cumprimento da lei e da Constituição, e que representa os interesses da sociedade perante o Poder Judiciário e na garantia do estado democrático de direito. Na sua atuação, os membros do Ministério Público têm independência funcional, não têm chefe quanto à formação de suas convicções. Cada cargo portanto, é exercido na sua esfera de competência constitucional, mas eles têm objetivos comuns, como cumprir e fazer cumprir a lei, garantir ou promover Justiça, defender os direitos humanos. Há atividades que são exercidas conjuntamente, como, por exemplo, o Programa de proteção a testemunhas.

5. Mencione uma, dentre tantas realizações profissionais, que o sensibilize.R. Quando houve o acidente com o Fokker 100 da TAM em Congonhas, no ano de 1996, o então Ministro da Aeronáutica se negou a entregar cópia do aludo contendo as avaliações da causa do acidente, a fim de que constasse do inquérito policial, embora requisitado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo. Como Procurador-geral de Justiça impetrei mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça, fiz sustentação oral e por votação unânime o tribunal determinou a entrega do laudo. Foi o primeiro precedente no sentido de que o resultado das investigações feitas pela Aeronáutica deviam ser entregues à apreciação da Justiça. Foi uma decisão importante para o Estado de direito no país.

6. E o Santos Futebol Clube?R. Sou sócio e torcedor fanático desde criança. Alguns amigos maledicentes dizem que eu sou da “geração Pelé”. Isto é inveja de quem não pode tê-lo no seu time e sofreu as consequências durante muitos anos da sua presença no Santos FC. Fui vê-lo pessoalmente muitas vezes e este é um privilégio que as novas gerações não puderam ter. Tenho estado presente nos estádios nos bons e maus momentos do time. Nesta década foram dois títulos brasileiros, um vice da Libertadores, dois títulos paulistas e dois vices brasileiros. Estou confiante nos novos craques, que vieram das categorias de base. Parece uma turma promissora, e, agora, com a volta do Robinho, ainda que por uns meses, isto promete um bom futebol.

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.8

1. Como foi a trajetória de V. Exa. no Ministério Público de São Paulo?R. A minha trajetória no Ministério Público foi rica e gratificante. Rica em aprendizado e pelas amizades que fiz com aqueles com quem trabalhei ao longo da carreira (Magistrados, Promotores de Justiça, Delegados de Polícia, Advogados, Servidores da Justiça). Gratificante pela oportunidade de lutar para a realização da Justiça. Nos vinte e um anos que integrei o Ministério Público, doze deles passei em comarcas do interior em praticamente todas as áreas do direito, fato que muito me ajudou quando cheguei à Capital e, posteriormente, ao ser nomeado para o Segundo Tribunal de Alçada Civil.

2. E a ida para o Tribunal pelo quinto constitucional?Alguma lembrança especial?R. A minha ida para o tribunal ocorreu de forma inesperada. Na época, quem elaborava a lista tríplice era o Tribunal de Justiça. Em um dia que não me recordo, recebi telefonema do Dês. Jorge Luiz de Almeida, me informando ter sido meu nome cogitado para integrar a lista correspondente a vaga do Quinto Constitucional, considerando a responsabilidade que teria em representar o Ministério Público. Após conversar com familiares, amigos, em especial magistrados, aceitei o convite e fui apresentado ao então Corregedor Geral da Justiça, Dês. Sylvio do Amaral, com o qual tive uma longa conversa. Meu nome foi, então, submetido ao Conselho Superior da Magistratura e depois ao Órgão Especial e veio a nomeação para o Segundo Tribunal de Alçada Civil, o que ocorreu poucos dias antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual alterou o sistema de nomeações do quinto Constitucional. Das lembranças que guardo daquela época, a mais marcante, está relacionada com a primeira

sessão em que participei como juiz. Tomei posse informal na 2ª feira, sendo avisado que a posse solene seria na 4ª feira e que teria de preparar um discurso. Passei a 3ª feira resolvendo questões burocráticas. À noite, quando estava iniciando a preparação de minha fala, o Des. Gildo dos Santos ligou para minha casa perguntando se eu já havia examinado os processos que iriam ser julgados na sessão de 4ª feira, alertando-me que o n.1 da pauta era um mandado de segurança, em ação rescisória e que eu seria o primeiro a votar. Larguei o discurso e fiquei até de madrugada examinando o processo, redigindo um voto. Pela manhã, conclui o discurso. Praticamente não dormi. Pouco lembro da sessão solene. Meu pensamento estava voltado para o primeiro voto. E tão logo foi iniciada a sessão judiciária, o Relator do mandado de segurança, pedindo a palavra pela ordem, requereu a retirada do processo.

3. As aulas e pesquisas que resultaram na dissertação de mestrado e na tese de doutorado representaram momentos acadêmicos prazerosos? Por que?R. As aulas do curso de pós-graduação, as pesquisas para a elaboração da dissertação de mestrado e tese de doutorado, marcaram muito minha vida. O ambiente acadêmico, com as conversas nos intervalos das aulas, as reuniões com os colegas, fizeram com que eu me sentisse nos tempos da Faculdade. Aguardava os dias de aula com certa ansiedade, pois era o momento em que deixava de lado os problemas do dia a dia, para discutir, debater questões ligadas ao meio ambiente, que hoje preocupam o planeta. Terminada a aula, os debates continuavam e só terminavam após o jantar.

Gilberto Passos de Freitas

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

1988/2008

ENTREVISTA COM O DESEMBARGADOR GILBERTO PASSOS DE FREITAS

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4. Dentre tantas atividades importantes de V. Exa. durante o mandato de Corregedor Geral da Justiça, destaca-se a elaboração das normas para lavratura de escritura de separação extrajudicial e de inventário e partilhas extrajudiciais, V. Exa. poderia comentar o assunto?R. Com a promulgação da Lei n. 11.441, de 2007, que possibilitou a realização de inventário, partilha, separação e divórcio consensual, através de escritura pública, considerando que se fazia necessário disciplinar a matéria junto aos Cartórios Extrajudiciais do Estado, criamos na Corregedoria Geral da Justiça uma comissão, integrada pelos Desembargadores José Renato Nalini e José Roberto Bedram, pelos juízes Marcelo Berthe, Marcio Martins Bonilha Filho e Vicente Amadei, pela Dra. Márcia Melaré, representando a Ordem dos Advogados e pelo Dr. Paulo Tupinambá Vampre, representando o Colégio Notarial. Após várias reuniões, a Comissão apresentou suas conclusões, que estão consignadas no Provimento n. 33/2007, que baixamos e que se constitui num documento de grande relevância para os meios jurídicos, tendo, inclusive, servido de base para que o Conselho Nacional de Justiça elaborasse Provimento de cunho nacional. Aliás, a medida prevista na citada lei n. 11.441, de 2007, se constitui num grande avanço dentro do nosso ordenamento jurídico, na medida em que atende melhor o jurisdicionado e também concorre para desafogar o judiciário.

5. A cidade de Santos e Gilberto Passos de Freitas. Como é isto?R. A cidade de Santos, cujo lema é “Terra da caridade e da liberdade”, tem certas características que a fazem diferenciada. Além da beleza de suas praias, seus jardins e da importância de sua história, Santos tem um povo hospitaleiro, alegre, amigo, onde a maioria das pessoas se conhece, tem tempo para conversar e está sempre disposta a colaborar, ajudar o próximo. Quando ingressei na Faculdade de Direito, por exemplo, fui trabalhar no Fórum, como escrevente, onde mantinha contato com Magistrados, Promotores, Advogados, alguns deles meus professores, que sempre tinham uma palavra amiga e se dispunham a esclarecer dúvidas, orientar e auxiliar em trabalhos acadêmicos. No dia do meu exame oral no concurso de ingresso do Ministério Público, qual não foi minha surpresa, quando vi na assistência, vários deles que haviam ido à São Paulo, especialmente para assistir à minha arguição e, posteriormente, vibraram com a minha aprovação.

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.10

ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO

Doutor em Direito, Professor Aposentado Titular de Direito Civil, Regente de Pós-Graduação e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP; Professor Titular de Direito Romano, de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo; Professor Titular de Direito Romano e Diretor da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP, em São Paulo; Advogado e ex-

Conselheiro Federal e Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil. Parecerista e Consultor Jurídico.

Tradição e Contrato de Mútuo, de Conta Corrente e de Compra e Venda

Resumo: O presente artigo cuida da natureza real do contrato de mútuo, que se concretiza, portanto, com a tradição, que é a entrega da coisa pelo mutuante ao mutuário.Desse modo, o contrato, por si, não tem o poder de realizar a transmissão proprietária. Os contratos de empréstimo (mútuo e comodato) e depósito, não existem sem a entrega do bem emprestado ou que se destina a ser guardado por alguém. O mesmo acontece com o contrato de conta corrente. Apresenta-se com natureza real, porque não existe sem a entrega de numerário pelo correntista ou por alguém por ele, ao banco, para movimentação.Também acontece, quanto à transmissão patrimonial nos contratos consensuais, que se aperfeiçoam pelo só consentimento das partes interessadas, classe em que se enquadra a quase totalidade das avenças.Embora o consentimento das partes, na compra e venda, aperfeiçoem o contrato, este, por si só, não transfere o domínio das coisas negociadas, antes de sua tradição. Esse é o sistema brasileiro.

Palavras Chaves: Tradição - Contrato real - Contrato de mútuo - Contrato de conta corrente - Contrato de compra e venda.

1. Natureza real do contrato de mútuo

Saliente-se, nesse ponto, que o contrato de mútuo é de natureza real, pois ele não se concretiza, no Direito brasileiro, sem a entrega da coisa mutuada.No Direito romano, a obrigação nos contratos reais, era contraída pela entrega ou tradição da coisa (Obligatio re contrahitur), leciona José Cretella Júnior (Curso de Direito Romano, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 22ª edição, 1999, p. 260), sendo certo que “O contrato real, por excelência, é o mútuo, no qual a obrigação nasce pela tradição da coisa, transferência que assume conteúdos diversos, conforme os tipos de contratos: transferência de propriedade, no mútuo; de posse, no penhor; de detenção, no depósito e no comodato. Por outro lado, diferentes também são os efeitos, porque se no mútuo existe a obrigação de restituir o equivalente ao que se emprestou, nos outros casos é preciso devolver a própria coisa.”“O mútuo das fontes jurídicas romanas” acentua Matteo Marrone (Istituzioni di Diritto Romano, Ed. Palumbo, Palermo, outubro de 1993, p. 603), “pode ser definido como um contrato real unilateral, pelo qual uma parte, chamada mutuante, entrega à outra, chamada mutuário, uma soma de dinheiro ou outra coisa fungível (óleo, trigo, sementes etc.), com a obrigação do mutuário de restituir ao mutuante tanto quanto do mesmo gênero (tantudem eiusdem generis)”. A relação constituia-se com a dação (datio), pelo mutuante,

com a obrigação de restituir a cargo do mutuário.Após reafirmar esse requisito essencial do mútuo, da “transferência do direito de propriedade sobre a coisa, efetuada pelo mutuante em favor do mutuário”, assenta José Carlos Moreira Alves, Direito Romano, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1998, 6ª edição, vol. II, p. 122) que, “sem a datio, o simples acordo de vontade não dá vida ao mútuo”, criando, apenas, um pacto nu (nudum pactum), aduzindo que, para que se constituísse o mútuo, era preciso que o mutuante fosse proprietário da coisa e que fosse capaz de aliená-la.Malgrado as modificações sofridas pelo instituto do mútuo, ainda hoje, ostenta ele, no Direito brasileiro, esse inarredável caráter real.Lembra Alberto Trabucchi (Istituzioni di Diritto Civile, Ed. Cedam, Padova, 1999, 39ª edição, p. 766) que o contrato de mútuo, sendo real era chamado, no passado, de “empréstimo de consumação, porque a coisa dada em empréstimo passa à propriedade do mutuário, com faculdade de consumi-la a seu agrado, e com a obrigação de restituir” o equivalente do objeto, “tantudem eiusdem generis et qualitatis. “Comumente o objeto do contrato são coisas consumíveis e fungíveis.”

2. Tradição no contrato de mútuo

Ao seu turno, ensina Caio Mário da Silva Pereira

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(Instituições de Direito Civil, Contratos, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2003, 11ª edição, rev. e atualizada por Regis Fichtner, vol. III, p. 348), a respeito do mútuo, que, em nossa sistemática, mantida pelo Código Civil de 2002, “a entrega efetiva da coisa é requisito de constituição da relação contratual. Sem a traditio há apenas promessa de mutuar (pactum de mutuo dando, contrato preliminar), que não se confunde com o próprio mútuo. A promessa de mutuar, que pode ser bilateral ou unilateral, conforme o mutuário fique ou não obrigado a receber a quantia ou coisa prometida, é suscetível de revogação por parte do promitente – mutuante, quando nas circunstâncias patrimoniais da outra parte ocorrer sensível mudança, que induza a sua insolvência”, também como lecionam Enneccerus, Kipp e Wolf (Derecho de obligaciones, Ed. Bosh, Barcelona, vol. II, §141). “Mas, se recusar injustificadamente a efetivação do empréstimo, infringe o contrato, e responde por perdas e danos.”Assenta o art. 1.267 do Código Civil, como prescrevia a primeira parte do art. 620 do Código anterior, que “A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”, a não ser que o transmitente continue a possuir pelo constituto possessório, ou ceda ao adquirente o direito à restituição da coisa que se encontra em poder de terceiro, ou, ainda, quando o adquirente já se encontra na posse da coisa por ocasião do negócio jurídico.A tradição é, portanto, o ato pelo qual se concretiza o contrato, importando a entrega da coisa pelo mutuante ao mutuário, no caso de contrato de mútuo. Essa entrega ou tradição pode ser real, com a efetiva entrega da coisa; ficta, quando a entrega se faz, por exemplo, por disposição contratual, como no constituto possessório; ou, ainda, simbólica, quando a mesma ocorre, por exemplo, com a entrega de uma parte do todo, tal a entrega das chaves do objeto.Só com a tradição, assim, em qualquer de suas espécies, consolida-se a propriedade da coisa, não tendo o contrato, isoladamente, o poder de realizar essa transmissão proprietária.“Tradição”, ensina Washington de Barros Monteiro (Curso de Direito Civil, Direito das Coisas, Ed. Saraiva, São Paulo, rev. e atual. por Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto, 2000, 36ª edição, p.191) “é a entrega da coisa ao adquirente, o ato pelo qual se transfere a outrem o domínio de uma coisa, em virtude de título translativo da propriedade. Dois, portanto, os requisitos para que ela exista: a) acordo das partes, no sentido de transferir a propriedade; b) execução desse acordo mediante entrega da coisa. Com essa entrega, torna-se pública a transferência. O direito pessoal, resultante do acordo de vontades, transforma-se em direito real. Antes da tradição, o domínio não se considera transferido do alienante para o adquirente”. Com relação aos bens imóveis a tradição é solene e consiste no registro do título aquisitivo no Registro Imobiliário.

Como o mútuo é um contrato real no Direito brasileiro, é-lhe indispensável à tradição para que o contrato se aperfeiçoe.Já tive oportunidade de dizer (Álvaro Villaça Azevedo, Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos, Curso de Direito Civil, Ed. Atlas, São Paulo, 2009, 3ª edição, p. 80) que os contratos são reais, quando houver necessidade, para sua existência, da entrega (tradição) do objeto da prestação, que neles se insere.Daí a palavra real, que provém de res, rei, do latim, que significa coisa. Desse modo, os contratos de empréstimo (mútuo e comodato) e de depósito, sem a entrega do bem emprestado ou que se destina a ser guardado por alguém, não há contratação. Por mais que consintam os interessados na realização desses negócios, o que é também necessário, sem a tradição, eles não chegam a existir na esfera jurídica, não se completam, não se aperfeiçoam.Por outro lado, o mesmo acontece, quanto à transmissão patrimonial, nos contratos consensuais, que se aperfeiçoam pelo só consentimento das partes interessadas, classe em que se enquadra a quase totalidade das avenças, como analisarei adiante.

3. Tradição no contrato de conta corrente

A tradição é, também, indispensável, além de nos contratos reais mostrados, no de conta corrente.Esse contrato de conta corrente é de natureza real, porque existe com a entrega de numerário, pelo correntista ou de alguém por ele, ao banco, para a devida movimentação. Nesse sentido mostra José da Silva Costa (Contrato de Conta-Corrente, Ed. Laemmert, Rio de Janeiro, 1886, pp. 23 e 35) que a remessa de valores é condição essencial da conta corrente e a torna, por isso, contrato real, “pois, sem a entrega de valores, não tem início o movimento da conta-corrente, ficando esta sem vida”.E aduz, quanto à disponibilidade dos valores, nesse contrato, que pela própria conceituação dele, “um de seus efeitos imediatos e lógicos” é “o direito, por parte do recipiente, de livremente dispor dos valores, remetidos em conta-corrente. Este efeito supõe a transferência da propriedade sobre os valores contados”.Por sua vez, ensina Torquato Giannini (I Contratti di Conto Corrente, Ed. Luizi Niccolai, Florença, 1895, pp. 175 e 176), com base em E. Feitu, que um dos efeitos desse contrato é o de que “os valores, impropriamente as remessas, anotadas em conta, passam à propriedade” (diz o autor que se serve dessa expressão porque usada na lei, à época) “de quem os recebe e os anota a seu débito”, concluindo, adiante, que, “sem dita translação e ainda sem disponibilidade se terá um contrato de depósito ou de penhor ou outro, mas não conta-corrente; e, por isso, muito bem disse Da que: quando não ocorre tal transmissão, não existe conta-corrente”.Como fácil de perceber, esses juristas chegam, mesmo, a negar a existência desse contrato bancário, quando lhe

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faltar a transmissão da propriedade, a entrega de valores.Certa feita, cheguei a entender que, assim como a conta corrente pressupõe a entrega, a tradição, de numeração ao Banco, não pode este bloquear as somas depositadas em conta corrente de mutuários, que receberam financiamento, com abertura de crédito aos mesmos, para construção de casa própria, pois esse bloqueio impediu a transmissão a eles desse numerário. Em face dessa situação não liberatória da soma depositada em conta corrente alheia, existiu mero depósito com promessa de liberação, não havendo de falar-se em conta corrente, que, sendo contrato real, não pode existir sem a imediata disponibilidade do objeto depositado, ao favorecido (Álvaro Villaça Azevedo, Parecer, in Direito Privado, Casos e Pareceres 2, Ed. CEJUP, Belém, 1988, 2ª edição, pp. 113 a 125).

4. Tradição na compra e venda

Estudei o efeito da tradição no contrato de mútuo (real), analisarei, nesse ponto, a tradição na compra e venda (contrato consensual).O objeto do contrato de compra e venda é a obrigação de transferência do “domínio de certa coisa”, como menciona o art. 481 do Código Civil.Cuida, portanto, esse artigo da propriedade de coisas corpóreas (domínio); e não da propriedade imaterial, cuja transferência ocorre pela cessão. Cogita-se, nesse ponto, sobre o momento em que ocorre a transferência do domínio: pelo contrato ou pela tradição?Há dois sistemas, acolhendo as aludidas situações.Para o sistema do Direito Romano, obrigacional, o contrato de compra e venda, celebrado, acarreta a obrigação de transferir o objeto. Por esse sistema, existe o direito de adquirir (titulus adquirendi), mas não o direito real, que só existe com a tradição, com a entrega da coisa (modus acquisitionis). Os efeitos da compra e venda, desse modo, são no Brasil e na Alemanha de natureza obrigacional. Assim, o consentimento das partes cria o vínculo jurídico, de tal sorte que, não havendo entrega da coisa, não há transferência de domínio, mas ocorre a rescisão do contrato, se o inadimplemento for culposo.Fala-se, até, em existência de venda real e venda obrigacional. A compra e venda, no direito brasileiro, é de natureza consensual, ela operfeiçoa-se pelo consentimento das partes, independentemente da tradição das coisas vendida e comprada.Assim, a compra e venda de bens móveis, quando consentida pelos contratantes, vendedor e comprador, consuma-se, torna-se perfeita; contudo a propriedade dos bens móveis, objeto da compra e venda, só se transmite pela tradição, segundo os já mencionados artigos 1.267 do Código Civil e 620 do Código anterior, o que nada tem a ver com o aperfeiçoamento contratual. Por isso, nem o vendedor, nem o comprador perdem a propriedade de seus

objetos, antes de entregá-los; todavia, perfeito o contrato, pelo consentimento dos interessados, sujeitam-se a sua rescisão, com responsabilidade pelo pagamento de perdas e danos, em caso de seu inadimplemento culposo. O Direito brasileiro permaneceu fiel às raízes romanas. A tradição, em qualquer categoria contratual só existe transmitindo a propriedade com a entrega da coisa e nunca pelo simples contrato.É certo que se subentende a tradição quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório; quando cede ao adquirente o direito à restituição da coisa, que se encontra em poder de terceiros; ou quando o adquirente já está na posse da coisa, por ocasião do negócio jurídico, acrescenta o parágrafo único do mesmo artigo.Já o registro, que é uma tradição solene, utilizada para transferência do domínio dos bens imóveis, está tratada no art. 1.245 do Código Civil (arts, 530, inciso I, 531 e 533 do Código Civil de 1916), que assenta que essa propriedade imobiliária se perfaz pelo registro do título translativo no Registro de Imóveis.Todavia, para alguns móveis cadastrados, como o automóvel, ações nominativas de sociedades anônimas, por exemplo, entre outras situações, pode a transferência completar-se pelo registro.Assim, de referir-se a Súmula 489 do Supremo Tribunal Federal, que menciona que “compra e venda de automóvel não prevalece contra terceiros, de boa-fé, se o contrato não for transcrito no registro de Títulos e Documentos”.Esse registro no Cartório de Títulos e Documentos sempre pareceu-me inócuo, pois o terceiro jamais tem condições de saber por esse registro quando ou onde a coisa foi transmitida a outrem. Melhor que se falasse em registro onde a coisa se encontra cadastrada (DETRAN, livro das SA etc.).Cuidando de analisar essa Súmula 489 do Supremo Tribunal Federal, lembra Roberto Rosas (Direito Sumular, 11ª edição, São Paulo, Ed. Malheiros, 2002, pp.218 e 354) da existência da Súmula 132 do Superior Tribunal de Justiça, que assenta que “a ausência de registro da transferência não implica a responsabilidade do antigo proprietário por dano resultante de acidente que envolva o veículo alienado”. E comenta esse jurista: “A súmula 489 do STF estabeleceu que a compra e venda de automóvel não poderia ser oposta a terceiro, se não fosse o contrato transcrito no registro público por força do art. 129 da Lei de Registros Públicos. No entanto, a jurisprudência do STF (melhor: do STJ) ‘abrandou tal diretriz, permitindo ao alienante a prova da tradição ainda que não haja o registro na repartição oficial, e muito menos o registro público’” (STF, RTJ 84/929; Álvaro Villaça Azevedo, RT 743/109; Lei nº 9.503, art. 123, § 1º).Lembre-se de que, pelo antigo Código Civil, antes da Lei nº 6.015, de 31.12.1973 (Registros Públicos), o registro fazia-se por transcrição. Essa lei já simplificara o sistema, substituindo as longas e demoradas transcrições de

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escritura pelo seu simples registro na matrícula do imóvel, conforme estabelecem seus artigos 227 a 245.Destaque-se que o direito alemão, seguindo o sistema jurídico romano, objetiva a transferência do domínio da coisa, como modernamente se admite. Entre as obrigações básicas do vendedor e do comprador, figura o conceito de contrato de compra e venda (§ 433, do BGB), pelo qual o devedor de uma coisa está obrigado a entregá-la ao comprador e a transmitir-lhe a propriedade da mesma. O vendedor de uma coisa está obrigado a transmiti-la ao comprador livre de vícios materiais e de vícios jurídicos (alínea 1). E o comprador está obrigado a pagar ao vendedor o preço acordado e a receber a coisa comprada (alínea 2).Resta clara a obrigação de entregar a coisa e de transmitir a propriedade da mesma. O contrato, portanto, não opera a aludida transferência proprietária.Analisando o Direito germânico, ensina Miguel Maria de Serpa Lopes (Curso de Direito Civil, 2ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Livr. Freitas Bastos, 1957, vol. III, p. 256; Ludwig Enneccerus, Direito de Obrigações, no Tratado de Direito Civil de Ludwig Enneccerus, Theodor Kipp e Martin Wolf, 1ª edição, 2ª tiragem, Barcelona, Ed. Bosch, 1944, vol. 2º, Doutrina Especial, 11ª revisão por Heinrich Lehmann, trad. espanhola da 35ª edição alemã por Blas Pérez Gonzáles e José Alguer, p.14), em face da legislação, que dois princípios fundamentais peculiares dela decorrem: “1º) o contrato de compra e venda produz a obrigação de transferir o domínio da coisa vendida; 2º) essa transferência, porém, não decorre do fato da obrigação, senão de uma segunda formalidade, consequência da primeira, que, ao seu turno, constitui uma dupla obrigação – a de dar a posse ao comprador e a de transferir-lhe a propriedade”.E conclui o mesmo jurista, com apoio em Enneccerus – Kipp-Wolf, que, “entre o direito germânico e o romano, uma diferença apenas cumpre ser assinalada: o Direito Romano considerava o objetivo do contrato de compra e venda a transferência da coisa; o direito germânico ou o direito moderno visa a transferência da propriedade. É um contrato simplesmente obrigatório, mesmo na compra e venda chamada manual, real ou natural, isto é, a que se processa sem convenção especial, pelo simples pagamento do preço contra a entrega da coisa”.O sistema do Código Civil português rompeu com a tradição romana atribuindo efeitos reais ao contrato de compra e venda, bem como a outros negócios translativos do domínio, como a permuta e a doação. Em Portugal, portanto, o contrato é suficiente para transferir o domínio da coisa vendida, esclarece Orlando Gomes (Novos temas de Direito Civil, Venda Real e Venda Obrigacional, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1983, p.111).A influência de Augusto Teixeira de Freitas, por sua Consolidação das Leis Civis, manteve firme a posição do Direito brasileiro à tradição (idem o.c., pp. 115 a 119).O Código Civil português de 1867 sofreu influência do sistema do Código Civil francês e se filiou, claramente, à

concepção da venda com efeitos reais, ao assentar, em seu art. 1.549, que “a coisa comprada pertence ao comprador, desde o momento em que o contrato é celebrado, bem como, desde esse momento, fica o vendedor com direito a haver do comprador o preço estipulado”.O atual Código Civil português, aprovado pelo Decreto-Lei nº 47.344, de 25.11.1966, vigente desde 1º.06.1967, manteve essa orientação do Código de 1867, por ele revogado, estabelecendo, em seu artigo 1.316º, que “o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei”.Completa esse Código, em seu artigo 874º, que a “compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”.Anote-se que o Código Civil português de 1867 não era tão incisivo na conceituação da compra e venda, quando, por seu artigo 1.544 mencionava que dele nascia a obrigação de entregar a coisa, não a sua automática transferência dominial.Ao comentar o Código Civil português de 1867, acentua Orlando Gomes (o.c., idem), fundado no entendimento de Dias Ferreira (Comentários ao Código Civil Português), que, “Por força da inovação acolhida, admitiu o direito português a transferência da propriedade por efeito exclusivo do contrato, atribuindo à compra e venda eficácia real, tal como estatuíra o Código de Napoleão. Ao dispensar a tradição, que, anteriormente, era considerada elemento imprescindível à aquisição do domínio, presumiu, na justa observação de Dias Ferreira (o.c., p.51) a transferência da posse com a transferência da propriedade, repudiando, desse modo, o processo clássico de origem romana, que antes se observava”.Com apoio em Castan Tobeñas (Los sistemas jurídicos contemporâneos del mundo ocidental, Inst. Edit. Reus, Madrid, 1957, 2ª edição, p.58), acrescenta Orlando Gomes, em seguida: “conquanto tenha sido decisiva a influência do Código Civil Francês para a adoção do princípio da eficácia real do contrato de compra e venda, é exagerada a assertiva de que o legislador português o acolheu por amor à novidade, seduzido pela fascinação do monumento legislativo de Napoleão. Verdade é que se rendeu, quiçá demasiadamente, à influência estrangeira, principalmente francesa, com esquecimento ou postergação, muitas vezes, da tradição portuguesa”.Por outro lado, na França, como explica Orlando Gomes (Contratos, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1998, 18ª ed. atualizada e anotada por Humberto Theodoro Júnior, p. 221), “tornara-se usual, nos contratos de compra e venda, a introdução de cláusula denominada dessaisine – saisine, que permitia a transmissão da propriedade por ‘tradição ficta’, dispensando, portanto, a entrega real e efetiva da coisa. O Código Civil presumiu a existência dessa cláusula em todo contrato de compra e venda, admitindo, por subentendimento, o que Portalis chamou a ‘tradição civil’.

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E, assim, embora houvesse definido a compra e venda como o contrato que cria a obrigação de entregar a coisa, admitiu, no artigo 711, que a propriedade se transfere também por ‘efeitos das obrigações’, isto é, que se transmite por simples contrato.”No Direito francês, portanto, o contrato não só cria o vínculo obrigacional, mas transfere o domínio da coisa vendida; tendo o sistema francês abandonado a orientação do Direito Romano seguida por Robert Joseph Pothier.Por incrível que pareça, o próprio Código Civil italiano de 1865 acolheu o sistema francês, repudiando o romanístico. No mesmo sentido o Código Civil Italiano de 1942, em seu artigo 1.470, que assenta: “A venda é o contrato que tem por objeto a transferência da propriedade de uma coisa ou a transferência de um outro direito contra o correspectivo de um preço.”Escudado nesse artigo 1.470, acentua Domenico Mangano (Istituzioni di Diritto Privato, Ed. Parallello 3º, Reggio Calabria, vol. 2º, Diritto Civile, 1976, pp. 211 e 212), que o contrato de compra e venda tem por objetivo a transferência da propriedade de uma coisa ou de outro direito, contra o pagamento de um preço correspectivo, implicando o contrato a transferência da propriedade.Comentando, ainda, esse mesmo dispositivo legal, acentuam Guido Alpa e Giovanni Iúdica (Codice Civile, com commento essenziale di giurisprudenza, Ed. Kluwer Ipsoa, 1996, pp. 406 e 407) que “a venda é um contrato com efeitos reais, que transfere o direito vendido por efeito do consenso e no momento mesmo de sua formação; todavia, dependendo de circunstâncias e cláusulas várias ou de ulteriores cumprimentos, a transferência do direito pode ser diferida a um momento sucessivo à conclusão do contrato”.Reafirmam Pietro Perlingieri e Giovanni Tatarano (Manuale di Diritto Civile, Pietro Perlingieri, com a colaboração de outros autores, 3ª ed., Ed. Scientifiche Italiane, 2002, p. 470, nº 77) que o contrato de compra e venda é consensual, por força do princípio consensualístico, pelo qual “a propriedade ou o direito transmitem-se e se adquirem por efeito do consenso das partes legitimamente manifestado, sem que ocorra a entrega da coisa”.No Direito brasileiro, Darcy Bessone de Oliveira Andrade (“Transmissão do domínio, Promessa de compra e venda de imóveis, Venda com reserva de domínio”, in Orlando Gomes, Venda Real e Venda Obrigacional, cit., pp. 129 a 134) sustentou, ante o art. 1.122 do Código Civil brasileiro de 1916, que o contrato de compra e venda transfere a propriedade.É certo que pode acontecer uma ou outra exceção, mas a hipótese deverá constar expressamente de lei, onde conste que a propriedade da coisa transfere-se pelo contrato. Nesse caso, não se discute, porque a determinação surge do império da lei, como no Decreto-Lei nº 911, de 1969, em que, na alienação fiduciária de bem móvel, em garantia, a propriedade da coisa transfere-se independentemente de tradição.

Afora os casos de expressão legal, não entendo, data venia, que seja a melhor interpretação a do jurista Darcy Bessone, citada. O sistema brasileiro acolheu o contrato de compra e venda com natureza consensual, em razão do que obriga a entrega da coisa, mas não a realiza na formação contratual.Voltando à análise da matéria, no Direito brasileiro, podem ocorrer algumas situações práticas, que merecem enfrentamento.Assim, antes da entrega da coisa, pode morrer o vendedor. Com sua morte, transmite-se a seus sucessores o direito de propriedade, que vinha exercendo sobre a coisa vendida, dando aos mesmos sucessores a condição de proprietários de referido bem. Todavia, transfere-se a esses mesmos sucessores, também, a obrigação de cumprir o contrato de compra e venda. A relação jurídica permanece a mesma, com a substituição do titular da venda, morto, por seus sucessores.Desse modo, terá o comprador, se for o caso, ação contra o espólio, para obter o domínio da coisa comprada, sob pena de rescisão do contrato de compra e venda, que deixe, culposamente, de ser cumprido.Aliás, mesmo estando vivo o vendedor, se vender duas vezes, por exemplo, o mesmo imóvel, quem registrar o título aquisitivo no Registro Imobiliário, em primeiro lugar, será o proprietário.O mesmo ocorre com o casamento, superveniente do vendedor. Seu futuro cônjuge deverá respeitar as situações patrimoniais do outro cônjuge, anteriores a seu casamento. Desse modo, se a escritura pública de compra e venda foi outorgada ao comprador, antes do casamento do vendedor, enquanto solteiro, por exemplo, nada impedirá o registro desse título aquisitivo, que, na verdade, independe, também, de qualquer providência do outorgante.Reafirmo, nesse passo, que, no Direito brasileiro, a compra e venda é contrato consensual, e não real, porque se aperfeiçoa com o consentimento dos contratantes (vendedor e comprador), o que se atesta no preceito contido no artigo 482 do Código Civil, reproduzindo o artigo 1.126 do Código Civil de 1916. Ao seu turno, a tradição é o ato pelo qual se concretiza o contrato, importando a entrega da coisa vendida pelo vendedor ao comprador e a entrega, por este àquele, do preço avençado.

Abstract: The present article deals about the real nature of the loan agreement that is executed, therefore, after the tradition, which is the delivery of such thing by the Lender to the Borrower.In this way, the agreement does not have the power to execute the property transfer. The loan or deposit agreements may not exist without the delivery of the loan good or of what shall be protected by someone. The same happens with the current account agreement. It is presented under real nature because there is no delivery of cash by the account holder or by someone on behalf of him to the bank, for any transaction.

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Bibliografia

It also happens regarding to the equity transfer in the consensual agreements, which are completed by the interested parties’ consent, a class in which most covenants are included.Although the parties’ consent complete the agreement of purchase and sale, the same does not transfer the negotiated things before their tradition.This is the Brazilian system.

Key-words: Tradition – Real agreement – Loan agreement – Current account agreement – Agreement of purchase and sale.

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.16

RUI CARVALHO PIVADoutor em Direito. Coordenador de Pesquisa da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP. Professor de Direito Civil dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito da FAAP em São Paulo e São José dos Campos. Professor de Direito Ambiental do Curso de Pós-Graduação em Direito do Agronegócio da FAAP

em Ribeirão Preto.

Resumo: Este artigo sugere o reconhecimento da imaterialidade do bem ambiental, porque o verdadeiro bem ambiental é o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e, como todo direito, é um bem imaterial. Outros bens materiais, como árvores, água e pássaros, representam na doutrina do direito do ambiente, apenas os recursos ambientais. Estas sugestões não são conclusivas, porque a doutrina do direito do ambiental também não está concluída.

Palavras-chaves: bem ambiental, imaterialidade, recursos ambientais, doutrina do direito ambiental.

Imaterialidade do bem ambiental

1. Apresentação do assunto

Durante os anos de 1.997, 1.998 e 1.999, estive estudando e preparando a minha dissertação para obter o título de Mestre em Direito, na PUC de São Paulo. Optei pela área do Direito das Relações Sociais e, nela, pela subárea dos Direitos Difusos e Coletivos. Decorrido o primeiro ano do curso, orientado pelo Professor Celso Fiorillo, escolhi o tema da dissertação e criei o título: Bem Ambiental. Com uma longa trilha percorrida nos lindes da advocacia, ora estive envolvido com assuntos de Direito Público, ora de Direito Privado. Ao fazer a opção por um estudo acadêmico em torno dos Direitos Difusos, percebi imediatamente que seria necessário um novo olhar. Um olhar capaz de permitir outra percepção das previsões contidas na legislação em questão e, especialmente, das relações jurídicas nascidas, modificadas e extintas em razão da concretização destas previsões. Ao delimitar o Direito Ambiental como tema de estudo, passei a conviver com indagações ainda mais interessantes. Que relação jurídica é esta, a ambiental, que tem como sujeito ativo uma comunidade de pessoas indeterminadas? Que previsões legais são estas, as das leis ambientais, que se concretizam em um âmbito difuso, com sujeitos indeterminados, mas também estão contidas em outras leis, concretizando-se de maneira capaz de fazer nascerem relações jurídicas de outras naturezas, agora com sujeitos determinados? E os bens sobre os quais incidem os interesses dos sujeitos destas relações jurídicas, ou seja, os seus objetos mediatos? Em meio a estas indagações, delimitei o tema da dissertação: o bem jurídico protegido pelo Direito Ambiental. Ou os bens jurídicos? Em torno desta questão,

bem jurídico ou bens jurídicos, desenvolvi todo o trabalho doutrinário que resultou numa dissertação de mestrado aprovada com nota máxima e transformada em livro editado pela Max Limonad no ano de 2.000.1

2. Justificativa da escolha do assunto

No momento em que circulará o volume 2 da Revista Juris da Faculdade de Direito da FAAP, decorridos mais de dez anos da publicação do livro intitulado Bem Ambiental, penso que as insistentes referências doutrinárias à obra em questão, na produção da doutrina do Direito Ambiental ocorrida neste mesmo período, bem como a atualidade das questões relativas ao meio ambiente no Brasil e no mundo, justificam a retomada do assunto. Seja para fazer uma nova exposição da construção do conceito do bem ambiental, seja para associar o conceito às práticas de gestão ambiental em defesa deste imenso valor representado pelo direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Vou fazer a retomada do assunto com novas incursões na teoria da argumentação e aproveitar aquelas já utilizadas por ocasião da elaboração da referida dissertação, sempre que elas se mostrem atuais e adequadas.

3. Conceito de bem ambiental

A análise do conceito de bem ambiental é um assunto que provoca uma sensação de imperfeição conceitual. A indeterminação de conceitos que ronda o tema da proteção ambiental, notadamente as disposições do artigo 20 da Constituição Federal, onde estão relacionados os bens pertencentes à União, e dos artigos 2º, inciso I, que reconhece o meio ambiente como patrimônio público, e 3º, inciso V, que relaciona os recursos ambientais, da Lei

1Bem Ambiental.

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6.938/81, sinalizam para a necessidade de um acabamento doutrinário em torno do mesmo. Parece haver certa provisoriedade doutrinária a caracterizar o momento atual do conceito de bem ambiental. Quanto à sua natureza jurídica, bem difuso que é, não há dúvidas. O mesmo, no entanto, não acontece em relação ao seu conceito. De qualquer forma, porém, não há melhor alternativa para uma primeira visita a este atraente e empolgante tema jurídico que não seja a leitura do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Conceito é a operação intelectual que revela o que um objeto é. No momento, o objeto que se pretende revelar é o bem jurídico ambiental. E ele está revelado no texto do artigo 225 acima transcrito. É preciso identificá-lo. Alguns, entendem que o objeto de interesse protegido pela norma constitucional é o meio ambiente, aí incluindo os recursos ambientais referidos na lei da política nacional do meio ambiente abaixo mencionada. A minha proposta é considerar como objeto de interesse o direito que todos têm ao um ambiente ecologicamente equilibrado. Ou seja, um bem imaterial. É necessário desenvolver estas idéias, argumentar a partir da interpretação e assim por diante. Se considerar que o bem protegido pela norma ambiental é o meio ambiente, não posso deixar de considerar que a Lei 6.938/81 estabeleceu, no inciso I do artigo 3.º, que meio ambiente é o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. A mesma lei, agora no inciso V do referido artigo 3.º, estabelece como sendo recursos ambientais: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora. Não temos notícias de que em outros ramos do direito positivo haja a necessidade de convivência entre os conceitos de bens e de recursos, estes significando ou parecendo significar bens de outra natureza, capazes auxiliar na proteção daqueles, razão pela qual não parece normal falar-se em bens civis e recursos civis, bens comerciais e recursos comerciais, bens penais e recursos penais e assim por diante. Esta notável particularidade do Direito Ambiental, em cujo seio haverão de coexistir o bem ambiental e os recursos ambientais , provoca uma urgente necessidade de diferenciar os seus conceitos.

A verdade é que, ao referir-se a bem de uso comum do povo, a Constituição Federal, em seu artigo 225, não deixou suficientemente claro se o bem ambiental de uso comum do povo é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado ou se é o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Não estamos sozinhos nesta empreitada em busca da natureza jurídica do bem ambiental.. Perceba esta curta frase de José Afonso da Silva: “O objeto de tutela jurídica não é tanto o meio ambiente considerado nos seus elementos constitutivos”.2

Na mesma obra, o ilustre Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, acrescenta: “A Constituição, no art. 225, declara que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Veja-se que o objeto do direito de todos não é o meio ambiente em si, não é qualquer meio ambiente. O que é objeto do direito é o meio ambiente qualificado. O direito que todos temos é à qualidade satisfatória, o equilíbrio ecológico do meio ambiente. Essa qualidade é que se converteu num bem jurídico. A isso é que a Constituição define como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.” 3

Aqui está, certamente, o ponto de partida para a argumentação que pretende convencer a respeito da imaterialidade do bem ambiental, ou seja, trata-se de um bem essencial à sadia qualidade de vida e de uso comum do povo. O que são bens essenciais à sadia qualidade de vida ? Vamos deixar que o mesmo Professor Fiorillo nos diga: “A resposta está nos próprios fundamentos da República Federativa do Brasil, enquanto Estado democrático de direito: são os bens fundamentais à garantia da dignidade humana. Referidos bens, por via de conseqüência, encontram correlação com os direitos fundamentais da pessoa humana apontados no art. 6.º da Constituição Federal: o direito à educação, o direito à saúde, o direito ao trabalho, o direito ao lazer, o direito à segurança, o direito à previdência social, o direito à proteção à maternidade, o direito à proteção à infância e mesmo o direito à assistência em face dos desamparados, todos eles já comentados na presente obra.”4

Perceba que os bens essenciais à sadia qualidade de vida são bens fundamentais à garantia da dignidade humana. São direitos, ou seja, são bens imateriais. Para um primeiro e importante convencimento quanto à imaterialidade do bem ambiental, acrescente ao rol de direitos fundamentais acima referidos por Fiorillo, sem

2 Direito ambiental constitucional, p. 54.3 Obra citada, p.56.4 O direito de antena em face do Direito Ambiental no Brasil, p. 180.

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medo de errar, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Um bem essencial à sadia qualidade de vida. Ou não? E o bem de uso comum ? O que é isto ? Acompanhe comigo o que escrevi na época da elaboração da dissertação de mestrado sobre bem ambiental mencionada no início deste artigo. Corria o ano de 1963. Nas salas de aulas do Primeiro Ano do Curso de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ali no Largo de São Francisco, o Professor Goffredo Telles Junior, introduzindo-nos no estudo do direito, transmitia privilegiadas informações a respeito da ordem, muitas delas nascidas da sua erudição, certamente preparando-nos para uma compreensão confortável do significado da ordem jurídica. Falava ele de um local das nossas casas no qual a disposição da mesa e de sua toalha, das cadeiras, dos pratos, dos talheres, dos copos e de outros utensílios permitia ali identificar uma sala de jantar. Um local em ordem. Em seu O direito quantico, o Professor Goffredo esclarece aquilo que já havia esclarecido em suas aulas: “A disposição conveniente , que é a disposição em razão de um fim, relaciona, conjuga, liga seres múltiplos e diversos, e, portanto, faz, desses seres, partes de um só todo , ou seja, partes de uma unidade. Eis porque podemos também definir a ordem: unidade do múltiplo”.5

Na seqüência, Goffredo afirma que a ordem tem uma razão de ser e esta razão de ser sempre será a causa final para cuja consecução os seres, os elementos múltiplos e diversos, formam uma unidade. A ordem tem matéria e forma. A matéria é constituída de elementos distintos, razão pela qual Santo Thomaz de Aquino, lembrado pelo Mestre das Arcadas, ensinava que não há ordem sem distinção. A forma da ordem pressupõe uma disposição dos seus elementos, cada qual ocupando o seu lugar e passando a fazer parte de um todo. E conclui: “... a ordem implica multiplicidade e unidade.” 6

Estas informações a respeito da ordem levam, obrigatoriamente, a identificar aspectos importantes e indispensáveis que rondam a melhor compreensão que se possa ter da ordem jurídica, tais como fontes jurídicas materiais e formais e sistema jurídico. E o que todas estas referências ao Professor Goffredo Telles Junior e aos seus ensinamentos em torno da ordem têm a ver com a intenção última de analisar esta formidável característica do bem ambiental de ser um bem de uso comum de todos, no contexto desta sugestão doutrinária de reconhecer no bem ambiental um bem imaterial? Neste ponto, houve necessidade de se prevalecer da memória do Doutor Márcio Cammarosano em relação às lições do Professor Goffredo. Corria um almoçando na cidade de Tupã, isto no dia 30 de abril de 1999, onde

se realizava um Encontro Regional de Advogados do Estado de São Paulo. Na parte da manhã, havia ocorrido o pronunciamento do advogado Mário Sérgio Duarte Garcia, a respeito das prerrogativas profissionais dos advogados e havia ocorrido o meu pronunciamento, a respeito da implantação, por mim coordenada, até aquela época, de mais de vinte unidades da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP no interior do Estado. Depois, este número dobrou. Para o período da tarde, além de outros temas, estava previsto o pronunciamento do Presidente da Comissão do Meio Ambiente da OAB paulista, o referido Doutor Márcio Cammarosano, que se sentou a meu lado durante o almoço. Após usufruir de alegres momentos que o bom humor e a presença de espírito do Márcio sempre proporcionam, perguntei o que lhe parecia esta idéia de uma sugestão doutrinária que considerasse o bem ambiental como sendo um bem imaterial, um direito? Com o cuidado próprio dos estudiosos, com a rapidez dos conhecedores e com a memória dos interessados, a resposta veio pronta. Disse o ilustre Presidente da Comissão do Meio Ambiente da OAB de São Paulo que aquele não era um assunto da sua especialidade, mas que o mesmo lhe trazia à memória uma aula na qual o Professor Goffredo disse que o mais efetivo, o mais significativo e o mais verdadeiro bem de uso comum é a ordem jurídica. É o direito. Um bem imaterial, certamente. Se assim for, aqui está o conceito de bem ambiental: BEM AMBIENTAL É UM VALOR DIFUSO E IMATERIAL, QUE SERVE DE OBJETO MEDIATO A RELAÇÕES JURÍDICAS DE NATUREZA AMBIENTAL. Ao propor o conceito de bem ambiental acima, reconhecendo a sua natureza jurídica difusa, propus, como foi longamente analisado, o reconhecimento de uma particularidade capaz de identificá-lo. A imaterialidade. Isto afasta qualquer tipo de bem material da discussão em torno da identificação do bem ambiental. Assim, a questão da natureza pública, privada ou difusa dos lagos, dos rios e outras correntes de água, das ilhas fronteiriças, das praias marítimas, dos recursos naturais, do mar territorial, dos potenciais de energia hidráulica, das florestas, dos animais e assim por diante, tendo presente que são bens materiais, esta questão, como disse, deixa de interferir na identificação do bem ambiental. O debate não prospera porque a imaterialidade do bem ambiental impede que o identifiquemos em coisas materiais. Melhorando a argumentação. Por mais refletidamente e quanto mais se procede à leitura do disposto no artigo 225 da Constituição Federal, mais se lê o seguinte: todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Como é um direito, é alguma coisa imaterial, incorpórea.7 É sobre ele, sobre este direito,

5 Página 241.6 O direito quantico, p. 242.7 “Admitindo-se que só os direitos são bens incorpóreos, todas as entidades naturais com existência física autônoma devem ser incluídas entre os bens corpóreos, se bem que não tangíveis, como a energia elétrica, o vapor, o gás. Será, portanto, a possibilidade de apropriação e utilização que configurará a corporeidade do bem, alargando-se, desse modo, o conceito de bem corpóreo como res quae tangi possunt, para abranger todas as formas de energia: térmica, fonética e ótica. Assim, a radiodifusão, a cinematografia.” Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, p. 236.

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que incide o vínculo entre pessoas que caracteriza a relação jurídica de natureza ambiental. É este direito que se transforma no objeto mediato desta relação jurídica, para satisfazer mediatamente uma nossa necessidade. Sabemos que todo direito refere-se a interesses e todos os interesses referem-se a bens, bens estes que podem satisfazer as nossas necessidades imediatamente ou só mediatamente, mediante uma seqüência de fenômenos. São direitos sobre direitos. Ao admitir a imaterialidade do bem ambiental, está feita a distinção entre o seu conceito do conceito de meio ambiente e do conceito de recursos ambientais. Considera-se o direito à qualidade do meio ambiente como o bem ambiental e não o meio ambiente em si ou os recursos capazes de proporcionar-lhe esta qualidade. Penso tratar-se de uma distinção salutar neste momento em que devem ser bem-vindas, para os estudiosos do Direito Ambiental, reflexões tendentes a nele reconhecer particularidades técnicas que correspondam às suas particulares finalidades sociais. Pelos motivos expostos, a opção pelo reconhecimento do direito ao meio ambiente como sendo o objeto do suporte fático da regra jurídica do artigo 225 da Constituição Federal pode representar uma sugestão doutrinária capaz de contribuir para a evolução da boa aplicação da norma ambiental. 4. A autonomia da relação jurídica em virtude da sua natureza como argumento em defesa da imaterialidade do bem ambiental

Com a intenção deliberada de envolver o leitor na aura esclarecedora que a relação jurídica proporciona a quem quer que queira entender o direito e a aplicação das suas normas, reflita um pouco. Para criar uma imagem facilitadora da compreensão e da importância da relação jurídica, invoco a idéia de um quadro negro em uma sala de aula. Ele representaria o ordenamento jurídico como um todo. Suas previsões normativas, suas expectativas, propósitos, anseios e tudo o mais que possa beneficiar as pessoas e proteger os bens que representam os seu interesses. A partir do momento em que um fato valorado concretiza uma das suas previsões, um fato denominado jurídico, surge uma relação jurídica. Imagine-a como um espaço iluminado no centro do quadro negro. Um retângulo, um quadrado, um triângulo, um círculo, ou o quer que seja. Um espaço iluminado e visível, chamando a atenção. É aí, nestes limites, que se realiza o direito enquanto previsão concretizada. Tudo o mais permanecerá negro. Hipóteses previstas, imagens turvas do conhecimento do direito positivo à espera da concretização. Á espera da luz. Ao palco iluminado da relação jurídica só têm acesso aqueles interessados na previsão normativa concretizada. Na sua feição difusa, pública ou privada, trata-

se de um local reservado para pessoas determinadas, ou não, que ali comparecem acompanhadas de seus bens e de suas obrigações. Ali, realiza-se o direito. Ali, identificam-se os sujeitos ativo e passivo e os objetos imediato e mediato. Perceba que é um local privativo. No espaço reservado para o sujeito ativo de uma relação que se instalava em decorrência da concretização da revogada norma (Lei 11.106/2005) que constava do artigo 240 do Código Penal, o crime de adultério, nunca estaria a mulher do vizinho, um marido fiel. Quem estaria ali seria a mulher do marido adúltero. Ou o marido da mulher adúltera, outra hipótese possível. Na posição de sujeito passivo, nunca estaria o padre da igreja católica, a quem não é permitido o casamento e a quem, por via de conseqüência, não se outorga a condição de cônjuge. Como objeto imediato de tal relação jurídica, que é a prestação que se impõe ao sujeito passivo, jamais seria identificada, por exemplo, uma obrigação de entregar coisa certa, porque a obrigação que era imposta aos cônjuges pela norma penal do artigo 240 era o dever de fidelidade. Finalmente, o objeto mediato desta mesma relação jurídica jamais seria um bem de nossa propriedade, um relógio, por exemplo. Menos ainda o direito de todos a um meio ambiente qualificado, porque o bem jurídico que era protegido por esta mesma norma era outro bem imaterial, ou seja, o direito à fidelidade imposta pelo casamento em defesa da família. Por que é que em tal relação jurídica não eram aceitos, como seus elementos, sujeitos de direitos estranhos às previsões normativas que constavam do artigo 240 do Código Penal e objetos de direito estranhos às mesmas previsões ? Isto acontece porque a relação jurídica decorria de um fato jurídico que concretizava uma norma de natureza penal, natureza esta que se lhe incorporava, bem como a todas as outras relações decorrentes da concretização positivamente valorada de normas de natureza penal, razão pela qual são denominadas relações jurídicas de natureza penal. São relações jurídicas autônomas, distintas, pela escolha que o legislador, ao elaborar as regras jurídicas de uma determinada natureza, faz dos termos ali previstos e dos objetos ali determinados como sendo capazes de servir de suporte fático de sua incidência. É importante atentar para esta colocação, na medida em que ela permite determinar o lugar das diferentes relações jurídicas no sistema de direito, conhecer com mais propriedade o ramo do direito a que elas pertencem e, como conseqüência, aprimorar a operação do direito no sentido de bem aplicar as normas jurídicas. Sem explicitar tal raciocínio, mas sinalizando em sua direção, veja o que escreveu Pontes de Miranda: “O conjunto de regras jurídicas sobre determinada relação jurídica diz-se instituição jurídica. A apresentação esquemática da instituição, em torno da relação jurídica, dá-lhe o perfil e ao mesmo tempo serve à comparação das

8 Tratado de direito privado, cit., Tomo I, p. 124.

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instituições, de que se extraem conhecimentos sobre o ramo de direito a que pertencem.”8

Acontece que é comum um mesmo fato jurídico dar origem a mais de uma relação jurídica. Isto é verdade, mesmo porque as regras jurídicas, criadas para dar proteção a interesses das pessoas vinculados a bens, são criadas a partir da visão dos diversos ramos do direito, para atender interesses que ora são privados, ora são públicos e ora são difusos, de especial interesse neste trabalho. De qualquer forma, respeitada esta divisão morfológica do direito positivo, é possível dizer que um mesmo fato jurídico pode dar origem a relações jurídicas de distintas naturezas jurídicas. É possível dizer também que fatos jurídicos decorrentes de atividades ou condutas de uma mesma pessoa ou de pessoas atuando em torno de interesses comuns podem dar origem a relações jurídicas das mais diversas naturezas jurídicas. Veja um exemplo disto. João e Antonio constituíram uma sociedade por cotas de responsabilidade limitada, cujo objetivo é comercializar peças e componentes de equipamentos mecânicos e prestar serviços técnicos de construção, manutenção e operação de usinas de compostagem de lixo. No contrato de constituição da sociedade, ficaram estabelecidos os diversos direitos e obrigações dos sócios, de acordo com a prática corrente neste tipo de contrato. Levaram o mencionado contrato para registro na Junta Comercial do Estado sede, São Paulo, e inscreveram a empresa no cadastro geral dos contribuintes do Ministério da Fazenda, no cadastro estadual dos contribuintes do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços e no cadastro municipal dos contribuintes do imposto sobre serviço de qualquer natureza. Registrado o contrato na Junta Comercial, nasceu e adquiriu personalidade jurídica uma pessoa jurídica de direito privado, nos precisos termos do disposto no artigo 45 do Código Civil Brasileiro. Submeteram-se às demais exigências da legislação administrativa, dando cumprimento às mesmas. Utilizando parte do capital integralizado, a empresa constituída por João e Antonio adquiriu um terreno urbano, contratou uma empresa construtora do ramo da engenharia civil para elaborar o projeto e administrar a construção de um prédio para servir de sede da empresa, adquiriu diretamente os materiais de construção e concluiu a construção. Na seqüência, a empresa contratou empregados, adquiriu peças e componentes de equipamentos mecânicos de usinas de compostagem de lixo, passou a comercializá-los e a prestar serviços de manutenção em várias destas usinas, administradas por diversas Prefeituras Municipais. A empresa constituída por João e Antonio progrediu, gerou impostos, recolheu-os aos cofres públicos, obteve resultados e aplicou-os no próprio negócio. As atividades da empresa prosseguiram e, finalmente, ela venceu uma concorrência pública municipal para construção de uma usina de compostagem de lixo urbano

e exploração dos serviços públicos municipais de coleta, transporte e processamento do mesmo lixo, através da técnica da compostagem, em regime de concessão, por um prazo de 25 anos. Dos fatos acima descritos, infere-se que João, Antonio e a empresa por eles constituída envolveram-se em diversas relações jurídicas, ou seja, praticaram atos de vontade, espécies do gênero fato jurídico humano voluntário, que os vincularam a efeitos jurídicos próprios de cada um dos atos praticados, efeitos estes prévia e abstratamente previstos em norma. Pois bem, João, Antonio e a empresa constituída são sujeitos de direito. Um direito que deve estar previsto em norma e que, sempre e sempre, sem exceções, tutela um interesse. Quando se consegue, através daquele exercício intelectual representado pela utilização dos processos técnicos indispensáveis para realizar o direito, determinar a natureza do interesse tutelado pela norma, determina-se a natureza da relação jurídica. O que fizeram João e Antonio quando contrataram a constituição da empresa ? Estabeleceram uma relação jurídica da qual resultaram direitos e obrigações recíprocos. Tais direitos e tais obrigações, não há dificuldades para a identificação, são de ordem privada e são concernentes a João, Antonio, seus bens e às suas relações. Qual é a norma que tutela estes interesses? É o Código Civil. Assim sendo, é possível dizer que a norma, neste caso específico, tutela interesses de natureza privada e que, conseqüentemente, a relação jurídica que vinculou João e Antonio também é de natureza privada. Estreitando a classificação, uma relação jurídica de natureza civil. Aparentemente, as normas civis que validam a relação jurídica de natureza privada estabelecida entre João e Antonio não conflitam com as normas dos outros subsistemas jurídicos de natureza infraconstitucional e, além disto, encontram amparo em princípios, direitos e garantias fundamentais, individuais e coletivos, em direitos sociais e em disposições legais de ordem genérica previstos na Constituição Federal. A livre iniciativa pretendida com a constituição da empresa representa um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (artigo 1º , inciso IV e artigo 170), a propriedade é um dos direitos fundamentais (artigo 5º e inciso XXII) e a liberdade de livre associação, no mais amplo dos seus sentidos, é plena (artigo 5º , inciso XVII). Seguindo a mesma linha de raciocínio, na trajetória das relações jurídicas decorrentes de atos praticados pela empresa, identificam-se relações de natureza consumerista, disciplinadas pelo Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (contratação da construtora, aquisição de material de construção, prestação dos seus próprios serviços, comercialização de peças de reposição), de natureza trabalhista, disciplinadas pela Consolidação das

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Leis do Trabalho (contratação de empregados), de natureza tributária, disciplinadas pelo Código Tributário (geração dos impostos decorrentes das suas atividades), de natureza administrativa, disciplinadas pela legislação esparsa correspondente (registro da empresa na Junta Comercial, contratação de serviços e obras junto às Prefeituras) e, agora objeto mais próximo do presente trabalho, podemos identificar relações jurídicas de natureza ambiental, assim qualificadas em decorrência da natureza difusa e ambiental dos interesses tutelados pelas normas respectivas. Assim acontece, por exemplo, quando a empresa passa a prestar serviços de manutenção em usinas de compostagem de lixo, a fornecer peças de reposição para os equipamentos das mesmas, a construir e operar a usina de compostagem de lixo urbano e a coletar e transportar o mesmo lixo. Em todos estes casos, é possível dizer que a empresa poderia ser o sujeito passivo de eventuais relações jurídicas em cuja posição ativa, de sujeito ativo, estivesse os detentores do poder que emana do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, vale dizer, estariam todos, estaria o povo. O objeto imediato destas relações seria a obrigação que decorre do respeito ao direito que todos têm a um meio ambiente equilibrado, obrigação esta imposta a todos e, no caso específico do exemplo de que se trata, imposta à empresa, que não poderá, por exemplo, nos termos genéricos da norma constitucional, produzir, comercializar e empregar técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (Constituição Federal, artigo 225, § 1º , inciso V). O objeto mediato, por sua vez, seria direito ao meio ambiente equilibrado, o bem jurídico imaterial de uso comum de todos e essencial à sadia qualidade de vida. Como se vê, é possível investigar cada caso concreto e, com o auxílio de processos técnicos, conceitos e categorias, identificar a natureza da relação jurídica, que é a categoria básica do direito. Ocorre que, nem sempre ou quase nunca, os fatos jurídicos desencadeiam o estabelecimento de relações jurídicas tão pedagogicamente separadas e qualificadas por suas naturezas como aqui foi exposto. O mesmo acontecimento (fato jurídico em sentido amplo) pode desencadear relações jurídicas das mais diversas naturezas e suscitar impasses quanto à norma a ser aplicada. É neste momento que, talvez enfadonha mas necessariamente, repito que a operação do direito com especial destaque para a relação jurídica se faz imprescindível. Considerar a autonomia das relações jurídicas também. Neste ponto, a distinção entre bem ambiental e recursos ambientais, como foi proposta, representará um pressuposto indispensável para que esta autonomia se efetive. Em tal linha de raciocínio, a da autonomia, um bem jurídico de natureza privada não pode integrar uma relação

jurídica de natureza ambiental, difusa. Pelo menos, na condição de bem jurídico ambiental, de objeto mediato desta relação jurídica. Da mesma forma, o bem de natureza ambiental não pode integrar uma relação jurídica de natureza privada. Veja o que acontece com a floresta, por exemplo. A boa doutrina jurídica aqui no Brasil afirma que a sua natureza, por força do disposto no artigo 1º da Lei 4.771/65, é a de um bem de interesse comum. Logo, é bem ambiental. Não obstante, é a mesma lei que estabelece: Artigo 9.º - As florestas de propriedade particular, enquanto indivisas com outras, sujeitas a regime especial, ficam subordinadas às disposições que vigorarem para estas. Seria possível entender que o legislador quis dizer que a sujeição a regime especial imposta pelo dispositivo em questão refere-se “às florestas, bens ambientais difusos, situadas em propriedade particular”. Mas, tal interpretação continuaria a esbarrar em outras disposições legais que tratam do assunto e que se referem expressamente a florestas de propriedade particular e pública, tais como os artigos 6.º, 16 e 19, da mesma Lei. O § 2.º do artigo 3.º, por sua vez, refere-se a florestas que integram o patrimônio indígena. Com o advento da Lei 6.938/81, as florestas e demais vegetações de preservação permanente foram transformadas em estações ecológicas e em reservas ecológicas. Surge o Decreto 89.336/84 e com ele um esclarecimento: as estações ecológicas só podem ser criadas em propriedades públicas e as reservas ecológicas em propriedades particulares ou públicas. No § 2.º do artigo 1.º, ficou estabelecido: As Reservas Ecológicas serão públicas ou particulares, de acordo com a sua situação dominial. Toda a legislação infraconstitucional que se segue permanece fazendo referências à natureza pública ou privada das estações, reservas e áreas de proteção ambiental. A propósito, quando se faz referência às estações e às reservas ecológicas como sendo espaços ambientais especialmente protegidos, é necessário ressaltar uma observação de fundamental importância, que diz respeito a uma noção geral de direito indispensável para as reflexões em torno da questão ambiental. Diz o Professor Santoro-Passarelli, nesta observação a que nos referimos:

“O espaço não é objeto, mas simples meio em que se encontra o objeto do direito, meio necessário para a existência e exercício deste; meio, que se é mais evidente na propriedade imóvel, é na realidade necessário em qualquer relação jurídica.” 9

Sendo assim, a floresta não poderia integrar as relações jurídicas de natureza ambiental, na condição de seu objeto mediato, porque este lugar está reservado para o bem jurídico de natureza ambiental, que é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Deve ser considerada

9 Teoria geral do direito civil, p. 36.

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Bibliografia

como um fator de preservação da qualidade ambiental e, nesta condição, representar um recurso ambiental capaz de assegurar a preservação do direito à qualidade do meio ambiente, este sim, o bem jurídico difuso e imaterial, objeto mediato das relações jurídicas desta natureza. Por todas estas razões, estabelecer a diferença entre bem ambiental e recurso ambiental, admitindo a autonomia da relação jurídica, pode representar uma evolução no sentido da boa aplicação da norma ambiental. 4. Conclusão

Sempre que se refletir e concluir em torno da imaterialidade do bem ambiental, esta reflexão e estas conclusões devem ser antecedidas de um convencimento indispensável, ou seja, o conceito de bens jurídicos evoluiu e foi envolvido pelos ideais sociais que se pretende ver definitivamente integrados ao sentido de evolução do direito. A visão patrimonial, egoística e individual, que vinha caracterizando os ordenamentos, deverá dividir o espaço jurídico reservado para as pessoas com propósitos humanos, desprendidos e metaindividuais. Os valores jurídicos que se incorporam aos interesses existentes em torno dos bens estão diferentes. É preciso estar atento a esta informação. Em decorrência destas novas idéias, não tão novas, uma necessidade se impõe. Para proporcionar um adequado entendimento e evitar confusões desnecessárias, o tema bem ambiental sugere o estudo concomitante dos institutos

jurídicos da propriedade e da responsabilidade. Tal estudo permitirá o encaminhamento de idéias capazes de integrar, sem desgastes, as espetaculares particularidades do bem ambiental no contexto do sistema jurídico. Por falar em espetaculares particularidades, nada mais espetacular do que esta novidade de fazer com que a proteção jurídica conferida a um determinado bem necessite da preservação de bens jurídicos de outras naturezas, denominados, na legislação ambiental, recursos ambientais. Em função destas especiais particularidades e incentivados por elas, oferecemos esta sugestão doutrinária representada pela admissão da imaterialidade do bem ambiental. Uma sugestão ainda não acabada e que reflete este reconhecido não acabamento das construções doutrinárias em torno do bem ambiental.

Abstract: This article suggests the recognition of immateriality of good environmental, because the true good environmental is the right to an ecologically balanced environment and, how all right, is an immaterial good. Other materials goods, such as trees, water and birds, represent in the doctrine of the environmental law only environmental resources. These suggestions are not conclusive, because the environmental law doctrine is not also concluded.

Key-words: environmental good, immateriality, environmental resources, doctrine of law.

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Licenciamento Ambiental, produção mais limpa e melhoria de desempenho das Indústrias: a agenda climática na licença renovável no

Estado de São Paulo

FERNANDO CARDOZO FERNANDES REIProfessor Titular de Direito Ambiental da Faculdade de Direito da FAAP - Fundação Armando Álvares Penteado. Presidente da CETESB – Companhia Ambiental do Estado de São Paulo. Diretor Científico da SBDIMA – Sociedade

Brasileira de Direito Internacional do Meio Ambiente.

FLÁVIO RIBEIRODoutorando do Programa de Ciências Ambientais da Universidade de São Paulo. Gerente da Divisão de Sustentabilidade

e Questões Globais da CETESB – Companhia Ambiental do Estado de São Paulo.

Resumo: O presente trabalho busca evidenciar, no contexto dos avanços na gestão ambiental, a necessidade de aprimoramento das políticas públicas, em específico do licenciamento ambiental, tornando-o um indutor à adoção das práticas preventivas pelas indústrias. Faz-se um levantamento dos principais referenciais teóricos em relação ao instrumento de licenciamento, à evolução dos modelos de gestão ambiental na legislação, e à avaliação de desempenho ambiental. O trabalho traz o estudo de caso da renovação de licença ambiental no Estado de São Paulo, onde por meio de dois Decretos Estaduais, promulgados em 2002, foi introduzida a figura da Licença de Operação Renovável. Esta, além de permitir a atualização de dados e o acompanhamento constante do atendimento às condicionantes estabelecidas, permite ao órgão ambiental conceder a ampliação do prazo da licença mediante comprovação da melhoria de desempenho ambiental. Neste contexto, sugere-se um caminho a ser seguido, de modo a estabelecer uma sistemática de negociação com os setores produtivos que leve ao estabelecimento de uma métrica de desempenho e de metas específicas, que uma vez aplicadas podem induzir à implantação da Produção mais Limpa, otimizando o desempenho e conseqüentemente conduzindo o Estado à melhoria de sua qualidade ambiental, particularmente num cenário de incorporação da agenda climática.

Palavras-Chave: licenciamento ambiental; licenciamento renovável; produção mais limpa; eco-eficiência; desempenho ambiental; mudanças climáticas.

1. Introdução

1.1.Contexto

Em uma realidade onde cada vez mais a humanidade se apropria da responsabilidade dos impactos de suas diversas atividades sobre o meio natural, os órgãos ambientais de todo o mundo tem se deparado com o desafio de assegurar a evolução das políticas públicas de modo a garantir sua efetividade na manutenção e melhoria da qualidade ambiental e a incorporar paulatinamente a agenda climática no processo de licenciamento ambiental. Este esforço não diz respeito apenas ao aumento da severidade ou rigidez de suas ações, mas principalmente às mudanças no modo como se estabelece o diálogo com os agentes privados, que cada vez mais assumem voluntariamente sua parcela de responsabilidade sobre os aspectos ambientais de suas atividades no que se convenciona chamar de “gestão ambiental empresarial”. Observando a evolução dos modelos desta gestão ambiental ao longo das últimas décadas, é possível verificar

o conflito que tem se instalado pela percepção de que, ainda que em muitos casos existam meios técnicos e científicos com a potencialidade de resolver diversos dos problemas ambientais, há uma enorme dificuldade da sociedade em se apropriar e tornar operativas estas inovações (GUATTARI, 2000). Esta deriva primordialmente da carência de uma “responsabilidade e gestão coletiva” que oriente as decisões, que se espera seja oriunda primordialmente “do lado das ciências duras”, incorporando à tradição tecnicista “novos olhares sobre a solução de problemas” (GUATTARI, 2000:23). É o que Leff (2001) chama de “administração científica do ambiente”, ou seja, a substituição de uma lógica estruturante meramente cartesiana de tomada de decisão por um processo de negociação, que considera a pluralidade de visões e valores que surgem a cada dia. Usando a conceituação destes autores, a questão central se apóia no incremento das “complexidades” advindas nesta evolução dos modelos de gestão. Deste modo, defende-se que não basta utilizar as atuais formas de cognição, baseadas na fragmentação do objeto de estudo para análise, mas sim se faz necessário uma abordagem integrada, que reorganize

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a informação em novas modalidades de conhecimento para solução dos conflitos estabelecidos, por meio de soluções menos coercitivas e mais “contratuais e negociadas entre pessoas que eventualmente não compartilham os mesmos valores” (VIEIRA, 2001: 10-11). Neste contexto, portanto, cabe destacar a premência de novos instrumentos que permitam ao Poder Público não apenas exigir novos padrões, mas sim negociar novos critérios mais positivos e dinâmicos.

1.2. Objetivo

O objetivo geral deste trabalho é evidenciar a necessidade da evolução de uma das principais ferramentas da Política Nacional de Meio Ambiente, o licenciamento ambiental, de modo a tornar este instrumento um indutor de práticas mais apropriadas de gestão.Mais especificamente, pretende-se apresentar alguns desafios da administração pública e discutir o potencial do licenciamento na indução de práticas ambientalmente mais adequadas, como a Produção mais Limpa (P+L), e propor que se incorpore a idéia de “melhoria de desempenho ambiental” como objetivo a ser buscado, principalmente com a entrada em vigor da Lei da Política Estadual sde Mudanças Climáticas. De modo a conduzir a questão, apresenta-se o encaminhamento que tem sido dado no Estado de São Paulo, que atualmente tem desenvolve procedimentos para a operacionalização de sua legislação de renovação das licenças ambientais.

1.3. Justificativa

Tendo em conta os atuais desafios de nossa sociedade frente aos problemas ambientais, fica patente a premência de avançar-se na melhoria de desempenho ambiental das atividades humanas. Especificamente em relação aos processos industriais, têm-se a busca do desenvolvimento de ações e sistemas voltados à redução de seus efeitos negativos sobre a qualidade ambiental, os chamados “sistemas de gestão ambientais”. Reconhece-se assim que, se por um lado a qualidade ambiental é negativamente afetada pelos aspectos ambientais gerados por estas atividades, por outro lado conforme avançamos no progresso técnico- científico, cada vez mais o equilíbrio natural é dependente de intervenções humanas positivas (GUATTARI, 2000). Neste sentido, Guattari (2000) defende que é imprescindível à sociedade desenvolver instrumentos e modelos econômicos formuladores de alternativas de desenvolvimento, para que haja uma reorientação das políticas públicas ambientais que considere a tensão existente entre os atores sociais na competição pelos bens e serviços ambientais cada vez mais escassos, tanto em quantidade como em qualidade.

Para encaminhar esta questão, no entanto, deve-se reconhecer que o estabelecimento desta categoria de mecanismo esteja a cargo do Estado, não só porque “somente o Estado, até o momento, está em posição de arbitrar em campos de valor não decorrente do lucro” (GUATTARI, 2000: 50), mas também por que conforme a Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que estabelece a Política Nacional de meio Ambiente, em seu Art. 6º, inc.VI, §1º, cabe ao Estado, “na esfera de suas competências e nas áreas de sua jurisdição, a elaboração normas supletivas e complementares e padrões relacionados com o meio ambiente” (BRASIL, 1981). Cabe ainda citar, conforme lembrado por Ussier et al. (2005), que de modo geral em todo o Brasil a legislação ambiental, embora extensa, ainda possui seu foco na abordagem corretiva, que induz à visão clássica do empresariado segundo a qual se entende a adequação legal das questões ambientais como um custo adicional às suas atividades. Dado o presente contexto, justifica-se o projeto pela premência de aprimorar os instrumentos existentes de política pública ambiental, sob pena de que estes percam sua efetividade no médio prazo. O Estado precisa tanto reconhecer como estimular as empresas a colaborarem na busca de soluções negociadas aos desafios ambientais do século XXI. Dentre estes instrumentos, evidentemente, o processo de licenciamento merece atenção especial, não apenas por sua ampla difusão e aplicação, mas também por ter este permanecido aquém das discussões sobre as ferramentas mais modernas de gestão empresarial, sendo relegado à condição de “conformidade legal”. O que se pretende neste trabalho é exatamente discutir o resgate do licenciamento enquanto ferramenta de gestão ambiental, em sentido amplo, apresentando ao final um estudo de caso, referente ao Estado de São Paulo, evidenciando o potencial que ainda se tem a desenvolver.

2. Fundamentação Teórica

2.1. O instrumento do licenciamento ambiental

De acordo com Van Acker (2008), o licenciamento ambiental é “o instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente que permite a ação preventiva do Poder Público no que tange a empreendimentos potencialmente poluidores ou degradadores, implementando assim o princípio da prevenção dos danos ambientais, preconizado pela Conferência de Estocolmo de 1972”. Segundo Ussier et al. (2005), o licenciamento é ainda o procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental analisa a viabilidade ambiental da instalação, ampliação e operação dos empreendimentos potencialmente poluidores, e estabelece condições para tanto, sendo assim um dos, senão o mais, importante instrumento das políticas públicas ambientais.

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Embora o surgimento deste instrumento tenha se dado na legislação de alguns Estados ainda na década de 1970, o licenciamento ambiental só foi disciplinado em âmbito federal quando do estabelecimento da Política Nacional de Meio Ambiente, com a promulgação da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Nesta, estabelece-se a necessidade de licenciamento para uma série de atividades e procura-se integrar as ações governamentais dentro de uma abordagem sistêmica, com objetivo de preservar, melhorar e recuperar a qualidade ambiental (USSIER et al., 2005). Adicionalmente, estabelecem-se outros instrumentos de grande importância, tais como os padrões de qualidade, padrões de emissão, áreas protegidas, entre outros. Muitos dos aspectos referentes à Política Nacional de Meio Ambiente só foram regulamentados posteriormente nas Resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), dentre as quais para esta discussão merece destaque a Resolução CONAMA nº 237, de 19 de dezembro de 1997. Esta resolução traz em caráter definitivo as definições do que passou a ser considerado o processo de licenciamento ambiental no país, com a consideração da localização como objeto da licença, além de relacionar em, seu anexo, atividades sujeitas a licenciamento ambiental, em complementação ao que já existia na Resolução CONAMA nº 1, de 23 de janeiro de 1988, que relaciona atividades sujeitas a licenciamento por meio de Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA).

2.2. Modelos de gestão ambiental: o “Comando e Controle” e a “Produção mais Limpa”

De acordo com Ribeiro (2007), assim como na grande parte dos países a legislação ambiental no Brasil tem sua ênfase no modelo conhecido como “Comando e Controle”. Esta forma de atuar se caracteriza fundamentalmente pela busca da conformidade legal, utilizando-se majoritariamente de estratégias corretivas à poluição. Da parte das empresas, a ação neste caso fundamenta-se em corrigir e adequar aos padrões legais às emissões, promovendo soluções tecnológicas que permitam o devido tratamento dos rejeitos gerados e a disposição final adequada dos resíduos destas operações. Por sua vez, cabe ao Estado neste modelo exercer a fiscalização com uso do “poder de polícia”, valendo-se da ação coercitiva junto aos empreendimentos licenciados para fazer cumprir a lei. Neste modelo de “Comando e Controle” o licenciamento assume o papel de instrumento para aplicação da lei, autorizando a instalação, ampliação ou operação de um empreendimento mediante exigências que serão posteriormente objeto da fiscalização. Mostra-se assim como um “instrumento prévio de controle ambiental para o exercício legal de atividades modificadoras do meio ambiente” (TORRES, 2004: 43). Observando este modelo, percebe-se que não obstante enormes ganhos tenham sido obtidos com sua aplicação

sistemática, estes não se mostram suficientes para assegurar a melhoria da qualidade ambiental atualmente, principalmente pelos seguintes fatores (RIBEIRO, 2007):2.2.1. os equipamentos de controle corretivo não eliminam os poluentes, apenas os transferem de um meio para outro, onde sua gestão seja facilitada. É o caso, por exemplo, de uma estação de tratamento de esgotos que remove a carga poluidora do efluente líquido para o lodo, um resíduo sólido que ainda necessita de correta destinação;2.2.2. as ações de controle corretivo representam custos, em geral elevados, tanto para aquisição e instalação dos equipamentos como para sua operação e gerenciamento dos resíduos de sua operação;2.2.3. há um significativo número de problemas ambientais que não são cobertos pela legislação, seja por algum hiato de tempo entre a percepção do problema e sua incorporação nos marcos legais, seja pelos instrumentos não serem suficientes. É o exemplo dos gases de efeito estufa, da escassez de recursos minerais, entre outros;2.2.4. em muitos casos o mero atendimento aos padrões legais não basta para garantir a qualidade ambiental, é preciso ir além. Exemplo desta situação é a situação do adensamento de fontes poluidoras ao longo de um rio nos qual, mesmo com todas as fontes poluidoras atendendo os padrões de emissão da lei, não se atendem os padrões de qualidade. A parte estas constatações cabe ainda destacar, conforme ressalta Ussier et el. (2005), que em muitos casos se verifica certo grau de acomodamento das empresas em um determinado patamar de desempenho que satisfaça a mera adequação legal, uma vez que tendo atingido este nível os objetivos do modelo se dão por satisfeitos. Além disso, o peso excessivo nestes instrumentos coercitivos pode agir de modo contrário ao esperado, levando alguns empreendedores menos comprometidos à ilegalidade, e deixando outros aquém das oportunidades de desenvolvimento tecnológico na busca de uma maior eficiência no uso dos recursos naturais. Os autores defendem que o foco demasiadamente voltado aos instrumentos de “Comando e Controle” de nossa política ambiental seja um dos principais motivadores da relutância em algumas empresas e setores produtivos incorporar melhorias em suas tecnologias ambientais. Do lado do Poder Público, é importante destacar que a eficácia deste modelo depende da capacidade do Estado em conduzir a fiscalização das atividades licenciadas com eficácia. Nesta questão, um importante trabalho realizado pela FUNDAP na década de 1990, envolvendo entrevistas em diversos órgãos estaduais ligados à fiscalização ambiental em São Paulo, evidencia as dificuldades do Estado em fazer cumprir à lei pela força da ação coercitiva, principalmente pela carência de condições para assegurar os quesitos tidos como fundamentais para viabilidade das estratégias coercitivas: a rapidez dos procedimentos, a severidade das sanções e a certeza de sua aplicação

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(GUIMARÃES; MACDOWELL; DEMAJOROVIC, 1996). Os autores destacam, dentro desta perspectiva, que diversos fatores colaboram para estas dificuldades, tais como a desarticulação das ações no Poder Público, a falta de recursos (humanos e financeiros), a inacessibilidade de dados confiáveis, entre outros, e indicam que este modelo não apresenta um “desempenho custo/ efetivo aceitável” (GUIMARÃES; MACDOWELL; DEMAJOROVIC, 1996: 44), e embora os autores não assumam um otimismo absoluto afirmam que um dos possíveis caminhos se encontra no envolvimento dos “agentes usuários”, pois “a inclusão de diretrizes visando a colaboração dos agentes econômicos tornou-se imprescindível” (GUIMARÃES; MACDOWELL; DEMAJOROVIC, 1996: 38), Ocorre na verdade que se percebe, não obstante a importância da abordagem corretiva, a premência da inserção de ferramentas adicionais baseadas em mecanismos de mercado, mais ágeis e dinâmicos, que complementem a ação do “Comando e Controle”. A evolução da gestão ambiental nas empresas, os avanços tecnológicos nos processos e produtos, e a necessidade de gerenciar democraticamente as diversas demandas sociais por recursos cada vez mais escassos demonstram a importância das políticas públicas não apenas garantirem a aplicação dos estáticos padrões estabelecidos em lei, mas sim de cada vez mais fomentarem e induzirem melhorias contínuas no desempenho ambiental das indústrias e incorporarem a nova agenda regional das mudanças climáticas. É neste contexto que adquire relevância um novo modelo, fundamentado na abordagem da Produção mais Limpa (P+L). De modo sucinto, pode-se caracterizar a P+L como uma estratégia da gestão ambiental, de caráter preventivo, segundo a qual se atua nos processos, produtos e procedimentos das organizações de modo a “reduzir seu consumo de matérias-primas, água e energia, minimizar a geração de resíduos sólidos, efluentes líquidos e emissões atmosféricas e até aumentar sua produtividade, obtendo não apenas a adequação ambiental mas também a redução de custos de produção, entre outros possíveis benefícios” (CETESB, 2008b). A P+L surgiu na década de 1980, na esteira do movimento da “qualidade total”, e assim como este trazia como grande inovação a ruptura com o paradigma anterior de que as melhorias apenas poderiam ser obtidas por sucessivas e crescentes ações corretivas. Inseria-se a visão de que os rejeitos, que posteriormente se torna a poluição, são resultados de ineficiências nos processos produtivos na conversão de recursos em bens e serviços (PORTER; VAN DER LINDE, 1995). Desta forma, abra-se a possibilidade de, em melhorando a eficiência de conversão destes, reduzir os rejeitos e conseqüentemente os impactos ambientais, concomitantemente à obtenção de retorno econômico (RIBEIRO, 2007). Em relação a sua inserção no processo de licenciamento, conforme apresenta Ussier et al. (2005), a P+L ainda

carece de reconhecimento. Ainda que alguns Estados adotem ferramentas como auditorias ambientais, auto-monitoramento e a aceitação de certificados de Sistemas de Gestão Ambiental implementados como parte de seus procedimentos de licenciamento, os autores defendem que “nenhum deles aproveitou a oportunidade de incorporar a melhoria contínua no processo de renovação das licenças e autorizações ambientais” (USSIER et al., 2005: 116). O grande diferencial da P+L, quando inserido em políticas públicas, é que ao contrário do “Comando e Controle” esta proporciona um estímulo constante para inovação e melhoria de desempenho ambiental das organizações, condição considerada imprescindível para a melhoria contínua da qualidade ambiental. O estabelecimento de metas e cronogramas negociados junto aos representantes dos setores produtivos corrobora ao próprio modelo de negócios em prática pelas empresas, baseado em valores como a competitividade, inovação e melhoria contínua, e deve facilitar a adoção e potencializar o efeito destas políticas públicas.

2.3. Avaliação de desempenho ambiental de indústrias

Embora existam diversas definições de “desempenho ambiental”, para os fins deste trabalho será adotada a visão das normas de gestão ambiental da International Organization for Standardization (ISO), segundo sua versão da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), como “o resultado da gestão de uma organização sobre seus aspectos ambientais” (ABNT, 2004: 2). Do mesmo modo, será considerada a “avaliação de desempenho ambiental” como: o “processo para facilitar as decisões gerenciais com relação ao desempenho ambiental de uma organização e que compreende a seleção de indicadores, a coleta e análise dos dados, a avaliação da informação em comparação com critérios de desempenho ambiental, os relatórios e informes, as análises críticas periódicas e as melhorias deste processo” (ABNT, 2004: 2). Esta definição se mostra especificamente útil ao propósito deste trabalho por inserir na questão o ponto de vista da seleção de indicadores, e sua comparação com critérios de desempenho (ao que chamaremos mais adiante de “valores de referência”), para a tomada de decisões nas organizações. A norma específica que trata deste tema, a ABNT NBR ISO 14.031:2004 (ABNT, 2004), estabelece as diretrizes da avaliação de desempenho ambiental (ADA), traz importantes definições e a contextualiza dentro de um ciclo de melhoria contínua da gestão ambiental. Adicionalmente, traz exemplos de situações e indicadores a serem usados pelas organizações, orientações de uso desta ferramenta. Dentre os aportes desta norma, talvez o mais significativo seja a divisão dos indicadores em duas categorias gerais: indicadores de desempenho ambiental (IDA) e indicadores de condição ambiental (ICA), estes usualmente conhecidos

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como de “qualidade ambiental”. Cita ainda que os IDA´s se dividem em dois tipos: indicadores de desempenho gerencial (IDG), que “fornecem informações sobre esforços gerenciais para influenciar o desempenho ambiental das operações” (ABNT, 2004:5); e indicadores de desempenho operacional (IDO), que “fornecem informações sobre o desempenho ambiental das operações” (ABNT, 2004:5), sendo estes últimos aqueles aos quais nos referiremos no presente trabalho. Embora a discussão levantada pela norma pareça simples e estruturada, na prática medir e avaliar o desempenho ambiental de organizações não é tarefa fácil, e neste campo sobram controvérsias. Para que uma métrica de desempenho seja eficaz, inicialmente há que se considerar “o que” se pretende medir, e esta primeira definição depende principalmente da motivação, ou do “por que medir”. Neste aspecto deve-se ter o cuidado de fazer o devido recorte no objeto deste estudo que se restringe ao desempenho ambiental, uma parte da métrica da sustentabilidade, tema que está muito além do escopo deste trabalho, muito embora se reconheça que “a melhoria de desempenho ambiental na indústria é uma importante estratégia de contribuição ao desenvolvimento sustentável” (Ussier et al., 2005: 19). Ainda que este recorte seja estabelecido, existe uma ampla gama de projetos, tanto acadêmicos como de origem nas próprias empresas, que buscam categorizar, classificar e propor sistemas de indicadores de desempenho ambiental. Em uma breve revisão, pode-se citar o trabalho pioneiro de Tyteca (1996), que traz um levantamento do que a época havia em termos de métrica de desempenho ambiental, por critérios tanto parametrizados como não parametrizados, normalizados ou não, muitos dos quais com base no grau de melhoria do uso de recursos em relação aos parâmetros legais. Já o artigo de Ilinitch; Soderstrom e Thomas (1998) faz uma abordagem não apenas dos indicadores, mas da ponderação utilizada pelos diversos autores, com foco explicitamente nas políticas públicas norte-americanas. Outra referência de destaque é o estudo de eco-eficiência desenvolvido pela Norwegian School of Management (THORESEN, 1999), que sintetiza os indicadores em três categorias: ciclo de vida do produto; tecnologias para processos selecionados e operações. Outra referência é o artigo de Olsthoorn et al. (2001), que traz uma revisão das principais metodologias de avaliação de desempenho ambiental desenvolvida no âmbito do projeto europeu MEPI- Measuring Environmental Performance in Industry, tais como a aplicação das metodologias do Global Reporting Initiative (GRI), World Resources Institute (WRI), a própria norma ISO, entre outros, buscando não apenas sua comparação mas sim uma estrutura conceitual comum para seleção dos indicadores segundo o uso pretendido. Mais especificamente sobre como a indústria vem medindo e usando estas medições de desempenho ambiental de suas operações, tem-se como referência um

projeto conduzido pelo Comitê de Métrica de Desempenho Ambiental Industrial, criado na National Academy of Engineering, vinculada à National Academy of Science dos Estados Unidos (FROSCH, 1999). Neste extenso trabalho os autores, provenientes de diversos segmentos produtivos e da academia, delineiam não apenas a motivação da métrica de desempenho ambiental nas indústrias, mas apresentam uma interessante revisão de métodos e estratégias, usando quatro segmentos econômicos como “estudo de caso”: indústria automotiva, indústria química, indústria de eletro-eletrônicos e indústria de papel e celulose, cada qual abrangendo diferentes etapas do ciclo de vida de seus produtos e utilizando para tanto diferentes modelos de medição e agregação dos resultados. Demonstram assim, entre diversos outros aspectos, a necessidade de se terem regras particulares que resguardem as particularidades das diversas tipologias industriais. Ao final, o estudo ainda traz a opinião do comitê sobre a experiência norte-americana no tema, as tendências e perspectivas, bem como um modelo genérico para agregação de indicadores e um conjunto de recomendações para evolução desta métrica rumo à sustentabilidade. Este breve levantamento de referências a respeito da avaliação de desempenho ambiental na indústria traz duas importantes conclusões. A primeira é a dificuldade, ou mesmo impossibilidade, da determinação de um conjunto de indicadores comuns a todos os setores produtivos. Como bem apresentado por Frosch (1999), cada setor possui suas particularidades, e os aspectos ambientais mais significativos variam de tal forma que deve haver uma flexibilidade de critérios que permita o estabelecimento de indicadores específicos para cada caso. Assim, conclui-se, embora as políticas públicas devam determinar de forma geral como o desempenho ambiental das organizações será considerado nos instrumentos de gestão pública do meio ambiente, entre estes o licenciamento, a escolha de como avaliar este desempenho deve ser realizada de modo distinto para as diferentes tipologias industriais – momento no qual a negociação já citada adquire grande importância. A segunda e não menos importante conclusão é que não apenas o desempenho ambiental das empresas precisa ter sua evolução estimulada, mas a própria métrica deste necessita de desenvolvimento. Percebe-se, pelo levantamento realizado, que cada setor empresarial, e muitas vezes cada empresa de um mesmo segmento, possui um grau de maturidade no estabelecimento e na medição de indicadores de desempenho, mesmo os operacionais, e muitas vezes a própria cultura de medição e levantamento de dados das operações realizadas varia significativamente. Desta constatação, e verificando a extensa gama de possibilidade e metodologias existentes, decidiu-se para os fins deste trabalho partir para uma concepção simplista de métrica, buscando pensar critérios enxutos que sejam facilmente postos em prática. Posteriormente, e conforme as empresas responderem a este estímulo, o desafio de medir e avaliar o desempenho ambiental poderá evoluir,

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podendo agregar novas variáveis e gradualmente compor sistemas mais completos e complexos, com uso de critérios de múltiplas variáveis, de modo a aproximar a tomada de decisão empresarial do contexto das complexidades que envolvem a questão ambiental.

3. Estudo de Caso: perspectivas para a licença ambiental renovável no ESP

3.1. Histórico

O surgimento dos órgãos estaduais de meio ambiente no Brasil, bem como de sua respectiva legislação pertinente, datam do final da década de 1960. Neste período destaca-se a percepção pela população dos efeitos deletérios da poluição ambiental, principalmente em relação à qualidade do ar, que passou a impor ao Estado a necessidade de regular a atividade produtiva, principalmente a de natureza industrial. Surgem então a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (CETESB), no Estado de São Paulo, e Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (FEEMA), no Rio de Janeiro (REI, 2006). No Estado de São Paulo a criação da CETESB data de 1968, quando por meio da Lei nº 10.107, de 24 de julho de 1968, que criou o Fundo Estadual de Saneamento Básico -FESB, em seu artigo 18, o Poder Executivo autoriza a unificação dos laboratórios da Secretaria dos Serviços e Obras Públicas, que viriam a constituir o Centro Tecnológico de Saneamento Básico- CETESB. Desde então, a instituição tem passado por diversas denominações e configurações, mas sem perder a ênfase no saneamento contida já em sua gênese, e atualmente atua em cinco linhas de ação: licenciamento de fontes de poluição; fiscalização de fontes de poluição; monitoramento e avaliação da qualidade ambiental; transferência de tecnologia; e suporte técnico e administrativo das demandas públicas em meio ambiente (CETESB, 2005a). O licenciamento ambiental no Estado de São Paulo por sua vez foi estabelecido por meio da Lei Estadual nº 997, de 31 de maio de 1976, regulamentada pelo Decreto Estadual nº 8.468, de 08 de setembro de 1976. Dentro desta perspectiva, assim como nos países mais industrializados, historicamente a CETESB adotou o modelo de “Comando e Controle”. Neste ínterim, conforme já apresentado, o licenciamento foi incorporado como ferramenta preventiva, tendo assumido no decorrer das últimas décadas um importante papel na política ambiental do Estado de São Paulo (REI, 2006). A aplicação sistemática da ferramenta do licenciamento ambiental pela CETESB no Estado de São Paulo trouxe inquestionáveis melhorias de qualidade ambiental ao longo destes anos, ainda que quase que exclusivamente com a abordagem de “Comando e Controle”, e cerca de 200.000 empreendimentos industriais distribuídos pelo Estado foram adequados à lei e obtiveram suas licenças ambientais

no período (REI, 2007). Há, no entanto, que se reconhecer as limitações deste modelo, que carece de mecanismos para acompanhar tanto a evolução da atividade industrial e seu potencial de inovação tecnológica, como as constantes mudanças nas necessidades de proteção da qualidade ambiental e da recente incorporação da questão climática.

3.2. Produção mais Limpa (P+L) na CETESB e limites do licenciamento ambiental

De modo a considerar as limitações deste modelo, é importante antes lembrar a missão institucional estabelecida para a CETESB, que se resume a “promover a melhoria e garantir a qualidade do Meio Ambiente no Estado de São Paulo, visando ao desenvolvimento social e econômico sustentável” (CETESB, 2008a:14). Para enfrentar tal desafio, de acordo com Rei (2007), desde a década de 1990 a CETESB têm buscado a promoção de ações preventivas voluntárias, como as iniciativas dentro do conceito de Produção mais Limpa (P+L). Dentre estas ações, pode-se destacar: a realização de Projetos Piloto em setores industriais; a elaboração e divulgação de documentos de orientação à incorporação da P+L pelas indústrias (Guias de P+L); a identificação e disseminação de Casos de Sucesso em P+L; a criação e condução da Secretaria Executiva da Mesa Redonda de Produção mais Limpa; o apoio técnico às políticas públicas estaduais de P+L; o estabelecimento de parcerias para transferência de tecnologia; a avaliação técnica de pedidos de financiamento em P+L ao PROCOP- Programa de Controle da Poluição; o desenvolvimento de projetos específicos de pesquisa em P+L; a oferta de cursos e treinamento; entre outras ações (CETESB, 2008b). Estas iniciativas em P+L conduzidas pela CETESB, embora de grande mérito, foram incorporadas à rotina dos agentes de licenciamento e fiscalização apenas pontualmente (REI, 2006). Não obstante alguns notáveis resultados, para que os efeitos desta estratégia sejam de fato significativos é imprescindível converter estas iniciativas em verdadeiro modelo de atuação, o que segundo o autor ainda não ocorreu, entre outros motivos, pela ausência de mecanismos legais de incentivo à sua inserção sistemática no licenciamento. Sucede que o processo de licenciamento, conforme estabelecido no Estado de São Paulo desde a década de 1970, não previa prazo de validade à Licença de Funcionamento (LF), ao contrário do praticado em outros Estados e em países mais experimentados nas questões ambientais (REI, 2006). Desta forma, conforme defende o autor, desobrigava-se o empreendedor à atualização constante das informações acerca dos processos industriais desenvolvidos e da comprovação ao atendimento das eventuais condicionantes ambientais exigidos pela CETESB. Adicionalmente, a falta de acompanhamento constante de muitos empreendimentos dificultava sobremaneira a promoção da melhoria contínua

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do desempenho ambiental das atividades licenciadas, e em muitos casos o órgão apenas era chamado a atuar quando “a desconformidade ambiental já era fato consumado e produzia efeitos nocivos à população e ao meio ambiente” (REI, 2006: 31). Percebia-se assim a necessidade de inovações nas políticas públicas ambientais, conforme já ressaltava o estudo das Nações Unidas para a América Latina, desenvolvido e apresentado por Grütter (1999). Neste, após um levantamento da situação das políticas ambientais no continente, se propõe o desenvolvimento de políticas públicas que influenciem a adoção da P+L. Sugestões são dadas no sentido de desenvolver e aplicar instrumentos de mercado na política ambiental, levando à substituição contínua de tecnologia obsoleta por P+L, além de adaptar as regulações de “Comando e Controle” para uma política de prevenção e de melhores práticas (P+L), em vez de fomentar soluções “fim-de-tubo”. Desta forma, para que se possa discutir a evolução do instrumento do licenciamento, entende-se que é imprescindível reconhecer que a melhoria de desempenho operacional é o primeiro passo para, de modo eficaz, garantir o custo benefício positivo, a preservação e melhoria da qualidade ambiental. Neste ínterim, assumem especial importância as estratégias preventivas, como a Produção mais Limpa (P+L), pelo seu potencial de buscar eficiência junto à adequação ambiental, congregando benefícios ambientais e econômicos.A percepção deste desafio já se configurava a algum tempo, quando um importante avanço foi dado com a promulgação do Decreto Estadual nº 47.397 e do Decreto Estadual nº 47.400, ambos de 04 de dezembro de 2002, que estabelecem modificações na legislação incorporando, entre outras inovações, o prazo de validade a as condições da renovação das licenças ambientais. Dentre estes dois, adquire especial relevância para a discussão deste artigo o Decreto Estadual nº 47.400/02, que regulamenta a Lei Estadual nº 9.509, de 20 de março de 1997, que estabelece a Política Estadual de Meio Ambiente, inclusive quanto aos tipos de licença emitidos e suas características.

3.3. Os Decretos Estaduais de renovação de licenças

A partir de 2002, com a promulgação dos dois Decretos citados anteriormente, a sistemática de licenciamento ambiental no Estado de São Paulo foi substancialmente modificada. De acordo com o Decreto nº 47.397/2002 (SÃO PAULO, 2002a), o licenciamento de atividades industriais passa a ser estruturado em três fases:

1. Licença Prévia (LP): corresponde ao planejamento preliminar do empreendimento, onde se analisa a viabilidade de implantação. Contém requisitos básicos a serem atendidos nas fases de localização, instalação e operação;2. Licença de Instalação (LI): na qual serão analisadas as especificidades do empreendimento e

estabelecidas exigências técnicas a serem cumpridas na fase da Licença de Operação. As exigências técnicas considerarão as informações a respeito da qualidade do meio e das fontes de poluição;3. Licença de Operação (LO): quando será verificado o cumprimento das exigências técnicas constantes da LI, incluindo, quando couber, o funcionamento dos equipamentos de controle ambiental exigidos.

De acordo com o Decreto Estadual nº47.397/02, a LO deve ser emitida com prazos de validade, que estão condicionados à complexidade do empreendimento. A cada tipologia industrial é conferido um fator de complexidade (W), que no presente varia de 1 a 5. Empreendimentos mais complexos têm fatores de complexidade mais altos e prazos de validade de LO mais curtos (REI, 2006). De acordo com o autor, esta determinação de prazo em si já consiste em grande avanço, por auferir ganhos significativos à gestão pública do meio ambiente. Estes ganhos oferecem ao Poder Público a oportunidade tanto para a atualização periódica das informações a respeito dos empreendimentos, facilitando a operacionalização de um inventário de fontes de poluição, como permitem a implementação de ações, por parte da CETESB, para estimular as empresas a rever procedimentos com vistas a melhorar seu desempenho ambiental, a partir do conceito de melhoria contínua, em consonância com os padrões de qualidade ambiental estabelecidos em dispositivos legais estaduais e federais. Por sua vez, o Decreto Estadual nº 47.400/02 traz uma particularidade de especial interesse, quando afirma em seu Art. 2º, inc.III, §4, que “Na renovação da licença de operação, o órgão competente do SEAQUA poderá, mediante decisão motivada, manter, ampliar ou diminuir o prazo de validade, mediante avaliação do desempenho ambiental do empreendimento ou atividade no período de vigência anterior” (SÃO PAULO, 2002b). Acredita-se que esta possibilidade de, mediante decisão motivada do órgão responsável conceder um benefício aos empreendimentos licenciados, tem o potencial de induzir a comportamentos mais sustentáveis na indústria, como a adoção de medidas de P+L que levem à redução da intensidade dos aspectos ambientais e, conseqüentemente na escala regional, à melhoria da qualidade ambiental. É exatamente neste aspecto que se encontra o desafio deste processo: utilizar a oportunidade que se apresenta, de continuamente rever as condicionantes da licença podendo oferecer o benefício da extensão de prazo, para induzir a melhoria contínua do desempenho ambiental das atividades industriais.

3.4. Perspectivas para operacionalização dos Decretos de renovação das licenças

O desafio que se apresenta é, portanto, operacionalizar estas inovações advindas dos novos Decretos, uma vez que esta exige “a aplicação de procedimentos fortemente vinculados à qualidade do meio, bem como o estabelecimento de metas ambientais e a adoção de

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ferramentas de acompanhamento, como os planos de gestão ambiental, que incorporem a participação do empreendedor”(REI, 2006: 33). Esta diferenciação significa uma grande inovação no modo de conduzir o processo de licenciamento, sobretudo por tratar-se de não criar uma “regra única”, mas sim um mecanismo que permita a particularização de uma “regra geral”, e que incorpore, caso a caso ao longo do tempo, variáveis dependentes de tipologia industrial , características geográficas locais e metas setoriais. Esta abordagem deverá reconhecer que os casos particulares constituem a regra, e não sua exceção, havendo a necessidade de considerar a pluralidade de valores e critérios, buscando não sua homogeneização, mas sim a integração destes num processo de “heterogênese”, segundo o conceito de Guattari (2000). Ou seja, significa criar um instrumento capaz de apreender e reconhecer as diferenças existentes, e assim respeitar o contexto onde se devem outorgar as licenças ambientais. Desta forma, propõe-se que o critério a ser desenvolvido deva levar em conta os seguintes aspectos:

particularidades inerentes às diversas tipologias • industriais, em relação a seu segmento ou porte;

localização do empreendimento e a qualidade ambiental • no entorno; e

grau de evolução já atingida no desempenho ambiental • das organizações;

Adicionalmente, acredita-se que um fator imprescindível ao sucesso desta empreitada seja a participação de representantes de outros grupos de interesse, principalmente do próprio setor produtivo e da academia, na construção dos critérios necessários, principalmente pelos seguintes fatores:

o reconhecimento de que o conhecimento acerca dos • processos produtivos que cada segmento utiliza esteja muito mais nas empresas do que no órgão público. Esta colocação é tão mais importante quanto mais se pretender avançar rumo às inovações tecnológicas, para o que é necessária constante atualização, e que em muitos casos se obtém apenas na experiência cotidiana das empresas;

a falta de estrutura e recursos humanos no órgão • ambiental para, em um prazo razoável, gerar critérios e particularizações para um número suficiente de segmentos produtivos sem a colaboração de atores externos;

a implementação dos critérios depende majoritariamente • da capacidade operacional por parte das empresas, e da viabilidade técnico-econômica das alternativas. Gerar critérios exclusivamente no seio do órgão público sem a participação dos demais envolvidos compromete a qualidade deste critério quanto às reais possibilidades de aplicação;

a aceitação de novas regras em um caso como este • depende muito do como ele é apresentado às empresas. Trazer uma regra “pronta” pode criar uma resistência inicial, independente da qualidade do critério, que dificulte posteriormente a apropriação de seus valores

e objetivos pelas empresas. Estas colocações trazem a necessidade de se estabelecer um fórum adequado para a negociação destes critérios. Para tanto, uma oportunidade que se vislumbra são as Câmaras Ambientais da CETESB, órgão colegiado de caráter consultivo à Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SMA), constituídos mediante a necessidade para cada setor produtivo, e que “têm como meta promover a melhoria da qualidade ambiental por meio da interação permanente entre o poder público e os setores produtivos e de infra-estrutura do Estado de São Paulo” (CETESB, 2007:02). A composição destas Câmaras inclui representantes do Sistema Estadual de Meio Ambiente (SEAQUA), assim como representantes das entidades vinculadas ao setor produtivo em questão, havendo a possibilidade de inserir a participação de outras entidades, tais como outros órgãos de governo, entidades de ensino e pesquisa, iniciativas da sociedade civil organizada, entre outros. Dentre as atribuições destas Câmaras, cabe destacar a proposição de inovações e aperfeiçoamento dos marcos legais, podendo inclusive constituir Grupos de Trabalho específicos para assuntos de interesse do setor (CETESB, 2007). No que tange aos procedimentos mais pragmáticos para encaminhamento desta questão, espera-se que o processo de renovação das licenças das empresas prioritárias seja conduzido de modo a gradualmente sistematizar o conhecimento acerca tanto das características das próprias fontes, quanto de sua importância nas alterações da qualidade do meio e sua contribuição ao cumprimento de metas setoriais de redução de gases de efeito estufa, que permitam ao Estado cumprir a meta de redução de 20% nas emissões até 2020, tendo por base o ano de 2005. Há e haverá, portanto, a determinação por parte da CETESB da aplicação de procedimentos vinculados à qualidade do meio nas sucessivas renovações das licenças, com o estabelecimento de metas ambientais e percentuais de redução de emissões e a adoção de ferramentas de acompanhamento, como o Plano de Melhoria Ambiental – PMA (CETESB, 2005b). Segundo a CETESB (2005b), o PMA consiste no instrumento de encaminhamento das questões relativas à própria situação do empreendimento, como parte integrante das exigências técnicas, sendo o empreendimento sujeito às sanções cabíveis no caso de não cumprimento do Plano proposto. Trata-se, portanto, do veículo próprio à apresentação das melhorias de desempenho pelo empreendedor, e igualmente da apresentação de sua métrica. Ainda de acordo com a CETESB (2005b), esta poderá solicitar a elaboração de um PMA mediante discussão com o empreendedor, e este deverá ser constituído da identificação objetiva do(s) problema(s), da(s) alternativa(s) para sua solução, justificativa(s) para a(s) alternativa(s) adotada(s) e cronograma de implementação. Cabe citar que o PMA deverá identificar claramente:

unidade/equipamento/etapa de processo objeto do •

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PMA;emissão/situação atuais e emissão/situação que deverão • ser atingidas;

procedimento para o atendimento da meta e respectivas • etapas de execução;

procedimento/método utilizados para, após a • implementação, determinar o atendimento das metas;

procedimento para, após atendimento das metas, manter • o atendimento contínuo;

forma de registro da evolução das ações e comunicação • à CETESB.

Deve-se ressaltar que dentre estas ações não há restrição ao uso de técnicas e tecnologias específicas, cabendo ao empreendedor sua seleção. Entretanto, no que diz respeito ao cumprimento de metas de redução de gases de efeito estufa, a partir do estabelecimento de metas setoriais da indústria paulista, é legítimo esperar que ações do governo sejam dirigidas no sentido de identificar tecnologias e técnicas mais adequadas. De fato se espera que “tal inclusão de instrumentos mais modernos de gestão ambiental no licenciamento permitirá, finalmente, que a CETESB passe a adotar como rotina boas práticas até então próprias de programas específicos, como o de Produção mais Limpa, e por outro lado induzirá as empresas a reverem seus procedimentos e avaliarem seus impactos com vistas a alcançarem uma maior eficiência ambiental” (REI, 2006: 33). Estimulam-se assim as ações sobre as causas dos problemas ambientais, atuando em produtos e processos produtivos, evitando ou minimizando a ocorrência de aspectos ambientais, ao invés de adequá-los aos padrões estabelecidos em lei após sua geração. A operacionalização de diversos dispositivos de renovação da LO, inclusive em relação ao PMA, ainda estão em elaboração pela CETESB, e pretende-se que os resultados da discussão presente neste artigo possam colaborar à introdução de critérios específicos para o referido Decreto 47.400/02. Neste ínterim, cabe finalmente discutir como, no contexto do licenciamento, se poderia desenvolver uma métrica de desempenho ambiental simplificada, e que possa gradualmente evoluir para formas mais complexas. Está claro, pelos argumentos antes apresentados, que não é possível obter um conjunto de indicadores (e principalmente de valores de referência e de metas destes) de implementação objetiva que atendam aos requisitos de todos os casos, sendo necessária a consideração das particularidades de cada setor produtivo e região. O que se propõe portanto é adotar um procedimento geral, que permita a particularização das regras para cada setor produtivo ou atividade econômica licenciável. Um exemplo genérico de como este processo poderia ocorrer seria dado pelos seguintes passos:

estabelecer uma base geral de possibilidade de 1. indicadores de desempenho ambiental operacional considerados como de interesse para a CETESB, como por exemplo: consumo de água, energia, emissão de

poluentes, etc - sempre específicos, ou seja, com base na produção da empresa (ex: m3/ t produzida, mg/ unidade de produto, etc);

discutir, para cada setor produtivo (por meio por 2. exemplo de sua respectiva Câmara Ambiental), quais os indicadores mais relevantes para aquela atividade, tendo em vista não apenas os aspectos ambientais de cada instalação isolada, mas sim levando em conta possíveis adensamentos industriais e o efeito conjunto destas empresas;

para cada um destes indicadores os representantes da 3. indústria poderiam levantar junto aos seus representados e propor à CETESB “valores de referência”, isto é, valores dos indicadores representativos da condição considerada como “ótima” em relação ao desempenho ambiental do setor. Estes valores poderiam ser fornecidos na forma de “faixas de valores”, e seriam discutidos juntamente com a CETESB e demais atores do processo, criando metas de melhoria;

em cada caso, para cada indicador, seria proposta a 4. gradação do desempenho em um índice, cujo valor variaria (de 0 a 1, por exemplo) em função do quão próximo a empresa está da meta (ou valor de referência) para aquele indicador;

para aplicar o critério às empresas, se faria uma 5. combinação de seus índices para os indicadores do setor, oferecendo a extensão proporcional de prazo da LO.

Esta proposta consiste apenas em um exemplo, bastante simplificado, de como se poderiam favorecer empresas com “melhor desempenho ambiental”, oferecendo assim um estímulo à melhoria deste. Muitas outras formas de avaliação de desempenho podem ser pensadas, e antes mesmo de propô-las aos setores produtivos, é importante que o próprio Poder Público discuta sua aplicabilidade e custo-benefício. Recomenda-se neste sentido que pesquisas aprofundem esta proposta, consultando os envolvidos e verificando o melhor critério a ser aplicado. Independente do exemplo dado, o essencial nesta discussão é promover o avanço dos debates, para que a indução às práticas de P+L se dê o quanto antes. Deve-se considerar que de início os critérios deverão ser simplificados, como já argumentado, para gradualmente adquirirem substância até que possam incorporar ferramentas modernas de tomada de decisão, como critérios multi-variáveis que levem em conta um maior número de quesitos.

4. Conclusão

Conforme apresentado ao longo deste trabalho, é possível perceber a importância de se avançar na chamada “administração científica do meio”, ou seja, evolui no modo como se realiza a aplicação dos conhecimentos técnico-

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científicos à solução dos problemas ambientais. Não basta apenas aplicar os padrões de emissão estabelecidos em lei, cumprir a lei não basta! É preciso ir além, e este avanço só acontecerá com ações conjuntas entre o Poder Público e a iniciativa privada, com forte apoio de universidades e instituições de pesquisa aptas a enfrentar este desafio.Dentre estas oportunidades que se apresentam, dá-se destaque à modernização do processo de licenciamento ambiental. Mais que um procedimento cartorial, este deve ser uma ferramenta dinâmica tanto de autorização da instalação como da operação de empreendimentos, acoplada a mecanismos capazes de realizar o acompanhamento do cumprimento das exigências realizadas, de modo a assegurar que estas conduzem à salvaguarda da qualidade ambiental.Neste contexto, espera-se que o processo de licenciamento possa acompanhar o rumo da própria gestão ambiental empresarial, evoluindo para a tomada de decisões motivadas por resultados da medição e avaliação de desempenho. O desafio que se apresenta, portanto, não é apenas do Poder Público, que tem a missão de propor novas regras, mas também das empresas, que tanto devem desenvolver uma “cultura da métrica de seu desempenho”, ainda pouco efetivada no país, como estar aptas a negociar as condicionantes de seu atendimento de forma aberta, numa agenda cada vez mais ampla.No caso do Estado de São Paulo, o marco legal necessário já está estabelecido, cabendo agora a importante tarefa de criar as regras para sua operacionalização. O advento da renovação do licenciamento no Estado trouxe, por sua vez, a possibilidade de alteração das condições de operação exigidas pelo poder público entre sucessivos licenciamentos de um mesmo empreendimento, com evidentes benefícios não apenas ao empreendedor, mas também à qualidade da prestação do serviço público.Este aperfeiçoamento, mais do que um mero avanço administrativo, trata-se de uma verdadeira mudança de paradigmas, pois permite vincular o processo de licenciamento ao impacto no meio ambiente e sua relação com questões globais, além de estimular, por mecanismos de mercado, as empresas a melhorar seu desempenho ambiental de modo contínuo. Além disso, mais do que estabelecer regras a serem cumpridas pelo empreendedor,

inaugura-se também a possibilidade, por parte do Estado, de negociar junto aos representantes do empresariado as condições de métrica e aplicação desta ferramenta.Enfim, tratam-se de novos critérios, novos procedimentos, de uma Nova Cetesb. Fala-se na essência de novas potencialidades do licenciamento ambiental, instrumento preventivo e central em uma política pública de meio ambiente. Porém há que cuidar do planejamento estratégico e da inteligência das ações, para que setor privado e setor público possam cada um fazer o seu trabalho de forma articulada. Muito há que se fazer, e como se pode perceber no exemplo do Estado de São Paulo um primeiro passo já foi dado. O sucesso, no entanto, dependerá agora da capacidade de instituições, tanto públicas como privadas, em desempenharem seu papel.

Abstract: The present paper aims to evidence the necessity of public policy improvements on the context of environmental management, and more specifically, turning environmental permitting to foster a preventive approach by industry. After a theoretical introduction on the permitting process, environmental management models adopted by industry and environmental performance evaluation, a case study is presented, regarding a new policy instrument called Renewable Operational Permitting, implemented on 2002 on São Paulo State. Through the promulgation of two state decrees, this new environmental police tool allows the environmental agency to extend the permitting vigor by means of an environmental performance improvement demonstration, besides other benefits like data actualization and continuous attending of permitting exigencies. A proposal framework for action is recommended, through the establishment of dialog with productive sectors, aiming to define environmental performance goals and metrics, which followed can led to cleaner production adoption – optimizing performance and improving State environmental quality, in particular in the regional agenda of the climate change.

Key-words: environmental permitting; renewable permitting; cleaner production; eco-efficiency; environmental performance; climate change.

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JOSÉ FERNANDO SIMÃOProfessor Doutor do Departamento de Direito Civil da Universidade de São Paulo – Largo de São Francisco. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado- FAAP e do Curso de Especialização da Escola Paulista de Direito. Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo, do IDCLB – Instituto de Direito Comparado Luso-brasileiro, do BRASILCON – Instituto Brasileiro de Política e Defesa do Consumidor e do Conselho Editorial do jornal Carta Forense. Membro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família e Diretor de Relações Institucionais do IBDFAM/SP. Professor de Cursos Preparatórios para Concurso Público e Exame de Ordem e de Especialização em várias Faculdades do Brasil. Advogado

em São Paulo. Autor de obras jurídicas.

Alterações da Lei de Locação – Primeiras Reflexões

Resumo. Este artigo tem como objetivo analisar as novas disposições do regime jurídico da locação por força da Lei 12.112, de 9 de dezembro de 20009, em especial: multa locatícia; alteração da situação familiar e fiança; a cessão na locação não residencial e o seu veto presidencial; prorrogação da locação e das garantias; a exigência de novo fiador ou substituição das garantias; e a purgação da mora e seus limites. Ademais se analisa a corrente situação de alguns temas conexos ao regime jurídico de locação à luz das recentes mudanças.

Palavras-chaves: locação; Lei 12.112 de 2009; multa; garantia; e mora.

I – Introdução

Em 9 de dezembro de 2009, depois de mais de dois meses da aprovação pelo Congresso, o Presidente Lula sancionou a lei 12.112 que alterou diversos dispositivos da lei de locação – 8.245/91. São mudanças importantes que merecem algumas reflexões preliminares. É de se salientar nossa preocupação com as mudanças implementadas. Isso porque o mercado locatício é bastante sensível a mudanças legais. Seu equilíbrio é algo delicado e a experiência decorrente da lei 6.649/79 mostra quão catastrófica pode ser a mudança de regramento do setor. Se a lei for demais complacente com o locatário, o locador preferirá deixar o imóvel vazio a alugá-lo; se demais benéfica ao locador, o locatário viverá intensa insegurança, gerando uma demanda infindável de ações e pleitos para que o Poder Judiciário dê um equilíbrio ao contrato. É cedo ainda para qualquer juízo de valores com relação às mudanças ocorridas em dezembro de 2009. Há uma nítida tendência de beneficiar o locador, reduzir a responsabilidade do fiador permitindo sua exoneração (já que a exoneração passa a ser direito potestativo indisponível), e uma maior rigidez com o locatário, mormente com a concessão de liminar em novas situações originalmente não previstas no art. 59 da lei. Tomando-se por base esta linha de raciocínio, dividiremos nossas reflexões de acordo com os artigos reformados de lei, e, ainda, mencionaremos alguns dos dispositivos vetados e suas razões.

II – Multa locatícia – art. 4º.

Redação original Redação novaArt. 4º Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. O locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, segundo a proporção prevista no art. 924 do Código Civil e, na sua falta, a que for judicialmente estipulada.

“Art. 4o Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. O locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, proporcionalmente ao período de cumprimento do contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada.

a) Redação original. O artigo em questão cuida da devolução pelo locatário do imóvel antes do término do prazo avençado pelas partes. É hipótese clara de descumprimento do contrato pelo locatário. Diante do inadimplemento, o art. 4º cuidará da sanção, ou seja, a multa que o locatário pagará ao locador e sua eventual redução em razão do cumprimento parcial do contrato. O Código Civil de 1916 previa, em seu art. 9241 que, se a obrigação tivesse sido cumprida em parte, poderia o juiz reduzir a cláusula penal. Já o Código Civil de 2003, em seu art. 4132, determina que o juiz deve reduzir a cláusula penal. Assim, o que era faculdade sob a égide do Código Civil de

1Art. 924.Quando se cumprir em parte a obrigação, poderá o juiz reduzir proporcionalmente a pena estipulada para o caso de mora, ou de inadimplemento.2Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.

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1916, agora é dever. Ademais, a redução que era feita por proporção (simples cálculo aritmético) passou a se dar por equidade, ou seja, de acordo com o caso concreto. O conceito de equidade, tomando-se por base as mais diversas fontes doutrinárias, é o de justiça no caso concreto, com a possibilidade de abrandamento dos rigores da lei, de acordo com as peculiaridades deste caso. O juiz deve suavizar o rigor legislativo, levando em conta o caso concreto que está sub judice. Abandona-se o modelo da segurança jurídica (proporção) e se adota o modelo de cláusula geral que permite ao magistrado fazer Justiça.Grande debate surgiu se a mudança do Código Civil que abole a redução por proporção e adota a redução por equidade teria afetado a lei especial. Isso porque a Lei 8.245/91 expressamente mencionava o art. 924 do Código Civil que, em razão da revogação, tem como correspondente o art. 413. Ora, se a redução por proporção some do sistema, nada mais lógico que a adoção da equidade também para os contratos de locação do imóvel urbano. Na IV Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, o Enunciado 179 foi revogado pelo Enunciado 357, como o nosso apoio, exatamente para afirmar que a regra do art. 413 se aplica à lei especial:“357 – Art. 413. O art. 413 do Código Civil é o que complementa o art. 4o da Lei no 8.245/91. Revogado o Enunciado 179 da III Jornada.” Assim, de acordo com a redação do art. 4º, vigente até dezembro de 2009, entendíamos que a redução da multa se daria de acordo com a equidade, e não com a proporção.

b) Redação nova. A questão polêmica se resolve com a edição da Lei 12.112/09 pela qual a redução será realizada “proporcionalmente ao período de cumprimento do contrato”. Com a lei especial posterior contraria a lei geral anterior, em matéria locatícia não se admite a redução por equidade, e sim por proporção. Quem se beneficia da alteração do art. 4º da Lei 8.245/91? Resposta: a segurança jurídica. Adota-se um cálculo matemático pelo qual quanto mais tempo o locatário permanece no imóvel locado, menor a multa a ser paga ao locador. Quem perde com a mudança? A Justiça no caso concreto. O juiz não pode avaliar a conduta deste locatário no período em que permaneceu no imóvel para fins de redução da multa. Assim, iguala-se o bom ao mau inquilino, já que a equidade permitiria que a redução se desse de acordo com a peculiaridade do caso concreto. A partir da reforma de dezembro de 2009, dois inquilinos que cumpriram a metade do prazo contratado, pagarão metade da multa avençada. Se um deles cuidou do imóvel, foi zeloso, sempre pagou o aluguel em dia e está deixando o imóvel por problemas de saúde; se o outro foi péssimo inquilino, atrasava o pagamento do aluguel, causou

tumulto ao prédio, descumpria o regimento interno, fazia barulho desmedidamente e, por fim, saiu sem qualquer motivo, a multa aplicada a ambos será idêntica! Entendemos que a aplicação da equidade era mais trabalhosa, pois exigiria do magistrado um outro tipo de cognição do processo. A prova era diferente e todo o conjunto probatório deveria ser analisado de maneira mais profunda. A proporção é matemática e, portanto, de simples aplicação. Não melhora as relações contratuais o retorno ao sistema de proporção que na verdade revela arcaísmo do sistema fechado abandonado pelo atual Código Civil. Curiosamente, as razões indicadas pela Senadora Ideli Salvati demonstram que o legislador nada entende de leis e não consegue perceber o alcance do diploma por ele aprovado. A Senadora assim justifica a mudança: “a modificação do caput do art. 4º tem por objetivo eliminar a remissão contida no texto da lei a dispositivo do Código Civil revogado em 2002” Em favor da mudança, podemos afirmar que a redução por proporção é algo tradicional no mercado locatício que, mesmo com a mudança do Código Civil de 2002, manteve na prática a proporção como forma de redução da multa.

III – Alteração da situação familiar e fiança – art. 12.

Redação original Redação novaArt. 12. Em casos de separação de fato, separação judicial, divórcio ou dissolução da sociedade concubinária, a locação prosseguirá automaticamente com o cônjuge ou companheiro que permanecer no imóvel. Parágrafo único. Nas hipóteses previstas neste artigo, a sub - rogação será comunicada por escrito ao locador, o qual terá o direito de exigir, no prazo de trinta dias, a substituição do fiador ou o oferecimento de qualquer das garantias previstas nesta lei.

Art. 12. Em casos de separação de fato, separação judicial, divórcio ou dissolução da união estável, a locação residencial prosseguirá automaticamente com o cônjuge ou companheiro que permanecer no imóvel.§ 1o Nas hipóteses previstas neste artigo e no art. 11, a sub-rogação será comunicada por escrito ao locador e ao fiador, se esta for a modalidade de garantia locatícia.

§ 2o O fiador poderá exonerar-se das suas responsabilidades no prazo de 30 (trinta) dias contado do recebimento da comunicação oferecida pelo sub-rogado, ficando responsável pelos efeitos da fiança durante 120 (cento e vinte) dias após a notificação ao locador.

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a) Redação original. O artigo 12 cuida de mudanças na situação familiar e seus efeitos quanto ao contrato de locação, mais especificamente no tocante à fiança. O divórcio é forma de extinção do casamento que põe fim não só a sociedade conjugal, como também ao vínculo. Em razão do divórcio, os antigos cônjuges podem se casar.Já a separação judicial apenas põe fim à sociedade conjugal, ou seja, aos deveres decorrentes do casamento (art. 1566 do CC), bem como ao regime de bens. Após a separação judicial, não há mais relação patrimonial entre os cônjuges, que, permanecem impedidos de se casar por não terem rompido o vínculo conjugal que ainda os une. A união estável é aquela entre o homem e a mulher que tem convivência pública, contínua e duradoura com o objetivo de constituir família (art. 1723 do CC). São as pessoas que podem se casar, mas optam por não fazê-lo. No tocante aos separados judicialmente ou de fato, apesar de seu impedimento para o casamento, a lei permite que convivam em união estável (art. 1723, parágrafo primeiro do CC). O artigo 12 deixa claro que a locação de imóvel urbano não é contrato personalíssimo, ou seja, que se extinguiria com mudanças na composição do núcleo familiar. Ainda que o marido ou companheiro figurem no contrato escrito como locatários, o fim do casamento e da união estável causa uma automática mudança no pólo passivo pela qual a esposa ou companheira assumem tal posição. É a chamada sub-rogação pessoal legal (independe de vontade das partes). É de se frisar, que, ainda que os dois figurem no contrato escrito como locatários, com a mudança da situação familiar descrita no art. 12 da lei especial, o remanescente passará a figurar como único locatário. Pela redação original do art. 12, em ocorrendo os fatos que acarretam a sub-rogação, esta “será comunicada por escrito ao locador, o qual terá o direito de exigir, no prazo de trinta dias, a substituição do fiador ou o oferecimento de qualquer das garantias previstas nesta lei” A comunicação é obrigação imposta ao sub-rogado, já que houve alteração da figura do inquilino. A não-comunicação ao locador pode ser considerada infração contratual e ensejar a denúncia cheia (Lei 8.245/91, art. 9o, II). De qualquer forma, se não for feita a comunicação, dois são os entendimentos esposados pela jurisprudência. De acordo com o primeiro entendimento, conclui-se que a não-comunicação ao locador acarreta a manutenção do vínculo locatício original em todos os seus termos. Então, o cônjuge ou companheiro que estiverem saindo do imóvel locado teriam também um ônus, qual seja, o de informar o novo proprietário, sob pena de responderem pelo aluguel e demais encargos, mesmo após o fim do casamento ou da união estável.

Entretanto, o segundo entendimento conclui que a sub-rogação decorrente de separação, divórcio ou dissolução de união estável é automática e que, portanto, a inexistência de comunicação apenas permitiria o despejo, mas não geraria qualquer obrigação ao antigo locatário, a partir da separação ou dissolução. Em nossa opinião, a primeira corrente deve prevalecer. Se ocorrer uma mudança fática que altera drasticamente a situação do contrato de locação, com a substituição da figura do inquilino (devedor da obrigação), cabe ao sub-rogado o dever de informar. O dever surge em decorrência do princípio da boa-fé objetiva. É um dos deveres laterais ou anexos que, assim como os deveres principais, se inadimplido, gera o dever de indenizar.

b) Redação nova. O artigo 12 continua a determinar o caráter não personalíssimo da locação, mesmo após a reforma, e mantém o sistema de sub-rogação automática que independe da vontade das partes. O caput reformado merece um elogio e uma crítica. O elogio. Diz respeito à substituição do termo “sociedade concubinária”, que a lei 8.245/91 utilizava, pelo termo “união estável”. Sociedade concubinária é expressão inadequada, pois concubinato, de acordo com a dicção do art. 1.727 do Código Civil, é a união não eventual entre as pessoas impedidas de se casar. Em suma: é concubinato a relação de um homem casado que tenha uma amante. Trata-se de relação repudiada pelo direito e sem efeito em termos de direito de família. A união estável, diferentemente, é um dos modelos de família e conta com proteção constitucional (art. 226, par. 3º da CF). Em nosso livro de locação já escrevíamos que o legislador utilizou expressão inadequada e infeliz e, portanto, melhor a redação dada pela lei 12.112/09. A crítica: desde 2007, com a edição da Lei 11.441/07, sabe-se que o sistema de separação de direito no Brasil é dúplice. Pode se adotar a via judicial ou extrajudicial. Assim, os cônjuges que não tenham filhos menores ou incapazes podem se separar pela via administrativa sem a necessidade de propositura de demanda judicial. A reforma da lei de locação revela descuido do legislador que sequer consegue adaptar o projeto à legislação que o antecedeu. Note-se que se a lei foi aprovada em 2007, nada mais natural que em 2009, o projeto de mudança da Lei 8.245/91 já mencionasse em seu texto a modalidade de separação extrajudicial. É clara a insuficiência da reforma ao deixar de mencionar a separação extrajudicial. A solução, como sempre, parte da doutrina e onde se lê separação judicial deve-se ler separação de direito, seja ela judicial ou extrajudicial. Não há que como se defender tese pela qual o art. 12 não se aplica às hipóteses de separação extrajudicial, pois a teleologia da norma aponta que sua aplicação decorre de qualquer mudança fática ou jurídica da conjugalidade do locatário.

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O parágrafo primeiro cuida do dever que tem o sub-rogado de prestar informação escrita da sub-rogação. Esta será comunicada ao locador e ao fiador. Importante frisar que a redação original (parágrafo único do art. 12) continha duas diferenças com relação ao atual parágrafo primeiro do art. 12. A primeira é que não exigia do sub-rogado fazer a comunicação escrita ao locador no caso de morte, apesar de expressamente se determinar a sub-rogação (“art. 11. Morrendo o locatário, ficarão sub - rogados nos seus direitos e obrigações”). Assim, a reforma traz uma ampliação do dever de efetuar a comunicação escrita. Ainda, na redação original bastava a comunicação ao locador pelo sub-rogado, mas, com a reforma, a comunicação será dupla: ao locador e também ao fiador. Como conseqüência, o fiador, de acordo com o parágrafo segundo acrescido ao art. 12 pela reforma, poderá exonerar-se das suas responsabilidades no prazo de 30 (trinta) dias contado do recebimento da comunicação oferecida pelo sub-rogado, ficando responsável pelos efeitos da fiança durante 120 (cento e vinte) dias após a notificação ao locador. A exoneração é forma de resilição unilateral, que é a extinção do contrato decorrente da vontade de uma das partes. É possível nos contratos por prazo indeterminado, naqueles baseados na confiança ou nos casos admitidos por lei. Note-se que o fiador, do recebimento da comunicação, tem 30 dias para enviar a comunicação de exoneração ao locador, a qual só produz efeitos após 120 dias contados do recebimento pelo último. Trata-se de declaração receptícia de vontades e, assim, é imprescindível o recebimento pelo locador para que o prazo se inicie. Curioso notar que a lei especial se afasta da regra geral prevista no Código Civil, pela qual o prazo de responsabilidade do fiador é de apenas 60 dias (art. 835 do CC). O prazo de 120 dias é de suspensão dos efeitos da resilição que existe e é válida, mas ineficaz, de acordo com a teoria dos planos do negócio jurídico de Pontes de Miranda. E se não houver notificação ao fiador por parte do cônjuge ou companheiro (art. 12) ou do viúvo, viúva ou herdeiros(art. 11)? Qual a sanção pelo descumprimento do dever de notificar? Duas são as possíveis soluções. Uma primeira, é que a ausência de comunicação ao locador não produz qualquer efeito, já que a fiança se estabelece entre fiador e locador. Assim, não havendo a comunicação apenas o fiador poderá, posteriormente, pleitear perdas e danos daquele que deveria fazê-lo. Note-se que seguindo este entendimento, o § 1º do art. 12 da lei 8.245/91 traria um dever (“a sub-rogação será comunicada”) cujo descumprimento não geraria qualquer efeito com relação ao contrato de fiança que permaneceria hígido.

Uma segunda posição leva em conta o caráter benéfico da fiança, ou seja, o fiador nada ganha e o contrato só traz vantagens ao locador. Ainda, não há dúvidas que quando a fiança é prestada, certamente o fiador leva em conta a capacidade econômica do afiançado, já que isto é relevante quando do momento do regresso. Assim, a sub-rogação prevista no art. 12 pode ser muito prejudicial ao fiador, que simplesmente garantia dívida de certa pessoa e passa a garantir de pessoa diversa. E o pior: sem estar sequer sabendo que isto ocorreu! Partindo-se dessas premissa, acreditamos que a ausência de notificação ao fiador constitui verdadeiro impedimento à possibilidade de exercer seu direito potestativo de exoneração. Assim, a ausência de notificação ao fiador significa sua automática exoneração que não pode responder por dívida que expressamente não garantiu. Poder-se-ia argumentar que a conclusão não seria lógica tendo em vista que o contrato de fiança é firmado entre o fiador e o locador (o que é verdade, pois o devedor afiançado não faz parte da relação contratual), e, portanto, a mudança do locatário não afeta a fiança. Entendemos que este argumento não prospera, pois entre o contrato de locação (celebrado entre locador e locatário) e o contrato de fiança (avençado entre locador e fiador), há uma nítida coligação contratual em razão da unicidade de operações econômicas envolvidas na contratação. Assim, a sub-rogação gera tão drástica mudança no contrato de locação que esta acaba por irradiar efeitos e atingir, ou contaminar, o contrato de fiança. Há uma mudança extremamente relevante da base fática do contrato de locação que atinge a eficácia da fiança. Na prática, a sub-rogação pode gerar a obrigação ao fiador de responder por dívida de uma pessoa que ele nem conhece (falta a fidúcia), ou pior , que ele conhece, mas jamais afiançaria (por motivos pessoais ou mesmo ausência de patrimônio suficiente para o regresso). Por todos estes motivos, entendemos que a ausência de notificação significa a exoneração automática do fiador. Por outro lado, nada impede que o próprio locador, ciente da sub-rogação, notifique o fiador nos termos do art. 12, §2º, ou, ainda, se a exoneração automática se configurar, terá o locador a faculdade de exigir do locatário nova garantia sob pena de despejo por denúncia cheia (art. 40, parágrafo único da lei 8.245/91).

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IV – Alteração do art. 13 e o veto presidencial.

Redação original Redação do projeto de Lei 140/09

Art. 13. A cessão da locação, a sublocação e o empréstimo do imóvel, total ou p a r c i a l m e n t e , dependem do c o n s e n t i m e n t o prévio e escrito do locador.

Art. 13. A cessão da locação, a sublocação e o empréstimo do imóvel, total ou parcialmente, dependem do consentimento prévio e escrito do locador.

§ 3o Nas locações não residenciais, equipara-se à cessão da locação qualquer negócio jurídico que importe na transferência do controle societário do locatário pessoa jurídica.

a) Caráter pessoal da locação. A locação de imóvel urbano, por suas peculiaridades e características, é um contrato com forte ideia de confiança e pessoalidade. Em razão de tal fato a lei veda expressamente:

A possibilidade de cessão de locação, ou seja, de 1. substituição do locatário original por um terceiro;A sublocação. A sublocação é um contrato derivado, 2. pois sua existência decorre exclusivamente de outro contrato (que é o principal), sendo que uma das partes participa tanto do contrato principal quanto do derivado. Importante notar que a sublocação poderá ter por objeto certa parte do imóvel locado ou a totalidade dele.O empréstimo. Na realidade, a lei veda o comodato 3. do imóvel locado a terceiros estranhos à relação locatícia.

Note-se que todas as proibições previstas no caput do art. 13 cuidam de situações em que terceiros, que não o locatário, acabariam assumindo o contrato (cessão) ou simplesmente ficariam com sua posse direta (sublocação e comodato).A razão de ser da proibição da prática de tais atos sem a expressa anuência escrita do locador parece clara: o risco de terceiros danificarem o imóvel é muito grande, o que retira o direito de permitir que terceiros tenham a posse direta do bem locado.Exatamente para impedir a cessão da posse é que o art. 13 proíbe tanto a cessão onerosa (sublocação) ou gratuita (comodato) do bem locado.

b) Razões do veto.O projeto de lei 140 de 2009 pretendia acrescentar um

parágrafo único ao artigo 13 da lei especial no tocante às locações não residenciais. De acordo com a redação aprovada pelo Congresso Nacional, equivaleria à cessão da locação “qualquer negócio jurídico que importe na

transferência do controle societário do locatário pessoa jurídica”.

As razões do veto são claras e absolutamente corretas: “Não é possível confundir a estruturação societária da pessoa jurídica, que, independentemente da formação do quadro de sócios, tem personalidade jurídica própria, com o contrato de locação havido entre o locador e a própria pessoa jurídica. Ou seja, em outras palavras, o contrato de locação firmado entre locador e pessoa jurídica não guarda qualquer relação de dependência com a estruturação societária de pessoa jurídica locatária, considerando, essencialmente, a distinção da personalidade jurídica de cada um (sócios e a própria pessoa jurídica), conferida pelo ordenamento jurídico pátrio para cada um dos entes. Além do mais, cabe registrar que exigências assim impediriam ou dificultariam sobremaneira operações societárias de transferência de cotas sociais ou ações de sociedades empresárias, tal como, exemplificativamente, a incorporação, fusão ou aquisição da participação majoritária de grandes empresas.”

É evidente que a pessoa jurídica tem personalidade distinta da de sues membros. Aliás, a criação da pessoa jurídica ocorre exatamente para permitir a separação de direitos e deveres das pessoas dos sócios ou associados daqueles da sociedade ou associação.

O projeto aprovado pelo Congresso negava evolução histórica secular e acabava por confundir os conceitos de pessoa física e jurídica. Curioso, também, mencionar que as razões apresentadas pela senadora Ideli Salvati para justificar o dispositivo vetado não têm qualquer lógica: “a alteração prevista com a inclusão do § 3º ao art. 13 tem a finalidade de reforçar o entendimento, já tradicional no direito brasileiro, de que inclusive a cessão da locação de caráter não-residencial somente é lícita quando autorizada pelo locador” (grifou-se).

Aliás, se o texto não tivesse sido corretamente vetado, o locador teria verdadeiro poder de ingerência sobre a pessoa jurídica locatária, sem qualquer lógica ou plausibilidade. Imaginemos que uma grande empresa resolve abrir seu capital e vender ações em bolsa. O locador do imóvel da sede poderia se opor à mudança de controle? Verdadeiro absurdo. Pior: com a mudança poderia despejar a empresa locatária por quebra de dever legal? Também uma idiossincrasia.

Apenas para demonstrar o absurdo do projeto aprovado, pensemos na cessão do controle acionário de uma grande empresa brasileira (Grupo Pão de Açúcar) a uma empresa francesa (Grupo Casino). Em todos os contrato de locação de todos prédios locados pela rede brasileira de supermercados, haveria a necessidade de concordância dos locadores.

E se a concordância não houvesse, estaríamos diante de descumprimento de dever legal a ensejar o despejo por denúncia cheia (art. 9º, II, da Lei 8.245/91).

Em conclusão, perfeito o veto e sua razão, pois, se o texto de lei aprovado pelo Congresso fosse mantido, haveria

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a negação da histórica separação entre a personalidade da pessoa jurídica e a de seus membros.

V – Prorrogação da locação e das garantias – art. 39.

Redação original Redação nova.Art. 39. Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel.

Art. 39 Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel, ainda que prorrogada a locação por prazo indeterminado, por força desta Lei.

a) Redação original.Em sua redação original, a lei 8.245/91 apenas

mencionava que as garantias locatícias se estendiam até a efetiva devolução do imóvel, salvo disposição contratual em contrário.

A simples leitura da lei parecia deixar claro que, antes da devolução da posse do imóvel ao locador, qualquer garantia contratual permaneceria hígida e inalterada.

Contudo, importante debate foi travado no âmbito doutrinário e jurisprudencial no tocante à fiança e sua extinção quando da prorrogação automática do contrato de locação por prazo indeterminado. É a chamada prorrogação legal.

Em quais situações prevê a lei prorrogação por prazo indeterminado do contrato de locação?

Nas locações residenciais, ajustadas por escrito 1. e por prazo igual ou superior a trinta meses, a resolução do contrato ocorrerá findo o prazo estipulado, independentemente de notificação ou aviso. Entretanto, ocorrendo tal fato, se o locatário continuar na posse do imóvel alugado por mais de trinta dias sem oposição do locador, presumir - se - á prorrogada a locação por prazo indeterminado, mantidas as demais cláusulas e condições do contrato (art. 46).Nas locações residenciais, quando ajustada 2. verbalmente3 ou por escrito e como prazo inferior a trinta meses, findo o prazo estabelecido, a locação prorroga - se automaticamente, por prazo indeterminado (art. 47).Nas locações por temporada (art. 48), findo o prazo 3. ajustado, se o locatário permanecer no imóvel sem oposição do locador por mais de trinta dias, presumir - se - á prorrogada a locação por tempo indeterminado (art. 50).Nas locações não residenciais, o contrato por prazo 4.

determinado cessa, de pleno direito, findo o prazo estipulado, independentemente de notificação ou aviso. Porém, findo o prazo estipulado, se o locatário permanecer no imóvel por mais de trinta dias sem oposição do locador, presumir-se-á prorrogada a locação nas condições ajustadas, mas sem prazo determinado (art. 56).

Nestas quatro hipóteses, em que é a lei e não a vontade dos contratantes que determina o prosseguimento do contrato de locação, surgia uma grande dúvida: a prorrogação do contrato de locação implica também a do contrato de fiança? O contrato principal celebrado entre o locador e o locatário se prorroga automaticamente. O contrato acessório de fiança sofreria o mesmo efeito?

Com relação à prorrogação automática da fiança a jurisprudência brasileira passou por dois momentos diversos.

Tradicionalmente, com base na Súmula 214 do Superior Tribunal de Justiça, datada de outubro de 1998, que assim dispõe: “o fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu”, aquele Tribunal entendia que a responsabilidade do fiador terminava com o fim do prazo contratual, sendo irrelevante o fato de o contrato conter cláusula determinando que a responsabilidade se estenderia até a efetiva desocupação do imóvel. Nesse sentido são os julgados dos anos de 2006 e 2007.

A Súmula e a liberação automática do fiador quando da prorrogação por data indeterminada partem da premissa pela qual a fiança é um contrato benéfico que não comporta interpretação extensiva (art. 819 do CC).

Portanto, com a ausência de manifestação expressa do fiador, a fiança estava extinta a partir da prorrogação automática, liberando o fiador de qualquer dever.

A partir do ano de 2007 e 2008, nota-se uma mudança na compreensão do instituo que se dá a partir de uma decisão do então Ministro do STJ, hoje afastado, Paulo Medina pela qual:

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. LOCAÇÃO. FIANÇA. PRORROGAÇÃO. CLÁUSULA DE GARANTIA ATÉ A EFETIVA ENTREGA DAS CHAVES. Continuam os fiadores responsáveis pelos débitos locatícios posteriores à prorrogação legal do contrato se anuíram expressamente a essa possibilidade e não se exoneraram nas formas dos artigos 1.500 do CC/16 ou 835 do CC/02, a depender da época que firmaram a avença. Embargos de divergência a que se dá provimento. (EREsp 566633/CE, Rel. Ministro PAULO MEDINA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/11/2006, DJe 12/03/2008)”

3De início, cabe uma ponderação. Na locação verbal, seja ela residencial ou não, impossível a existência de fiança, pois o Código Civil expressamente determina que a fiança dar-se-á por escrito (art. 819 do CC). Sendo verbal a locação, esta é válida, pois a locação tem forma livre, nos termos do art. 107 do CC pelo qual a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir. Contudo se a fiança for verbal, será nula em razão do descumprimento da forma prescrita em lei (art. 104, III do CC).

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.40

A partir desta decisão, sistematicamente o STJ passou a decidir:

DIREITO CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. FIANÇA. PRORROGAÇÃO LEGAL POR PRAZO INDETERMINADO. EXONERAÇÃO AUTOMÁTICA. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO IMPROVIDO. 1. Existindo cláusula expressa no contrato de aluguel de que a responsabilidade do fiador perdurará até a efetiva entrega das chaves do imóvel objeto da locação, não há falar em desobrigação automática deste, ainda que o contrato tenha se prorrogado por prazo indeterminado. Precedentes da Terceira Seção do STJ. 2. Agravo regimental improvido.(AgRg nos EAg 711.699/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/03/2009, DJe 06/04/2009)

Em suma, neste segundo momento, o STJ firmou posição pela qual em havendo cláusula contratual expressa pela qual o fiador responde até a efetiva entrega das chaves, com a prorrogação da locação, ocorre também a prorrogação da fiança, que permanece produzindo todos os seus efeitos.A partir dessa nova orientação do Tribunal, para a exoneração do fiador necessária seria uma notificação ao locador manifestando sua vontade de extinguir a fiança. Assim, a extinção dependeria de um ato do fiador comunicado ao locador. A exoneração é, na realidade, modalidade de resilição unilateral do contrato de fiança.Contudo, deve-se ressaltar que a situação do fiador se agrava quando no contrato houve renúncia ao direito de se exonerar. Cláusula de estilo presente nos contratos de locação adquiridos em papelaria é aquela em que o fiador renuncia ao direito de exoneração. Então surge uma segunda questão: se a fiança automaticamente se prorroga com a locação (de acordo com a nova orientação do STJ) e se o fiador renunciou ao direito de exoneração qual será o limite de sua responsabilidade? Verificaremos a questão ao comentar o artigo 40 da lei após a reforma ocorrida. b) Redação nova.

A redação nova do art. 39 de acordo coma lei 12.112/09 espanca qualquer dúvida. A prorrogação automática da locação gera prorrogação automática da fiança e de todas as garantias locatícias quais sejam: seguro-fiança, caução e cessão fiduciária de quotas de fundos de investimento.

O fiador passa a responder pelo período de prorrogação e, se quiser da fiança se exonerar, deverá notificar o locador, ficando obrigado pelo período de 120 dias contados do recebimento da notificação pelo locador (art. 40, X da Lei 8.245/91).

Da mesma forma, no tocante à cessão de quotas de fundo de investimentos. Uma breve explicação sobre tal

modalidade de garantia ajuda a esclarecer a questão. As quotas dos fundos, por determinação de lei, podem ser dadas em garantia nos contratos de locação (Lei 11.196/05, art. 88), num regime de cessão fiduciária.

Isso quer dizer que as Instituições autorizadas pela Comissão de Valores Imobiliários (CVM) criam os fundos de investimento dos quais as pessoas podem adquirir quotas. Essas quotas, dotadas de valor econômico, podem ser dadas em garantia ao locador, que, com a cessão, torna-se seu proprietário resolúvel, ou seja, recebe a propriedade por certo período de tempo.

A questão de grande interesse é a seguinte: quando cessa a propriedade fiduciária do locador quanto às quotas? Sim, porque se a propriedade é resolúvel, necessário será estabelecer quando ocorre a resolução retornando as quotas à propriedade do cedente.

Num primeiro momento, essa garantia criada pela Lei 11.196/05 terá o prazo de duração estipulado no contrato de locação em que se criou a garantia. Assim, o contrato de locação mencionará a existência e as condições da cessão, inclusive quanto a sua vigência, que poderá ser por prazo determinado ou indeterminado (art. 88, § 4o).

Quanto às quotas, dispõe a Lei 11.196/05 que, na hipótese de prorrogação automática do contrato de locação, o cedente permanecerá responsável por todos os seus efeitos, ainda que não tenha anuído no aditivo contratual, podendo, no entanto, exonerar-se da garantia, a qualquer tempo, mediante notificação ao locador, ao locatário e à administradora do fundo, com antecedência mínima de 30 dias (art. 88, § 5o). Assim, é clara a disposição legal no tocante à manutenção da garantia automaticamente, sendo que, com a prorrogação, admite-se a resilição do garantidor, por meio de simples notificação ao locador (credor), locatário (devedor), bem como à Instituição que administra o fundo.

Percebe-se que com relação a esta modalidade de garantia, a prorrogação já era automática por força da lei que o criou, sendo que a lei 12.112/09 apenas reforça algo que já ocorria.

Há uma reflexão importante a ser feita. A garantia por meio de quotas contém o mesmo inconveniente da fiança quando da prorrogação por prazo indeterminado, já que admite a exoneração do garantidor que só responderá por mais 30 dias, após a notificação realizada. Por se tratar de direito potestativo do garantidor, este poderá ser exercido a qualquer tempo e independentemente da concordância do locador.

Note-se que o fiador, por força da reforma da lei de locação, responde por mais 120 dias (art. 40, X), já o titular das quotas, responde por apenas 30 dias (art. 88, § 5o da Lei 11.196/05), prazo bastante exíguo e que poderia ter sido alterado com a reforma de 2009, mas não o foi.

De qualquer forma, tanto na fiança quanto na cessão de quotas, uma importante questão deve ser respondida: pode

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o fiador ou o proprietário das quotas validamente renunciar ao direito de exoneração? Trata-se de direito dispositivo e, portanto, renunciável?O artigo 40 da lei, com sua nova redação, em nossa opinião, resolve a questão da natureza dispositiva ou não do direito de exoneração, conforme analisaremos a seguir.

VI – A exigência de novo fiador ou substituição das garantias – art. 40.

Redação original Redação nova.Art. 40. O locador poderá exigir novo fiador ou a substituição da modalidade de garantia, nos seguintes casos: I - morte do fiador; II - ausência, interdição, falência ou insolvência do fiador, declaradas judicialmente; III - alienação ou gravação de todos os bens imóveis do fiador ou sua mudança de residência sem comunicação ao locador; IV - exoneração do fiador; V - prorrogação da locação por prazo indeterminado, sendo a fiança ajustada por prazo certo; VI - desaparecimento dos bens móveis; VII - desapropriação ou alienação do imóvel. VIII - exoneração de garantia constituída por quotas de fundo de investimento; IX - liquidação ou encerramento do fundo de investimento de que trata o inciso IV do art. 37 desta Lei.

Art. 40. O locador poderá exigir novo fiador ou a substituição da modalidade de garantia, nos seguintes casos: I - morte do fiador; II - ausência, interdição, recuperação judicial, falência ou insolvência do fiador, declaradas judicialmente; III - alienação ou gravação de todos os bens imóveis do fiador ou sua mudança de residência sem comunicação ao locador; IV - exoneração do fiador; V - prorrogação da locação por prazo indeterminado, sendo a fiança ajustada por prazo certo; VI - desaparecimento dos bens móveis; VII - desapropriação ou alienação do imóvel. VIII - exoneração de garantia constituída por quotas de fundo de investimento; IX - liquidação ou encerramento do fundo de investimento de que trata o inciso IV do art. 37 desta Lei.X - prorrogação da locação por prazo indeterminado uma vez notificado o locador pelo fiador de sua intenção de desoneração, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante 120 (cento e vinte) dias após a notificação ao locador.Parágrafo único. O locador poderá notificar o locatário para apresentar nova garantia locatícia no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de desfazimento da locação.

a) Redação original.O art. 40 cuida da extinção e substituição de garantias

e demonstra a preocupação do legislador e a importância do tema.

A garantia é tida como essencial para o locador, já que se trata de situação em que, caso o patrimônio do locador não se revele suficiente para arcar com as despesas decorrentes do contrato, a garantia se prestará a tal função.

Em breve nota, podemos afirmar que é princípio antigo do direito civil que o patrimônio do devedor responde por suas dívidas. O Código Civil de 2002 consagra expressamente a regra em seu artigo 391 no tocante à responsabilidade contratual e no artigo 942 com relação à responsabilidade extracontratual.

Superada a fase arcaica do direito romano em que o devedor sofria fisicamente os ônus do descumprimento da obrigação, o direito moderno ocidental afasta a prisão civil por dívidas e só a admite em situações especialíssimas de acordo com a previsão constitucional (prisão do devedor de alimentos).

Assim, diante de tal quadro, o credor, por receio de não receber o que lhe é devido, se vale das garantias previstas em lei como verdadeiro reforço, exigindo que o devedor garanta a dívida não só com o seu próprio patrimônio, mas fornecendo patrimônio de terceiros.

Aquele que garante a obrigação, em regra, não é devedor, mas pode ser compelido a pagar dívida pela qual apenas responde. É a diferença clássica entre dívida (Schuld) e responsabilidade (Haftung). Tal asserção se comprova pelo fato de o fiador, por exemplo, pagar ao credor e cobrar regressivamente a totalidade do que pagou do devedor.

Caso haja alteração ou extinção da garantia, o Código Civil no art. 333, III, prevê o vencimento antecipado da dívida, se o devedor intimado não reforçar tal garantia.

A lei de locação arrola situações em que a garantia se extinguiu (morte ou exoneração do fiador, desaparecimento do bem móvel ou desapropriação do imóvel caucionado) ou em que sofre mudança significativa que compromete sua efetividade perante o credor (ausência, interdição, falência ou insolvência do fiador, declaradas judicialmente ou alienação ou gravação de todos os bens imóveis do fiador ou sua mudança de residência sem comunicação ao locador).

Como estas situações acarretam mudanças significativas, o locador pode exigir nova garantia ou nova modalidade, sempre com o intuito de restabelecer a extensão da garantia originária. Nem mais, nem menos.

A regra do artigo 40 da lei 8.245/91 apenas permite a manutenção da garantia nas exatas bases em que foi contratada.

b) Redação nova.São três as alterações sofridas pelo artigo 40: o inciso

II recebe o acréscimo da recuperação judicial do fiador, o artigo ganha um inciso X que cuida da notificação que

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.42

exonera o fiador de suas responsabilidades, e, por fim, o parágrafo único que cuida do dever do locador em notificar o locatário para apresentar a nova garantia.

i) Recuperação judicialNão mencionava a lei especial, a situação do fiador

de recuperação judicial, pelo simples motivo pelo qual o instituto só foi adotado no sistema brasileiro com a nova lei de falência (11.101/05).

Os artigos 47 e 48 da lei de falência explicitam o instituto: “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

Sobre as condições mínimas necessárias para o pedido de recuperação, determina a lei que “poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente: não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes; não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial; não ter, há menos de 8 (oito) anos, obtido concessão de recuperação judicial com base no plano especial e não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio controlador, pessoa condenada por qualquer dos crimes previstos nesta Lei”.

Evidente está que o fiador que estiver em recuperação judicial estará diante de grave dificuldade financeira e se utilizará do instituto para tentar escapar de eventual falência. Se o próprio dispositivo fala em superação da situação de crise econômico financeira, a situação patrimonial do fiador se revela fragilizada, razão pela qual o credor poderá exigir o reforço de garantia.

ii) Exoneração do fiador – norma protetiva e de ordem pública.

Como vimos nos comentários ao art. 39, a partir da reforma, dúvida não há que todas as garantias sofrem automaticamente prorrogação quando o contrato se prorroga por prazo indeterminado por força de lei (arts. 46, 47, 50 e 56).

O artigo 40, X, deixa claro e afasta, em nossa opinião, qualquer dúvida que se a fiança se prorroga automaticamente, nada impede que o fiador notifique o locador para fins de se exonerar da fiança, respondendo apenas pelo prazo de 120 dias contados de seu recebimento pelo locador.

Nesse sentido, o direito de exoneração não está no campo do direito dispositivo, já que expressamente previsto em lei como direito potestativo do fiador. Note-se a locução da lei: “uma vez notificado o locador pelo fiador”. Dúvida não há que qualquer renúncia ao direito de exoneração fica definitivamente sem efeito por força da nova redação do

art. 40, X. A renúncia a tal direito é ineficaz.Dois velhos debates se encerram com a nova lei. O

primeiro é que realmente a prorrogação legal do contrato gera a automática prorrogação da garantia. O segundo é que o fiador, em querendo, pode notificar o credor e responder por mais 120 dias pela fiança e seus efeitos.

É de se perguntar se o fiador deve esperar a prorrogação automática para a notificação ou simplesmente poderá fazê-la antes do término do contrato. A resposta é que o fiador poderá se valer da notificação mesmo na vigência do contrato de locação. Nesta situação, responderá, sem qualquer dúvida, até o fim da vigência da locação.

Assim vejamos. A locação residencial finda em 31/12/2010. O fiador pode, em julho de 2010, por exemplo, 5 meses antes do término, notificar o locador e, supondo que este receba a notificação em setembro de 2010, quando chegar o dia 31/12, o fiador não terá qualquer obrigação.

Entenda-se o porquê desta afirmação. O fiador não é obrigado a prestar garantia por prazo superior ao contrato, mesmo porque a fiança é contrato benéfico que se interpreta restritivamente (art. 819 do CC). Se o contrato se encerra em dezembro de 2010, nada impede que a notificação ocorra antes do término (existência e validade perfeitas), mas só produza efeitos em tal data (eficácia suspensa).

O locador notificado, sabendo que o fiador estará exonerado quando do fim da locação, simplesmente pode evitar sua prorrogação do contrato por prazo indeterminado propondo a ação de despejo por denúncia vazia (sem necessidade de qualquer explicação ou motivo, bastando verifica o locador sua conveniência), como se admite nas hipóteses dos arts. 46, 50 e 56 da lei 8.245/91.

Ainda, se não puder efetuar o despejo por denúncia vazia, em razão das limitações do art. 47, por exemplo, poderá o locador exigir o reforço de garantia conforme lhe faculta o parágrafo único do art. 40.

iii) O reforço de garantia

Assim como o Código Civil prevê que o credor deva exigir reforço de garantia, e só com a negativa do devedor ocorrerá o vencimento antecipado da dívida (art. 333, III do CC); a lei especial prevê que “o locador poderá notificar o locatário para apresentar nova garantia locatícia no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de desfazimento da locação”.

A lei especial, neste ponto, esclarece que caberá ao locador (credor que contava com a garantia agora inexistente ou reduzida) a opção de exigir o seu reforço ou substituição.

O credor não pode ser obrigado a exigir nova garantia, pois se trata de questão patrimonial que só interessa ao locador. Se este tem a opção de não exigir garantias quando da contratação, de renunciar à garantia existente, tem opção também de não exigir reforço ou substituição.

Questão interessante é saber qual será o prazo para que o locador exija a nova garantia.

A lei de locação não menciona (art. 40, X) e o Código

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Civil também não o faz (art. 333, III). Temos então que seguir a lógica da razoabilidade. Se o credor locador se quedar inerte por muito tempo, aplicando-se a noção de boa-fé objetiva especialmente a figura da supressio, não poderá exigir tal reforço ou substituição, pois sua conduta omissiva gerou no locatário uma expectativa juridicamente protegida.

Prazo razoável é conceito indeterminado que dependerá da análise do caso concreto. Em um sistema aberto como o do Código Civil de 2002, a segurança jurídica é sacrificada, mas a Justiça privilegiada.

Agora, o locatário, após notificado da necessidade de reforço ou substituição, tem um prazo de 30 dias para apresentar a nova garantia, “sob pena de desfazimento da locação”.

A garantia deve ser equivalente à substituída. Isso quer dizer que a fiança pode ser substituída por caução ou seguro-fiança. Não se exige a mesma modalidade de garantia, mas deve-se observar a manutenção do poder de satisfação do locador, caso o locatário se revele inadimplente.

Comprova esta linha de raciocínio, o próprio texto legal reformado, pelo qual é possível a concessão de liminar na ação de despejo, se ao término do prazo notificatório

previsto no parágrafo único do art. 40, o locatário não apresentar de nova garantia apta a manter a segurança inaugural do contrato (art. 59, inciso VII). Não se fala em garantia de mesma modalidade. Apenas cuida de garantia apta a manter a segurança inaugural do contrato.

Desfazimento não é termo técnico. Pelo contrário, é de uma pobreza jurídica evidente. Trata-se de situação de descumprimento pelo locatário de um dever legal, qual seja, reforço ou troca de garantia. Assim sendo, o termo técnico é a resolução do contrato por culpa do locatário que descumpre seu dever legal.

A ausência de substituição ou reforço permite o despejo do locatário por meio de denúncia cheia ou motivada. A lei de locação não menciona expressamente, mas ainda que a locação seja residencial, ajustada verbalmente ou por escrito e como prazo inferior a trinta meses, nos termos do art. 47, poderá o locador denunciá-la em decorrência da perda ou redução de garantia não reforçada pelo locatário.

Isso porque como a substituição passa a ser um dever legal, basta ao locador invocar o artigo 9º da lei especial que permite a denuncia por infração legal (cf. art. 9 º, II e 47, I da lei 8.245/91).

Redação original

Art. 62. Nas ações de despejo fundadas na falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação, observar - se - á o seguinte:

I - o pedido de rescisão da locação poderá ser cumulado com o de cobrança dos aluguéis e acessórios da locação, devendo ser apresentado, com a inicial, cálculo discriminado do valor do débito;

II - o locatário poderá evitar a rescisão da locação requerendo, no prazo da contestação, autorização para o pagamento do débito atualizado, independentemente de cálculo e mediante depósito judicial, incluídos:

a) os aluguéis e acessórios da locação que vencerem até a sua efetivação; b) as multas ou penalidades contratuais, quando exigíveis; c) os juros de mora; d) as custas e os honorários do advogado do locador, fixados em dez por cento sobre o montante devido, se do contrato não constar disposição diversa;

III - autorizada a emenda da mora e efetuado o depósito judicial até quinze dias após a intimação do deferimento, se o locador alegar que a oferta não é integral, justificando a diferença, o locatário poderá complementar o depósito no prazo de dez dias, contados da ciência dessa manifestação;

Redação nova.

Art. 62. Nas ações de despejo fundadas na falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação, de aluguel provisório, de diferenças de aluguéis, ou somente de quaisquer dos acessórios da locação, observar-se-á o seguinte:

I- o pedido de rescisão da locação poderá ser cumulado com o pedido de cobrança dos aluguéis e acessórios da locação; nesta hipótese, citar-se-á o locatário para responder ao pedido de rescisão e o locatário e os fiadores para responderem ao pedido de cobrança, devendo ser apresentado, com a inicial, cálculo discriminado do valor do débito;

II- o locatário e o fiador poderão evitar a rescisão da locação efetuando, no prazo de 15 (quinze) dias, contado da citação, o pagamento do débito atualizado, independentemente de cálculo e mediante depósito judicial, incluídos:a) os aluguéis e acessórios da locação que vencerem até a sua efetivação; b) as multas ou penalidades contratuais, quando exigíveis; c) os juros de mora; d) as custas e os honorários do advogado do locador, fixados em dez por cento sobre o montante devido, se do contrato não constar disposição diversa;

III- efetuada a purga da mora, se o locador alegar que a oferta não é integral, justificando a diferença, o locatário poderá complementar o depósito no prazo de 10 (dez) dias, contado da intimação, que poderá ser dirigida ao

VII – Purgação da mora e seus limites – art. 62, parágrafo único.

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a) Redação original.Trata-se de regra referente à purgação ou emenda da

mora (emendatio morae) pelo locatário.A emenda ou purgação da mora tem por finalidade

reconduzir a obrigação à normalidade, afastando, assim, os efeitos da mora. Esta simplesmente deixa de produzir seus normais efeitos. Duas análises são necessárias.

A primeira diz respeito aos efeitos da mora. Determina o Código Civil que, estando o devedor em mora, este responde pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado (art. 395 do CC). Diante do descumprimento do contrato pelo devedor, pode o credor, ainda, de acordo com o art. 475 do Código Civil, pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.

Resolução significa a denúncia cheia do contrato em razão da culpa do locatário. O descumprimento mais freqüente é o não pagamento do aluguel e de seus encargos. O locador pode, então, propor a ação de despejo por falta de pagamento.

Não há qualquer previsão legal que só admita a ação quando houver um atraso de três meses de aluguel. Basta o atraso de um mês para que seja possível a propositura da ação de despejo.

A segunda análise a ser feita é do instituto da purgação da mora. O devedor purga a mora oferecendo a prestação mais a importância dos prejuízos decorrentes do dia da oferta (art. 401, I), ou seja, além do valor do aluguel pagará a correção monetária do período do atraso, além dos juros de mora fixados em lei ou contrato, mais a multa contratual prevista para a hipótese.

Deve-se frisar que a purgação da mora é instituto de direito material que pode ser exercido extrajudicialmente ou judicialmente. O locatário que atrasa o pagamento do aluguel, e posteriormente o deposita na conta do locador com todos os acessórios (juros, multa e correção) realiza a purgação da mora.

Com a purgação da mora, a obrigação retoma seu rumo e não há mais a possibilidade de despejo do locatário. Evidentemente, com a ação proposta, a emenda da mora deve incluir os honorários de advogado, além das custas judiciais e demais despesas processuais (vide redação do art. 62, II, d).

Pela redação original da lei 8.245/91, a purgação não poderia ocorrer se o locatário já houvesse utilizado essa faculdade por duas vezes nos doze meses imediatamente anteriores à propositura da ação.

Quando a lei menciona duas vezes, no período de 12 meses anteriores à propositura da demanda, isso quer dizer que a terceira emenda em tal período seria considerada verdadeiro abuso de direito (art. 187 do CC). Assim, com a impossibilidade de uma terceira emenda, a ação de despejo será julgada procedente e o despejo efetivado.

Importante frisar que a lei não exige duas emendas judiciais da mora. Basta que duas emendas tenham ocorrido, ou seja, que o locatário tenha pago aluguéis com atraso e já acrescidos de multa, juros e correção. Trata-se de emenda extrajudicial da mora.

É de se indagar até qual momento pode o locatário purgar a mora. Normalmente, diz-se que o devedor, ao invés de contestar pode efetivar a purgação. Assim, em sua redação original a lei 8.245/91 previa que o locatário poderia evitar a rescisão da locação requerendo, no prazo da contestação, autorização para o pagamento do débito atualizado, independentemente de cálculo e mediante depósito judicial.

IV - não sendo complementado o depósito, pedido de rescisão prosseguirá pela diferença, podendo o locador levantar a quantia depositada;

V - os aluguéis que forem vencendo até a sentença deverão ser depositados à disposição do juízo, nos respectivos vencimentos, podendo o locador levantá - los desde que incontroversos;

VI - havendo cumulação dos pedidos de rescisão da locação e cobrança dos aluguéis, a execução desta pode ter início antes da desocupação do imóvel, caso ambos tenham sido acolhidosParágrafo único. Não se admitirá a emenda da mora se o locatário já houver utilizado essa faculdade por duas vezes nos doze meses imediatamente anteriores à propositura da ação.

locatário ou diretamente ao patrono deste, por carta ou publicação no órgão oficial, a requerimento do locador;

IV – não sendo integralmente complementado o depósito, o pedido de rescisão prosseguirá pela diferença, podendo o locador levantar a quantia depositada;

V - os aluguéis que forem vencendo até a sentença deverão ser depositados à disposição do juízo, nos respectivos vencimentos, podendo o locador levantá - los desde que incontroversos;

VI - havendo cumulação dos pedidos de rescisão da locação e cobrança dos aluguéis, a execução desta pode ter início antes da desocupação do imóvel, caso ambos tenham sido acolhidosParágrafo único. Não se admitirá a emenda da mora se o locatário já houver utilizado essa faculdade nos 24 (vinte e quatro) meses imediatamente anteriores à propositura da ação.

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A solução era curiosa, pois o locatário não contestava nem purgava a mora, mas requeria que o juiz autorizasse o pagamento da dívida e seus acréscimos.

b) Redação nova.Três foram as mudanças do art. 62 que diretamente

afetaram o direito material: não se pede mais ao juiz a purgação da mora, mas sim se realiza o depósito no prazo de 15 dias contados da citação (art. 62, II); o fiador foi incluído como parte legítima a purgar a mora (art. 62, II) e a purgação não será admitida se o locatário já houver utilizado essa faculdade nos 24 (vinte e quatro) meses imediatamente anteriores à propositura da ação.

i) Depósito judicial das quantias devidasExplicou a Senadora Ideli Salvati que as novas regras

previstas no art. 62 visam a coibir, “com maior eficiência, o abuso do direito de purgar a mora, o qual tem sido observado ultimamente no mercado em geral”

Realmente, não se justifica pedir para purgar a mora. Se o locatário quer reconduzir a locação à normalidade, que faça desde logo o depósito integral do aluguel ou acessórios devidos, com os acréscimos legais.

O locador pode adotar uma de três posições. A primeira é aceitar o depósito como integral, hipótese em que a ação será extinta por perda de objeto e a purgação considerada perfeita e produzindo todos os seus efeitos.

A segunda é informar ao juízo que a purga já ocorreu nos últimos 24 meses e que esta se revela abusiva. Neste caso, sendo a demanda de despejo cumulada com cobrança, o dinheiro depositado não deve ser levantado pelo devedor, mas mantido nos autos para garantir futura execução. Provando o locador a impossibilidade de purgar a mora, no tocante ao despejo a ação deve ser julgada procedente.

Uma terceira e última posição será a de debater apenas a integralidade do depósito. Se o fizer, a lei ainda concede um prazo de 10 dias, contados da intimação (pessoal do locatário ou do patrono, inclusive por publicação na imprensa oficial), para que o locatário complemente o valor depositado, sob pena de procedência da ação de despejo (incisos III e IV do art. 62).

ii) FiadorDe maneira interessante, prevê a lei que não só o

locatário, mas também o fiador poderá evitar a rescisão, purgando judicialmente a mora.

O fiador na qualidade de garantidor é terceiro interessado, pois pode ser compelido a pagar a dívida do locatário. Como terceiro interessado, o fiador já está autorizado pelo Código Civil a pagar a dívida, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor. (art. 304).

Nada impede, inclusive, que o fiador proponha ação de consignação em pagamento se o locador injustamente se recusar a receber os alugues e acessórios devidos.

Nessa seara, a inclusão da possibilidade de o fiador purgar a mora se revela desnecessária, pelas próprias regras de direito material. Ademais, ainda que a ação de despejo cumulada com cobrança tenha sido proposta apenas em face do locatário, o fiador, ciente da demanda e na qualidade de terceiro interessado, poderá purgar a mora, ainda que o faça em ação de consignação em pagamento.

Deve-se esclarecer que o locador continua com a faculdade de propor a ação de despejo, ainda que cumulada com cobrança, apenas em face do locatário. Não há qualquer dever legal de propor a ação também em face de fiador garantidor. Repetimos: a garantia está no campo do direito dispositivo e o locador pode simplesmente não querer cobrar o fiador.

Note-se, ainda que se o fiador, por força de contrato for devedor solidário (já que por lei é apenas devedor subsidiário – art. 827 do Código Civil), nada impede que o locador proponha a ação de cobrança apenas em face do locatário afiançado e posteriormente proponha nova demanda em face apenas do fiador, conforme admite o art. 275, parágrafo único, do Código Civil.

iii) Mudança da noção de abuso da purgaçãoCuriosa foi a drástica redução na possibilidade de

purgação da mora verificada em razão da nova redação do parágrafo único do art. 62.

Anteriormente, tinha o devedor o direito de purgar a mora duas vezes considerando-se os 12 meses anteriores à propositura da ação de despejo. Atualmente, só tem a possibilidade de purgar uma única vez no prazo de 24 meses anteriores à propositura da demanda.

O prazo duplicou e o número de vezes de purgação caiu pela metade!

Entendemos que a lei foi demais radical em sua mudança, pois limitou em muito o direito à purgação. Um único atraso, com a conseqüente purgação, em 2 anos de contrato basta para que o locatário ou fiador estejam impedidos de purgar a mora.

Essa redução não se justifica e se revela excessiva. Um bom locatário pode, em um mês de férias, esquecer de pagar o aluguel e purgar a mora no mês seguinte (aluguel, mais encargos, juros, multa, etc). Se em menos 24 meses deixar de pagar o aluguel novamente e a ação de despejo for proposta, perderá o direito de purgar a mora.

Lembrando a frase de Cícero, summum jus, summa injuria.

VIII – Nota final

Ressaltamos como fizemos no início das presentes reflexões que o texto que se encerra é fruto de uma análise preliminar de temas bastante complexos.

Em razão disto, sempre que possível apresentamos duas ou mais orientações possíveis para a solução das questões que começam a surgir a partir da mudança legislativa.

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Longe de esgotar o tema, o presente artigo é um singelo convite e um verdadeiro estímulo para a reflexão sobre as mudanças ocorridas com a vigência da lei 12.112/09 e seus efeitos sobre o sempre tão delicado equilíbrio do mercado locatício.

Abstract. The current article analyses the new features of the legal regime for the real state lease market brought upon by Law 12.112, enacted in December 9th, 2009, specially: lease fee; the changes in the family situation and real state guaranty; transference operations in non-residential leases and its presidential veto; the postponement of leases and legal guaranties; the demand for a new real state guarantee or the substitution of the legal guaranties; the culpable defaults’ liberation and its limits. Furthermore the articles deals with collateral aspects concerning the real state lease market after the current legal alterations.

Key- words: lease; Law n. 12.112/2009; fee; guarantee; and delay.

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LUIZ FERNANDO DO VALE DE ALMEIDA GUILHERME

Advogado. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Doutorando pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, nos cursos de graduação e pós graduação, e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC (Cogeae). Professor da Escola Paulista da Magistratura (EPM) nos cursos de Família e Meios Alternativos de Soluções de Conflitos. Ex - Coordenador e Professor do curso de Mediação, Conciliação e Arbitragem na Escola Superior de Advocacia de São Paulo – núcleo Pinheiros. Professor convidado nos

cursos de LLM do Ibmec-SP. Autor de livros e artigos jurídicos sobre o tema.

A Eficácia da ARBITRAGEM após 13 anos da “Lei – nº 9.307/96”

1 BARBOSA, Rui. Elogios Acadêmicos e Orações de Paraninfo. Edição da Revista da Língua Portuguesa, 1924, p. 381. 2 Conforme assevera Fernando Horta Tavares, in Mediação e conciliação. Belo Horizonte: Ed. Mandamentos, 2002, p. 42, “forma básica de resolução de disputas é a Negociação. Nela as partes se encontram diretamente e, de acordo com as suas próprias estratégias e estilos, procuram resolver uma disputa ou planejar uma transação, mediante discussões que incluem argumentação e arrozamento”. 3 César Fiúza entende a Conciliação como “o processo pelo qual o conciliado tenta fazer com que as partes evitem ou desistam da jurisdição, encontrando denominador comum”. FIÚZA, César. Teoria Geral da Arbitragem. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 1995. p. 56.4 Mediação vem a ser “historicamente, na manifestação de transigência entre particulares, para encontrarem solução de seus conflitos, sem a intervenção do Estado, pela indicação consensual de um ou vários intermediários que lhes pacifiquem os interesses”. LEAL, Rosemiro Pereira Leal. Teoria geral do processo: primeiros estudos. Porto Alegre: Ed. Síntese, 2001. p. 38.

Resumo: Em uma realidade em que a sistema jurídico formal se encontra em profundas dificuldades por conta da elevada demanda de casos a serem analisados, a arbitragem se apresenta como uma solução alternativa de conflitos, afastada da justiça pública convencional. O presente artigo se propõe a demonstrar que a Lei da Arbitragem significa um passo em sentido a modernidade; uma forma de obter respostas jurídicas competentes e rápidas, sem a necessidade de apreciação do Poder Judiciário, congestionado. O texto procurou estabelecer também um breve histórico do instituto e as dificuldades para que a arbitragem deixasse de ser uma forma de solução de conflitos sem prestígio, até que se tornasse em uma lei de fato, no Brasil, no ano de 1996. Adotou-se como metodologia a pesquisa bibliográfica, sem, contudo, deixar-se de usar a larga experiência do autor, que vivencia o instituto e aborda o tema em muitas obras. Espera-se, como resultado, apontar como a Lei aumentou a utilização do instituto, contribuindo assim com uma justiça mais dinâmica e eficaz.

Palavras-Chave: arbitragem – solução alternativa de conflitos – Lei da Arbitragem – justiça mais dinâmica e eficaz

A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça, qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, e assim, as lesa no patrimônio, honra e

liberdade.[Rui Barbosa1]

Atualmente, mediante a um cenário que impõe o truncamento e a morosidade na resolução de litígios pelo meio jurídico convencional, caminhos são buscados com o fito de dinamizar tal realidade, a fim de que se estabeleça a verdade e a justiça de modo mais ágil.

Evidentemente, tratar das alterações sintomáticas evidenciadas no meio social beira a um retrocesso pleonástico, uma vez que não apresenta novidade discorrer sobre as céleres transformações as quais o mundo e os enlaces interpessoais atravessam. Sendo assim, pertencente contumaz e inerente a esse plano, as relações negociais caminham conjuntamente a tais mudanças, e, com a globalização, a demanda por respostas mais velozes nesta esfera é também fustigada.

1. Definição do Instituto

Neste cenário se insere o Instituto da Arbitragem; mecanismo o qual, assim como outros pressupostos que engendram dirimir conflitos, – a saber: a Negociação2, a Conciliação3 e a Mediação4 -, apresenta características de resolução alternativa e por vezes mais dinâmica.

Desta feita, vale usar o entendimento de Modesto Carvalhosa, bem como o de Nélson Eizirik, in “A Nova Lei das Sociedades Anônimas”, em que ambos prelecionam o instituto da arbitragem como sendo aquele que se “funda na autonomia da vontade, que constitui, no plano dos direitos subjetivos, o poder de auto-regulamentação ou autodisciplina dos interesses patrimoniais. No plano sociológico, a ontologia do instituto é a de promover

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melhor distribuição da justiça em decorrência da presteza e aprofundamento técnico que a sentença arbitral pode trazer às parte que convencionarão.5”

Logo, a Arbitragem significa um dispositivo alternativo ao sistema jurídico convencional formal, no qual um terceiro capacitado6, técnica e juridicamente, é eleito pelas partes - físicas ou jurídicas -, com o intuito de mediar e de dirimir a contenda, estabelecendo presumivelmente a justiça entre elas.

2. Histórico do Instituto

Ao longo do tempo, a realidade nacional se habituou – até por conta do conservadorismo brasileiro -, a se curvar ao engessado sistema judiciário como mecanismo de resolução. Entraves foram criados mormente devido a burocratização do sistema instaurado, atrasando o já esgotado arcabouço jurídico. Neste panorama resplandesceu a oportunidade do uso de soluções alternativas, com o propósito de desobstruir a sobrecarregada máquina judiciária, e, conseqüentemente ensejar respostas oportunas. Sendo assim, nasceu objetivamente o instituto da arbitragem, oferecendo exatamente tal forma de solução distinta, desligada do sistema jurídico público.

Tendo como pano de fundo a essência do que “arbitragem” implica, a rigor tal caminho foi a primeira forma de apaziguamento social. Registros de uso primitivo do mecanismo remontam ao período da civilização babilônica, 3.000 anos a.C., bem como aos romanos e aos gregos, em momentos subseqüentes. Na prática, naqueles períodos a resolução de litígios se dava pelo meio privado e era fomentada a partir do princípio da autotutela – leia-se: “a justiça pelas próprias mãos” -, em virtude da ausência do Estado (leia-se: Poder Judiciário).

Obviamente os caminhos não foram agraciados pela justiça factual, uma vez que poucas não foram as circunstâncias em que o caso concreto subjugado as vias de resolução particular despreparada, eram produto de ainda maior distanciamento entre o término desequilibrado da solução justa.

Convém salientar que em circunstâncias em que a justiça privada era envolvida por aspecto ligado ao mundo racional, seu afazer muito mais se aproximava da eqüidade, gerando possibilidades de se chegar a verdade.

Platão já tratara da função investida aos juízes eleitos discorrendo: “que os primeiros juízes sejam aqueles que o demandante e o demandado tenham eleito, a que o nome de árbitros convém mais do que os juízes; que os mais sagrados dos Tribunais seja aquele em que as partes tenham criado e eleito de comum acordo”7.

Na Idade Média, entre proprietários feudais, barões e cavaleiros, também era usada como forma de afastar

hipóteses de conflitos bélicos. Era na prática um período em que a instabilidade jurídica vigorava devido aos desequilíbrios sócio-econômicos, às querelas provenientes das questões religiosas, a fraqueza da figura do Estado, bem como em virtude da ausência da legislação, de modo a, unidos todos estes elementos, colaborar com o uso de um alternativo e privado sistema de resolução entre litigantes.

Com a evolução da ciência jurídica, o ordenamento objetivamente teorizou e reconheceu modalidades de sanação de controvérsias mais eficazes e escorreitas. Paralelamente a essa modernização o instituto da arbitragem se desenvolveu, constituindo-se em uma possibilidade das mais eficientes, em face da lentidão intolerável aos interesses individuais, corporativos e sociais - explicitados pelo sistema judiciário.

No Brasil, pode-se afirmar que o mecanismo essencial da arbitragem, ou seja, o afastamento de uma relação direta com a justiça pública, evidenciou-se já durante a colonização lusitana. De todo modo, as referências mais significativas quanto a utilização da arbitragem estão contidas na Constituição Imperial de 1824, em seu artigo 160, dispondo que: “nas civeis, e nas penaes civilmente intentadas, poderão as Partes nomear Juizes Arbitros”. Suas sentenças serão executadas sem recurso, se assim o convencionarem as mesmas Partes8”; assim como no Código Comercial de 1850, que destacava a arbitragem compulsória em determinadas questões de natureza mercantil. Tal obrigatoriedade foi expurgada em 1866, mediante a Lei 1.350, regulamentada esta pelo Decreto 3.900/1867.

No âmbito do Direito Internacional Público, também fora largamente usada na questão que envolveu a expansão das fronteiras, na região norte, por conta da incorporação do território do Acre, junto à Bolívia, hoje Estado brasileiro do Acre.

Porém, esforços para a implementação regulamentada do instituto foram vigorosos no século finado, sobretudo na década de 1980, com a publicação do 1º Anteprojeto de Lei sobre Arbitragem. Em verdade, esta e outras tentativas tiveram o destino marcado pelo insucesso da empreitada e apenas em meados da década dos anos de 1990 é que a questão foi plenamente apurada. Sendo assim, em 1996 foi aprovada e sancionada a norma que regula a arbitragem, perfazendo a Lei nº 9.307/06.

3. Da Arbitragem

Conforme prevê o artigo primeiro do diploma referente a arbitragem, “as pessoas capazes de contratar poderão se valer da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.

A pessoa física tem a sua personalidade mensurada por 5 CARVALHOSA, Modesto; EIZIRIK, Nélson. A Nova Lei das Sociedades Anônimas. São Paulo: Ed. Saraiva, 2001. p. 180.6 Art. 1º da Lei nº9.307/96.7 PLATÃO in De Legibus, Livros 6 e 12.8 Constituição Politica do Imperio do Brazil (de 25 de março de 1824). Disponível na internet: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em 22 de outubro de 2009, às 16h03.

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meio da capacidade que lhe é reconhecida pelo artigo 1º do Código Civil: “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”, ou como na explanação de Maria Helena Diniz, a “capacidade jurídica é a condição ou pressuposto de todos os direitos”9. Logo, para ser “pessoa” basta que haja a existência do homem, e consequentemente, para ser “capaz”, deve esta preencher os requisitos necessários para agir por si.

No caso em tela, pode optar pelo juízo arbitral quem puder contratar. Somente pessoas que tenham essas condições poderão assinar o compromisso, submetendo suas pendências ao julgamento do árbitros. Ou seja, o artigo 1° da Lei n° 9.307 de 23.09.1996 assegura o uso da arbitragem para que seja dirimidos litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

Como expressa a norma, a arbitragem trata dos direitos patrimoniais disponíveis, sendo estes interpretados como os direitos em que seus titulares gozam de plena disposição e se refere ao âmbito patrimonial. São direitos que tem como objeto um bem inerente ao patrimônio de alguém, referindo-se a um bem que pode ser alienado ou apropriado.

Antes da norma, como frisado, no Brasil já havia a utilização do instituto da arbitragem quanto ao Juízo Arbitral de Processo Civil e no Código Civil (Código Civil de 1.916), porém era vedado o uso, até seus caminhos finais, em virtude da necessidade de homologação da sentença arbitral pelo Poder Judiciário, submetendo assim a decisão do árbitro a apreciação judiciária.

Evidenciava-se um retrocesso na essência do que “arbitragem” propõe, já que a idéia do instituto é exatamente a de criar uma hipótese alternativa ao Poder Judiciário. Logo, usaria-se a vantagem informal a qual reveste a arbitragem durante o caminho dos trabalhos, para, no final do processo em questão, ter-se que se ligar ao sistema jurídico normal, evitado devido as razões relativas a falta de dinamismo e a morosidade.

Assim as vantagens e a própria arbitragem em si passavam próximas de estarem potencialmente despercebidas, num plano em que as dificuldades do judiciário se agigantava. Houve, então, movimento dos setores sociais com o propósito de incutir dispositivos que fugissem aos padrões dogmáticos burocráticos do sistema formal. Foi criado no início da década dos anos de 1980 o Ministério da Desburocratização, que procurava criar iniciativas que acelerassem o acesso a justiça.

A arbitragem já significava internacionalmente um aspecto de desobstrução da justiça e as intenções passaram a se concentrar de modo a elaborar uma normatização

específica, que disciplinasse o instituto, dando-lhe poderes inatos.

4. Da Importância Normativa

Em síntese, não se pode olvidar a importância que a norma instaura, pois a lei em vigor institucionaliza a conclusão arbitral como elemento autônomo e precípuo, não sendo mais mister a aprovação pelo sistema jurídico formal.

Aliás, a aplicação da Lei implementa substancial passo no sentido da modernidade - a qual o “arquétipo” da justiça se encaminha -, posicionando o país no hall dos Estados que também rumaram ao longo dos anos com a expectativa de alcançar o progresso jurídico.

Em 1923 o Brasil assinou o Protocolo de Genebra, na Suíça, e depois foi um dos contratantes do Tratado de Bustamante e signatário da Convenção Interamericana sobre Arbitragem Internacional, em 1975, no Panamá. Ademais, recentemente reconheceu também a Convenção de Nova Iorque.

Em suma, a norma legitimou um processo no qual o Brasil estava inserido há décadas, conjuntamente a outras nações, mas retirando as reservas que abasteciam a situação nacional.

Todavia, a efetiva promulgação da norma se deu após vários embates e tentativas iniciadas por um órgão especializado – também envolvido com outras tarefas -, que foi o Ministério da Desburocratização, no início da década de 1980. Comissões formadas, inclusive com a “Operação Arbiter”10, mais tarde, manifestaram-se ardilosamente com o propósito de ganhar força e de conseguir implementar a norma, mediante posturas tradicionalistas contrárias, que entendiam a possível legislação como um caminho para a ausência de segurança jurídica, uma vez que, a partir de seus argumentos, retiraria-se da esfera pública o poder de decisão, assim como continha em seus pressupostos todo o conteúdo de um discurso sentimental estatizante.

Já nos anos que se aproximavam do final da referida década, como aliados da arbitragem se perfizeram o Instituto Liberal de Pernambuco - que “levantava a bandeira” da existência de ações que há anos tramitavam no Poder Judiciário sem previsão para conclusão; bem como houve o assentimento dos membros nacionais do referido órgão. Ademais, foi escolhido um nome significativo, com biografia representativa no cenário político, a fim de fortificar o projeto e de instrumentalizar as ferramentas para a sua implementação no Congresso Nacional. A análise da

9 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 1996. p. 99. v. 1. 10 Anterior a Operação Arbiter, três foram os Anteprojetos da Lei da Arbitragem no Brasil. A saber: (i) Anteprojeto de 1981, proposto pelo Executivo, que sabedor da ineficiência e do atraso do Judiciário em face da elevada demanda a qual este era submetida rotineiramente em seus trabalhos, procurou alternativas modernas. O Anteprojeto, composto por 28 artigos fora apresentado, dando equiparação de efeitos entre compromisso e a cláusula arbitral, fazendo com que a existência de um ou de outro afastaria a competência do juiz do Estado, sendo ainda desnecessária a homologação de aludo arbitral. Embora houvesse boa intenção, o projeto continha falhas técnicas de caráter decisivo, que significaram seu insucesso. (ii) O segundo Anteprojeto, o de 1986, também apresentava deficiências, como a confusão entre “arbitragem” e “arbitramento”. O Projeto ainda não teve discussão social ampla, a partir de falhas de comunicação, o que acarretou outra derrocada. (iii) O último Anteprojeto ocorreu no ano de 1988, quando houve maior discussão da sociedade acerca da questão, no entanto, a trabalho não abasteceu a questão da homologação do laudo arbitral, bem como se furtou a tratar da problemática ligada ao laudo alienígena. Tantas incongruências levaram a novo insucesso do projeto. Estes percalços geraram a “Operação Arbiter”, em 1991, que, liderada pelo advogado Dr. Petrônio R. G. Muniz, procurou reunir definitivamente a sociedade e a comunidade científica, com o fito de criar uma forma alternativa e eficaz para a solução de controvérsias. Os trabalhos contiveram a presença de Selma Maria Ferreira Lemes, de Pedro Antônio Batista Martins e de Carlos Alberto Carmona. O Anteprojeto foi mostrado em reunião realizada no dia 9 de dezembro do ano de 1991, e recebeu anotações de vários setores e foi finalmente apresentado no Seminário Nacional sobre Arbitragem Comercial, realizado em Curitiba, no Paraná, em 27 de abril de 1992.

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lista dos membros da Casa classificou o Senador Marco Antonio Macial como elemento a adentrar na Operação Arbiter.

Após a escolha dos abnegados se fazia mister também a efetiva formatação de equipe dedicada a redação do instituto. Foram selecionados então os Professores Carlos Alberto Carmona e Pedro Batista Martins, assim como a Dra. Selma Maria Ferreira Lemes.

Houve em seguida a entrega do Anteprojeto, já no ano de 1991, com este sendo agraciado ainda com o recebimento de novos aliados como o Professor Guido Soares, o Desembargador José Carlos Barbosa Moreira etc.

Também por conta de contratempos como o impeachment do então presidente da República, ora Senador da República Fernando Collor de Mello, e posteriormente, devido ao plebiscito acerca da introdução do sistema monárquico, nos dois anos subseqüentes, a busca pela normatização teve percalços, tendo que ser renegada a um espaço periférico na pauta do Congresso Nacional.

E em 1995 o Deputado Milton Mendes apresentou emenda ao que atravancaram a questão como:

a substituição da terminologia sentença arbitral por • laudo arbitral, pois a arbitragem, na prática, não era pertencente ao Poder Judiciário nacional, de modo que não poderia proferir sentenças;a retirada do artigo 8º do projeto, que apontava que • em contratos nulos a cláusula arbitral não deveria necessariamente ser considerada como nula;a saída do artigo 18, responsável por abolir a • homologação do judiciário a sentenças arbitrais, justificando que o dispositivo era inconstitucional;a inclusão de artigo que obrigasse a homologação • judicial;a proibição do instituto nas ocorrências do Código • de Defesa do Consumidor;e também um valor mínimo para ser pleiteado o • processo arbitral.

A aceitação das propostas ou de alguma das sugestões poderia suscitar a derrocada do projeto, pois seria causada mais uma vez a insegurança jurídico/social e ainda o desequilíbrio nos dispositivos. Assim sendo, existiu uma campanha com o propósito esvaziar o discurso proposto pela emenda e pela a continuidade do processo, nas vias em que ele se encontrava.

Desta feita, após muitos embates, com tortuosos trabalhos pela concretização da matéria em questão,

apenas em 1996 o projeto de Lei foi de fato aprovado pelo Congresso, recebendo sanção presidencial em 23 de setembro do mesmo ano, apresentando-se assim, a Lei nº 9.307 – Lei da Arbitragem, também intitulada Lei Marco Antonio Maciel, em homenagem a seu patrono.

Em suma, todos estes esforços tiveram como ideal posicionar o país na esfera de Estados que seguiam uma linha moderna, com enfoque em opções saudáveis para os Poderes Judiciários de cada nação em questão.

A arbitragem significava um rumo auspicioso, denotando novas possibilidades de aferição da justiça. Na verdade, um modo capaz de criar uma alternativa a um sistema convencional dotado de dificuldades materiais, em face do elevado número de casos a serem aprecidos, bem como por conta do arcaísmo técnico ao qual o Poder Judiciário está submetido.

Logo, o porquê e a importância do instituto da arbitragem são enunciados paralelos e quase sinonímicos, dando um sentido distinto ao observado pelo sistema jurídico até então, gerando nova faceta a justiça e nova forma de acesso a esta também. É um caminho alternativo, que foge a lentidão que o Judiciário se encontra. É o que muitos autores entendem como a saída mais inteligente para uma célere e eficaz solução de conflitos, uma vez que isenta de desgastes desnecessários as partes em litígio.

5. A Lei nesses 13 anos

Após muitas complicações as quais a lei que regula a arbitragem no país necessitou passar para ser aprovada, já com a sua aplicação, novos e importantes entraves foram observados.

No ano de 2004 houve alteração profunda da temática, com a transferência da homologação da sentença estrangeira – assim como das sentenças arbitrárias alienígenas e a concessão do exequatur11 -, do Superior Tribunal Federal para o Superior Tribunal de Justiça. Tal medida foi provocada pela Emenda Constitucional nº 45, publicada no dia 31 de dezembro daquele ano.

Procurando garantir a segurança jurídica, a Presidência do STJ, antecipando às suas novas incumbências, editou no mesmo dia a Resolução 22, que sujeitou tais feitos, transitoriamente, dispostos entre os artigos 215 e 224, para a homologação de sentença alienígena e de cartas rogatórias12, sendo as últimas entre os artigos 225 ao 229.

11 O Dicíonário Jurídico de Plácido e Silva define a terminologia sob vários aspectos. A saber: “palavra latina, de exsequi, que se traduz execute-se, cumpra-se, é empregada na terminologia forense para indicar a autorização dada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal para que possam, validamente, ser executados, na jurisdição do juiz competente, as diligências ou atos processuais requisitdaos por autoridades jurídica estrangeira.” “O exequatur é dado na carta rogatória. E se distingue da homologação, que se apõe às sentenças estrangeiras, para que possam ser cumpridas no território nacional.” “Nesta circunstância, o exequatur se mostra um reconhecimento ou uma revalidação à carta rogatória para que possa ser atendida regularmente e devolvida ao juiz rogante, depois de devidamente cumprida.”“Exequatur. Na terminologia internacional do Direito Internacional, entende-se o ato de reconhecimento de um governo à designação de um cônsul estrangeiro ou funcionário diplomático, para funcionar no território de seu país, isto é, para que se possa exercer as suas atividades diplomáticas ou consultares”.12 O mesmo Dicionário Jurídico estabelece que carta rogatória “é a precatória que é expedida para a requisição de atos que devam ser praticados em território estrangeiro. Tal como a carta precatória, é o instrumento ond se inscreve regularmente a requisição para a prática do ato em território estrangeiro, cuja requisição recebe propriamente a denominação de rogatória”.“A carta rogatória deve conter os mesmos requisitos instituídos para a carta precatória, sendo que é, em regra, enviado a seu destino, por via diplomática, e, antes que se cumpra, deve receber o exequatur do poder judiciário competente”. “As cartas rogatórias não devem conter disposições executórias, pois que, em tal caso,antes que sejam cumpridas, necessiatam da homologação do tribunal próprio, a fim de que possam ter força no país em que são apresentadas”.

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A autonomia da vontade pode ser brevemente definida como a liberdade de contratar e de criar direitos. Entretanto, este princípio sofre apreciações distintas conforme o ordenamento de cada Estado, de modo que reservas são interpostas, limitando as maneiras de se exercer tal mandamento. Quando se trata da homologação de sentença estrangeira, as restrições podem ser ainda mais significativas.

Ou seja, quando se convenciona o uso do instituto pelos litigantes, é mister que haja cautela, pois, mesmo que exista uma tendência a se referendar critérios de julgamento internacionais homogêneos, sendo estes ratificados por comunidades e órgãos que regulam a utilização do mecanismo, tal harmonização não pode ser vislumbrada efetivamente, uma vez que o tratamento à arbitragem ainda se faz de modo distinto, mediante os países em questão. Pode uma matéria ser objeto de análise arbitral em um Estado e não sê-la em outro, e com isso, conseqüentemente, a sentença arbitrária executada no primeiro poderá ser negada pelo outro.

Este quadro ensejou perniciosa hipótese para a lei, a partir da possibilidade do “incidente de inconstitucionalidade”. A ocorrência em si se referia às situações em que a sentença arbitral não homologada no país de origem, não deveria ser “abraçada” em território nacional.

A problemática foi explicitada por conta do julgamento do Agravo Regimental em Sentença Estrangeira 5206-8/247, da Espanha. A questão apresentava o processo que tinha como partes a MBV Commercial and Export Establisment, com sede em Genebra, na Suíça, e a Resil Indústria e Comércio LTDA, situada no Brasil, recebendo o processo o laudo arbitral efetuado em solo espanhol.

Muito se versou a respeito, com os votos dos Ministros se dividindo quanto a constitucionalidade e a inconstitucionalidade da Lei, ao passo que, no final dos trabalhos, o veredicto apresentou vitória para a legitimidade da norma.

Outrossim, momento que gerou apreensão foi quando da chance de emenda ao Código Civil13, visando alterações entre os artigos 851 ao 855, sobretudo o 854, que disporia da seguinte forma:

Art. 854. A respeito da cláusula compromissória (sic), o interessado poderá submeter a divergência à justiça comum.

O texto, se aprovado, suscitaria retrocesso aos esforços despendidos ao longo dos anos. Porém, com a união de forças políticas o Senador Josaphat Marinho, o próprio genitor da emenda, retirou o artigo 854 de seu requerimento.

Novamente, novo percalço ocorreu, agora em 2004, quando uma proposta de emenda foi encaminhada ao Congresso Nacional - efetuada pelo Senador Demóstenes Torres -, em que era sugerida a inclusão ao texto

constitucional, da vedação do uso da arbitragem em plano estatal. No entanto, percebendo os prejuízos no que tange ao mercado e ao comércio internacional - em face da insegurança que seria gerada, uma vez que os conglomerados estrangeiros não tenderiam a submeter seus entraves com empresas estatais brasileiras ao sistema judiciário nacional -, contramedidas foram evidenciadas, sobretudo pelo patrono da Lei, o Senador Marco Maciel, com o fito de descredenciar a proposta de emenda, o que de fato ocorreu.

Muitos foram, então, os conflitos e as discussões para a aprovação da lei e para a subseqüente aplicação desta, na vida e no cotidiano das pessoas, das empresas e das organizações em geral, buscando aproveitar as vantagens que o instituto açambarca.

A rigor, o uso de uma justiça privada no cenário nacional é comum a um período longínquo e a sua solidificação, assim como a sua a posterior regulamentação formalizada, deu-se apenas poucos anos atrás.

Em que pese o balanço da arbitragem ser positivo, ainda há muito que se evoluir nesse sentido. A utilização desse meio alternativo de solução de controvérsias tem sido adotada de modo mais intenso, assim como asseveram pesquisas que tratam da questão, inclusive, novas leis têm incluído a arbitragem em seus textos14.

No entanto, mesmo os trabalhos que tratam de sua utilização geram algumas distorções e discussões: nos últimos anos alguns levantamentos apontavam para um elevado índice de não cumprimento da sentença arbitral, com demasiado montante de sentenças sendo anuladas. Porém muitos dos órgãos de arbitragem respondem, alegando que “foram apurados somente os casos levados à apreciação do Judiciário, sem se levar em conta o número de arbitragens realizadas e os laudos arbitrais proferidos no período pesquisado no Brasil e que não chegaram ao conhecimento do Poder Judiciário por terem sido espontaneamente cumpridos”; e que “as estatísticas internacionais apontam para um alto grau (superior a 90%) de cumprimento espontâneo de laudos arbitrais”15.

Ademais, servindo também como argumento defensivo ao instituto, os órgãos garantem que muitos dos trabalhos estatísticos se desenvolveram sobretudo num período de agitação e de conflitos, em que a arbitragem procurava primeiro a sua aceitação jurídica e a sua possibilidade de inserção no meio social, destoando da realidade equilibrada atual, que denota crescimento e vislumbra a maturidade.

Vale ressaltar, assim, que muitas das pesquisas evidenciam o desenvolvimento saudável do instituto. Mostra-se também que o instituto tem sido largamente usado por empresas, até porque poucas foram as ocorrências em que foi pedida a anulação da sentença arbitral a partir das pessoas jurídicas. O Judiciário tem aplicado exatamente o

13 Código Civil de 1.916.14 Vide: Artigos 851-853 do CC; E.C. Nº45; Lei das PPPs e das Agências Regulamentadoras. GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Manual de Arbitragem. 2. ed. São Paulo: Método, 2007. 15 Web site do CBAr – Comitê Brasileiro de Arbitragem. Disponível na internet: <http://www.cbar.org.br/nota_arbitragem_tribunais.html>. Acesso em 26 de outubro de 2009, às 13h37.

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que está na norma para invalidar a sentença arbitral, nos casos em que o compromisso arbitral se faz nulificado ou quando a sentença emanada não provinha de árbitro competente.

Ou seja, o que se depura é que o instituto vem sendo habilmente usado, principalmente nos últimos anos, quando passou a haver maior aceitação e conhecimento quanto as vantagens que ele propõe.

Ramos do direito como o administrativo tem buscado paulatinamente a utilização dos preceitos da Lei. Já a área internacional, por exemplo, tem sido seguramente o grande objeto de uso da arbitragem ao longo do tempo. É o que afirma a Selma Maria Ferreira Lemes:

“foi no campo das relações internacionais provadas que as convenções sobre arbitragem mais proliferaram, haja vista o incremento e a difusão do comércio internacional e a globalização econômica, representando o comércio eletrônico e o tombamento da última muralha inexpugnável, tornando-os literalmente integrantes de uma aldeia global”16.

Em 1958 se deu Convenção de Nova Iorque, que tratou da execução e do reconhecimento das sentenças arbitrais estrangeiras. Já em 1966, para regular as relações econômicas internacionais, foi criada a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional, intitulado UNCITRAL, que passou a inspecionar as questões referentes a arbitragem internacional e criou a Lei Modelo de Arbitragem (LMU) pautada na Convenção de Nova Iorque. Os requisitos para a criação da Lei discorriam sobre melhorar e harmonizar as legislações nacionais; a liberdade das partes e a discrição dos árbitros; assim como a justiça e a eqüidade do processo arbitral.

A rigor, é evidente que a essência da arbitragem internacional, além da alternativa gerada ao Poder Judiciário local, deve ser abastecida pelo mesmos ditames jurídicos, que preconizam o princípio da ampla-defesa, do contraditório e da boa-fé, que garantem a efetividade do direito.

Ademais, no plano nacional – e ainda como mecanismo de institucionalização da arbitragem - esforços existem com o fito de combater as entidades arbitrais desonestas, que denigrem a imagem da arbitragem ao oferecer cursos de formação de árbitros e afins, usando brasões pátrios e alienando carteiras de profissionais de árbitros indevidamente.

6. Conclusões

Em suma, a arbitragem é um elemento do mundo jurídico que sempre esteve presente no cotidiano e nas relações interpessoais, ainda que anteriormente a formação do Estado e da justiça formalizada propriamente dita. Os grupos sociais sempre se valeram da esfera privada como método de solução de entraves, mesmo que sem os dispositivos racionais que a ciência jurídica faz alusão.

Com a evolução do Direito o instituto da arbitragem se transformou em um salutar empreendimento, capaz de colaborar com a justiça ao servir como alternativa ao esgotado sistema judiciário convencional. Os Estados, em geral, tem demasiado montante de apreciação jurídica, todos necessitando soluções céleres, que geralmente não é evidenciada com o processo vigente.

A norma bem elaborada, em conformidade com as necessidades sociais, de fato tem repercussão positiva e especialmente útil a todos, modificando valorosamente o dia-a-dia comum e servindo como um catalisador do desenvolvimento. Assim como afirmamos em Novos Rumos da Arbitragem no Brasil: “a Lei 9.307/96 conferiu à arbitragem indiscutível efetividade operacional, transformando-se numa utilíssima técnica de solução de controvérsias, notadamente internacionais, signo da flexibilidade de nosso ordenamento jurídico”17. Trata-se de um processo ágil, sem se furtar a oferecer os requisitos básicos quanto ao princípio da contradição e da ampla defesa. É assim um mecanismo que descongestiona os tribunais, mas sem jamais perder o elemento fundamental que o Judiciário preconiza: a Justiça.

A rigor, vem a ser um instrumento que tem seu uso sendo consolidado desde a sua implementação, pois que sua utilização foi alterada a partir de ínfimos algarismos para cerca de 4000 mil arbitragens realizadas anualmente. A esfera comercial, por exemplo, pouco conhecia o instituto no início dos anos de 1990, antes da legislação, uma vez que, como afirmado, o vínculo e a sujeição perante o sistema formal constituído atravancava o processo arbitral. Com a Lei a evolução foi latente, pois uma manifestação final pelo Judiciário pode levar muitos anos, enquanto pela arbitragem normalmente leva-se um tempo muito inferior.

No âmbito internacional, assim como asseguram Arnold Wald e Ives Gandra da Silva Martins: “a inclusão da convenção de arbitragem nos contratos facilita as relações comerciais, atrai investimentos e dá maiores garantias aos contratantes, permitindo inclusive a redução dos custos da transação”18. A arbitragem neste campo também era pouco explorada anteriormente à normatização, todavia a mudança legislativa incentivou as partes a recorrerem ao árbitros, como apontam os dados da Corte Internacional de Arbitragem, quando esta expôs que entre 1996 e o ano de 2005, decuplicou o número de arbitragens efetuadas.

16 LEMES, Selma Maria Ferreia. Árbitros. Princípio da Independência e da Imparcialidade. São Paulo: Ed. LTR, 2001. p. 79-90.17 GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida (coord). Novos Rumos da Arbitragem no Brasil. São Paulo: Ed. Fiúza, 2004. p. 273. 18 WALD, Arnoldo; MARTINS, Ives Gandra da Silva. In: BONFIM, Ana Paula Rocha do; MENEZES, Hellen Monique Ferreira de. Dez Anos da Lei da Arbitragem – Aspectos Atuais e Perspectivas para o Instituto. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2007. p. 2.

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Bibliografia

O sucesso da Lei também se relaciona ao posicionamento dos juízes. O Supremo Tribunal Federal notabilizou a constitucionalidade da norma, esvaindo-se assim as últimas desconfianças que poderiam haver. O Supremo Tribunal de Justiça, por sua vez, dinamizou a homologação das decisões arbitrais alienígenas, aplicando de imediato a nova lei. Já os juízes de primeira instância, assim como os tribunais estaduais passaram a apreciar as decisões arbitrais com menor formalismo, só admitindo a invalidade nas raras ocorrências de violação do direito da defesa ou de suspeição de árbitros. Com relação ao desenvolvimento puramente intelectual, no plano doutrinário bem como no acadêmico, proliferaram o número de obras publicadas referentes ao tema e o número de Câmaras de Arbitragens e de Faculdades de Direito agraciando a questão, respectivamente, mostrando que o tema está claramente na ordem do dia, sendo cada vez mais abordado por todos os campos relativos ao Direito em si. A arbitragem, então, implica em uma opção que foge ao mecanismo patrono comum. Impõe uma justiça distinta, sem a presença latente do Estado, gerando as partes litigantes a possibilidade de se atingir o mais equânime a partir da decisão de um ente eleito por elas. É mister que ainda seja lapidada e também tocada por discordâncias e críticas que colaborem com o desenvolvimento do instituto. Sendo assim, muito há que se evoluir pois a implementação da lei - ou seja, a regularização verdadeira do mecanismo se deu há apenas 13 anos, mas estes habilmente mostraram a arbitragem como um meio sagaz e célere para a sanação de conflitos. Numa realidade compactuada com a velocidade em face da globalização e da revolução tecno-científica, obviamente

a solução de conflitos deve estar em consonância com o cenário declarado. Não se objetiva a resolução dos entraves a partir da pressa. Pelo contrário, aliás, almeja-se justiça e a desobstrução eficiente dos tribunais, com a utilização de um modo alternativo, que objetivamente distribua a eqüidade, a boa-fé e os princípios éticos do Direito. A Arbitragem significa trafegar por uma via límpida, recém pavimentada e desobstruída, em face a um sistema congestionado e moroso estatal. Abstract: As the formal legal system has being through deep difficulties due the high demand for cases to be analyzed, the Arbitration arises as an effective and alternative dispute resolution, far from the conventional public justice. This article aims to demonstrate that the Arbitration Law means a step towards modernity; an way to reach fast and competent legal responses, without the need of requesting review from the Judiciary - that is overloaded with work. The script also sought to establish a brief history of the institute and the issues that the arbitration would no longer be an way of resolving disputes without prestige, until it became a proper law in Brazil, in 1996. Adopted as methodology the literature search, and also the vast experience of the author - who experiences the institute and addresses the theme in many works. It is expected, as a result, pointing out how the Law has increased the use of the institute, providing a judicial system more dynamic and effective.

Key-words: arbitration - alternative dispute resolution - Arbitration Law – judicial system more dynamic and effective.BARBOSA, Rui. Elogios Acadêmicos e Orações de

Paraninfo. Edição da Revista da Lingua Portuguesa, 1924.BONFIM, Ana Paula Rocha do; MENEZES, Hellen Monique Ferreira de (coord). Dez Anos da Lei da Arbitragem – Aspectos Atuais e Perspectivas para o Instituto. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2007.BOMFIM, Ana Paula Rocha do; MENEZES, Hellen Monique Ferrreira de (coord). MESCs: Manual de Mediação, Conciliação e Arbitragem. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2008.CARVALHOSA, Modesto; EIZIRIK, Nélson. A Nova Lei das Sociedades Anônimas. São Paulo: Ed: Saraiva, 2001. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 1996. v. 1. FIÚZA, César. Teoria Geral da Arbitragem. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 1995.GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida (coord). Arbitragem. São Paulo: Ed. Quarter Latin, 2003.GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Manual de Arbitragem. 2ª edição. São Paulo: Método, 2007. GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida (coord). Aspectos Práticos da Arbitragem. São Paulo: Ed. Quarter Latin, 2006. GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida (coord). Novos Rumos da Arbitragem no Brasil. São Paulo: Ed. Fiúza, 2004. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. Porto Alegre: Ed. Síntese, 2001.LEMES, Selma Maria Ferreia. Árbitros. Princípio da Independência e da Imparcialidade. São Paulo: Ed. LTR, 2001.PLATÃO in De Legibus, Livros 6 e 12SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 24. ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2004.TAVARES, Fernando Horta. Mediação e Conciliação. Belo Horizonte: Ed. Mandamentos, 2002.

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.54

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Pesquisa acadêmica:

HOSHINO, Alisson Endo; FERREIRA, Lívia Lopes Pinheiro; WANG, Tábata Shialmey; GOUVEIA, Zânia Maria Matias; GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida (orientador). ARBITRAGEM APÓS A LEI Nº 9.307/96. São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2008.

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ANTONIO RULLI NETO Advogado em São Paulo, Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professor Universitário.

RENATO A. AZEVEDOAdvogado em São Paulo, Membro do Instituto de Direito de Família e Bacharel em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo.

A discussão acerca do estado civil do companheiro

Resumo: O presente trabalho trata da análise do estado civil do companheiro, verificando-se suas relações e seus efeitos na união estável. Além do casamento, há outras formas de uniões, cujos efeitos não decorrem do estado civil das partes, mas do vínculo afetivo e da natureza da relação entre os companheiros. Conquanto não possamos confundir união estável e casamento, ambos são uniões familiares e têm efeitos muito semelhantes. Mas se inexiste um estado civil para aqueles que se unem, que não são casados, como proceder? O possível estado de companheiro não é previsto em Lei, mas sua omissão pode ser considerada má-fé. Para tanto foi apresentado Projeto de Lei no qual se cria o estado civil de convivente, mas que nos parece ainda não solucionar completamente a situação. Principalmente no que diz respeito à união de pessoas do mesmo sexo que ainda não estariam compreendidas como união estável. Quanto aos terceiros, à segurança jurídica e à segurança nas relações obrigacionais, o que realmente importa são as disposições acerca de comunicação patrimonial. Assim, pouco importa o estado civil, além da relação com os aspectos patrimoniais e assistenciais.

Palavras chaves: Companheiro; Estado civil; Projeto de lei; União estável; Boa-fé; Responsabilidade perante terceiros.

1. Estado civil

Maria Helena Diniz explica que estado civil é “a soma das qualidades da pessoa natural, permitindo sua apresentação na sociedade numa determinada situação jurídica, para que possa usufruir dos benefícios e das vantagens dela decorrentes e sofrer os ônus e as obrigações que dela emanam. O estado civil da pessoa rege-se por ordem pública e, por constituir um reflexo da personalidade, é indivisível, indisponível, imprescritível e irrenunciável”.1

Para Clóvis Beviláqua, o “estado das pessoas é o seu modo particular de existir.”2

Estado civil é uma “qualidade pessoal”.3 O estado civil também pode ser “qualidade da pessoa que deriva do casamento”.4

O estado civil, como a própria expressão demonstra, tem a finalidade de individualizar uma situação em que a pessoa natural se encontra e suas condições. Quando tratamos de pessoa jurídica, por exemplo, falamos de estado falimentar5 para definir uma situação jurídica e financeira. Assim como para a pessoa natural, delimitamos uma situação fática existente.

Ao atribuirmos tais qualidades, classificamos essas

pessoas em relação às demais, ou seja, se dá notícia a terceiros das condições de alguém. Isso porque, como é sabido, os relacionamentos familiares geram efeitos pessoais e patrimoniais.

Assim, se a pessoa é casada, não pode casar-se novamente (Código Civil, art. 1.521, inc. VI), por exemplo. Não fosse apenas isso, sendo casada, tem deveres para com a outra, além é claro dos efeitos patrimoniais, pois, em regra, o que se adquire na constância de casamento é de ambos. Por isso, se um dos cônjuges assume obrigação e não cumpre pode acabar com seus bens constritos, mas nem sempre o outro cônjuge responderá da mesma maneira.

Não podemos deixar de lembrar a rápida evolução no campo do direito de família (área em que se pode perceber mais célere e claramente as mudanças – talvez em menos de trinta anos), campo em que o efetivismo na busca da dignidade (e direito à felicidade6) é amplamente sentido – veja-se o reconhecimento nos últimos anos de uniões homoafetivas,7 famílias mosaico, famílias caleidoscópio.8

2. Os efeitos práticos

1DINIZ, Maria Helena, Dicionário Jurídico. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 474, verbete Estado Civil.2 Clóvis Beviláqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1946.3 Maria Berenice Dias, Direito das Famílias. São Paulo: RT, 2008, p. 160.4 Giorgis, http://www.oabcaxias.org.br/site/coluna_detalhe.php?id=22&secao=7, acesso em 14.07.2009.5 O estado falimentar é caracterizado por pressupostos objetivos previstos na Lei 11.101/2005, que descreve as hipóteses (v. sobre o tema Fábio Ulhoa Coelho. Manual de Direito Comercial: Direito de Empresa. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 313-314).6V., sobre o tema, Luiz Alberto David Araújo, A proteção constitucional do transexual, São Paulo, Saraiva, 2000.7 Maria Berenice Dias. Homoafetividade. Porto Alegre, Livraria do Advogado, dentre outros.8 Famílias sem o retrato tradicional já são reconhecidas pelos tribunais brasileiros, veja-se mosaico e o paralelismo afetivo (famílias simultâneas).

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Pelo que já dissemos, podemos perceber que o estado civil refere-se bem mais a situações patrimoniais e pessoais que quaisquer outras.

O próprio casamento, no qual veio gravitando o direito de família, não é mais o seu centro. E a verdade é que o casamento, além das questões religiosas, românticas e espirituais, das quais não trataremos, sempre teve como efeitos aqueles mesmos patrimoniais e pessoais.

Esses efeitos são comuns em todas as uniões, sejam elas constituídas por casamento ou não. O casamento nada mais é do que uma forma de união com regramento pré-estabelecido no Código Civil. Os efeitos das uniões são o propósito de se individualizar o estado civil.

Por isso não faz mais sentido ter o casamento como marco sinalizador exclusivo do estado civil.9 Ainda é quase um tabu, o casamento permanece como esse marco da família, o que, no mundo real, não é o que sempre acontece.10

Há outras formas de união além do casamento que dão ensejo a famílias. A visão centrista do casamento e o desprezo às outras formas de união chega a ser abominavelmente discriminatória.11 Os efeitos dessas uniões não decorrem do estado civil das partes, mas do vínculo afetivo e da natureza da relação entre os companheiros.

Conquanto não possamos confundir união estável e casamento, ambos são uniões familiares e têm efeitos muito semelhantes. Mas se inexiste um estado civil para aqueles que se unem, que não são casados, como proceder? O possível estado de companheiro não é previsto em Lei, mas sua omissão pode ser considerada má-fé. Veja-se e.g. recente julgado do Superior Tribunal de Justiça:

PENHORA. BEM DADO EM HIPOTECA. DEVEDOR QUE VIVIA EM UNIÃO ESTÁVEL. DESCONHECIMENTO DO CREDOR. VALIDADE DA HIPOTECA. 1. Os efeitos patrimoniais da união estável são semelhantes aos do casamento em comunhão parcial de bens (Art. 1.725 do novo Código Civil). 2. Não deve ser preservada a meação da companheira do devedor que agiu de má-fé, omitindo viver em união estável para oferecer bem do casal em hipoteca, sob pena de sacrifício da segurança jurídica e prejuízo do credor12

Foi o mesmo entendimento do Tribunal de Justiça de Mato Grosso:

APELAÇÃO CÍVEL. PENHORA. HIPOTECA. EMBARGOS DE TERCEIRO. UNIÃO ESTÁVEL. COMPANHEIRA DO EXECUTADO. INTERVENIENTE

GARANTIDORA. ALEGAÇÃO DE MÁ-FÉ DO EXECUTADO E DA EMBARGANTE. RESGUARDO DA MEAÇÃO. RECURSO PROVIDO. SENTENÇA REFORMADA. A companheira do devedor que figura como interveniente garantidora no ato de constrição da dívida e da hipoteca é devedora solidária, não ostentando por absoluta incompatibilidade a condição de terceiro para afastar a sua meação no imóvel hipotecado por ocasião da penhora, mormente se o credor, com manifesta boa-fé, desconhecia a existência da união estável entre o devedor e a companheira embargante, ante a omissão do fato pelo primeiro nos contratos firmados, quando reiteradamente declarou-se solteiro.13

E, ainda, em sede de Justiça do Trabalho:

Embargos de Terceiro. União estável. Meação da companheira. Se a união estável manteve-se ao longo do pacto laboral, é inequívoco que a companheira do sócio da Reclamada beneficiou-se, ainda que indiretamente, dos lucros do empreendimento. Lembre-se que o regime da comunhão parcial de bens (art. 1725 do CC) importa a comunicação de todos os bens que sobrevierem ao casal na constância do casamento (art. 1.658 do CC), inclusive aqueles adquiridos a título oneroso (art. 1.660, I, do CC). 14

Como explica José Carlos Teixeira Giorgis, “quando um solteiro, separado, divorciado ou viúvo estabelece uma intimidade duradoura e pública, deveria adotar o estado de companheiro, que restaria encarnado em sua vida social, negócios, contratos empresariais ou de locação, em todas as situações que exijam seu perfil jurídico, até mesmo para assegurar eventuais direitos de terceiros; e no falecimento de sua parceira, culminaria o luto com a viuvez; ou retornaria ao estado de solteiro, caso ocorresse a dissolução judicial da união entretida, eis que inexistente a figura de ex-companheiro. Embora sedutora e bem alinhada no âmbito exegético, a posição não está deificada na doutrina majoritária, eis que os companheiros somente têm aptidão em se relacionar exatamente pela ausência de impedimentos matrimoniais; o que não desvanece o estado original de solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, termos que se ligam, como se insiste, no acontecimento nupcial e não fora dele. Imagine-se homem casado, mas há muito separado de fato, que intente união estável com outrem, seu estado civil seria o de casado ou companheiro? A conclusão prevalente é que não se institui um novo estado com a adoção do companheirismo, embora seu batismo constitucional; mas praxe que se pode aceitar

9 Maria Berenice Dias, op. cit., p. 162.10 V. Anderson Evangelista. Homossexual tem direito de se casar no Brasil. Universo Jurídico. Disponível em < http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/default.asp?action=doutrina&iddoutrina=5148>. acesso em junho de 2009.11 A não discriminação é um direito. Veja-se a respeito a obra de Roger Raupp Rios, especialmente no tocante às abordagens sociológicas do preconceito, p. 17 e seguintes e a respeito dos critérios proibidos de discriminação e condição pessoal, p. 54 e seguintes (Roger Raupp Rios, Direito da Antidiscriminação. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008).12 Recurso Especial n. 952.141-RS (2006/0103778-0). Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros, j. 28.06.2007.13 TJ-MT; APL 25707/2008; Primavera do Leste; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. José Mauro Bianchini Fernandes; Julg. 01/12/2008; DJMT 11/12/2008; Pág. 10. V. ainda, Apelação Cível nº 70014932081, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.14 TRT/SP - 00236200602602001 - AP - Ac. 4ªT 20081004650 - Rel. SERGIO WINNIK - DOE 28/11/2008

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para preservação da dignidade do relacionamento, embora sem eficácia absoluta”. 15

O problema que se apresenta é o de como se noticiar isso. Especialmente por não existir estado civil próprio nem legal, ou, em razão de os estados civis ainda estarem ligados à figura central do casamento (casado, separado, divorciado...).

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não admitiu a existência do estado civil de companheiro:

EMBARGOS DE TERCEIRO. Possibilidade de penhora de bem indivisível obtido durante a união estável. Necessidade, todavia, de se respeitar a meação da companheira, eis que não há prova de a dívida ter sido assumida em proveito da família. Irrelevância de o fiador ter se declarado solteiro quando da assunção do encargo, mormente porque em nosso ordenamento jurídico não existe o estado civil de companheiro. Proteção do patrimônio da companheira, que se funda em princípio geral de direito segundo o qual ninguém pode dispor de mais do que possui, principalmente em razão do caráter personalíssimo da fiança. Recurso provido, em parte, para que se a garanta metade do preço obtido em hasta pública.16

O Tribunal de Justiça de São Paulo tem entendimento no sentido da quebra da boa-fé, devendo-se declarar o estado perante terceiros:

Locação de imóveis - Embargos de terceiro - Improcedência - Apelação - Preliminar de não conhecimento do recurso - Rejeição - Inexistência de ofensa ao art. 514, II, do CPC - Desnecessidade de impugnação de ponto por ponto da sentença - Fiança - Outorga uxória - Ausência - União estável - Desnecessidade - Falta de previsão legal - Imóvel penhorado registrado apenas em nome da fiadora, executada - Prevalência do Registro Público e do contrato de locação, já que a fiadora foi qualificada como solteira - Bem de família - Fiador - Penhora - Validade - Imóvel pertencente a fiador de execução locatícia, ainda que único, é penhorável (art. 3”, inc. VII, da Lei n” 8.009/90) - Apelação conhecida e não provida. 17

EMBARGOS DE TERCEIRO - Bem de Família - Terceiro que alega viver em união estável com executada que teve imóvel penhorado - Afirmação suficiente para caracterizá-lo como parte legítima para propor ação - Ausência de comprovação quanto à existência de entidade familiar - Situação que depende de provas fáticas diante da inexistência de certidão matrimonial - Companheira que se declara como solteira no ato de constituição da hipoteca -

Impossibilidade de o credor hipotecário ter ciência do estado civil fático da devedora - Princípio da lealdade - Validade da hipoteca - Recurso improvido.18

Há, contudo, decisão com entendimento de que demonstrada a união estável, cabível a discussão acerca do bem, tendo sido negligente o credor ao não certificar tal estado:

Anulatória de hipoteca e ineficácia de dação em pagamento posterior do imóvel hipotecado e de adjudicação compulsória do bem. Procedência. Negligência do credor hipotecário ao não confirmar estado civil de “desquitado” afirmado pelo devedor hipotecário, quando vivia em união estável com a autora, que não participou minimamente da constituição dos gravames. Sociedade de direito, porque entidade familiar, provada nos autos. Nulidade de negócio jurídico (hipoteca) alicerçado em falso ideológico e sem a solenidade essencial configurada na anuência da meeira do imóvel (CCivil de 1.916, art. 145, IV; atual 166, V). Ineficácia da dação em pagamento posterior sobre o mesmo bem. Extinção do processo afastada e provido o apelo desde logo (CPC, 515, §3°). 19

Tentando-se resolver a situação, como veremos adiante, foi apresentado Projeto de Lei no qual se cria o estado civil de convivente, mas que nos parece ainda não solucionar completamente a situação. 3. O Projeto de Lei

Em 2003 foi apresentado pelo Deputado Fernando Lucio Giacobo (PL-PR), Projeto de Lei n.1.779/03, que tinha como finalidade definir o estado civil das pessoas que vivem sob o regime de união estável.

A união estável está regulada pelo art. 1.723 do Código Civil:

“Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

Ou seja, a união estável é exclusivamente a entidade familiar estabelecida entre homem e mulher, com convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família. Pelo texto expresso do Código Civil, as uniões homoafetivas não estariam compreendidas como união estável.

De qualquer maneira, pelo Projeto, seria acrescido ao artigo 1.723 do Código Civil o §3º, pelo qual os companheiros adotariam o estado civil de conviventes.

O Deputado fundamenta seu Projeto explicando que

15 Giorgis, http://www.oabcaxias.org.br/site/coluna_detalhe.php?id=22&secao=7.16 TJ/RJ – Apelação Cível nº 2008.001.21471, Relator Desembargador Carlos Eduardo Da Fonseca Passos, 1ª Câmara Cível, j. 14.5.2008.17 TJ/SP – Apelação Cível nº 1.232.132-0/7 Relator Desembargador Romeu Ricupero, 36ª Câmara de Direito Privado, j. 14/05/2009.18 TJ/SP – Apelação nº 7225002-1, Relator Des. Candido Alem, 16ª Câmara de Direito Privado, j. 02/06/2009.19 TJ/SP – Apelação nº 1284630-3, Relator Des. Soares Levada, 11ª Câmara de Direito Privado, j. 12/02/2009

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.58

“a união estável, embora tenha origem exclusivamente no mundo dos fatos, encontra-se regulamentada nos artigos 1.723 a 1.727 do Código Civil (Lei nº 10.406/2002). Tal regulamentação envolve tanto as relações pessoais entre os companheiros, ‘configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família’ (art. 1.723, caput, CC), quanto às relações patrimoniais, instituindo o art. 1.725 que, ‘salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.’

O Deputado ainda explica que “no plano patrimonial que, em face do regime de bens instituído para a união estável, mediante contrato escrito firmado pelo casal ou por determinação legal – neste último caso equivalente ao regime da comunhão parcial – terceiros que com os companheiros tratam ou contratam, para proteção de seus interesses.”

O Projeto continua tramitando na Câmara20. Todavia, conquanto correto o posicionamento do Deputado, sendo coerente com o sistema já existente, ainda ficariam de fora as pessoas em outras formas de união.

O problema continuaria. Isso porque, as outras formas de união, notadamente a de pessoas do mesmo sexo, vêm crescendo. No início, também as uniões estáveis eram em número bem menor do que as existentes na atualidade. O aumento de número de pessoas em união estável foi responsável até mesmo pela evolução legislativa.

Vale a ressalva de que o art. 226 da Constituição Federal, expresso quanto à união estável, não proibiu as outras formas de união.Como dissemos, a proteção patrimonial de terceiros continua incompleta, pois a alteração legislativa atingiria apenas uma parte dos casos. 4. Uma questão de segurança jurídica, boa-fé e o estado civil

Os efeitos das uniões não decorrem do estado civil das partes, como dito, mas das relações materiais e assistenciais decorrentes delas.

Citamos aqui Maria Berenice Dias que sintetiza a idéia central do problema: “Não sendo definida a união estável como estado civil, quem assim vive não é obrigado a identificar-se como tal. Não falta com a verdade ao se declarar solteiro, separado, divorciado ou viúvo. No entanto, está mascarando a real situação de seu patrimônio. Os bens amealhados durante a união não são de sua propriedade exclusiva, instalando-se um condomínio. Desse modo, a falta de perfeita identificação da sua situação pessoal e patrimonial pode induzir outros a erro e gerar prejuízos ou ao parceiro ou a terceiros.”21

Por isso, pouco importa o estado civil, além da relação

com os aspectos patrimoniais e assistenciais. Quanto aos terceiros, à segurança jurídica e à segurança nas relações obrigacionais, o que realmente importa são as disposições acerca de comunicação patrimonial. Se unido por casamento, união estável ou união homoafetiva, pode haver situação de incomunicabilidade de bens (regime de separação de bens, CC art. 1.687), comunhão parcial (CC, art. 1.658), regulação por contrato ou pacto antenupcial (CC, art. 1.653) etc.

Há uma diferença entre papeletas que preenchemos para receber mala direta dos negócios jurídicos. No primeiro tem-se apenas a finalidade de criar grupos de pessoas para direcionar propaganda. No segundo, o assunto é mais sério, mas somente será bem utilizado se acompanhado da situação de comunicabilidade patrimonial.

O que importa na proteção de terceiros nas relações jurídicas é o regime patrimonial de união, somente assim, a informação terá algum valor. Do contrário dizer que é casado, significa uma meia-informação, faltando o principal.

Vejamos, por exemplo, as hipóteses de outorga uxória, sem a qual se pode questionar a validade no negócio celebrado, verificando, ainda, os arts. 107, 219, 220, 1.647, 1.648, 1.649 e 1.650, do Código Civil.

Neles, é o regime patrimonial que importa, sendo diferente no caso de separação de bens, como se lê no art. 1.647 (com nossos destaques):

Art. 1647. Ressalvado o disposto no art. 1648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:

I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;II – pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;III – prestar fiança ou aval;IV – fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação.Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada.

O Código, apesar do permissivo acima expressado, não exclui a pretensão à rescisão de contratos de fiança e doação, ou a invalidação do aval, realizados pelo outro cônjuge com infração do disposto nos incisos III e IV do art. 1.647, qualquer que seja o regime de bens, nos termos do art. 1.642.

Falar em estado civil de companheiro é claro que resolve em parte o problema, mas deixa de fora, por exemplo, as uniões de pessoas de mesmo sexo. Conquanto entendamos que exista tal estado22, ainda que não de maneira expressa em lei, o problema continua.

O que nos parece mais correto, seria estabelecer, quando necessário, a informação - se em união e o regime patrimonial da união.

20 http://www2.camara.gov.br/internet/deputados/chamadaExterna.html?link=http://www.camara.gov.br/internet/deputado/dep_detalhe.asp?id=522180.21 Idem, p. 162.22 Poderíamos admitir o estado civil de companheiro com fundamento no art. 1º, inc. III e 226, par. 3º, da Constituição e art. 1.725 do Código Civil.

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Justifica-se: se não há união (em sentido amplo), não há regime; e quanto ao regime, só há efeitos se houver comunhão de bens.

A exceção contida no art. 1.647 justifica o que se diz acima, dês que, havendo regime de separação absoluta de bens, fica uma das partes autorizada a praticar atos individualmente (art. 1.687, CC23). Se houver contrato de união estável, com disposição expressa acerca da incomunicabilidade de bens (art. 1.725, CC24), ocorrerá o mesmo.

A segurança jurídica aos terceiros será realmente levada em consideração se expresso o regime de bens da relação. No mesmo sentido fica a questão da boa-fé que deve ter sido observada quando da declaração.

A união, seja ela estável, homoafetiva ou estabelecida por casamento, terá efeitos semelhantes. Por isso, sejamos honestos, quase exceção à bisbilhotice, da maneira que hoje está colocada, pouco ajudará terceiros. Na dúvida, informe ou formalize publicamente, ou corra o risco de ser interpretado como ato de má-fé, sem, ainda, um entendimento uníssono dos tribunais.

Abstract: This article deals with the analysis of the marital status of common-law spouse, to determine their

relationships and their effects. Besides marriage, there are other forms of unions, whose effects come upon the bonding and the nature of the relationship between the couple and not from the marital status of the parties. While a stable relationship cannot be confused with a marriage, both are family unions that have very similar effects. However If there is not a marital status for those who join in a relationship, and are not married, how to proceed? The state of common-law spouse is not provided for, by the law, thus its omission may be considered bad faith. For that matter the Federal Legislative enacted a Bill which creates the status of cohabitant, but it seems that the situation is not completely solved. Especially concerning marriage of individuals that have the same sex which is not embraced by the concept of Common-law marriage . As for third parties, regarding Law certainty and contractual obligations certainty, what really matters are the rules about the patrimony. Therefore, the marital status doesn’t matter as much as the patrimonial and carefulness aspects.

Key words: Common-law Spouse; Marital Status; Legislative Bill; Common-law Marriage; Good Faith; Third-Party Liability.

ARAÚJO, Luiz Alberto David, A proteção constitucional do transexual, São Paulo, Saraiva, 2000.BEVILÁQUA, Clóvis, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1946.COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial: Direito de Empresa. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.DIAS, Maria Berenice, Direito das Famílias. São Paulo: RT, 2008.__________________, Homoafetividade. Porto Alegre, Livraria do Advogado.DINIZ, Maria Helena, Dicionário Jurídico. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005EVANGELISTA, Anderson. Homossexual tem direito de se casar no Brasil. Universo Jurídico. Disponível em <http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/default.asp? action=doutrina&iddoutrina=5148>. acesso em junho de 2009.GIORGIS, José Carlos Teixeira, http://www.oabcaxias.org.br/site/coluna_detalhe.php?id=22&secao=7, acesso em 21/07/2009.RIOS, Roger Raupp, Direito da Antidiscriminação. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008

Decisões citadas:Recurso Especial n. 952.141-RS (2006/0103778-0). Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros, j. 28.06.2007.TJ-MT; APL 25707/2008; Primavera do Leste; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. José Mauro Bianchini Fernandes; Julg. 01/12/2008; DJMT 11/12/2008; Pág. 10. V. ainda, Apelação Cível nº 70014932081, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.TRT/SP - 00236200602602001 - AP - Ac. 4ªT 20081004650 - Rel. Sergio Winnik - DOE 28/11/2008.TJ/RJ – Apelação Cível nº 2008.001.21471, Relator Desembargador Carlos Eduardo da Fonseca Passos, 1ª Câmara Cível, j. 14.5.2008.TJ/SP – Apelação Cível nº 1.232.132-0/7 Relator Desembargador Romeu Ricupero, 36ª Câmara de Direito Privado, j. 14/05/2009.TJ/SP – Apelação nº 7225002-1, Relator Des. Candido Alem, 16ª Câmara de Direito Privado, j. 02/06/2009.TJ/SP – Apelação nº 1284630-3, Relator Des. Soares Levada, 11ª Câmara de Direito Privado, j. 12/02/2009.

Bibliografia

23 Art. 1.687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real.24 Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.60

BERNARDO BISSOTO QUEIROZ DE MORAESDoutor em Direito Civil/Romano pela Universidade de São Paulo/ USP e Especialista em Direito Romano pela Universidade de Roma I – La Sapienza. Ademais, é Procurador Federal e Professor de Direito Romano e Direito Civil da Fundação Armando Álvares Penteado/FAAP e da Universidade de São Paulo/USP. Proferiu palestras no exterior e tem

artigos e livro publicados na Europa.

Função econômico-social da “in diem addictio” e do pacto de melhor comprador*

I. Finalidades da “in diem addictio” e do pacto de melhor comprador

Subjacente às questões sobre a construção jurídica da in diem addictio, sua origem e evolução, sua estrutura, seu objeto e tantas outras sobre as quais se debatem os romanistas há décadas (muitas vezes com soluções contraditórias)1, há uma que normalmente é apenas referida, embora interessante.

Trata-se da finalidade da in diem addictio (perquirir a razão de ser de um instituto é fundamental para compreendê-lo em toda a sua extensão). De fato, a compreensão de sua finalidade e utilidade pode auxiliar a explicar a pouca ou nenhuma relevância do pacto de melhor comprador dentro do sistema jurídico brasileiro anterior ao “novo” Código

Civil2 (em especial quando comparado com outra cláusula especial à compra e venda que, como veremos, a substituía com vantagem: a retrovenda).

Ademais, esta indagação também está ligada à verificação de quem é o real beneficiário com a utilização da in diem addictio (ou do pacto de melhor comprador) em uma compra e venda. À primeira vista, parece não haver dúvida que o instituto romano é eminentemente favorável à posição do vendedor, porém, um exame mais cuidadoso das suas finalidades revela que, como exceção, poderia ser empregado no interesse predominante do comprador3.

A primeira e primordial finalidade da in diem addictio (e do pacto de melhor comprador), geralmente indicada por todos aqueles que tratam do assunto, é a de garantir ao vendedor a maior vantagem com a disposição da coisa4.

* Trabalho apresentado oralmente no XV Congreso latinoamericano de derecho romano (Morélia – México – 2006).1 Para maiores detalhes sobre a configuração da in diem addictio no direito romano e sua comparação com o pacto de melhor comprador, cf. QUEIROZ DE MORAES, “Pacto de melhor comprador”: configuração no direito romano (‘in diem addictio’) e projeções no direito atual (2009).2 Embora haja diferenças significativas entre a in diem addictio romana e o instituto do Código Civil brasileiro de 1916, não se pode ignorar que a estrutura de ambos é muito similar, o que justifica a comparação.O que não pode ser aceita é a total equiparação entre os institutos, como parecem pretender CARVALHO SANTOS, Código civil brasileiro interpretado XVI (direito das obrigações – arts. 1122-1187) (1938), p. 251; PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado – parte especial XXXIX (direito das obrigações: compra-e-venda; troca; contrato estimatório) (1984), p. 189; ORLANDO GOMES, Contratos (1995), p. 261; MARIA HELENA DINIZ, Tratado teórico e prático dos contratos I (1996), p. 365.3 Esta possibilidade está clara em Ulp. 28 ad ed., D. 18, 2, 9.4 Sobre as finalidades básicas da in diem addictio, cf. PETERS, Die Rücktrittsvorbehalte des römischen Kaufrechts (1973), p. 10; THOMAS, Provisions for calling off a sale. In TR 35 (1967), p. 562; ZIMMERMANN, The law of obligations (roman foundations of the civilian tradition) (1996), p. 735; DE FONTETTE, Recherches sur l’in diem addictio. In Studi in onore di Pietro de Francisci III (1956), pp. 557 e ss.5 Esta também é a principal finalidade das auctiones públicas ou privadas. Cf. TALAMANCA, Contributi allo studio delle vendite all’asta nel mondo classico. In Atti della accademia nazionale dei Lincei (1955), p. 105; PRINGSHEIM, The greek sale by auction. In Scritti in onore di Contardo Ferrini pubblicati in occasione della sua beatificazione IV (1949), p. 284.

Resumo: O “pacto de melhor comprador” é uma cláusula especial ao contrato de compra e venda que sujeita os efeitos desta ao oferecimento, dentro de um determinado prazo, de melhores condições (vantagens) por terceiro. Ao longo dos mais de 80 anos de vigência do Código Civil de 1916 (onde era expressamente previsto – artigos 1.158 e seguintes), quase não foi estudado, porque dificilmente era aplicado. Os poucos estudiosos que o comentavam (brevemente) não indicavam as causas mais relevantes do seu desuso: a restrição do seu objeto às coisas imóveis e a existência de outra cláusula que o substituía eficazmente (a “retrovenda”).Curiosamente, na intenção de retirar do nosso ordenamento jurídico o pacto de melhor comprador, o legislador de 2002 criou as condições necessárias ao seu ressurgimento, uma vez que a ausência de previsão legal ampliou o seu âmbito de aplicação. Assim, o nosso atual sistema jurídico possibilitou uma revitalização desta cláusula que, pouco estudada, provocará diversas dúvidas na sua utilização.Em suma, a partir de uma análise da in diem addictio procurar-se-á compreender melhor as conseqüências da exclusão do pacto de melhor comprador do “novo” Código Civil brasileiro e verificar a conveniência (ou não) da existência de algumas regras expressas a seu respeito (para tal, serão referidos, brevemente, os Códigos alemão, argentino, austríaco, chileno, colombiano, italiano e uruguaio, além do Esboço de TEIXEIRA DE FREITAS). Ademais, esta comparação entre o pacto de melhor comprador e a in diem addictio fornece exemplos importantes de aplicação daquela (ainda que fora do direito civil), como nas execuções por quantia certa contra devedor solvente, quando o pacto de melhor comprador pode servir para atenuar dificuldades práticas da regulamentação da arrematação.

Palavras-chave: compra e venda, pacto de melhor comprador, retrovenda, “in diem addictio”, arrematação.

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Trata-se, na verdade, de conseqüência lógica da forma pela qual o negócio se estrutura: dada a circunstância de que, diante da sua utilização, reservava-se ao vendedor o direito de desfazer a venda caso um terceiro fizesse melhor oferta (dentro de um prazo determinado), é consectário lógico que o seu efeito prático imediato era o de possibilitar que o vendedor explorasse ao máximo a coisa quando da sua venda5. Igualmente claro é que, neste caso, a in diem addictio teria sido celebrada a favor do vendedor.

Outra finalidade é a de proteger o vendedor do desenvolvimento desfavorável do mercado6. Muitas vezes, poderia o proprietário recear, por algum motivo, que o preço de seu bem iria sofrer uma significativa redução no mercado. Ora, neste caso, a in diem addictio mais uma vez servia ao proprietário que, vendendo desde logo a coisa, garantia um preço mínimo. Se este sofresse a esperada redução, o negócio se aperfeiçoava e ele não era prejudicado; se, por outro lado, as previsões não se concretizassem e o preço da coisa se elevasse, também se beneficiaria o vendedor, que poderia simplesmente desfazer o contrato diante de uma melhor oferta de um terceiro7.

Quase no mesmo sentido, funcionava a in diem addictio também como um mecanismo de proteção do vendedor em vendas emergenciais, quando este tinha necessidade de crédito rápido8. Embora muito próxima à idéia anterior, aqui a finalidade imediata do contrato não é mais a proteção do vendedor diante das flutuações de mercado, mas sim a aquisição rápida de crédito. Utilizando a in diem addictio, ele pode receber logo o preço e ainda manter a expectativa de vê-lo elevado pela melhor oferta de um terceiro9.

Estas três finalidades da in diem addictio (garantir ao vendedor a maior vantagem com a disposição da coisa, resguardá-lo do desenvolvimento desfavorável do mercado e protegê-lo em vendas emergenciais) podem ser, sem problema algum, aplicadas ao pacto de melhor comprador10. Tal, porém, não parece ocorrer com uma última, tipicamente romana. De fato, um dos motivos pelos quais a in diem addictio surgiu, desenvolveu-se e atraiu tanto a atenção

dos juristas romanos (basta reparar a quantidade de textos que versam sobre o instituto e o grau de minúcia de sua regulamentação) foi a tentativa de suprir a falta de formas de publicidade eficientes, semelhantes às atuais.

Na Roma antiga, se alguém desejasse vender alguma coisa, não teria à sua disposição um meio informal, célere e eficaz de fazer a sua divulgação. Conseqüentemente, salvo no caso de um comerciante de renome, normalmente celebraria o contrato com o primeiro comprador que se apresentasse, porque, caso não o fizesse (na expectativa de receber melhor oferta de terceiro), poderia não conseguir mais vender a coisa.

Neste contexto, surge a in diem addictio para minorar este problema prático11. É claro que, em tese, poderia ser utilizado hoje o pacto de melhor comprador com esta mesma finalidade, porém a facilidade com que um vendedor consegue hoje divulgar um determinado produto (até mesmo através de meio informatizado, como a Internet) praticamente exclui o emprego do instituto com este objetivo específico.

Estas são as principais finalidades apontadas por aqueles que estudam o instituto romano, o que impossibilitaria uma in diem addictio celebrada a favor do comprador12. Entretanto, já desde o início do século XX, é mencionada esta hipótese, sem se explicar qual seria a finalidade do comprador ao realizar este negócio. Esta idéia, por muitas décadas esquecida, foi retomada recentemente (num estudo de ZIMMERMANN13), sob o argumento de que a pessoa que, insegura, comprasse uma certa coisa (por querer assegurar a contratação), poderia utilizar a in diem addictio para lhe abrir a oportunidade de sair da transação diante de melhor oferta de terceiro14.

Diante da reticência das fontes romanas, não se pode afirmar com certeza que os romanos não vislumbravam esta possibilidade15, porém, muito provavelmente, era ela de rara ocorrência, uma vez que, ainda neste caso, a faculdade de desfazer o contrato era exclusiva do vendedor (o comprador nunca podia impor à outra parte a devolução

6 Cf. ZIMMERMANN, The law of obligations cit., p. 735.7 Quase nesta linha, a propósito do pacto de melhor comprador, sustenta-se que ele teria grande utilidade em momentos de “marasmo econômico” – cf. CUNHA GONÇALVES, Tratado de direito civil em comentário ao código civil português VIII – II (s.d.), p. 525; CUNHA GONÇALVES, Da propriedade resolúvel (sua projeção na alienação fiduciária em garantia) (1979), p. 174.8 Cf. PETERS, Die Rücktrittsvorbehalte cit., p. 10; ZIMMERMANN, The law of obligations cit., p. 735.9 Esta finalidade se aproxima muito com uma das funções da vendita com patto di riscatto do direito italiano: atribuir ao vendedor a possibilidade de recuperar o bem vendido por necessidade ou por outro motivo contingente – cf. PELOSI, Vendita con patto di riscatto. In ED 46 (1993), p. 518.Especificamente com relação à retrovenda no direito brasileiro, MOREIRA ALVES diz que uma de suas funções é a de possibilitar que um “proprietário mal sucedido em seus negócios” possa “obter recursos para fazer face a necessidades momentâneas” – cf. A retrovenda (1987), p. 3.A semelhança entre as hipóteses é clara, mas deve-se ressaltar que o vendedor não conserva a espectativa de recuperar a coisa no pacto de melhor comprador (tendo em vista que a coisa será obrigatoriamente vendida para o primeiro comprador ou para terceiro que fizer uma oferta melhor), enquanto que, na retrovenda, há a possibilidade do vendedor recuperar a plenitude de seu direito de propriedade.10 Artigos 1158 a 1162 do Código Civil de 1916.11 Cf. DE FONTETTE, Recherches cit., p. 558. Neste sentido, também poderia ser utilizada a auctio argentaria, uma vez que o banqueiro tinha um sistema próprio de publicidade e uma clientela fixa – cf. CERAMI, DI PORTO, PETRUCCI, Diritto commerciale romano (profilo storico) (2004), p. 116; PETRUCCI, Profili giuridici delle attività e dell’organizzazione delle banche romane (2002), p. 37.12 Só para exemplificar, BETTI é claro ao situar a in diem addictio dentre os pactos celebrados a favor do vendedor – cf. Istituzioni di diritto romano II (parte prima) (1960), pp. 218 e 219.13 The law of obligations cit., p. 735.Para este problema entre os romanistas do século XIX e início do século XX, cf. GLÜCK, Ausführliche Erläuterung der Pandecten nach Hellfeld, trad. it. de GREGO, Commentario alle Pandette XVIII (1901), pp. 619 e 620; e BECHMANN, Der Kauf nach gemeinem Recht II (System des Kaufs nach gemeinem Recht I) (1884), pp. 518 e 519.14 A hipótese é estranha, mas uma função semelhante ocorre no riscatto convenzionale do direito italiano (Codice Civile, artigo 1500), onde o comprador podia visar simplesmente a utilização de uma coisa por um tempo determinado (ou, normalmente, para sempre) e a um preço inferior ao de mercado (no mais das vezes, o preço da coisa no riscatto convenzionale é inferior àquele de uma venda normal) – cf. CIAN – TRABUCCHI (org.), Commentario breve al codice civile (2002), p. 1475.15 Quase todos os casos das fontes romanas referem-se à in diem addictio celebrada a favor do vendedor. A única exceção está em Ulp. 28 ad ed., D. 18, 2, 9, onde Ulpiano (referindo-se a Sabino) diz que o vendedor não pode recusar a melhor oferta feita por terceiro se as partes tivessem estipulado que o comprador poderia resilir diante do mero oferecimento de novas condições (pelo segundo comprador).16 Mesmo porque era o vendedor quem, em regra, deveria dizer se a nova oferta era ou não melhor, segundo critérios muitas vezes subjetivos.

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da coisa diante da oferta de terceiro16). Seja como for, por cautela, melhor não afirmar de modo peremptório que a in diem addictio era um instituto à disposição exclusivamente do vendedor (em especial porque a hipótese favorável ao comprador não é contrária à estrutura e características do instituto).

II. Causas do desuso do pacto de melhor comprador

Como, das cinco finalidades apontadas, as três primeiras (proteger o vendedor contra o desenvolvimento desfavorável do mercado; protegê-lo em vendas emergenciais para a aquisição de crédito rápido e garantir a maior vantagem com a disposição da coisa) podem ser perfeitamente aplicadas ao pacto de melhor comprador, causa estranheza o desuso do instituto no sistema do CC de 1916 e a ausência de sua previsão em diversos ordenamentos jurídicos estrangeiros e no “novo” Código Civil brasileiro17.

As razões para este fato são basicamente duas18: a restrição do pacto de melhor comprador às vendas de imóveis no Código Civil de 1916 (artigo 1160)19 e a existência de uma outra cláusula especial à compra e venda que o substituía com vantagem (a retrovenda)20.

II.1. Restrição de seu objeto às vendas de imóveis

De plano, deve-se ressaltar que o direito romano não conhecia esta limitação, não vinculando em momento algum a in diem addictio à natureza do seu objeto (se móvel ou imóvel)21. É, então, o caso de questionar se o pacto de melhor comprador teria uma aplicação maior caso não fosse restrito às coisas imóveis (situação possível diante do atual Código Civil)22. E igualmente importante é tentar entender a razão da existência dessa regra limitadora no “antigo” Código Civil.

BEVILÁQUA, ao comentar o artigo que tratava do assunto, justifica a regra dizendo que as coisas móveis

são facilmente transferidas e, portanto, haveria problemas práticos para o vendedor que quisesse desfazer a compra (diante de melhor oferta de terceiro) se o comprador a houvesse revendido a outrem, de modo a não se conseguir mais localizá-la (como as coisas imóveis exigem o registro, não haveria este problema, trazendo-se segurança ao vendedor)23.

Este problema somente existiria se considerássemos as coisas móveis de pequeno valor. Contudo, há outras que, em função do seu valor econômico-social ou de suas peculiaridades, são individualizadas de tal modo (também pela sua natureza) que não são facilmente transferidas a terceiros24. Imagine-se, assim, um automóvel (que, apesar de bem móvel, tem um registro especial), um cavalo de raça ou uma obra de arte. Nestes casos, provavelmente não seria difícil localizar o eventual terceiro adquirente25.

Seja como for, ainda que a coisa móvel fosse de pequeno valor, aquele transtorno não se apresenta. De fato, o vendedor não quer voltar a ser permanentemente proprietário quando exige a devolução da coisa do comprador diante da melhor oferta de terceiro (como será visto a seguir, nem poderia querê-lo, sob pena de desvirtuar o instituto, aproximando-o da retrovenda). Na verdade, irá transferi-la a terceiro. Em função disso, caso o primeiro comprador já tivesse entregue a coisa a terceiro (ainda que irregularmente, se a condição fosse suspensiva), a questão seria facilmente solucionada com o pagamento ao vendedor da diferença entre o preço efetivamente pago e o valor da oferta do terceiro.

Deve-se, assim, diferenciar entre aquilo que pode ser chamado de objetivo imediato da cláusula (desfazimento do contrato na hipótese de oferecimento de maior vantagem por terceiro) e o objetivo mediato ou finalidade última (obtenção da maior vantagem com a disposição da coisa). O objetivo imediato deve ser sempre entendido como um meio para a consecução da efetiva vontade do vendedor e nunca como um fim em si mesmo.

A distinção, aparentemente irrelevante, é importante

17 De fato, embora mantida uma seção dedicada às cláusulas especiais à compra e venda dentro do capítulo que trata desde contrato consensual (artigos 505 a 532), dela se excluem o pacto de melhor comprador e o pacto comissório, para se inserirem a venda sujeita a prova (artigo 510), a venda com reserva de domínio (artigos 521 a 528) e a venda sobre documentos (artigos 529 a 532).18 BIANCA acresce, ainda, que o instituto seria “inappropriato”, já que o desfazimento da venda depende do exercício de um poder do vendedor – cf. La vendita e la permuta (1972), pp. 606 e 607. O argumento é questionável diante da mera constatação de que, na retrovenda, o desfazimento do negócio também depende de uma decisão do vendedor (aliás, esta é aqui muito mais evidente do que no pacto de melhor comprador, onde há um requisito de eficácia próprio – a oferta de melhores condições por terceiro).19 A partir desta limitação, AGOSTINHO ALVIM diz que o pacto de melhor comprador não é mais utilizado por “motivos de ordem econômica”: como a venda de imóveis implica em grandes despesas para os contratantes, em especial para o comprador, este jamais admitiria a possibilidade de ser desfeito o negócio – cf. Da compra e venda e da troca (1961), p. 210. A idéia está correta, porém o autor não vislumbrou a possibilidade (ainda que em tese) do pacto de melhor comprador ser utilizado com relação a coisas móveis.20 Normalmente, os autores se restringem a comparar o pacto de melhor comprador com a preempção – cf. CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Instituições de direito civil III (contratos) (2003), p. 221.Já DEGNI, La compravendita (1939), p. 149, prefere equiparar (não igualar) a in diem addictio ao patto di retrovendita, e não ao riscatto convenzionale, como seria mais correto.Dentre os poucos que, ao menos, mencionaram a possibilidade de comparação estão LOBÃO, Fasciculo de dissertações juridico-praticas I (1866), p. 197, e BIANCA, La vendita cit., pp. 606 e ss.21 Este ponto não é pacífico entre os romanistas. Num primeiro momento, a questão parece de fácil resolução diante da constatação de que, apesar de a maioria dos fragmentos que tratam da in diem addictio incidir sobre coisas imóveis (fala-se em fundus ou domus), outros há que expressamente versam sobre coisas móveis (res ou servus).Contudo, não se pode esquecer que há diversos romanistas que sustentam a existência de uma fórmula rígida para a celebração da in diem addictio, fórmula esta que estaria reproduzida em Paul. 5 ad Sab., D. 18, 2, 1 (“ille fundus centum esto tibi emptus, nisi si quis intra kalendas Ianuarias proximas meliorem condicionem fecerit” – “seja por você comprado aquele terreno por cem, a não ser que alguém, dentro das próximas calendas de janeiro, tenha feito uma melhor oferta, para que a coisa saia do <patrimônio do> proprietário”). Como nesta fórmula é feita menção expressa ao fundus, não poderia jamais a in diem addictio recair sobre coisas móveis.Esta posição não é aceita, atualmente, pela maior parte dos romanistas, podendo-se afirmar que, tanto no período clássico, quanto no pós-clássico (inclusive no justinianeu), a in diem addictio poderia ter como objeto coisas móveis – cf. QUEIROZ DE MORAES, “Pacto de melhor comprador” cit., pp. 74 e ss.22 L. CUNHA GONÇALVES diz que a cláusula tem grande utilidade justamente com relação à venda de coisas móveis de alto valor e que dificilmente se verificaria com relação a imóveis – cf. Tratado VIII – II cit., p. 525.23 Cf. BEVILÁQUA, Código civil dos Estados Unidos do Brasil comentado IV (1917), p. 328; JOÃO LUIZ ALVES, Código civil da República dos Estados Unidos do Brasil annotado (1923), p. 820; CARVALHO SANTOS, Código civil XVI cit., p. 255; ZENUN, Da compra e venda e da troca (2000), p. 82.24 Neste sentido, criticando a opção do legislador brasileiro, cf. CUNHA GONÇALVES, Tratado VIII – II cit., p. 525; CUNHA GONÇALVES, Da propriedade resolúvel cit., p. 174. Chega-se a dizer expressamente que essa restrição é a causa do desuso do instituto no Brasil – AGOSTINHO ALVIM, Da compra e venda cit., p. 210.25 CUNHA GONÇALVES diz que justamente com relação aos imóveis é que o pacto de melhor comprador se afigura menos útil – cf. Tratado VIII – II cit., p. 525.26 “O comprador prefere a quem oferecer iguais vantagens”.

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com relação a duas questões. Em primeiro lugar, em função dela não poderá o vendedor desfazer a compra e venda e, em seguida, não celebrar novo contrato com terceiro, ficando com a coisa, pois estaria sendo contrariada a finalidade própria do instituto (ademais, se isso fosse possível, estar-se-ia mais próximo da retrovenda do que do pacto de melhor comprador ou da in diem addictio do direito romano). Por outro lado, se a finalidade do vendedor é a de obter a maior vantagem com a disposição da coisa (que, em regra, se traduz por um preço mais elevado), pouco importa se a receberá do terceiro ou do próprio comprador. Aliás, este é um dos fundamentos do artigo 1161, do “antigo” Código Civil26, que atribuía ao primeiro comprador o direito de preferência com relação ao terceiro ofertante (em igualdade de condições).

Já na hipótese do comprador que vendeu a coisa (móvel) a terceiro, não sendo mais possível localizar o atual proprietário dela, nada parece impedir que o comprador entregue outra coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade (se fungível) ou que ele pague o equivalente econômico da vantagem oferecida por terceiro. Não poderia o vendedor sentir-se lesado, uma vez que o seu fim último não era (não podia ser) a mera devolução da coisa. Mas se a coisa pudesse ser localizada com facilidade, o último adquirente não poderia recusar-se a restituí-la27 se o pacto de melhor comprador tiver a natureza de condição suspensiva, pois o comprador não pode transferir a propriedade da coisa (porque não a tinha); e se sua natureza for resolutiva, o comprador apenas terá a propriedade resolúvel do bem,

podendo, então, o vendedor reivindicar a coisa de quem a detenha (artigo 647 do “antigo” CC28 e 1359 do “novo” CC29).

Diante disso, interessante a solução encontrada por TEIXEIRA DE FREITAS que, mesmo ciente de que o direito português e o pátrio de então silenciavam no tocante à in diem addictio30 (válida por aplicação subsidiária do direito romano31), não deixou de regular o pacto de melhor comprador no seu Esboço de Código Civil32 (com mais minúcia do que no Código Civil de 1916), possibilitando que ele incidisse sobre coisa móvel desde que a condição fosse suspensiva33. Embora não o diga expressamente, queria justamente afastar os pretensos inconvenientes do pacto de melhor comprador de coisa móvel; contudo, como se disse acima, nada impede que a venda de móvel seja sujeita à condição resolutiva de melhor oferta (pois não há qualquer prejuízo para o vendedor).

Quanto ao direito comparado, os ordenamentos jurídicos estrangeiros podem ser divididos em três grandes grupos, conforme o tratamento que é reservado à matéria: a) o maior deles, que envolve as quatro principais codificações de direito privado da Europa34 (BGB, CC italiano, CC francês, Código das Obrigações suíço), representa a falta de regulamentação (não se permite expressamente, nem se proíbe: o legislador simplesmente se omite)35; b) num outro extremo estão os ordenamentos que expressamente admitem o pacto de melhor comprador (ou um instituto similar) sem qualquer restrição quanto à natureza da coisa (objeto dele): nesta situação está o Código Civil chileno36, o colombiano,

27 Salvo, evidentemente, se estivesse disposto a igualar a proposta do terceiro. Esta hipótese está expressamente prevista pelo artigo 1742 do CC uruguaio, 1886 do CC chileno, 1401 do CC argentino e 1944 do CC colombiano.28 Artigo 647, CC de 1916: “Resolvido o domínio pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a detenha”.A parte final do parágrafo único do artigo 1158, do Código Civil de 1916, não alterava esse entendimento. Diz este preceito legal que “não excederá de 1 (um) ano esse prazo, nem essa cláusula vigorará senão entre os contratantes” (grifo nosso). Não quis aqui o legislador impedir que o vendedor retome a coisa revendida pelo comprador a terceiro. Na verdade, a mens legis foi impossibilitar a transmissão das obrigações e dos direitos decorrentes do contrato aos herdeiros de um dos contratantes morto. Assim, por exemplo, no caso de falecimento do vendedor, não poderão seus herdeiros querer exercer o direito de retomar a coisa no caso de melhor oferta de terceiro não igualada pelo comprador, pois o contrato ter-se-á aperfeiçoado com a morte do vendedor. Nesse sentido, cf. AGOSTINHO ALVIM, Da compra e venda cit., pp. 212 e 213.É interessante notar que o Código Civil argentino adota regra oposta, ao prescrever que: “El pacto de mejor comprador puede ser cedido y pasa a los herederos del vendedor. Los acreedores del vendedor, pueden también ejercer ese derecho en caso de concurso” (artigo 1397).29 Artigo 1359, CC de 2002: “Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha”.30 Consolidação das Leis Civis (1876), p. 359, nt. 53. No sistema das Ordenações Filipinas não havia nenhum dispositivo expresso sobre o pacto de melhor comprador nos seus títulos relativos ao contrato de compra e venda (Ord. Filip. 4, 1 a 21).31 Cf. JOÃO LUIZ ALVES, Código civil cit., p. 820; COELHO DA ROCHA, Instituições de direito civil II (1886), p. 459.A possibilidade de aplicação subsidiária do direito romano, neste ponto, decorria da seguinte passagem (Ord. Filip. 4, 4 pr.): “Licita cousa he, que o comprador e vendedor ponham na compra e venda, que fizerem, qualquer cautéla, pacto e condição, em que ambos acordarem, com tanto que seja honesta, e conforme a Direito…”.Este dispositivo, na verdade, era uma reprodução (quase idêntica) de uma regra que já era expressa nas Ordenações Afonsinas e Manuelinas: Ord. Afons. 4, 40 pr.: “Licita cousa he, que o comprador e o vendedor ponham na compra e venda que fizerem qualquer cautella, pauto, ou condiçom, em que se ambos acordarem, com tanto que seja honesta, e conforme ao Direito Civil, ou Canonico…”; Ord. Manuel. 4, 27 pr.: “Licita cousa he, que o comprador e vendedor ponham na compra e venda, que fezerem, qualquer cautela, pacto, e condiçam, em que ambos acordarem, com tanto que seja honesta e conforme ao Dereito…”.Sobre Ord. Filip. 4, 4 pr., em especial para a amplitude dos termos “pacto” e “condição”, cf. TEIXEIRA DE FREITAS, Consolidação cit., pp. 357 e 358, nt. 50 (trecho que corresponde ao artigo 550 da Consolidação: “O comprador e o vendedor podem entre si ajustar qualquer pacto, clausula, e condição; uma vez que seja honesta, e conforme á Direito”).32 Artigos 2095 a 2104.33 Artigo 2097 do Esboço: “Se tiver o caráter de condição resolutiva e a coisa for móvel, é proibida a sua estipulação, como na venda a retro...”. A solução de TEIXEIRA DE FREITAS é também defendida por CUNHA GONÇALVES, Tratado VIII – II cit., p. 525.A proibição do pacto de melhor comprador sobre coisa móvel se a condição fosse resolutiva deve-se justamente ao fato de que a coisa móvel, por sua própria natureza, pode ser transferida facilmente a terceiro (de modo que seria extremamente difícil ao vendedor retomar a coisa se ela já tivesse sido revendida pelo comprador a terceiro). Não obstante, como já referido acima, mesmo nesta hipótese não se justifica a proibição, pois, caso não fosse possível ao comprador devolver a coisa, a obrigação resolver-se-ia em perdas e danos, sem qualquer prejuízo para o vendedor.34 Na Europa, apenas o Código Civil austríaco o previu expressamente nos parágrafos 1083, 1084 e 1085 – cf. ZIMMERMANN, The law of obligations cit., p. 744; CUNHA GONÇALVES, Tratado VIII – II cit., p. 524.35 Isto não impede que as partes dele se utilizem, como exemplificam DEGNI, La compravendita cit., pp. 139 e ss.; GRECO –COTTINO, Della vendita (art. 1470-1547) (1972), pp. 26 e 27; BIANCA, La vendita cit., pp. 606 e ss.; PALANDT (org.), Bürgerliches Gesetzbuch (2001), p. 545.36 O seu artigo 1886 prescreve que: “Si se pacta que presentándose dentro de cierto tiempo, (que no podrá pasar de un año) persona que mejore la compra se resuelva el contrato, se cumplirá lo pactado; a menos que el comprador o la persona a quien éste hubiere enajenado la cosa, se allane a mejorar en los mismos términos la compra. La disposición del artículo 1882 se aplica al presente contrato”. Já o artigo 1882, ao qual se faz remissão, manda aplicar ao pacto de melhor comprador a regra do artigo 1490, que trata da obrigação de entregar coisa móvel. Assim, dentro do sistema do Código Civil chileno, é expressa a permissão do pacto de melhor comprador de coisa móvel.37 Da mesma forma que no CC chileno, a permissão do “pacto de mejor comprador” para coisas móveis e imóveis decorre, no CC uruguaio, de uma interpretação sistemática dos artigos 1747 (“La disposición del artículo 1430 se aplica al pacto de mejor comprador”) e 1430 (“sea la cosa mueble o inmueble, el cumplimiento de la condición no podrá hacer que se resuelvan los derechos conferidos a terceros poseedores de buena fe”).Igual raciocínio pode ser utilizado com relação ao CC colombiano, nos artigos 1944 (“La disposición del artículo 1940 se aplica al presente contrato), 1940 (“El pacto de retroventa, en sus efectos contra terceros, se sujeta a lo dispuesto en los artículos 1547 y 1548”) e 1547 (“Si el que debe una cosa mueble a plazo, o bajo condición suspensiva o resolutoria, la enajena, no habrá derecho de reivindicarla contra terceros poseedores de buena fe”).

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o uruguaio37 e o austríaco38; c) por fim, há um meio termo: codificações que, embora admitindo expressamente a sua existência, limitam o seu âmbito de aplicação em função da natureza jurídica da coisa (o melhor exemplo é o Código Civil brasileiro de 191639, além do já referido Esboço do Código Civil de TEIXEIRA DE FREITAS40 e do Código Civil argentino41).

Deste modo, como já se está insistindo desde a introdução, deve-se ressaltar que nenhum ordenamento jurídico estrangeiro, dentre os mais relevantes, exclui totalmente a possibilidade de aplicação do pacto de melhor comprador. E com relação àqueles que não prevêem expressamente o instituto, as partes tem liberdade de estipular quaisquer cláusulas num contrato de compra e venda (desde que lícitas, evidentemente).

Conclui-se que a existência de previsão legal, longe de simplesmente apresentar uma opção aos contratantes, funciona como um limitador da autonomia negocial das partes. Ao contrário, se não houver qualquer regulamentação legal da matéria (como ocorre na maioria dos países e, hoje, no CC brasileiro), nada obstaria que as partes estruturassem o instituto conforme a sua vontade, podendo mesmo fazê-lo incidir sobre coisas móveis (pois não haveria uma norma restritiva como o artigo 1160 do “antigo” Código Civil)42.

Em síntese, não parece razoável a limitação do pacto de melhor comprador às coisas imóveis, havendo alguns autores que defendem expressamente a sua extensão às coisas móveis43.

II.2. A retrovenda e sua relação com o pacto de melhor comprador

A não utilização do pacto de melhor comprador decorre também da existência de um outro instituto similar que, por ter uma abrangência maior, acaba por retirar o interesse da cláusula que ora se estuda. Trata-se da retrovenda, pela qual o vendedor se reserva a faculdade de retomar a coisa vendida, devolvendo ao comprador o preço (salvo se ainda não pago), mais as despesas feitas pela outra parte44.

Tal qual o pacto de melhor comprador no Código Civil de 1916, a retrovenda não pode ter como objeto coisa móvel, pois embora não haja um artigo expresso fazendo essa restrição45, o artigo 505 do atual CC46, ao trazer os elementos básicos desta cláusula, a vincula à compra e venda de imóvel47.

Assim, também não escapou a retrovenda de severas críticas48. Em regra, sustentam os autores contrários ao instituto que dificilmente o comprador aceitaria sujeitar-se a tal negócio em função das despesas e formalismos que devem ser observados para que se opere a transferência de um imóvel no nosso sistema49. Além disso, teria perdido em muito a sua função na atualidade diante da “perfeição atingida pelo sistema hipotecário moderno”50. Diante destas críticas, chega-se a sustentar a desnecessidade da regulamentação do instituto em um capítulo à parte do Código Civil, mas o fato é que esta cláusula foi revitalizada na prática mais recente51 (sempre se ressaltando a necessidade de limitar temporalmente o direito do vendedor de desfazer o contrato52).

Colocadas de lado as questões polêmicas sobre a retrovenda53, deve-se observar que o efeito imediato principal dela é possibilitar que o vendedor recupere a integral propriedade sobre a coisa dentro de um certo prazo independente da prova de qualquer fato, ou seja, basta a

38 §§ 1083 e ss., ABGB.39 Artigo 1160: “Esse pacto não pode existir nas vendas de móveis”.Sobre este dispositivo, cf. JOÃO LUIZ ALVES, Código civil cit., pp. 820 e 821; BEVILÁQUA, Código civil IV cit., pp. 327 e 328; CARVALHO SANTOS, Código civil XVI cit., p. 255; ZENUN, Da compra e venda cit., pp. 82, 84 e 85; PONTES DE MIRANDA, Tratado XXXIX cit., p. 191.40 Cf. p. Error! Bookmark not defined. (em especial a nt. Error! Bookmark not defined.).41 Artigo 1400: “Si la cosa vendida fuere mueble, el pacto de mejor comprador no puede tener lugar…”.Sobre este dispositivo, cf. SALVAT, Tratado de derecho civil argentino – fuentes de las obligaciones I (1950), pp. 397 e 398, que indica como razão da proibição a sua incompatibilidade “con el principio que la posesión de buena de de esta clase de cosas crea la presunción de propiedad de ellas”, além de afirmar (sem explicar) que a sua estipulação prejudica a livre circulação das coisas.42 Nunca é demais enfatizar que a incidência do pacto de melhor comprador sobre coisas móveis não é contrária à natureza do instituto.43 Só para exemplificar, podem ser apontados: CUNHA GONÇALVES, Tratado VIII – II cit., p. 525; CUNHA GONÇALVES, Da propriedade resolúvel cit., pp. 174 e ss.; TEIXEIRA DE FREITAS (no Esboço, artigo 2097).44 Sobre as principais características do instituto, cf. MARIA HELENA DINIZ, Tratado I cit., pp. 359 e ss., MOREIRA ALVES, A retrovenda cit., pp. 1 e ss.; PONTES DE MIRANDA, Tratado XXXIX cit., pp. 157 e ss.; LôBO, Comentários ao código civil VI (parte especial – das várias espécies de contratos) (2003), pp. 139 e ss.; FIUZA (coord.), Novo código civil comentado (2003), pp. 447 e ss.; CUNHA GONÇALVES, Da propriedade resolúvel cit., pp. 151 e ss.; AGOSTINHO ALVIM, Da compra e venda cit., pp. 131 e ss.; CARVALHO SANTOS, Código civil XVI cit., pp. 177 e ss.45 Como o artigo 1160, do CC de 1916, para o pacto de melhor comprador.46 Artigo 1140, caput, do CC de 1916.47 Artigo 505: “O vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no prazo máximo de decadência de 3 (três) anos, restituindo o preço recebido e reembolsando as despesas do comprador, inclusive as que, durante o período de resgate, se efetuaram com a sua autorização escrita, ou para a realização de benfeitorias necessárias” – cf. LôBO, Comentários VI cit., pp. 142 e 143.Já o artigo 1140 do Código Civil de 1916 tinha a seguinte redação: “O vendedor pode reservar-se o direito de recobrar, em certo prazo, o imóvel que vendeu, restituindo o preço, mais as despesas feitas pelo comprador” – grifo nosso).De outro lado, não se pode ignorar que a questão não era pacífica com relação ao Código Civil revogado e deve continuar polêmica diante do atual, uma vez que, como já foi dito, não passa desapercebido que não há qualquer dispositivo no Código Civil vedando explicitamente a retrovenda de coisas móveis e, no direito comparado, são raras as legislações que o fazem (como, por exemplo, o direito austríaco – § 1070, ABGB), normalmente por medo de descaracterização da função econômico-social dos direitos reais sobre coisa alheia de garantia – cf. MOREIRA ALVES, A retrovenda cit., p. 136.Sobre esta questão, cf. MOREIRA ALVES, op. cit., pp. 134 e ss., LôBO, op. cit., p. 141; PIRES DE LIMA – ANTUNES VARELA, Código civil anotado II (artigos 762º a 1250º) (1986), p. 227; PELOSI, Vendita cit., p. 518; GRECO – COTTINO, Della vendita cit., p. 27348 Cf. LôBO, Comentários VI cit., p. 141.49 Cf. AGOSTINHO ALVIM, Da compra e venda cit., p. 131.50 MOREIRA ALVES, A retrovenda cit., p. 3.51 Cf. MOREIRA ALVES, A retrovenda cit., pp. 3 e ss.52 O atual Código Civil brasileiro prevê um prazo decadencial máximo de três anos (artigo 505) – cf. MOREIRA ALVES, A retrovenda cit., pp. 3, 4, 124 e ss.; LôBO, Comentários VI cit., pp. 144 e 145.53 A propósito delas, pode ser consultada a obra (específica sobre o tema) de MOREIRA ALVES, A retrovenda cit.54 A retrovenda não exige qualquer requisito de eficácia próprio como no pacto de melhor comprador, onde o desfazimento da primeira compra sujeita-se ao oferecimento de melhores condições por terceiro – cf. CBIANCA, La vendita cit., pp. 606 e 607.

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sua vontade para que o comprador perca o domínio sobre a coisa54.

Aliás, a este respeito, o vendedor pode inclusive recuperar a coisa, se ela já foi revendida para terceiro, mesmo que este desconhecesse a cláusula – artigo 507 do CC de 200255. Esta regra nem precisaria estar incluída dentre os artigos que tratam da retrovenda, pois já decorre do disposto no artigo 1359 do “novo” Código Civil, que trata da propriedade resolúvel56; por isso, embora não houvesse regra expressa semelhante para o pacto de melhor comprador no sistema do “antigo” Código Civil, não se duvidava da sua aplicação a este (caso tivesse a natureza de condição resolutiva)57.

Evidentes, portanto, as vantagens que a retrovenda apresenta para o vendedor: não precisa justificar a sua opção de desfazer o contrato de compra e venda (no pacto de melhor comprador deve alegar o oferecimento de melhor condição por terceiro); não corre o risco de encontrar a resistência do primeiro comprador (na outra cláusula, este prefere a quem oferecer iguais vantagens, ou seja, feita a oferta por terceiro, poderá igualá-la o comprador, caso em que não poderá o vendedor impor o desfazimento do contrato58); e, finalmente, o vendedor não é obrigado a celebrar novo contrato com terceiro, voltando a ter o pleno domínio sobre a coisa (no pacto de melhor comprador, o vendedor, caso aceite a melhor oferta e desfaça a primeira compra, deve celebrar novo contrato com o terceiro ofertante).

Contudo, na essência dos institutos, não se pode falar de uma fungibilidade entre ambos. Enquanto no pacto de melhor comprador o objetivo do vendedor é, basicamente, conseguir a maior vantagem com a disposição da coisa, na retrovenda ele visa manter a possibilidade de retomar a integral propriedade do objeto (sem a intenção de, logo em seguida, transferi-lo a outrem)59. Mas nada impede que se utilize a retrovenda com a finalidade típica do pacto de melhor comprador: assim, adicionada à compra e venda a cláusula de retrovenda, caso um terceiro fizesse uma melhor oferta, poderia o vendedor simplesmente desfazer

o primeiro contrato e celebrar um novo com qualquer outra pessoa, sem ficar sujeito àqueles inconvenientes acima mencionados (necessidade de fundamentação quando do exercício de sua faculdade e possibilidade de oposição do primeiro comprador).

Desta possibilidade de substituição (do pacto de melhor comprador pela retrovenda) decorre a sua pouca utilização e a não previsão expressa em ordenamentos jurídicos que permitem e regulamentam a retrovenda de maneira ampla (não restrita aos imóveis), como o italiano e o alemão.

O Código Civil italiano (Codice Civile), nos artigos 1500 a 1509, prevê o riscatto convenzionale60. Trata-se de um pacto pelo qual o vendedor se reserva a faculdade de reaver a propriedade da coisa vendida mediante a restituição do preço61. De plano, duas diferenças básicas devem ser apontadas entre o instituto italiano e a retrovenda brasileira: em primeiro lugar, não há a limitação daquele às coisas imóveis (o patto di riscatto pode incidir tanto sobre coisas móveis quanto imóveis)62; por outro lado, o prazo máximo de tal pacto, no que diz respeito às coisas imóveis, é superior à retrovenda brasileira (cinco anos)63.

Os autores que estudam o tema costumam diferenciar o riscatto convenzionale do patto di retrovendita ou patto di rivendita64 (segundo o qual o comprador se obriga a “revender” ao vendedor a coisa – merx – objeto do primeiro contrato65). A pedra de toque está no fato deste último instituto ter a natureza de um contrato preliminar e, como conseqüência, depender de um novo acordo de vontades entre vendedor e comprador (além de nunca poder ser imposto a terceiros)66. Assim, enquanto o riscatto convenzionale tem efeitos reais e não depende de um novo acordo entre vendedor e comprador67, o patto di retrovendita tem efeitos meramente pessoais (não atinge terceiros) e se sujeita a um novo e sucessivo acordo das partes para o aperfeiçoamento do contrato definitivo68.

Nota-se claramente que, apesar da semelhança da terminologia, a retrovenda regulada no Código Civil brasileiro se aproxima muito mais do patto di riscatto do

55 O artigo 507 dispõe que: “O direito de retrato, que é cessível e transmissível a herdeiros e legatários, poderá ser exercido contra o terceiro adquirente”. Já o artigo 1142 do nosso Código Civil revogado era mais enfático: “Na retrovenda, o vendedor conserva a sua ação contra os terceiros adquirentes da coisa retrovendida, ainda que eles não conhecessem a cláusula de retrato”.56 Artigo 647, do Código Civil de 1916.Sobre o artigo 1359 do CC de 2002, cf. FACHIN, Comentários ao código civil XV (parte especial – do direito das coisas) (2003), pp. 319 e ss.57 Ao contrário da retrovenda, o pacto de melhor comprador pode ter a natureza de condição suspensiva ou resolutiva (diante da ausência de qualquer previsão legal). Se valer por condição suspensiva, o problema da revenda da coisa a terceiro não se apresenta porque o comprador não é ainda proprietário da coisa, mas sim seu mero possuidor.58 Esta regra decorre da estrutura e da função econômico-social do instituto e era expressa no “antigo” Código Civil: “O comprador prefere a quem oferecer iguais vantagens” (artigo 1161). Mas a redação do artigo era muito criticada: cf. AGOSTINHO ALVIM, Da compra e venda cit., p. 216.59 Assim, por exemplo, uma determinada pessoa que se encontre em dificuldade financeira e precise rapidamente conseguir determinada soma em dinheiro pode utilizar a retrovenda para vender um imóvel seu, pois neste caso manterá, por um determinado prazo, a expectativa de, atingida uma situação econômica mais estável, retomar a coisa. A este respeito, cf. MARIA HELENA DINIZ, Tratado I cit., p. 359.60 Para uma visão geral deste instituto antes da unificação italiana e o surgimento dos primeiros códigos, cf. SCHUPFER, Il diritto delle obbligazioni in Italia nell’età del risorgimento III (1921), pp. 308 e ss.61 Artigo 1500: “Il venditore può riservarsi il diritto di riavere la proprietà della cosa venduta mediante la restituzione del prezzo e i rimborsi stabiliti dalle disposizioni che seguono”.Genericamente, sobre o riscatto convenzionale, podem ser consultados: CIAN – TRABUCCHI (org.), Commentario breve cit., pp. 1500 e ss.; PELOSI, Vendita cit., pp. 518 e ss.; GRECO – COTTINO, Della vendita cit., pp. 272 e ss.; DEGNI, La compravendita cit., pp. 141 e ss.; BIANCA, La vendita cit., pp. 569 e ss.; LUMINOSO, La vendita con riscatto (1987), pp. 7 e ss.; GORLA, La compravendita e la permuta (1937), pp. 303 e ss.; MOREIRA ALVES, A retrovenda cit., pp. 68 e ss.62 Isto está explícito no artigo 1501, que prevê prazos máximos diferenciados para o exercício do direito de resgate, conforme a coisa seja móvel ou imóvel: “Il termine per il riscatto non può essere maggiore di due anni nella vendita di beni mobili e di cinque anni in quella di beni immobili. Se le parti stabiliscono un termine maggiore, esso si riduce a quello legale”.63 Cf. artigo 505, do Código Civil de 2002, e 1141, do Código Civil de 1916. 64 Alguns ainda utilizam a expressão latina “pactum de retrovendendo” para referir o instituto – cf. DEGNI, La compravendita cit., p. 144.65 Cf. BIANCA, La vendita cit., pp. 604 e 605.66 Cf. DEGNI, La compravendita cit., p. 144.67 Cf. GRECO – COTTINO, Della vendita cit., pp. 292 e ss.68 Cf. LUMINOSO, La vendita con riscatto cit., pp. 197 e 198.69 Tanto que é enumerada por alguns entre os direitos reais. Cf. MOREIRA ALVES, A retrovenda cit., pp. 182 e ss.; LôBO, Comentários VI cit., p. 154..

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.66

que do patto di retrovendita (que não encontra previsão expressa no Código Civil italiano), uma vez que produz efeitos reais69 e não está condicionada a um novo acordo entre as partes.

O BGB, por sua vez, prevê expressamente a Wiederkauf70 (retrocompra71) dentre as espécies de compra e venda. Nela basta a manifestação de vontade do vendedor perante o comprador para que este retome a coisa vendida (como consta no § 456)72. Assim como o riscatto convenzionale, o instituto alemão pode incidir sobre coisas móveis ou imóveis; no primeiro caso, seu prazo máximo será de três anos e no segundo, de trinta anos (§ 462)73.

Salvo no caso de prenotação no registro imobiliário, quando o objeto da compra e venda fosse uma coisa imóvel, a Wiederkauf tem eficácia meramente pessoal, embora haja grande controvérsia quanto a sua natureza jurídica (alguns autores, por exemplo, sustentam que, à semelhança do patto di retrovendita, ela se configura como um pré-contrato74).

Em suma, tanto o Codice Civile, quanto o BGB não regulam expressamente nenhum instituto similar ao pacto de melhor comprador, conquanto prevejam institutos similares à nossa retrovenda (no tocante a sua estrutura e função), mas válidos para a compra e venda de móveis ou imóveis75. Ora, diante de institutos com tal alcance (maior do que a retrovenda do Código Civil brasileiro76), optaram os legisladores italiano e alemão por não regular expressamente o instituto do pacto de melhor comprador77 (a sua finalidade econômico social é atingida pela utilização do patto di riscatto e pela Wiederkauf), o que, como já visto, não impede a sua utilização pelas partes num contrato de compra e venda.

Ademais, é importante a verificação de que as raras legislações que proíbem a retrovenda de móveis78 têm dispositivos expressos acerca do pacto de melhor comprador (não o restringindo às coisas imóveis). A razão

é que a possibilidade de retrovenda de móveis exclui o maior campo de aplicação do pacto de melhor comprador (já se há a restrição daquela, surge uma clara abertura para a utilização deste instituto). Daí ser correta a solução do direito austríaco que equilibrou os dois institutos ao proibir a retrovenda de imóveis e permitir o pacto de melhor comprador de móveis79.

II.3. O “pactum de retrovendendo” e a “in diem addictio”

Os problemas derivados da existência de cláusula especial à compra e venda semelhante ao pacto de melhor comprador (a retrovenda) não se apresentam no direito romano, pois ao lado da in diem addictio não havia nenhum instituto capaz de substituí-la eficazmente. Mesmo o pactum de retrovendendo (por vezes tratado como pactum de retroemendo80) não cumpria a mesma função da in diem addictio.

Apontado por muitos como a origem romana da retrovenda moderna, pouco se sabe sobre o pactum de retrovendendo, em função de não existirem muitas passagens do Corpus Iuris Civilis que lhe fazem referência81 (aliás, nem há consenso quanto aos fragmentos do Digesto que realmente abordariam o instituto82). A única certeza é que ele atraiu pouco a atenção dos juristas romanos (caso contrário, provavelmente haveria um número razoável de fragmentos sobre ele)83.

Ainda que admitida a sua existência84, há também grande controvérsia sobre a sua natureza jurídica (para alguns, ele era um pacto adjeto à compra e venda; para outros, uma convenção autônoma) e seus efeitos (ou ele implicava na resolução do contrato ou era um simples pacto de revenda, como o patto di retrovendita do direito italiano).

70 Fala-se, também, na Wiederverkauf, não prevista expressamente no BGB, mas aceita pela doutrina. Cf. PALANDT (org.), Bürgerliches Gesetzbuch cit., p. 547; LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts II (besonderer Teil I) (1986), p. 150.Genericamente sobre a Wiederkauf, cf. MOREIRA ALVES, A retrovenda cit., pp. 66 e ss.; PALANDT (org.), op. cit., pp. 547 e ss.; LARENZ, op. cit., pp. 146 e ss. Para o direito anterior ao BGB, cf. WINDSCHEID, Lehrbuch des Pandektenrechts II (1900), trad. it. de FADDA e BENSA, Diritto delle Pandette II (1904), p. 492; BECHMANN, Der Kauf II – I cit., pp. 532 e ss.71 A tradução literal da expressão é de SOUZA DINIZ, Código Civil Alemão (1960), p. 90.72 “Hat sich der Verkäufer in dem Kaufvertrage das Recht des Wiederkaufs vorbehalten, so kommt der Wiederkauf mit der Erklärung des Verkäufers gegenüber dem Käufer, daβ er das Wiederkaufsrecht ausübe, zustande”.73 “Das Wiederkaufsrecht kann bei Grundstücken nur bis zum Ablaufe von dreiβig, bei anderen Gegenständen nur bis zum Ablaufe von drei Jahren nach der Vereinbarung des Vorbehalts ausgeübt werden”.74 Cf. MOREIRA ALVES, A retrovenda cit., pp. 67 e 68.75 Só para referir outro exemplo, o CC francês também não tem qualquer dispositivo sobre o pacto de melhor comprador, porque regulou (com detalhes) a faculté de rachat ou de réméré (artigos 1659 e ss.), que possibilita que o vendedor recupere a coisa vendida (móvel ou imóvel) mediante a restituição do preço pago e o reembolso de certos gastos que o comprador tenha tido (artigos 1659 e 1673).Limitada pelo CC francês a cinco anos (artigo 1660), esta cláusula (nitidamente favorável ao vendedor) é muito próxima às facultés de retrait, sendo suscetível às mesmas críticas dirigidas a estas (em especial a sua aparente incompatibilidade com o princípio da livre circulação de bens e com o caráter absoluto da propriedade).Sobre este ponto, cf. HUET, Traité de droit civil – Les principaux contrats spéciaux (2001), pp. 112 e 113; HERMAN – JOSSERAND, Code civil annoté V (art. 1387 à 1707) (1940), pp. 588 e ss.; MOREIRA ALVES, A retrovenda cit., pp. 57 e ss., e 137; CROME – ZACHARIä VON LINGENTHAL, Handbuch des französischen Civilrechts II (1894), trad. it. de BARASSI, Manuale del diritto civile francese II (1907), pp. 492 e ss. Admitindo expressamente a possibilidade da in diem addictio para o sistema francês: PLANIOL, RIPERT e HAMEL, Traité pratique de droit civil français X (contrats civils) I (1956), p. 222, nt. 2.76 Em especial porque esta é restrita às coisas imóveis.77 Como já foi visto acima, a Wiederkauf e o riscatto convenzionale acabam por ter a mesma finalidade do pacto de melhor comprador, com a vantagem de serem mais amplos.78 São normalmente citados como exemplos o Código Civil argentino (artigo 1380 – “Las cosas muebles no pueden venderse con pacto de retroventa”) e o austríaco (§ 1070, ABGB) – cf. MOREIRA ALVES, A retrovenda cit., p. 134, nt. 378. Já no projeto de CC argentino (Dec. 685/95), o pacto de melhor comprador não aparece mais como uma cláusula especial à compra e venda porque a retrovenda passa a poder incidir tanto sobre móveis quanto imóveis.79 Para a proibição da retrovenda, cf. § 1070, ABGB. Já para a regulamentação da Verkauf mit Vorbehalt eines besseren Käufers, cf. §§ 1083 e ss., ABGB.80 Cf. ARANGIO-RUIZ, La compravendita in diritto romano II (1952), p.. 403.81 Para uma visão geral sobre o tema, cf. MOREIRA ALVES, A retrovenda cit., pp. 38 e ss.; PETERS, Die Rücktrittsvorbehalte cit., pp. 277 e ss.; BECHMANN, Der Kauf II – I cit., pp. 532 e ss.82 De uma forma geral, são indicados como seguramente relacionados ao tema somente dois fragmentos: um do Digesto – Proc. 11 epist., D. 19, 5, 12 – e outro do Codex – Alex., C. 4, 54, 2 (de 222 d.C.). Fora estes, PETERS indica mais dois: Car. Carin. et Num., C. 4, 54, 6 (s.d.) e Diocl. et Max., C. 4, 54, 7 (s.d.) – cf. Die Rücktrittsvorbehalte cit., p. 277.83 Cf. ARANGIO-RUIZ, La compravendita II cit., p. 403.84 Este ponto é praticamente pacífico.85 Dentre os seus defensores, pode ser mencionado PEROZZI, Istituzioni di Diritto Romano I (1928), p. 168, nt. 3 (também no segundo volume da obra, na p. 287, nt. 1).

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Quanto a este último aspecto, como parece predominar a segunda posição (para a qual o instituto romano era equiparável a um pacto de revenda)85, pode-se inferir que o pactum de retrovendendo não tinha a mesma natureza jurídica da nossa retrovenda (do patto di riscatto italiano e da Wiederkauf alemã) e, portanto, não poderia ter a mesma função econômico-social da in diem addictio (como um mecanismo resolutivo da compra e venda).

II.4. O pacto de melhor comprador como opção a favor do vendedor

É importante observar que o pacto de melhor comprador constitui uma opção a favor do vendedor86. Ora, no final do século XX, verificou-se no Brasil uma forte tendência no sentido de se ampliarem cada vez mais as “opções” em favor do comprador e de se restringirem as “opções” do vendedor, numa busca do que se chamou de “justiça contratual” (Vertragsgerechtigkeit)87. Os motivos dessa “tendência” não são claros, mas não se pode duvidar da sua existência.

No ordenamento brasileiro, tem-se como clara evidência disso a regra do artigo 49 do CDC (Lei 8.078/90): “O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio”.

Criou-se com este artigo o direito de arrependimento do comprador (arrependimento que não precisa ser motivado). Assim, encontrando-se o comprador numa relação de consumo com as características apontadas (“fora” do estabelecimento comercial), poderá ele desfazer o contrato sem precisar apresentar qualquer justificativa88. Trata-se, portanto, de instituto semelhante à retrovenda (em especial porque também nesta não é necessária a indicação de qualquer fundamento, que não a própria cláusula, para o desfazimento do negócio), mas que dela se difere por

consistir numa opção do comprador (e não do vendedor) e por não precisar ser expressamente estipulada pelas partes (é elemento natural, e não acidental, do negócio).

Este talvez seja um exemplo extremo, mas reflete claramente essa tendência atual de ampliar os poderes da parte considerada mais vulnerável na relação negocial e restringir cada vez mais a liberdade da outra89 (vale lembrar que não há nenhum instituto similar no direito do consumidor que favoreça, por exemplo, o vendedor)90. Deste modo, justifica-se em parte o desinteresse por institutos como o pacto de melhor comprador.

III. Conclusões – Vantagens do pacto de melhor comprador

Examinadas as causas do desuso do pacto de melhor comprador, resta indagar quais são as vantagens dele face à retrovenda dentro do sistema do atual Código Civil brasileiro.

Em linhas gerais, para o vendedor é mais conveniente a utilização da retrovenda do que o pacto de melhor comprador (pelos motivos já indicados91). A única exceção está no emprego desta última cláusula estruturada como condição suspensiva.

De fato, o pacto de melhor comprador pode valer por condição resolutiva ou suspensiva, conforme a vontade dos contratantes (no caso de dúvida, o “antigo” Código Civil brasileiro dispunha que ele deveria ter a natureza de condição resolutiva92). Já a retrovenda só pode configurar-se, diante da sua própria estrutura, como condição resolutiva93.

Abrem-se, com isso, três opções ao vendedor: ou ele faz uso do pacto de melhor comprador como condição suspensiva ou do pacto de melhor comprador como condição resolutiva ou, por fim, da retrovenda (sempre como condição resolutiva). Nos três casos, poderá o vendedor atingir fins semelhantes, porém só no primeiro (pacto de melhor comprador como condição suspensiva)

86 A in diem addictio também. ARCHI, a propósito do instituto romano, fala em “diritto di opzione del venditore” uma vez feita uma melhor oferta – cf. La restituzione dei frutti nelle vendite con “in diem addictio” e con “lex commissoria”. In Studi in memoria di Umberto Ratti (1934), pp. 327 a 329.O próprio verbo addico indica, normalmente, uma superioridade do vendedor com relação ao comprador, onde aquele subordina o negócio a condições que lhe são favoráveis – cf. TALAMANCA, Contributi cit., pp. 107 e 108; SIEG, Quellenkritische Studien zur Bessergebotsklausel (in diem addictio) im römischen Kaufrecht (1933), p. 3; BECHMANN, Der Kauf nach gemeinem Recht I (Geschichte des Kaufs im römischen Recht) (1876), pp. 43 e 446.Porém, como já se disse, o direito romano também construía, excepcionalmente, a in diem addictio como uma opção para o comprador – cf. Ulp. 28 ad Sab., D. 18, 2, 9.87 Cf. CLÁUDIA LIMA MARQUES, Contratos no código de defesa do consumidor (1999), pp. 133 e ss.88 Cf. GRINOVER et al., Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto (1999), pp. 480 a 484.89 O CDC, por exemplo, tem como pressuposto a “desvantagem exagerada” do consumidor na relação de consumo – cf. CLÁUDIA LIMA MARQUES, Contratos cit., p. 136.90 Tratando da retrovenda em função das relações de consumo, LôBO afirma que as tutelas do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor são “invertidas”: no primeiro proteger-se-ia o vendedor, no segundo, o comprador – cf. Comentários VI cit., p. 142.91 Em especial a desnecessidade de apresentar os motivos que o levou a desfazer o negócio, praticamente impossibilitando a oposição do comprador.92 O dispositivo do Código Civil revogado era o seguinte: artigo 1159 – “O pacto de melhor comprador vale por condição resolutiva, salvo convenção em contrário”. Já no atual, diante da falta de previsão legal, é evidente que não há nada que impeça que a referida cláusula seja estruturada como condição suspensiva ou resolutiva, a depender da vontade dos contratantes (esta deverá ser averiguada no caso de dúvida).Interessante lembrar que esta regra é idêntica à do direito romano (ao menos para o período justinianeu), onde deveria ser respeitado o que fora estabelecido pelas partes (id quod actum est).93 Atualmente, este ponto é pacífico na doutrina. Veja-se, a título de exemplo: AGOSTINHO ALVIM, Da compra e venda cit., p. 135; CARVALHO SANTOS, Código civil XVI cit., p. 178; BEVILÁQUA, Código civil IV cit., p. 311.94 Esta vantagem está implícita nas fontes romanas quando se trata da questão do falsus emptor. Com efeito, podia ocorrer que o vendedor quisesse desfazer a compra e venda sem que qualquer pessoa tivesse oferecido melhores condições; para tal, poderia, maliciosamente, declarar que um terceiro (não existente) fez uma melhor oferta (cujas condições seriam, provavelmente, muito diversas das oferecidas pelo primeiro comprador, para que este não conseguisse igualá-las) ou, então, apresentar um terceiro que, em conluio com o vendedor, faria uma melhor oferta para recuperar a coisa e, depois, entregá-la a este. Em tais casos, considerava-se como inexistente a nova oferta, permanecendo eficaz o primeiro contrato (cf., a título de exemplo, Ulp. 28 ad Sab., D. 18, 2, 4, 5).Claro, portanto, que, ao contrário do que ocorre na retrovenda, na in diem addictio (e também no pacto de melhor comprador) o vendedor não pode recuperar a propriedade da coisa (se resolutiva a condição) ou consolidá-la (se suspensiva), salvo se for feita uma melhor oferta por terceiro dentro do prazo contratual ou legal e o primeiro comprador, comunicado de tal fato, não quiser igualar a sua oferta à nova. E, ainda que tal ocorra, o vendedor deverá entregar a coisa ao novo comprador, não podendo permanecer com ela (a melhor oferta nunca pode ser feita pelo próprio vendedor com o fim de retomar a coisa).

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ele permanecerá proprietário da coisa até que o evento futuro e incerto (melhor oferta de terceiro) ocorra. Nos outros dois, deixará desde logo de ser o proprietário. As evidentes vantagens do vendedor na primeira situação decorrem justamente do fato de ele gozar ainda do status de proprietário.

Para o comprador, as duas maiores vantagens independem da estrutura do negócio e do seu objeto (deve-se lembrar que a retrovenda só pode incidir sobre coisas imóveis). Assim, de um lado, o pacto de melhor comprador não deixa ao puro arbítrio do vendedor o desfazimento do contrato, pois ele terá de alegar o oferecimento de uma melhor oferta de terceiro para poder exercer sua faculdade (na retrovenda, o exercício desta independe de qualquer fator externo à vontade do vendedor)94. De outro, ainda que um terceiro efetivamente tenha superado o preço pago pelo comprador, poderá este impedir o desfazimento da compra e venda se conseguir ao menos igualar a oferta do terceiro95 (o que equivale a dizer que, em igualdade de condições, terá preferência o primeiro comprador, não podendo o vendedor exigir a devolução da coisa – na retrovenda o comprador não tem como se opor à devolução do objeto da prestação)96.

É claro que há uma “zona comum” entre as duas cláusulas, em função da semelhança entre suas funções econômico-sociais; porém, como já foi visto, a entrada em vigor do “novo” Código Civil ocasionou uma significativa dilatação do campo de aplicação do pacto de melhor comprador97. De fato, com a exclusão da proibição expressa

de que referido pacto tivesse por objeto coisas móveis, junta-se àquelas vantagens uma nova (que favorece tanto o comprador quanto o vendedor): se a coisa for móvel, só pode haver pacto de melhor comprador e nunca retrovenda98.

Neste último caso, o maior beneficiado com a omissão legislativa foi o vendedor99: só para citar um exemplo, se este precisasse fazer uma venda emergencial de coisa móvel (para a aquisição de crédito rápido) ou querendo se resguardar de flutuações prejudiciais do mercado poderia hoje utilizar o pacto de melhor comprador e, com isso, conseguiria garantir a maior vantagem possível com a venda (no sistema do “antigo” CC ele não poderia utilizar nem o pacto de melhor comprador, nem a retrovenda, porque ambas não podiam incidir sobre coisas móveis)100.

Mas, a potencialidade do instituto não se esgota no direito civil. Há um significativo exemplo de sua aplicabilidade no direito processual civil: a arrematação101 tem sido freqüentemente apontada como um “ponto de estrangulamento para a fluidez do procedimento”102 executivo ou, ainda, como “ponto nevrálgico da execução por quantia certa contra devedor solvente”103. Os motivos são variados104. Dentre eles, está a exigência de uma segunda arrematação, caso na primeira não se tenha atingido o valor da avaliação (artigo 686, VI, CPC)105.

Aparentemente, a regra é importante porque visa garantir a obtenção do maior valor possível para a satisfação dos credores, sem prejuízo desmesurado aos interesses do devedor (no que se costuma chamar de “execução equilibrada”106). Aliás, esta justificativa, associada à

95 No “antigo” Código Civil (1916) havia disposição expressa a respeito: artigo 1161 – “O comprador prefere a quem oferecer iguais vantagens”. Já no sistema do atual, diante da falta de previsão expressa, deve-se, mais uma vez, verificar o que foi pactuado entre as partes e, na ausência de qualquer disposição, prepondera a regra segundo a qual o comprador pode, dentro de um prazo razoável, igualar a oferta de terceiro.Com efeito, esta é a única solução que atende à função econômico-social do referido contrato: uma vez que a finalidade do vendedor é simplesmente obter a maior vantagem com a disposição da coisa (sem preferência pela figura do comprador), não há porquê se impedir que o primeiro comprador iguale a oferta do segundo, mantendo eficaz o primeiro contrato. É de se ressaltar, porém, que é o vendedor quem deve analisar se a segunda oferta é ou não melhor do que a primeira, o que, evidentemente, possibilita a burla da regra (não há como se afastar o subjetivismo nesta aferição).Já quanto ao prazo para o comprador igualar a oferta, este dependerá do caso concreto (em especial do tempo que ainda restava para o oferecimento de uma melhor oferta por terceiro – e.g., se o prazo para este era de seis meses e o terceiro ofereceu melhores condições no segundo mês, é razoável a interpretação segundo a qual o comprador poderia tentar se igualar nos quatro meses seguintes).96 Sensível a estas vantagens e atento ao fato de que a sua retrovenda não é tão ampla quanto na Alemanha ou Itália, o legislador austríaco optou, corretamente, por regular expressamente um instituto semelhante ao pacto de melhor comprador – cf. ZIMMERMANN, The law of obligations cit., p. 744; CUNHA GONÇALVES, Tratado VIII – II cit., p. 524. Deveria ter o legislador brasileiro feito a mesma coisa, pois a estrutura da nossa retrovenda se assemelha muito à austríaca.97 Não se discute a possibilidade de sua aplicação no sistema do CC de 2002 – cf. CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Instituições III cit., p. 220; FERREIRA DA ROCHA, Curso avançado de direito civil III (contratos) (2002), p. 147.DEGNI deixa clara esta possibilidade no direito italiano anterior ao atual Codice Civile (que também não previa expressamente a cláusula) – cf. La compravendita cit., pp. 139 e ss. Para o atual direito italiano, cf. GRECO – COTTINO, Della vendita cit., pp. 26 e 27, BIANCA, La vendita cit., pp. 606 e ss. Já para o direito alemão, cf. PALANDT (org.), Bürgerliches Gesetzbuch cit., p. 545.98 Cf. CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Instituições III cit., pp. 220 e 221. Involuntariamente, o legislador pátrio acabou aproximando, neste ponto, o nosso sistema com o austríaco: cf. § 1070, ABGB (para a restrição do âmbito de aplicação da retrovenda) e §§ 1083 e ss., ABGB (para a regulamentação da Verkauf mit Vorbehalt eines besseren Käufers).99 Para o comprador, a única hipótese favorável possível é aquela na qual ele, incerto quanto à conveniência do contrato, quisesse abrir uma oportunidade de sair da transação diante de melhor oferta de terceiro (ele garantiria, desde logo, a aquisição da coisa, mas possibilitaria que um terceiro oferecesse melhores condições, caso em que, não mais interessando o negócio, não oporia qualquer resistência). Contudo, deve-se admitir que tal conjectura é de improvável realização.100 Imagine-se um fazendeiro proprietário de um rebanho bovino que, por qualquer motivo, tivesse que rapidamente vender parte de suas “cabeças” de gado sabendo que o valor delas seguia uma tendência de aumento nas semanas seguintes. No sistema do outro Código Civil, se ele não tivesse como evitar a venda, amargaria prejuízo. No sistema atual, poderia usar a referida cláusula no contrato de compra e venda e, em função disso, caso sua expectativa de mudança favorável do mercado se concretizasse, certamente surgiria um terceiro que ofereceria um melhor preço (ou condições), garantindo-lhe uma situação mais favorável.101 Normalmente conceituada como um ato de expropriação em que o bem penhorado se sujeita a um procedimento de alienação ao público. Cf. HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, Curso de direito processual civil II (Processo de execução e processo cautelar) (1997), p. 223; PONTES DE MIRANDA, Comentários ao código de processo civil X (Arts. 612-735) (2002), pp. 259 e 260. Genericamente, sobre a arrematação, cf. ARAKEN DE ASSIS, Manual do processo de execução (2002), pp. 730 e ss. (regras gerais sobre a arrematação) e 973 e ss. (arrematação na execução da Fazenda Pública).102 ARMELIN, O processo de execução e a reforma do código de processo civil. In Reforma do código de processo civil (1996), p. 714.103 CARMONA, O processo de execução depois da reforma. In Reforma do código de processo civil (1996), p. 761.104 E vão desde “exigências de publicidade e cautela que a cercam para lhe assegurar maior operatividade em favor da execução” –ARMELIN, O processo de execução cit., p. 714 – até o seu excessivo formalismo, cujo descumprimento, por vezes, acarreta a nulidade de todo o ato – CARMONA, O processo de execução cit., p. 761. Genericamente, sobre a nulidade da arrematação: ARAKEN DE ASSIS, Manual cit., pp. 784 e 785.105 Na segunda arrematação será aceito qualquer lanço, desde que o preço não seja vil (artigo 692, CPC).106 Há, com efeito, uma série de disposições no CPC que, direta ou indiretamente, constituem um “limite político à execução” – DINAMARCO, Execução civil (1994), pp. 303, 306 e 307. Assim, “existe um sistema de proteção ao executado contra excessos, um favor debitoris inspirado nos princípios da justiça e da eqüidade, que inclusive constitui uma das linhas fundamentais da história da execução civil em sua generosa tendência de humanização” (DINAMARCO, op. cit., p. 304, em especial nt. 24, em que faz referência à definição do direito como ars boni et aequi). Sobre um aspecto dessa tendência de humanização da execução, cf. dois trabalhos de POVEDA VELASCO: A execução do devedor no direito romano (“beneficium competentiae”) (2002), e A execução do devedor no direito intermédio (“beneficium competentiae”) (2002).107 Quanto a esta, só para citar um exemplo, há o seguinte julgado do STJ, que justificou a exigência de uma segunda arrematação para garantir “maior segurança jurídica” para o credor e permitir “a satisfação do crédito por valor adequado”: Resp. 201.384/São Paulo, 2ª Turma, rel. Min. Francisco Peçanha Martins, data do julgamento: 05/12/2000, publicado no DJU de 19/02/2001, p. 155.

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proteção de princípios constitucionais da Administração Pública, fez com que a doutrina e a jurisprudência107 nacionais entendessem (majoritariamente) que, apesar da ausência de previsão na Lei 6.830/80, também deverá haver uma segunda arrematação na execução fiscal se não houver lanço superior à avaliação na primeira108.

Se, em tese, a regra é boa, na prática, tem se mostrado de uma inconveniência evidente. Com efeito, sabe-se (estatisticamente) que dificilmente ocorre a arrematação em primeiro leilão109, já que os interessados na coisa penhorada preferirão esperar pela segunda arrematação, quando poderão fazer lanços inferiores ao valor da avaliação110 (hipótese vedada para a primeira arrematação)111. O custo e a maior demora em função dessa regra não interessam a nenhum dos envolvidos na arrematação e vão contra as tendências do direito processual civil brasileiro112.

Não obstante, poucos abordam o problema e propõem uma solução113, que, de forma inesperada, pode ser encontrada no direito romano114 (em especial para as execuções fiscais). De fato, é quase inegável a conexão entre a in diem addictio e a auctio115 (quando do surgimento daquela): para alguns autores, a adjudicação provisória nas vendas públicas (após a licitação116) originalmente se realizava mediante uma in diem addictio (daí se afirmar que este instituto teria surgido na prática das vendas fiscais117); para outros, a in diem addictio foi um mecanismo criado para poupar o vendedor da demora e do custo elevado da auctio118. Em qualquer das hipóteses, a ligação entre in diem addictio e a auctio é evidente (no primeiro caso, a in diem addictio tinha a função de garantir ao fisco a maior vantagem com a disposição da coisa; já no segundo, visava afastar os citados inconvenientes da auctio).

Ora, nada impede que, de lege ferenda, afaste-se a regra da dupla arrematação do direito brasileiro (sem grande utilidade prática) e se crie um sistema no qual seria realizada uma única arrematação, que daria ensejo a

uma adjudicação provisória sujeita a um pacto de melhor comprador (na arrematação, já poderiam ser feitos lances de valores inferiores à avaliação, desde que, evidentemente, não fossem de “preço vil”)119. Em outros termos, aquele que fizesse o melhor lanço na única arrematação, desde logo, já seria considerado vencedor, sujeitando-se, contudo, a eficácia do ato a uma condição (suspensiva ou resolutiva120): de que não fosse oferecida melhor oferta dentro de um prazo determinado.

As vantagens de tal sistema são evidentes: a) os arrematantes já se sentiriam estimulados a participar da única arrematação (e não esperar para fazer melhor oferta posteriormente), pois o lanço poderia já ser inferior ao valor da avaliação (no sistema atual, isto só é permitido na segunda arrematação); b) o devedor e o Poder Público (nas execuções fiscais) não poderiam ser considerados prejudicados, visto que a construção possibilita que o crédito seja satisfeito por valor adequado (“execução equilibrada”); c) há economia para os envolvidos, já que afastados os custos da segunda arrematação; d) simplifica-se o procedimento da arrematação, afastando formalismos inúteis; e) não há afronta a qualquer princípio do processo civil (na verdade, há uma maior adequação deste sistema àqueles).

Exemplo muito interessante dessa aplicação do pacto de melhor comprador na venda em hasta pública já há em Navarra (região autônoma do norte da Espanha, limítrofe à França). De fato, na Compilación del Derecho Civil Foral de Navarra (ley 1, de 01 de março de 1973) não há a previsão de uma obrigatória dupla arrematação, embora a adjudicação provisória feita àquele que ofereceu a posición más ventajosa para o poder público (ley 575. 1, da referida Compilación) esteja sujeita à seguinte condição121:

“Dentro del plazo de seis días a contar de la adjudicación provisional, cualquiera de los licitadores

108 Hoje, a matéria já se encontra até sumulada (S. 128, STJ), porém ainda tem sido bastante discutida, havendo os que defendem a inconveniência dessa interpretação. Cf. FERNANDES et al., Lei de execução fiscal comentada e anotada (2002), pp. 328 e 329; ARAKEN DE ASSIS, Manual cit., pp. 974 e 975; HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, Lei de execução fiscal (1993), p. 83.109 “Estatística realizada nas Varas de Execuções Fiscais da Justiça Federal de São Paulo e no Setor de Execuções Fiscais da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo indica que em menos de 0,5% (meio por cento) dos casos os bens são arrematados em primeiro leilão” – FERNANDES et al., Lei de execução fiscal cit., p. 329.110 Desde que o preço não seja “vil” (artigo 692, CPC). Cf. DINAMARCO, A reforma do código de processo civil (1995), p. 255; ARAKEN DE ASSIS, Manual cit., pp. 773 e ss.; PONTES DE MIRANDA, Comentários X cit., pp. 291 e 292; FERNANDES et al., Lei de execução fiscal cit., p. 336.111 Para outras justificativas, seja do ponto de vista dos arrematantes, seja da Fazenda Pública, seja do executado, cf. FERNANDES et al., Lei de execução fiscal cit., p. 329.112 Dentre as “tendências modernas do processo civil brasileiro” está a “aceleração do processo”, que implica na formação de “uma verdadeira consciência racional – seja para que o legislador ouse prosseguir ditando normas conducentes à eliminação de formalismos inúteis, seja para que os juízes as pratiquem” –DINAMARCO, Instituições de direito processual civil I (2001), p. 290.113 Uma das raras propostas, centrada na Lei 6.830/80, foi a de inserir a expressão “e único” após o termo “público” no caput do seu artigo 23 – cf. FERNANDES et al., Lei de execução fiscal cit., p. 329 (esta alteração implicaria na exclusão da necessidade de uma segunda arrematação nas execuções fiscais). Não é a melhor solução, pois não soluciona os graves inconvenientes apontados pela doutrina para a arrematação única. Cf. ARAKEN DE ASSIS, Manual cit., pp. 974 e 975; HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, Lei de execução fiscal cit., pp. 82 e 83.114 A comparação entre o processo civil moderno e o romano, além de viável, é muito importante no nosso caso. Com efeito, são notáveis as semelhanças entre a execução civil singular atual e a romana (a execução coletiva apresenta diferenças mais marcantes).Para citar um exemplo muito significativo, é praticamente pacífico entre os romanistas que a venda do pignus in causa iudicati captum era feita numa arrematação “pública”, cujo procedimento seguia regras muito próximas às atuais (inclusive quanto à proibição de lanço de preço “vil” – dignum pretium); a única diferença marcante é que a regra, no direito romano, era a realização de uma única arrematação, enquanto no Brasil, a dupla arrematação se impõe na prática – Cf. Alex., C. 8, 22, 2 (de 223 d.C.), e TALAMANCA, La vendita all’incanto nel processo esecutivo romano. In Studi in onore di Pietro de Francisci II (1956), pp. 250 e ss.Genericamente sobre as origens romanas de regras do direito processual moderno, cf. BIONDI, Intorno alla romanità del processo civile moderno. In BIDR 42 (1934), pp. 356 e ss.115 A auctio era o equivalente romano da venda em hasta pública.116 Com este termo quer-se indicar o ato de fazer lances (lanços) em uma venda em hasta pública e não o procedimento típico do direito administrativo.117 Cf. D’ORS, In diem addictio (contribución a la crítica de la teoría de las condiciones en derecho romano). In AHDE 16 (1945), pp. 204 e ss.; Recensão a Talamanca, Contributi allo studio delle vendite all’asta nel mondo classico. In IURA 7 (1956), p. 226.118 Cf. TALAMANCA, Contributi cit., p. 107.119 Contra este sistema não se pode alegar que o pacto de melhor comprador somente poderia ser utilizado na venda de imóveis, uma vez que, como já foi visto, o “novo” Código Civil não repete mais a proibição do anterior quanto aos móveis.120 No caso de condição resolutiva, como o arrematante já teria a propriedade resolúvel do bem, é conveniente a exigência de uma garantia.121 Sobre este dispositivo, cf. CASTAN TOBEÑAS, Derecho civil español, comum y foral IV (derecho de obligaciones – las particulares relaciones obligatorias) (1993), p. 195; D’ORS et al., Comentarios al código civil y compilaciones forales XXXVIII – II (leyes 488 a 596 y disposiciones transitorias, adicional y final de la Compilación o Fuero Nuevo de Navarra) (2002), pp. 444 e ss.122 O termo espanhol para as vendas públicas de bens mediante licitação é derivado do latim “subhasta vendere” – cf. CASTAN TOBEÑAS, Derecho civil IV cit., p. 153, nt. 1.

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podrá pedir que se le adjudique la cosa, consignando el precio de la adjudicación provisional mejorado en una sexta parte por lo menos. En caso de ser varios los que hubieren ejercitado este derecho, dentro de los cuatro días siguientes se celebrará sólo entre los mejorantes una nueva subasta, cuyo remate será definitivo” (ley 575. 5, da Compilación).

A hipótese desta ley nitidamente se adéqua à configuração de um pacto de melhor comprador (in diem addictio), pois, no prazo de seis dias, pode ser feito novo lance (no mínimo de valor 1/6 superior ao anteriormente oferecido), caso em que será feita nova adjudicação ao novo ofertante (se único) ou será realizada em quatro dias uma nova hasta pública – subhasta122 (se houve a oferta de melhores condições por mais de uma pessoa). A contrario sensu, se não houve nenhum novo lance (no prazo de seis dias), a adjudicação se torna definitiva.

Tal procedimento não é novo em Navarra, tendo se consolidado ao longo das últimas décadas. Com efeito, antes deste dispositivo já havia outros equivalentes, em especial os artigos 575 a 601 do Reglamento para la Administración Municipal de Navarra (de 1923)123. Assim, esta regulamentação das hastas públicas na Compilación refletem os “usos y costumbres y la prática jurídica em Navarra”124.

De outro lado, a influência do direito romano (em especial da in diem addictio) neste procedimento é flagrante e não deve causar estranheza. O sistema jurídico espanhol apresenta a peculiaridade de permitir uma dualidade entre um “direito comum” (consolidado no Código Civil espanhol) e “direitos forais” (elaborados pelos parlamentos

das comunidades autónomas, dentre as quais Navarra)125. Especificamente quanto ao direito foral de Navarra, a sua Compilación del Derecho Civil Foral (indicada acima) regula diversos aspectos do direito civil (de modo complementar ao Código Civil espanhol) e admite expressamente o emprego do direito romano, que faz parte da tradición jurídica navarra (ley 1 da Compilación126).

Deste modo, embora o Código Civil espanhol não tenha nenhum dispositivo expresso sobre o pacto de mejor comprador127, a Compilación de Navarra vinculou a adjudicação na hasta pública ao oferecimento de uma melhor oferta (no mínimo 1/6 superior à anteriormente aceita) no breve prazo de seis dias, por influência do direito romano, tendo em vista que normalmente se sustenta que a venda de bens do fisco era revogável diante da oferta de novas condições dentro de um (largo) prazo.

Mas, ainda que se conclua pela inexistência desta revogabilidade em Roma (e, em função disso, se negue a origem romana da referida norma espanhola)128, não se pode contestar a conveniência do sistema instituído por Navarra, que atinge todas as vantagens (acima enumeradas) do emprego do pacto de melhor comprador na hasta pública (afastando a obrigatoriedade da dupla arrematação)129.

Abstract: The “best-buyer agreement” is a special clause in the buying and selling contract which subjects it to the effects of the supply, within a certain time period, of the best conditions (advantages) to the third party. During the more than eighty years of the Civil Code being in force from 1916 (where it was expressly provided for – articles 1.158 and following), it was barely studied, because it was hardly ever applied. The few scholars who commented it

123 Cf. D’ORS et al., Comentarios XXXVIII – II cit., p. 454. Já para a o contrato de compra e venda na legislação de Navarra anterior à Compilación, cf. BADENES GASSET, El contrato de compraventa II (1969), pp. 1258 e ss.124 São citados precedentes históricos (já do final do século XVIII) em D’ORS et al., Comentarios XXXVIII – II cit., p. 448, nt. 4.125 Essa dualidade já estava prevista desde a Ley de bases de 11 de maio de 1888 (item 5), foi mantida pelo Código Civil (artigos 13 e ss.) e confirmada pela atual Constituição da Espanha. A propósito desta última, o item 8º do seu artigo 149. 1. diz que: “1. El Estado tiene competencia exclusiva sobre las siguientes materias: ... 8ª. Legislación civil, sin perjuicio de la conservación, modificación y desarrollo por las Comunidades Autónomas de los derechos civiles, forales o especiales, allí donde existan. En todo caso, las reglas relativas a la aplicación y eficacia de las normas jurídicas, relaciones jurídico-civiles relativas a las formas de matrimonio, ordenación de los registros e instrumentos públicos, bases de las obligaciones contractuales, normas para resolver los conflictos de leyes y determinación de las fuentes del Derecho, con respeto, en este último caso, a las normas del derecho foral o especial”.126 “Como expresión del sentido histórico y de la continuidad del Derecho Privado Foral de Navarra, conservan rango preferente para la interpretación e integración de las Leyes de la Compilación, y por este orden: las Leyes de Cortes posteriores a la Novísima Recopilación; la Novísima Recopilación; los Amejoramientos del Fuero; el Fuero General de Navarra; los demás textos legales, como los fueros locales y el Fuero Reducido, y el Derecho Romano para las instituciones o preceptos que la costumbre o la presente Compilación hayan recibido del mismo”.127 Não se pode, contudo, negar a possibilidade de sua utilização, diante da autonomia negocial – cf. CASTAN TOBEÑAS, Derecho civil IV cit., pp. 155 e 156.A razão provável para a não inclusão expressa dessa cláusula no Código Civil espanhol é o fato deste ter sido muito influenciado pelo Code Civil francês, que também não regulamenta o instituto (embora preveja a faculté de rachat ou de réméré, muito mais ampla e benéfica ao vendedor – artigos 1659 e ss.). Há, contudo, outros motivos, como já foi explicado ao se tratar do pacto de melhor comprador no Código Civil brasileiro de 1916, uma vez que o retracto convencional do Código Civil espanhol (artigos 1507 e ss.) tem uma extensão muito semelhante à da retrovenda brasileira) – cf. WIEACKER, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit unter besonderer Berücksichtigung der deutschen Entwicklung (1967), trad. port. de BOTELHO HESPANHA, História do direito privado moderno (1980), p. 394. Sobre o retracto convencional do Código Civil espanhol, cf. CASTAN TOBEÑAS, op. cit., pp. 162 e ss.; BADENES GASSET, El contrato II cit., pp. 879 e ss. (aliás, este último autor enfatiza as diferenças entre o retracto convencional e o pacto de mejor comprador – pp. 899 e ss.).Ademais, é interessante lembrar que esta cláusula especial da compra e venda era uma das poucas condições resolutivas deste contrato reproduzidas expressamente pelas Siete Partidas (P. 5, 5, 40), que foram uma exposição de caráter doutrinal do sistema jurídico espanhol do século XIII, muito baseada no direito romano (e que influenciou a evolução do direito português antes das Ordenações Afonsinas – século XV).O referido dispositivo, que nitidamente derivou da in diem addictio romana, era o seguinte (P. 5, 5, 40): “ ‘Del pleito que el vendedor pone en la cosa que vende so condición’. Usan los hombres en las vendidas otra manera de pleito como cuando dice el vendedor al comprador; véndote tal mi viña por tanto precio sobre tal pleito, que si yo hallare quien me dé más por ella hasta tal día que lo pueda hacer. E decimos que si la vendida fuese hecha de esta guisa e el vendedor hallase hasta aquel día quien le diese mayor precio por la viña, o que le mostrase alguna otra mejoría que el otro le prometía a dar en la compra, debe esto hacer saber al primero comprador cuanta es la mejoría que el otro le prometía a dar. E si él le cumpliere aquella mejoría, débela recebir de él e dejarle la viña dándole el precio sobredicho con la mejoría. E si esto no quisiere cumplir el primeiro comprador, no vale la vendida, e es tenido el comprador de tornale la viña con los frutos que recebió de ella, sacando primeramente las despensas que hizo en cogerlos. Pero si el que pujarse el precio, así como sobredicho, es fuese hijo o siervo de aquél que vendió la cosa, u otro que lo hiciese engañosamente por su consejo, entonces no sería tenido el comprador de tornarla ni de guardar el pleito” – extraído da recente edição crítica de SANCHEZ-ARCILLA BERNAL (org.), Las Siete Partidas (el Libro del Fuero de las Leyes) (2004), p. 712.Para uma visão superficial da importância das Siete Partidas, sua elaboração e influência sobre o direito português, cf. ALMEIDA COSTA, História do direito português (1996), pp. 235 e 236; GOMES DA SILVA, História do direito português (fontes de direito) (1991), pp. 207 e 208; além do “estudio introductorio” da edição crítica de SANCHEZ-ARCILLA BERNAL (org.), op. cit., pp. XIII e ss.128 Esta posição se sustenta pela interpretação conjunta de Paul. 3 decr., D. 49, 14, 50, e P. Oxy. 2269 (de 269 d.C.). Aliás, naquela passagem do Digesto há a referência a uma addictio provisória que poderia se tornar definitiva em função do não oferecimento de melhores condições dentro de um prazo determinado: mais uma vez, a semelhança desta regra com a da compilación de Navarra é evidente (esta utiliza a expressão “adjudicación provisional”). Cf. CASTAN TOBEÑAS, Derecho civil IV cit., p. 195.129 Para uma comparação entre a in diem addictio e a venda em hasta pública no direito francês, cf. TROPLONG, Le droit civil expliqué suivant l’ordre du code (de la vente) (1844), pp. 43 e 44.

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(briefly) did not indicate the most excellent causes of its disuse: the restriction of its object to the immovable things and the existence of one another clause which replaced it efficiently (the “sale with the right of redemption”).

Curiously, with the intention of taking the best-buyer agreement out of the legal system, the 2002 legislator created the conditions necessary to its revival, given that the absence of legal prevision broadened the ambit of application. Thus, our present legal system has allowed the revitalization of this clause which, being little studied, will provoke various doubts in its utilization.In summary, from a analysis of the in diem addictio, a better understanding of the consequences of the exclusion of the best-buyer agreement from the “new” Brazilian Civil Code is sought, as well as to verify the convenience (or otherwise) of the existence of some express rules in its respect (for this purpose, the German, Argentine, Austrian, Chilean, Colombian, Italian and Uruguayan Codes will be referred to briefly, as well as the Sketch by TEIXEIRA DE FREITAS). Furthermore, this comparison between the best-buyer agreement and the in diem addictio, supplies important examples of its application (although outside civil law), such as in the executions for a certain amount against solvent debtors, when the best-buyer agreement can serve to attenuate practical difficulties of regulation of the auction.

Keywords: sale, best-buyer agreement, sale with the right of redemption, “in diem addictio”, auction.

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DIEGO CORAPIProfessor titular de Direito Privado Comparado na Facultade de Direito da Universidade de Roma La Sapienza e de

Direito Comercial na Escola pelas Profissiões Juridicas na mesma Facultade. Membro da Académie Internationale de Droit Comparé, da Association Internationale pour l’Arbitrage, da London Court for International Arbitration. Advogado.

Cultura e Diritto Commerciale:La Situazione Italiana

Resumo. Il tema “Diritto e Cultura” oggetto delle Journées 2008 dell’Association Henri Capitant degli amici della cultura giuridica francese, è stato trattato anche con riferimento al diritto commerciale. Le prospettive fondamentali in materia sono state indicate in un questionario dal relatore generale, prof. Ramon Dominguez Aguila (Università di Conception – Chile) e la loro risposta con riferimento al diritto commerciale italiano è l’oggetto del presente studio. Si esamina perciò la collocazione del diritto commerciale nell’attuale sistema giuridico italiano, sottolineando l’evoluzione derivante dallo sviluppo della società industriale e il superamento del suo carattere di diritto dei “mercanti” (Lex mercatoria): l’unificazione del codice di commercio e codice civile attuata nel 1942 fu un prodotto di questa evoluzione. Si segnalano poi le più importanti novità italiane in tema di organizzazione giuridica del commercio, diritto delle società,

diritto del credito e delle istituzioni finanziarie e diritto fallimentare.Palavras Chaves: Diritto commerciale. Lex mercatoria. Codice di commercio. Codice civile. Camera di commercio.

Diritto delle società. Diritto del credito. Credito al consumo. Diritto delle istituzioni finanziarie. Insolvenza. Diritto fallimentare.

1. L’associazione Henri Capitant degli amici della cultura giuridica francese, ha tenuto nel 2008 le sue annuali Journées a Baton Rouge, capitale della Luisiana. La scelta del luogo ha avuto anche il significato di celebrare il bicentenario del codice civile, che adottato sulla scorta del Code Napoléon quando la Luisiana era colonia francese, è rimasto in vigore anche dopo la vendita di quei territori agli Stati Uniti.

Il tema generale dell’incontro è stato Droit et culture, per sottolineare, proprio sulla scorta dell’esempio della Luisiana, paese di civil law in un contesto di common law, da un lato che il diritto è elemento della cultura di un paese e, d’altro lato, quanto la cultura sia rilevante nella formazione e attuazione del diritto di un paese.

2. Come d’abitudine il tema generale delle Journées è stato trattato in diverse sessioni con riferimento ognuna alle diverse aree del diritto.

In ogni sessione, poi, un relatore generale è stato incaricato di coordinare, e presentare le riflessioni sul tema da parte dei relatori dei diversi paesi.

Per il diritto commerciale (droit des affaires) il relatore generale, prof. Ramon Dominguez Aguila dell’Università di Conception (Cile), ha inviato ai relatori nazionali il seguente questionario.

Le sujet des prochaines Journées Henri Capitant qui tiendront lieu à Bâton Rouge, Louisiane a été proposé par le groupe louisianais en relation avec la célébration du bicentenaire du Code Civil de 1808. Il paraît alors nécessaire d’examiner le rapport entre la culture de cet état

des USA et son droit, quelles sont les relations de cause à effet entre sa culture et le droit actuel.

Ce même examen peut être fait, bien sur, pour tout autre droit, à fin de pouvoir comparer ces relations et de distinguer les éléments culturels qui sont à la base du droit de chaque pays et qu’il conviendrait de préserver.

Les questions qui suivent ne sont qu’une suggestion pour les rapporteurs nationaux, car le sujet et très vaste et permet une grande diversité de points de vue pour l’aborder, sans être en même temps sociologue, anthropologue, mais seulement juriste.

Il n’est pas nécessaire de choisir une définition précise de culture, notion difficile à préciser, mais conçue d’une manière large permet un examen profond du sujet. En plus, le questionnaire qui suit n’a pas été élaboré en pensant à un ordre précis, mais plutôt en proposant divers points de vue pour aborder le sujet dans chaque droit national.

Les relations entre droit et culture sont variées et c’est pourquoi il conviendra ne pas aborder tous les points de vue à partir desquels on peut se situer pour les examiner.

Dans un monde plus ouvert et «globalisé», comme c’est la mode de le qualifier, les affaires semblent être plus impersonnelles et soumises à des buts d’efficacité et il semblerait donc que le droit des affaires est celui qui est le moins en rapport avec la culture de chaque pays. Et pourtant, c’est aussi un lieu commun, affirmer qu’historiquement certaines cultures ont favorisé l’épanouissement du capitalisme ou que certaines traditions juridiques sont contraires au développement. Il est donc d’examiner les relations entre culture et affaires et donc entre culture et

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droit des affaires, soit pour déceler les facteures culturels qui peuvent expliquer certaines singularités de quelques institutions de droit économique d’un pays, soit pour examiner si des aspects de la culture ont pu être modifiés par l’intervention des modèles juridiques importés.

On Vous propose donc de faire cet examen dans quelques aspects du droit des affaires, mais bien sur, chaque rapport pourra les adopter ou bien prendre d’autres.

I - LA CULTURE ET L’ORGANISATION JURIDIQUE DU COMMERCE.

Quels seraient les aspects de l’organisation juridique du commerce et des commerçants qui, selon vous, reflètent les singularités de la culture de votre pays? Par. ex.: dans les institutions qui groupent les commerçants ou les artisans, ou les grandes entreprises.

Dans certains pays, les chambres de commerce ont un grand rôle culturel et interviennent même dans l’éducation En est-il le cas dans votre pays?

I - LE DROIT DES SOCIETES.

Les traditions culturelles de votre pays peuvent-elles expliquer l’adoption plus commune de certains types de sociétés, par rapport à d’autres, ou la création de certaines formes de sociétés ou d’organisation économique?

Y – a- t-il des secteurs de la vie économique où la société dans ses diverses formes n’est pas ou très peu utilisée, par ex. parce que les traditions culturelles sont individualistes?

Existe-t-il dans votre tradition culturelle, des organisations sans but lucratif qui ont pu résister aux ouvertures des marchés de la concurrence, telles que les coopératives traditionnelles? Où, au contraire, tendent-elles à disparaître? Par ex dans certains pays de l’Amérique du Sud les coopératives formaient une part de la tradition culturelle plus ancienne, mais il est rare aujourd’hui qu’elles puissent survivre l’ouverture des marchés.

III - LE DROIT DU CREDIT ET DES INSTITUTIONS DE FINANCEMENT.

Il est certain et même banal de dire que les formes de financement actuelles ont transformé les habitudes dans tous les pays. Mais il serait intéressant d’apprécier en quelle mesure cela est vrai. Par ex. dans le pays du rapporteur général, tout fonctionne aujourd’hui avec des cartes de crédit émises par les grandes chaînes du commerce. Si cela a permis l’accès à la consommation pour tout le monde, en même temps on signale qu’on a perdu des vertus traditionnelles de sobriété et d’épargne. Pouvez vous dire

autant dans votre cas? Est-ce que ces formes de crédit ont porté de la transformation dans la culture du commerce traditionnel (par ex. disparition des petits commerces)?

Dans les pays où il existe des banques et des insititutions de financement privées et éthiques, quelles sont celles qui jouissent le plus de la confiance des habitants? Et pourquoi?

Est-ce que dans la culture de votre pays, l’obtention de gain d’argent est admis comme naturel et normal ou il est contraire aux traditions, par ex. religieuses? Si c’est le dernier cas, comment s’organise donc le crédit pour ne pas porter lésion aux croyances ou à la culture?

L’introduction dans votre droit des contrats de crédit importés d’autres droits (par ex le crédit-bail) a-t-elle emporté des changements culturels? Dans quelle mesure les comportements culturels de votre pays ont-ils à leur tour modifié la technique originale de ces contrats?

IV.- LE DROIT DE LA FAILLLITE.

La faillite est perçue très différemment selon les cultures. Parfois, là où la culture de l’efficacité est dominante, elle n’est qu’un moyen de rediriger les ressources vers des buts plus efficaces; mais dans d’autres cultures, elle est vue comme un manquement à la parole donnée et donc un déshonneur. Vue d’un point de vue culturel, que-est-ce que la faillite dans votre culture? Est-que les changements opérés dans l’économie ont aussi signifié une vue différente sur la faillite?

3. Per rispondere al questionario ho presentato le note seguenti sulla cultura e il diritto commerciale in Italia.

3.1. Introduzione

Nel contesto di questa analisi considero opportuno, e in ogni modo sufficiente, basarsi su una definizione di cultura abbastanza larga : cosi la cultura si presenta come l’insieme dei tratti che caratterizzano una società.

In tale maniera, il concetto di cultura è indotto ad identificarsi con quello di “civilizzazione”. Ora, nella tradizione occidentale, il diritto, concepito come l’insieme delle istituzioni e delle regole volte a risolvere i conflitti e regolare i rapporti tra gli uomini in una società determinata, si rivela un elemento imprescindibile e caratteristico della società occidentale nei confronti delle altre civilizzazioni e culture. La civilizzazione occidentale è la “Western legal tradition”1.

Da qui deriva il rapporto d’influenza reciproca tra la cultura e il diritto. Da una parte le istituzioni giuridiche fanno parte della cultura di un paese (cultura giuridica esterna); d’altra parte la cultura, cioè i valori, le credenze,

1 H.J Berman, Law and Revolution. The Formation of the Western Legal Tradition, Harvard Univ. Press., 1983; F. Wieacker, Foundations of European Legal Culture, in American Journal of Comparative Law, 1990, p.4; A.Schiavone, IUS. L’invenzione del diritto in Occidente, Torino, 2005.

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le consuetudini, le modalità specifiche di formazione nonché i comportamenti degli operatori del diritto (cultura giuridica interna), influenzano le istituzioni giuridiche2.

Il diritto degli affari e, in senso più largo, il diritto commerciale ha giocato un ruolo fondamentale in seno a questa tradizione dalla sua nascita (o dal suo rinascimento) in Europa nel corso dell’XI° secolo. Il diritto commerciale o diritto dei mercanti – la lex mercatoria, insieme alla riscoperta del diritto romano e alla formazione del diritto canonico, ha rappresentato una delle linee direttrici dello sviluppo delle istituzioni giuridiche e sociali nei paesi occidentali; così, il diritto commerciale ha preparato il terreno per la creazione e l’applicazione delle regole concernenti l’attività economica3. Inoltre, la sua natura trasnazionale ha contribuito a regolare la vita dei traffici commerciali, e a formare il suo carattere autonomo: questa caratteristica , che si rivela al livello della giurisdizione nell’esistenza dei Tribunali di Commercio, ha, giocato un ruolo importante nell’apertura del diritto degli affari allo sviluppo di istituti e di regole comuni.

Con l’avvento degli Stati moderni, poi, il diritto degli affari è stato integrato all’interno di ogni sistema giuridico statale e, ove la codificazione ha attecchito, è diventato l’oggetto di un codice specifico: il codice di commercio.

Nello stesso tempo, le esigenze della società industriale hanno portato il diritto commerciale alla sua oggettivazione, nonché al superamento del suo carattere di diritto corporativo adatto alla categoria dei “mercanti”. L’evoluzione si è compiuta in quei paesi (Svizzera nel 1912, Italia nel 1942, Paesi Bassi nel 1992 e Brasile nel 2002) che, preso atto dell’influenza delle attività economiche d’impresa sulla vita sociale, sono arrivati a unificare il diritto delle obbligazioni in un unico codice civile e hanno anche abolito la giurisdizione separata dei Tribunali di Commercio.

Per valutare l’importanza dell’influenza reciproca tra cultura e diritto degli affari, occorre anche tener conto, da un lato, dell’attuale e ulteriore evoluzione dell’attività commerciale delle imprese – che deriva senza dubbi dall’eredità storica - caratterizzata dal suo carattere globale e suscettibile di ridare al diritto degli affari il suo tratto trasnazionale, e d’altro lato, della sua influenza irresistibile sui rapporti quotidiani che rende necessaria l’introduzione di una protezione più importante dei consumatori e degli utenti dei servizi offerti dalle imprese; in effetti, ormai la protezione dei consumatori deve essere qualificata come un aspetto fondamentale della garanzia dei diritti dell’uomo e del cittadino sul piano universale.

Il sistema giuridico italiano partecipa di questa evoluzione, e tenendo conto di essa si passa ora a dare alcune informazioni sugli aspetti del diritto degli affari menzionati dal relatore generale, prof. Ramon Horacio Dominguez Aquila.

3.2. - La Cultura e L’organizzazione Giuridica del Commercio

In Italia, le imprese commerciali, artigianali e industriali sono raggruppate in diverse organizzazioni di categoria e hanno tutte articolazioni a livello regionale.

Il prevalere d’imprese piccole o medie in ogni tipo di attività economica produce conseguenze dirette sulla loro regolamentazione giuridica. La nozione d’imprenditore e il suo statuto (art. 2082 e s. del codice civile) riguarda ogni tipo di impresa . In linea di principio le obbligazioni concernenti la tenuta della contabilità e la pubblicità sono comuni a tutte le imprese, anche se gli artigiani, i piccoli commercianti e le piccole imprese godono di regole semplificate e non sono sottoposti al fallimento né alle altre procedure concernenti le imprese in difficoltà.

Un modello molto interessante di organizzazione che può essere messa in opera da imprese di uno stesso settore risiede nella formazione dei “distretti industriali” e delle “reti di imprese” che consentono alle imprese che partecipano di mettere in comune una serie di servizi, con semplificazioni amministrative e altri vantaggi di organizzazione.

I “distretti industriali” si presentano generalmente come realtà compatte sul territorio: in effetti, capita spesso che le piccole o medie imprese di un determinato settore artigianale o industriale, siano tutte impiantate nella stessa regione (ad es., le fabbriche di mobili nella zona di Pesaro; le oreficerie di Valenza Po; le industrie di pelletteria in alcune città della Toscana, etc). Le “reti di imprese” sono ugualmente collegamenti tra imprese che svolgono attività similari o complementari e che hanno necessità di sviluppare tecnologie o metodi produttivi comuni, anche se impiantate in diverse zone del territorio. In entrambi i casi, si tratta dell’eredità culturale delle attività sviluppate all’origine in maniera artigianale, che proseguono nell’attività industriale odierna.

In Italia, le Camere di Commercio, Industria e Artigianato, create dalla legge n. 680 del 6.7.1862, danno luogo ad una rete di organismi pubblici, senza scopo di lucro, presenti in ogni provincia e che operano nell’interesse generale dell’economia del territorio grazie ad attribuzioni di funzioni amministrative dello Stato e delle regioni (decisione del Consiglio di Stato sez. II, 15.03.2006 n. 2975/04). Peraltro, le Camere di commercio sono preposte a compiti notevoli, non soltanto nella promozione e nella formazione della cultura d’impresa, ma pure in materia di protezione della concorrenza ai termini dell’articolo 117, 2° comma, lett. G della Costituzione; inoltre tengono e aggiornano il registro delle imprese e operano un opportuna perequazione finanziaria tra i diversi organi delle Camere

2 Si tratta della distinzione classica di L.Friedman, The Legal System, New York, 1975. In generale sul rapporto tra cultura e diritto v. L.Cadiet, Argumentaire sul tema n. 3 Culture et droit processuel di queste Journées, dove si fa referenza alle quattro significazioni della cultura: la cultura storica (ad esempio la cultura francese), la cultura conoscenza (sviluppo delle facoltà della mente), la cultura contemporanea (o cultura di fatto) e la cultura-creazione (l’arte), sulle quali si basa la riflessione di R. Sefton-Green, Compare and contrast: monstre à deux têtes, in Rev.inter droit comparé 2002, n. 1, p. 87. Sull’appartenenza della cultura giuridica alla cultura nazionale v. P.Legrand, Fragments on law-as-culture, W.E.J Tieenk Willink, 1999.3 J.H. Merryman, The Civil Law Tradition. An introduction to the Legal Systems of Western Europe and Latin America, Stanford Univ., Press, 2nda ed. 1985.

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di commercio, per via del contributo annuale e dei diritti di segreteria (cosi la decisione del Consiglio di Stato, sez. per gli atti normativi del 10.01.2005 n. 150/01). Tuttavia, questo ultimo aspetto ha risvegliato l’attenzione delle autorità della Comunità europea che, allo scopo di salvaguardare la libertà delle imprese e il loro diritto a non vedersi imporre carichi amministrativi inutili – e in ogni modo illegittimi in quanto discriminatori- ha introdotto la direttiva 63/335 secondo la quale i diritti che le Camere di commercio esigono nei confronti delle imprese sono ammissibili soltanto quando costituiscono la contropartita di un servizio specifico prestato dalle Camere alle imprese. 3.3. - II Diritto Delle Societa

Nell’ordinamento giuridico italiano - come in quello francese e di altri paesi continentali, contrariamente a quello che accade nella common law - dove la distinzione tra partnership e companies (o corporations) è molto netta – la struttura del diritto delle società si fonda sulla nozione generale di contratto sociale, al quale tutti i diversi tipi di società regolati dalla legge si riferiscono. In Italia questa nozione è dettata dall’articolo 2274 del codice civile.

Peraltro, in Italia, a seguito dell’unificazione del codice civile e del codice di commercio, la distinzione tra società civili e società commerciali, non esiste più (cosi anche in Svizzera, e, dal 2002,in Brasile).

Al posto della società civile, il tipo più elementare di società è la società detta semplice, che ha per oggetto un attività economica ma che non costituisce per questo un’impresa commerciale. Poi, anche in Italia, l’evoluzione legislativa più recente della materia, con data 2003 (l. 3.10.2001, n. 366 e d.lgs. 17.01.2003, n. 6) e che ha dato luogo ad una riforma molto importante, che fondandosi sull’introduzione delle società a responsabilità limitata unipersonale prevista dalla XII direttiva comunitaria sull’armonizzazione del diritto delle società, ha ammesso la possibilità che anche una società per azioni sia costituita da un solo soggetto . In conseguenza, la definizione stessa di società nel codice civile (art. 2247) è stata modificata aggiungendo alla costituzione per contratto quella per atto unilaterale.

Detto questo, la costruzione unitaria della regolamentazione di tutti i tipi di società, contenuta nel libro V del codice civile perdura ancora (infatti, la legge di riforma del 2003, ha continuato ad inserire nel codice civile la nuova regolamentazione delle società di capitali).

I tipi di società regolati dal codice civile corrispondono a quelli presenti nella maggior parte degli ordinamenti giuridici di civil law, ossia le società personali (società semplice, società in nome collettivo e società in accomandita semplice) e le società di capitali (società per azioni, società in accomandita per azioni e società a responsabilità limitata ). Il codice civile regola anche le società cooperative.

In fine, nel campo delle società per azioni, le regole

previste dalla legge del 1998 (si tratta del d.lgs. del 24.02.1998, n. 58, denominato testo unico per la finanza), regolano le società quotate in Borsa, mentre la riforma del 2003 ha comunque introdotto nel codice civile delle regole più penetranti nei confronti di tutte le società per azioni che – anche se non quotate in Borsa- fanno appello al pubblico risparmio.

Secondo le informazioni delle Camere di commercio, in Italia, nell’anno 2007, erano registrate: 3.477.814 imprese individuali; 1.235.070 società personali (tra cui 652.528 società in nome collettivo e 525.402 società in accomandita semplice); 1.222.857 società di capitali (tra cui 1.058.065 s.r.l.; 53.304 società per azioni, 104.721 s.r.l. con socio unico, 6.582 s.p.a. con socio unico).

La tabella che deriva da questi ultimi dati statistici mostra in modo chiaro il carattere dell’economia italiana, che è basata sul dinamismo di piccole e medie imprese. Essa denota anche la continuità di una tradizione che si esprime nell’iniziativa individuale e familiare, eredità della tradizione artigianale d’eccellenza che è un espressione tipica della cultura italiana.

Questa tradizione ha saputo adattarsi alle esigenze dell’economia industriale e post-industriale e trova la struttura organizzativa più adeguata nei tipi di società lucrative la cui regolamentazione consente di dare più grande importanza alle persone dei soci, ossia le società personali e le società a responsabilità limitata.

In questo contesto economico e culturale, anche il movimento cooperativo, tradizionalmente molto importante in alcune regioni d’Italia, (quali l’Emilia Romagna e il Veneto) si è adattato alle esigenze dell’economia industriale e post-industriale, e ha sviluppato imprese di dimensioni e d’importanza notevoli (ad es. nel campo delle costruzioni e della distribuzione commerciale).

La legislazione sulle cooperative, modificata dalla riforma del diritto delle società del 2003, ha preso atto di questa evoluzione e, pur conservando la centralità della finalità mutualistica presente in tutte le società cooperative, ha distinto le società dette “pure”, ove questa finalità è rimasta assolutamente prioritaria, da quelle ove la finalità mutualistica è cercata anche utilizzando strumenti propri delle società commerciali (ad es. con la presenza di soci capitalisti, ossia di soci che si limitano a sovvenzionare la cooperativa).

3.4. - Il Diritto Del Credito E Delle Istituzioni Finanziarie.

In Italia le nuove forme di credito, e più precisamente la diffusione del credito al consumo, stanno dando luogo ad una trasformazione della cultura del commercio tradizionale.

Le catene della grande distribuzione (supermercati e ipermercati) si moltiplicano, e lo spazio per il commercio

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al dettaglio si riduce sostanzialmente; commercio che, tuttavia, rispetto alla realtà economica d’altri paesi europei, rimane ancora abbastanza presente. Un fenomeno in forte espansione è quello detto degli outlet o centri commerciali, ove la tecnica della grande distribuzione si combina con il mantenimento dei diversi punti di vendita specifici.

Inoltre, in Italia, il settore bancario si presenta sotto forme di organizzazioni di imprese molto diverse. Negli ultimi decenni, le banche di grandi dimensioni hanno subito, prima di tutto un processo di privatizzazione, passando dallo statuto di organismi pubblici a società per azioni, quotate in Borsa, e poi, un processo di ristrutturazione e di concentrazione, realizzato anche per via di fusioni e acquisti da parte di banche d’altri paesi europei (francesi, olandesi e tedesche), operazioni che hanno dato luogo alla nascita di tre o quattro istituti di dimensioni più adeguate alla concorrenza internazionale.

La presenza di banche dette popolari, che sono imprese cooperative di risparmio (alcune di loro hanno raggiunto dimensioni notevoli), rimane vivace. Invece la finanza etica è ancora poco diffusa.

In generale, la più forte conoscenza delle dinamiche dell’economia di mercato, ha creato l’esigenza di un riconoscimento più chiaro e puntuale dei diritti dei clienti delle banche.

Questo riconoscimento, che costituisce senza dubbio il risultato di un evoluzione culturale verso l’apertura alla protezione del mercato e del consumatore sta puntando nella giurisprudenza che si mostra ormai più attentava alla protezione dei clienti nei rapporti con le banche.

3.5. - II Diritto Fallimentare.

In Italia, il diritto fallimentare, come il diritto delle società, è stato di recente oggetto di una riforma legislativa. Questa riforma molto attesa, che ha allineato il diritto italiano del fallimento “al livello” delle legislazioni degli altri paesi europei in materia, ha tardato a compiersi principalmente per ragioni economiche, culturali e ideologiche.

Infatti, il contesto culturale sul quale la regolamentazione del fallimento era fondata, era caratterizzato da una considerazione molto sfavorevole dell’insolvenza . La percezione sociale negativa della persona del fallito è dimostrata dal termine stesso di fallimento che deriva dal verbo latino fallere che esprime l’idea di bugia e dell’errore.

Queste considerazioni sono sicuramente eredità della visione di epoca romana e poi comunale della materia ; diamo alcuni esempi.

Nel mondo romano, il soggetto che non aveva adempiuto le sue obbligazioni ed era indebitato, era valutato in maniera talmente grave dall’ordinamento giuridico, che poteva essere privato della capacità giuridica.

In epoca comunale, le previsioni punitive verso il fallito erano le più varie: il bando, l’espropriazione della casa, il

carcere, ma anche, in alcuni casi, l’esibizione sulla piazza pubblica,la tortura e la morte.

Poi, l’idea di indegnità del fallito e la necessità di sanzionare il soggetto insolvente con l’espulsione dal mercato fu conservata nel quadro del codice di commercio italiano del 1865, che, peraltro, era soltanto una revisione superficiale del codice di commercio francese, e anche del successivo codice di Commercio del 1882. Infine il sistema del fallimento e delle imprese in difficoltà fu riorganizzato in modo sistematico e coerente dal R.d. del 16.03.1942, n. 267, che tuttavia non rappresentava ancora un momento di rottura con l’ideologia del passato.

In effetti, ai termini di questa legge, dalle dichiarazioni d’insolvenza derivavano provenivano conseguenze molto gravi per il fallito, di natura patrimoniale (ad es. lo spossasamento) ma anche di natura personale, come limitazioni della libertà, del segreto della corrispondenza, del diritto di circolare e soggiornare ovunque nel territorio italiano (art. 42 e s. della legge del 1942).

Questa connotazione punitiva era presente anche nella relazione al decreto, nella quale la sentenza che dichiarava il fallimento era paragonata ad una sentenza che decideva l’interdizione personale. Insomma, nel quadro della legge del 1942 il fallimento era lo strumento privilegiato per eliminare le imprese inefficienti, considerate come rami secchi dell’economia e, allo stesso tempo, per soddisfare gli interessi dei creditori. Ne risulta chiaramente che le esigenze delle imprese in difficoltà erano completamente trascurate dalla legge del 1942.

Un primo segno di cambiamento ideologico e culturale nei confronti del fallimento – eccezione fatta per alcune decisioni della Corte Costituzionale intervenute per censurare violazioni dei diritti personali derivanti dell’applicazione della legge del 1942 – è l’introduzione nel 1979 della procedura di amministrazione straordinaria delle grandi imprese in crisi.

In effetti, questo strumento rispondeva ai bisogni delle imprese travolte dalla grave crisi economica che aveva colpito il paese negli anni 1970. L’introduzione di questa procedura fa quindi seguito ad un vero cambiamento del mercato italiano economico oltre che culturale, e ha riaperto il dibattito concernente sulle procedure di fallimento.

Così per la prima volta è stata rimessa in discussione l’equazione “imprenditore insolvente = cessazione dell’attività d’impresa”.

Le esigenze economiche e sociali, ossia la tutela dei dipendenti, ma anche la stabilità del mercato, sono state considerate prevalenti rispetto agli interessi dei creditori e hanno trovato risposta con la riforma del diritto fallimentare, che si è compiuta in tre tappe con l’introduzione del d.lgs. n. 35/2005, seguito dal d.lgs. n. 5/2006, e terminata con il d.lgs. n. 169/2007 (decreto correttivo).

Ormai diverse procedure concorsuali che possono essere cominciate alternativamente, mirano al superamento concreto della crisi d’impresa. L’impresa ha smesso di

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essere identificata con il suo titolare e si presenta come un organismo dotato di autonomia. Ne risulta che le conseguenze personali a carico della persona fisica titolare dell’impresa siano sensibilmente ammorbidite .Ormai quindi anche in Italia sia accettato il principio, già presente in parecchi altri paesi, che il diritto del fallimento e delle imprese in difficoltà mira principalmente alla salvaguardia e alla ripresa dell’impresa, distaccandosi così dall’idea della sanzione di una colpa personale dell’imprenditore insolvente.

La nuova normativa prevede formalmente strumenti di ripresa che valorizzano l’autonomia privata limitando le sanzioni personali, ossia :l’introduzione di accordi di ristrutturazione dei debiti (art. 182-bis), la modificazione del concordato preventivo (art. 160 e s.) che è diventato più flessibile grazie all’introduzione di strumenti come il cram down (art. 104), l’eliminazione del “registro pubblico dei falliti” e l’introduzione di un sistema di cancellazione dei debiti (esdebitazione).

Abstract – “Law and Culture”, the object of 2008 Isurnées of the Association Henri Capitant - Friends of the french

legal culture, has dealt also with commercial law. The fundamental issues of this subject have been indicated in a questionnaire of the general rapporteur, prof. Ramon Dominguez Aguila (University of Conception – Chile) and the answer to them with reference to Italian commercial law is the object of the present essay. It examines, therefore, the present situation of commercial law within the Italian legal system, remarking the evolution deriving from the development of the industrial society and the overcoming of its character of law merchant: the unification of the commercial code and the civil code in 1942 was a product of such evolution. The essay informs, then, about the most important and recent Italian developments on the legal organization of commerce, company law, credit and financial institutions law and insolvency and bankruptcy law.

Key words: Commercial law. Law Merchant. Commercial Code. Civil code. Chambers of Commerce. Company Law. Credit Law. Consumer Credit. Law of Financial institutions. Insolvency. Bankruptcy Law.

Esta contida nas notas de rodapé

Bibliografia

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JOSÉ NABUCO GALVÃO DE BARROS FILHOAdvogado em São Paulo, mestre em Direito Penal (Unimep), Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito de Jaú

e de Direito Penal Eleitoral no Curso de Especialização em Direito Eleitoral do Centro Universitário Claretiano.

Algumas observações sobre o estelionato: a questão da pessoa induzida em erro

Resumo: O presente artigo pretende discutir uma questão problemática do crime de estelionato: a figura da pessoa induzida em erro. Para isso, aborda seus elementos constitutivos para, depois, tratar de três casos específicos: o estelionato contra a pessoa jurídica, a fraude no uso de telefone público ou outras máquinas e a fraude por meio de manipulações informáticas.

Palavras-chave: Estelionato. Fraude. Erro. Estelionato contra a pessoa jurídica. Fraude no uso de telefone público. Fraude por meios informáticos.

1. Introdução

O estudo do crime de estelionato é um dos mais instigantes, dentre os diversos crimes descritos no Código Penal Brasileiro, quer pela sua estrutura típica, quer pela imensurável gama de formas de se cometê-lo. Até mesmo a figura alegórica do estelionatário contribui para o interesse do estudo.

Trata-se de um crime patrimonial importante, no qual não há a gravidade dos crimes violentos, como o roubo (art. 157), a extorsão (art. 158, CP) ou a extorsão mediante sequestro (art. 159, CP), tampouco a singeleza do furto (art. 155, CP) ou da apropriação indébita (art. 168, CP).

A verdade é que o estelionato é um crime extremamente intrincado,1 seja pelos diversos elementos constitutivos, que devem coexistir em uma sequência causal, seja pela não rara difícil tarefa de distinguir o estelionato de um mero ilícito civil. Por isso, tantas controvérsias ocorrem na interpretação do crime de estelionato, no Brasil e alhures.

Não raro, ocorre uma absoluta simplificação da interpretação do estelionato, de modo a enxergá-lo como se fosse apenas a obtenção de vantagem com fraude, quando, a rigor, o tipo é bem mais que isso.

Dentre as situações controversas, surge a questão da possibilidade de prática de estelionato contra a pessoa jurídica, a obtenção de vantagem com a manipulação de máquinas (telefone público ou máquinas de refrigerante), bem com a fraude cometida por fraude em sistemas

informáticos. Antes que se ingresse em cada um desses três temas,

é essencial que se exponha brevemente o tipo objetivo do estelionato.

2. Elementos do estelionato

Trata-se de um tipo que exige o que se chama de cadeia causal, ou seja, uma sequência ordenada de atos cometidos: a) fraude; b) erro; c) vantagem indevida; e d) prejuízo alheio.

a) “artifício, ardil ou outro meio fraudulento”O primeiro elemento, a fraude, vem descrito como

“artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. A rigor, a diferença entre artifício e ardil não tem relevância, sendo ambos compreendidos pelo sentido mais amplo de fraude.

De qualquer modo, pode-se afirmar que o artifício é a fraude material, na qual há uma alteração exterior da coisa: falsidade, disfarce, uso de aparelhos eletrônicos etc. Ardil já é a astúcia, a malícia, ou seja, uma fraude puramente intelectual, sem a base material do artifício.2

A lei ainda se vale da fórmula mais genérica, “outro meio fraudulento”, impondo ao intérprete o uso da interpretação analógica, de modo a que tal locução deve ser interpretada analogamente ao artifício ou ardil. Tanto doutrina e jurisprudência entendem que a mentira3 e, até mesmo, o simples silêncio4 podem ser tidos como meio fraudulento.

1 “Estamos diante de um crime que apresenta grande complexidade estrutural tipológica...” (BITENCOURT. Tratado de Direito Penal, 2008, p. 234). “... el delito de estafa no ha tenido unos contornos precisos, sino que, por el contrario, sobre él ha reinado siempre gran confusión; quizá por su proximidad con otras figuras delictivas y, especialmente, por tener una zona limítrofe con el dolo civil, que complica la tarea de precisar los respectivos campos de actuación de una y otra responsabilidad. (GONZÁLES RUS. Curso de derecho penal español, 1996, p. 653).2 HUNGRIA. Comentários ao Código Penal, 1980, p. 204. NORONHA. Código Penal brasileiro comentado, 1952, p. 130-131. 3 “A simples mentira, mesmo verbal, corporifica o delito de estelionato, máxime quando o agente, por sua condição de advogado militante, aproveita-se da maior confiança que incute no lesado, de origem modesta e sem maiores luzes, para obter vantagem ilícita” (TACRIM-SP – EI – Rel. Nogueira Filho – JUTACRIM 94/382). “A simples mentira, mesmo verbal, pode corporificar estelionato, desde que leve a vítima a erro que lhe ocasione prejuízo, em correspondência à ilícita vantagem obtida pelo agente através da inverdade de que lançou mão” (TACRIM-SP – Rev. – Rel. Azevedo Franceschini – JUTACRIM 27/71). “A mentira, mesmo que verbal, constitui fraude caracterizadora do estelionato, desde que idônea a induzir ou manter a vítima em erro, levando o promitente vendedor à obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio” (TAMG – AC – Rel. Mercêdo Moreira – RTJE 116/205). Na doutrina, confiram-se: HUNGRIA. Comentários ao Código Penal, 1980, pp. 204-205. NORONHA. Código Penal brasileiro comentado, 1952, p. 132.4 “Comumente a fraude para assegurar o próprio êxito, procura cercar-se de uma certa encenação material (artifício) ou recorre a expedientes mais ou menos insidiosos ou astutos (ardis), para provocar ou manter (entreter, fazer persistir, reforçar) o erro da vítima. As vezes, porém, prescinde de qualquer mise-en-scène ou estratagema, alcançando sucesso com a simples omissão do dever de falar. Não se pode, pois, negar as nudum mendatium, ao silêncio doloso, à reticência maliciosa, ao engano por sugestão implícita o caráter de meio fraudulento” (TACRIM-SP – HC – Rel. Segurado Braz – JUTACRIM 90/101). “Havendo, para o agente, um dever jurídico de falar, seu malicioso silêncio quanto à verdade pode caracterizar fraude integradora de estelionato” (TACRIM-SP – Rev. – Rel. Gonzaga Franceschini – JUTACRIM 91/412). Diz Noronha: “... age tanto o que, com certa atividade, provoca o êrro de outrem, como o que se deixa de manifestar diante do êrro alheio, de ambos surgindo o dano patrimonial.” (Código Penal brasileiro comentado, 1952, p. 138). Ao contrário, Bitencourt não admite a conduta omissiva, entendendo que o “agente deve agir positivamente.” (BITENCOURT. Tratado de Direito Penal, 2008, p. 233)5 NORONHA. Código Penal brasileiro comentado, 1952, p. 131. BITENCOURT. Tratado de Direito Penal, 2008, p. 232.

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Como se disse, a distinção entre o artifício e ardil é supérflua, podendo ser definido pelo gênero fraude.5

b) “induzindo ou mantendo alguém em erro”O segundo elemento constitutivo do estelionato é o

erro, ao qual “alguém” deve ter sido induzido ou mantido. O erro nada mais é que a falsa percepção da realidade, com o que o enganado não possui a perfeita noção do que está acontecendo.

Na expressão de Vives Antón, trata-se de um “estado psicológico de error”. Para González Rus, erro é “uma representación mental que no responde a la realidad”. 6 Muñoz Conde fala em “uma suposición falsa”.7 Dentre os autores brasileiros, não há discrepância, como se vê na posição de Hungria, segundo o qual o erro é “a falsa ou nenhuma representação da realidade concreta, funcionando como vício do consentimento da vítima”.8 Costa Jr. diz que erro é “um fato meramente cognoscitivo”9 e Regis Prado, que o “erro consiste em uma representação mental que não corresponde à realidade”.10

Pois bem, antes de tudo, convém apontar o óbvio: segundo a dicção do tipo é necessário, para a configuração do crime, que seja induzido ou mantido “alguém” em erro, e este não é outro, senão a pessoa humana. Tanto isso é certo que no homicídio, o objeto material da ação de matar é alguém, representando a pessoa humana titular do bem jurídico vida.

Impossível cogitar-se, portanto, em induzimento de pessoa jurídica, de um animal ou uma máquina a erro, porque estes, simplesmente, não são alguém.

Ademais, é gritante que o erro, como estado cognitivo, é atributo exclusivo do ser humano, já que apenas este pode representar a realidade. Em outras palavras, a pessoa jurídica, o animal ou uma máquina, além de serem alguém, não podem ser induzidos a erro, pela simples razão de que não podem ter representação da realidade, nem certa, nem errada.

Mesmo dentre os humanos, há os que, por não possuírem discernimento, não são suscetíveis de erro,11 como as crianças, os portadores de doença mental, as pessoas em coma ou com embriaguez total.

Por fim, a diferença entre induzir e manter, é que naquele o agente se vale da fraude para criar o erro na vítima, enquanto na segunda hipótese a vítima, por qualquer outra razão, enganou-se e o autor se vale da fraude para manter a

vítima sob erro, “fortalecer o erro de alguém”12, ou ainda, “evitar que este se liberte do engano”.13 Na manutenção do erro, é factível que o simples silêncio exista como o meio fraudulento usado para perpetuar o erro já existente, configurando-se o estelionato.14

c) disposição patrimonial: obtenção de “vantagem ilícita, em prejuízo alheio”

Se no furto a vítima tem a coisa subtraída, sem notar ou sem que possa impedir a subtração, no estelionato, há uma clara defasagem entre o que está acontecendo e entre a suposição da vítima, razão pela qual a vítima realiza o ato de disposição patrimonial, que é a tônica do estelionato.

Tal ato de disposição pode ser a entrega, a cessão ou a prestação patrimonial. É sabido que o ato de disposição pode recair em coisa que não pertença à pessoa induzida em erro, como no singelo exemplo do empregado que entrega coisa do empregador a alguém que, fraudulentamente, se diz enviado por este.15

Do ato de disposição patrimonial decorre o binômio prejuízo alheio e vantagem ilícita, ambos imprescindíveis para a configuração do estelionato.

A vantagem ilícita nada mais é que qualquer utilidade, que decorre da entrega de coisa, pelo seu uso ou gozo, ou qualquer situação em que o agente obtenha proveito.16 Ilícita é a vantagem ilegal, que não seja devida ao agente.

Como decorrência da vantagem ilícita, há o prejuízo da vítima que nada mais é que um dano patrimonial efetivo. Inexiste o estelionato se, apesar de obter vantagem ilícita, a vítima não sofre prejuízo.

É o que ocorreu em caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal, quando Hungria compunha aquela corte: proprietários de uma fábrica de balas, para o aumento de vendas, propagandearam que seriam sorteados prêmios para os que adquirissem as balas. Houve aumento das vendas, mas não se configurou o estelionato, segundo voto de Hungria, porque ao valor pago pelos consumidores, havia a contraprestação da entrega da bala, não se podendo falar em prejuízo, apesar de frustrada uma expectativa de ser sorteado com o prêmio.17

d) nexo causalUma questão extremamente relevante, e — ousa-se

dizer — descuidada em alguns julgados, é a necessidade de que exista entre os elementos assinalados uma relação de causalidade.

6 VIVES ANTÓN, Derecho Penal, 2008, p. 6577 MUÑOZ CONDE. Derecho penal, 1996, p. 363.8 HUNGRIA. Comentários ao Código Penal, 1980, pp. 209.9 COSTA JÚNIOR. Comentários ao Código Penal, 1997, p. 527.10 PRADO, Curso de Direito Penal Brasileiro, 2000, p. 502.11 Até mesmo a pessoa humana, para que esta seja induzida em erro, “exige-se que esta tenha capacidade de discernimento para ser iludida. Logo, a criança e o doente mental, por exemplo, em razão de não poderem ser enganados, também não estão aptos a figurar como sujeitos passivos de estelionato, em face da ausência de capacidade de entender e de querer.” (PRADO, Curso de Direito Penal Brasileiro, 2000, p. 501). “Para que haja o estelionato, é necessário haver fraude criando ou mantendo o erro de outrem. Este, pois, deve ter capacidade para ser iludido. Se se tratar de um louco, de um idiota, de um menor sem discernimento, não podem eles ser sujeitos passivos de estelionato, porque não podem ser enganados.” (NORONHA. Código Penal brasileiro comentado, 1952, p. 130) No mesmo sentido: COSTA JÚNIOR. Comentários ao Código Penal, 1997, p. 524. MIRABETE. Manual de Direito Penal, 2003, p. 303. BITENCOURT. Tratado de Direito Penal, 2008, p. 228. MUÑOZ CONDE. Derecho penal, 1996, p. 363.12 NORONHA. Código Penal brasileiro comentado, 1952, p. 132.13 HUNGRIA. Comentários ao Código Penal, 1980, p. 207.14 NORONHA. Código Penal brasileiro comentado, 1952, p. 141.15 Exemplo semelhante: VIVES ANTÓN, Derecho Penal, 2008, p. 421. 16 P. 145. Questão controvertida que não é objeto deste estudo é sobre a natureza da vantagem, se se exige que tenha natureza patrimonial. 17 “Havia uma contraprestação, havia um do ut des, isto é, o fornecimento de falas pelo seu justo preço.” (HUNGRIA. Comentários ao Código Penal, 1980, nota nº 8, pp. 211-213)

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Com efeito, não basta a simples presença dos quatro elementos expostos acima, pois o crime não se perfaz com a mera soma de seus elementos,18 sendo imprescindível a existência de uma relação de causalidade entre seus elementos. É o que afirma Hungria: “entre os momentos do estelionato deve existir uma sucessiva relação de causa e efeito”.19 Assim o erro é “ao mesmo tempo efeito e causa. Efeito do meio fraudulento e causa da vantagem ilícita.”20 Trata-se, segundo Vives Antón, de uma “causalidad ideal o motivación: el engaño ha de motivar (producir) un error que induzca a realizar un acto de disposición que determine un perjuicio”.21

Os momentos devem se suceder no tempo de acordo com a ordem exposta. Se o erro é posterior à vantagem não pode ser tido como sua causa, não se configurando o estelionato.22

Se a fraude é meio, isso possui uma inquestionável dimensão: o meio só pode ocorrer antes do evento.

Não se pode perder de vista a redação do tipo: “mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. A preposição mediante tem o sentido de “por meio de, por intermédio de”,23 ou seja, um meio com o qual se atinge algo. Impossível se cogitar que um meio venha depois da ocorrência do evento.

Se a fraude vem depois da vantagem indevida, não se configura o tipo, pois a obtenção de vantagem não foi mediante fraude, pois esta não foi o meio com o qual se alcançou o resultado.24

No caso do estelionato, a fraude é a causa do erro, que por sua vez é causa do ato de disposição patrimonial que permite a vantagem ilícita em prejuízo alheio. Se o agente obtém a vantagem e, para ocultá-la, vale-se de fraude, não se configura o crime de estelionato, pois em tais situações a fraude não foi causa do erro e este não foi causa da vantagem patrimonial. Assim, se alguém obtém uma vantagem patrimonial em uma empresa da qual é contador, p.ex., usando a contabilidade falsa para que o conselho fiscal não percebesse o desvio, inexiste estelionato. Há todos os elementos do crime, mas não na sequência exigida: o agente obtém vantagem em prejuízo da empresa e, após, vale-se da fraude para induzir em erro os membros do conselho fiscal. Contudo, o erro não foi causa da vantagem ilícita e do prejuízo, pois este já havia ocorrido.

Após a análise da tipicidade objetiva do crime de

estelionato, com uma breve exposição de cada um de seus elementos, será feito um estudo sobre situações controversas em que a análise antes feita será aplicada.

3. Questões controversas

3.1. Sujeito passivo: a questão da pessoa jurídica

Como dito acima, o crime de estelionato, para que se configure exige que um ser humano seja induzido ou mantido em erro. Daí, inevitavelmente, surge a objeção em forma de questionamento: “não pode a pessoa jurídica sujeito passivo do estelionato?”

A resposta é óbvia: a pessoa jurídica figura como sujeito passivo do crime de estelionato, como reconhecido acertadamente pela jurisprudência e doutrina.25 O que não é possível, obviamente, é que a pessoa jurídica seja induzida em erro, pela simples razão de que a pessoa jurídica não capacidade intelectiva.

Por isso, afirma-se que quanto ao sujeito passivo, tanto pode ter uma pessoa submetida ao erro e outra que sofre o prejuízo patrimonial.26

É perfeitamente possível que o agente, valendo-se de meio fraudulento, induza a erro empregado ou funcionário da pessoa jurídica e este realize o ato de disposição patrimonial, causando um prejuízo à pessoa jurídica, em favor do autor. Nesse caso, todos os elementos estão presentes, configurando-se o estelionato. Como dito, o fato de haver diversidade entre o enganado e a pessoa que sofre o prejuízo é irrelevante, pois o tipo não exige que sejam a mesma pessoa.

A pessoa jurídica pode ser sujeito passivo do crime de estelionato, já que o sujeito passivo é o titular do bem jurídico lesionado, qual seja o patrimônio. Porém, para que isso ocorra é imprescindível a existência de alguém induzido ou mantido em erro. É o que ocorre quando a obtenção de vantagem ilícita consiste na percepção indevida de aposentadoria. Em tais casos, o autor se vale de documentos falsos e induz a erro o funcionário responsável pela análise documental, que autoriza o recebimento da aposentadoria. No momento em que recebe a primeira aposentadoria, há a consumação do estelionato, pois o agente obteve vantagem em prejuízo do INSS.27

18 VIVES ANTÓN, Derecho Penal, 2008, p. 410.19 HUNGRIA. Comentários ao Código Penal, 1980, p. 209.20 NORONHA. Código Penal brasileiro comentado, 1952, p. 141.21 VIVES ANTÓN, Derecho Penal, 2008, p. 410-411. No mesmo sentido: GONZÁLES RUS. Curso de derecho penal español, 1996, p. 656. MUÑOZ CONDE. Derecho penal, 1996, pp. 361, 363 e 364.22 Isso, evidentemente, não impede a eventual configuração de crime de furto ou de apropriação indébita, mas para que isso ocorra é necessária a presença dos elementos de um desses crimes. Casos há, porém, em que a atipicidade é absoluta, como se verá em casos estudados abaixo.23 Dicionário Eletrônico Houaiss. 24 Ressalte-se que no roubo próprio (art. 157, caput) a lei contém a expressão “mediante grave ameaça ou violência a pessoa...”. Em tal tipo, não se enquadra o caso em que a violência é posterior à subtração, já que a violência não pode ser meio para a subtração, se ocorreu depois. Ciente disso, o legislador redigiu outro tipo, o do roubo impróprio (art. 157, §1º), no qual vem descrita a conduta de usar violência, após a subtração da coisa, com o intuito de garantir a posse ou a impunidade. Resta claro, pois, que se a lei usa a preposição “mediante”, está descrevendo um meio e, como tal, este jamais poderá ocorrer após a ocorrência do evento. 25 BITENCOURT. Tratado de Direito Penal, 2008, p. 228. PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro, 2005, p. 489. 26 DAMASIO. Direito Penal, 2007, p. 440. MUÑOZ CONDE. Derecho penal, 1996, p. 364. Na jurisprudência: “Estelionato na sua forma fundamental. Crime caracterizado. Sujeito passivo perfeitamente definido. Nos delitos de estelionato não é obrigatoriamente necessário que a vítima induzida a erro seja a mesma do dano patrimonial, máxime que a lei se refere, de forma genérica, a prejuízo alheio ofertada com a exordial acusatória, na forma como descrita” (TJMG – AC – Rel. Márcio Batista – RT 656/324). 27 Outra questão controversa no Brasil, que não será tratada aqui, é se, em tais situações, o estelionato é crime permanente, cuja consumação se prolongaria no tempo, enquanto recebesse mensalmente a aposentadoria. Tal questão é fundamental para o início do cumprimento do prazo prescricional.

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O que se configura um total despropósito é a afirmativa de que a pessoa jurídica foi induzida em erro.

Primeiro, porque a pessoa jurídica não é “alguém”, pronome cujo sentido é “uma pessoa ou alguma pessoa cuja identidade não é especificada ou definida”28 Impossível se considerar que pessoa jurídica seja abrangida pelo vocábulo “alguém”, sem que se faça uma fragorosa subversão do conteúdo semântico da palavra.

Tanto é assim que, nos crimes contra a pessoa, o Código Penal se vale do vocábulo “alguém” para indicar o sujeito passivo.29 Usa-se, pois, a expressão “alguém” sem qualquer adjetivo ou esclarecimento, uma vez que, indubitavelmente, significa pessoa humana ou, para usar a retórica de Hungria, o “ser vivo nascido de mulher”30.

Saliente-se que não se pode descurar do método sistemático de interpretação da lei, que a considera como um conjunto, interpretando-se a lei de acordo com o ordenamento jurídico.31 Baseado no pressuposto de que a vontade do legislador é coerente e unitária, de modo que há que se ter uma harmonia no sentido das expressões utilizadas na lei,32 o método sistemático impõe que não se interprete de modo diverso as palavras usadas em mais de um artigo do Código Penal.33

Como dito, se a palavra alguém é usada para indicar o sujeito passivo dos crimes contra a pessoa, não há nenhuma possibilidade de se considerar que pessoa jurídica seja abrangida pelo vocábulo “alguém”, sem que se afronte, também, regras elementares de hermenêutica.

Mas, não bastasse isso, é visível que não se pode falar em pessoa jurídica induzida em erro, pela simples razão que esta não pode errar. Como já dito e redito, o erro, como um estado psicológico, é atributo exclusivo do ser humano. Para se estar sob erro, é imprescindível que se tenha discernimento, capacidade intelectiva, ou seja, que se consiga representar mentalmente a realidade para, só assim, poder representá-la falsa ou corretamente. Afirmar que uma pessoa jurídica foi induzida em erro não pode ser outra coisa que um grande descuido com o verdadeiro sentido do erro e uma completa subversão da tipicidade.

Por tais razões, uma denúncia que impute a conduta de ter induzido em erro uma pessoa jurídica é inepta, por narrar comportamento atípico.

Outra questão, atinente à obtenção de vantagem contra pessoa jurídica, diz respeito ao nexo causal. Confira-se um exemplo: o agente que trabalha em uma empresa e tem acesso a valores obtém vantagem e, depois, se vale de

fraude para ocultar a locupletação. Em tal situação também não se pode falar em estelionato, ainda que a denúncia impute ao acusado ter induzido em erro os responsáveis pela fiscalização, os membros do conselho fiscal. Nesse caso, falta a relação de causalidade. O erro, ao qual foram induzidos os membros do conselho, não foi a causa da obtenção da vantagem. Também, nesse caso, a inépcia da inicial é patente.

Em resumo, a pessoa jurídica não pode ser induzida em erro, porque não é “alguém” e porque não tem capacidade intelectiva. O estelionato contra a pessoa jurídica só existirá se, mediante fraude, houver sido induzida em erro uma pessoa humana que realiza o ato de disposição patrimonial em prejuízo da pessoa jurídica, com o qual o autor obtém a vantagem ilícita.

3.2. Fraude no uso de telefone público ou outras máquinas

Uma questão que causou controvérsia na Alemanha e Espanha, e que também ocorreu no Brasil, é relevante para o estudo do estelionato. Certa pessoa utiliza um artifício que lhe permite conversar em um telefone público sem a introdução das correspondentes fichas telefônicas. Esta conduta configura crime de estelionato? Segundo um julgado do extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, estaria configurado o estelionato, pois teriam sido induzidos a erro os funcionários e a empresa.34

Todavia, analisando-se rigorosamente a conduta, é forçoso reconhecer sua atipicidade, nada obstante se tratar de conduta socialmente danosa.

Se a fraude não tiver causado (seja induzindo ou mantendo) o erro e se o erro não for causa da disposição patrimonial, não se configura o crime de estelionato.35 Aliás, para que o erro seja causador da lesão patrimonial, há que ser anterior a esta. O erro posterior não pode ser causa da anterior lesão patrimonial.36

É marcante no crime de estelionato, que o enganado, em decorrência do erro, dispõe voluntariamente do patrimônio. O erro é, como já dito, uma falsa percepção da realidade, que vicia a vontade de alguém, fazendo com que este realize a disposição patrimonial, crente que está realizando um negócio jurídico ou até um ato de liberalidade, quando na verdade está sendo logrado.37

Portanto, é insustentável a afirmativa de que foi induzida em erro a “própria companhia telefônica”. Falar

28 Dicionário Eletrônico Houaiss.29 Confiram-se os arts. 121, 122, 130, 138, 139, 140, 146, 147, 148, 149.30 (Comentários ao Código Penal, vol. V, 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 36)31 DIMOULIS. Manual de introdução ao estudo do Direito, 2003, p.162.32 BOBBIO. O positivismo jurídico, 1995, p. 214.33 ZAFFARONI e PIERANGELI. Manual de direito penal brasileiro, 2001, p. 175. Nabuco Filho, p. 85-86. 34 “A ligação feita em telefone público com o emprego de componente eletrônico indevidamente acoplado ao aparelho, sem a utilização da ficha apropriada, caracteriza o estelionato em seu tipo fundamental, por constituir artifício fraudulento através do qual se induz em erro os funcionários e a própria companhia telefônica e se obtém vantagem patrimonial ilícita em desfavor de outrem.” (RT 649/282)35 NORONHA. Código Penal brasileiro comentado, 1952, p. 121.36 “...entre os momentos do estelionato deve existir uma sucessiva relação de causa e efeito: o meio fraudulento, comissivo ou omissivo, deve diretamente induzir ou manter o erro em virtude do qual se realiza a locupletação ilícita, de que resulta a lesão patrimonial.” (HUNGRIA. Comentários ao Código Penal, 1980, p. 209)37 Por isso, no estelionato, segundo a distinção de Noronha, ao contrário do roubo e extorsão, a violência não existe, pois o autor age “sob o manto da blandícia e do cavalheirismo.” (NORONHA. Código Penal brasileiro comentado, 1952, p.)

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que uma empresa foi induzida em erro é uma confusão entre a pessoa induzida em erro — que só pode ser a pessoa humana, com capacidade intelectiva — e o sujeito passivo do delito, titular do bem jurídico lesionado, o patrimônio.38 O sujeito passivo pode ser a pessoa jurídica, desde que haja alguém (pessoa humana) induzido em erro que disponha do patrimônio da empresa, como já asseverado.

Assim, seria possível a existência de estelionato contra a companhia telefônica, se houvesse alguém, que sob erro, realizasse o ato de disposição patrimonial.

A decisão afirma que também teriam sido induzidos a erro “os funcionários” da companhia. O equívoco nesse ponto é outro. Primeiro, porque é imprescindível que o induzido em erro seja pessoa determinada, o que não ocorre. Não se pode ter por configurado o estelionato, baseado em induzimento a erro de pessoas indeterminadas.

Ademais, ainda que se apontassem quais os pessoas supostamente induzidas a erro, não se poderia falar em estelionato, pela falta de nexo causal. Só se pode falar em estelionato, se o erro tiver dado causa à disposição patrimonial. E para ser causa tem de ser anterior ao prejuízo e à vantagem ilícita.

Em que momento os funcionários teriam sido induzidos a erro? No instante da recolha das fichas? A rigor, nessa situação, eles não erram, porque se limitam a trocar a caixa de fichas.39 Mas, abstraindo-se isso, ainda que tivessem sido enganados, o erro teria sido posterior à vantagem obtida com o telefonema. Como se vê, a causa da vantagem é o artifício utilizado e não o erro de funcionários. Só poderia haver estelionato, se em razão do erro um funcionário dispusesse o patrimônio da pessoa jurídica.40 O comportamento, portanto, ainda que lesivo ao patrimônio da companhia telefônica, ainda que socialmente danoso, não tem tipicidade.

Por fim, é útil observar que a questão sobre a tipicidade de fraude em telefone público foi amplamente debatida na Alemanha. Lá, foi descoberto que algumas pessoas martelavam uma moeda, para que esta ficasse com um diâmetro correspondente a outra de valor superior; com isso, era possível se falar no telefone com uma moeda de valor inferior ao exigido pelo aparelho. Segundo entendeu o Tribunal Alemão, tal conduta não configurou crime de estelionato (§ 263), nem subtração de energia elétrica (Lei de 9 de abril de 1900), nem falsificação de moeda (§ 146).41

Na Espanha, em casos semelhantes, em que os agentes realizavam manobras físicas sobre máquinas automáticas (cabines telefônicas, máquinas de tabaco, bebidas, etc.) não foram consideradas como crime de estelionato, “pues no se engaña a otro sino a una máquina”.42

3.3. Fraude por meio de manipulações informáticas

Com o aumento transações econômicas realizadas por meio da internet, surgem, evidentemente, “golpes” patrimoniais efetuados por meio de fraude informática. Surge, em decorrência disso, a discussão sobre a eventual tipicidade da conduta.

Novamente, surgem em tais situações juízos apressados sobre a ocorrência do estelionato, comumente, como já dito, tratado com simplismo como se nada mais fosse que a vantagem ilícita com prática de fraude.

Como já dito, o estelionato possui quatro elementos que, para que configurem a conduta típica, devem ser praticados em nexo causal.

Diversas são as formas de fraude por informática. Uma das que merece destaque é o envio de e-mail em que

se simula ser uma mensagem enviada pelo banco, no qual se solicita que os dados da conta (inclusive senha), sejam digitados. Com tais informações, o agente acessa a conta da vítima e realiza transferência em prejuízo do correntista. Em tais situações, está configurado o estelionato, pois o autor usou a fraude (e-mail fictício do banco) que levou a vítima ao erro (fazendo com ela digitasse seus dados), o que permitiu ao agente que ele obtivesse a vantagem (transferência do dinheiro) em prejuízo alheio. Não só estão presentes os elementos, como há o nexo causal entre cada um deles.

Contudo, há situações mais sofisticadas em que hackers conseguem invadir o sistema de bancos e realizar transferências bancárias. Em tais casos, embora haja a vantagem ilícita em prejuízo alheio, não se configura o estelionato. De fato, não há qualquer pessoa induzida em erro, já que a vantagem foi obtida, sem que houvesse qualquer contribuição do correntista ou de quem o representasse. Por mais lesiva e socialmente danosa que seja a conduta, não existe estelionato em tais situações.

Tanto é assim, que em ante tais situações, a Espanha criou, com a reforma penal de 1995, um tipo equiparado ao estelionato em seu art. 248, 2º, estafas por medios informáticos, pois o tipo básico de estafa era insuficiente para a punição de tais condutas, já “no hay ni engaño ni error, sencillamente porque no se puede, en puridad, ni engañar, ni inducir a error a una máquina, o computador.”43

No Brasil, o legislador tão pródigo em criar tipos mal redigidos e desnecessários — ou, ao menos, não tão relevantes — não se deu ao trabalho de definir um tipo equiparado ao estelionato, no qual haja a tipificação de obtenção de vantagem em prejuízo alheio, mediante manipulações de sistema de informática.

38 “Sujeito passivo, portanto, é o que vem a sofrer, realmente, o prejuízo.” (HUNGRIA. Comentários ao Código Penal, 1980, p. 211)39 Ressalte-se que se trata de julgado antigo, quando os telefones públicos eram com ficha, mas, cuja análise não perde o interesse. 40 “El engañado a consecuencia del error debe realizar una disposición patrimonial, es decir, la entrega de una cosa o la prestación de un servicio (...) La diferencia entre la estafa y los delitos de apoderamiento estriba en que el perjuicio se causa por este acto de disposición realizado por el propio sujeto pasivo voluntariamente, aunque con una voluntad viciada.” (MUÑOZ CONDE. Derecho penal, 1996, p. 364)41 JESCHECK. Tratado de derecho penal, 1993, p. 121.42 GONZÁLES RUS. Curso de derecho penal español, 1996, p. 658.43 Vives anton, Lección XXIV, in: CD que acompanha a obra:

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Ressalte-se que a lesividade social de tais condutas é semelhante a do estelionato, mas as condutas são atípicas pelo simples fato de que não são previstas como crime pela lei penal.

4. A fragmentariedade do Direito Penal

Antes de concluir sobre as questões específicas do estelionato, parece relevante fazer algumas brevíssimas observações sobre a fragmentariedade do Direito Penal.

Não podemos esquecer que o direito penal possui um caráter eminentemente fragmentário, que significa que tutela apenas alguns bens jurídicos e, mesmo quanto a esses bens jurídicos tutelados, só o protegem de alguns tipos de comportamentos lesivos. Vale dizer o seguinte, embora o Código Penal brasileiro tutele amplamente o patrimônio, nem toda lesão patrimonial configura um ilícito penal.44

A fragmentariedade nada mais é que uma descontinuidade, no sentido de que a lei penal recorta algumas condutas que afetam certos bens jurídicos, definindo-as como crime. Há essa descontinuidade, pois a lei penal não pretende abranger todas as condutas lesivas ao bem jurídico tutelado, de modo que as condutas não descritas são penalmente irrelevantes, embora possam atingir o bem jurídico. Apenas nos regimes totalitários a lei penal possui a pretensão de continuidade.45

De acordo com o princípio da legalidade, apenas as lesões patrimoniais estritamente tipificadas configuram crime. Logo, não há razão para perplexidade quando nos deparamos com uma lesão patrimonial não definida como crime, porquanto isso é inerente ao direito penal.46

Lembremo-nos que o princípio da legalidade rechaça a atividade jurisdicional como fonte criadora de delitos; o que tem como fundamento a teoria da separação dos poderes, pois se o juiz aplica pena por uma conduta não prevista estritamente em lei, mas lesiva a um bem jurídico, estará usurpando função do legislador, representante da vontade geral. Não existe um “delito natural”; uma conduta só é crime se descrito estritamente como tal em uma lei.47

A interpretação penal não é uma atividade criativa, mas simplesmente cognitiva. A punibilidade da conduta não decorre da valoração do magistrado sobre se a conduta é ou não ontologicamente danosa; só será punida a conduta que tiver estrita correspondência com a descrição abstrata da lei. Consequentemente, o Direito Penal impõe a completa “submissão do juiz à lei”,48 o que significa de um lado que

o juiz não poderá aplicar pena a uma conduta se esta não for prevista em lei, e, de outro, não pode deixar de aplicar a pena se a conduta estiver descrita em lei, ainda que na sua opinião tal fato não devesse ser punível.

Diante de um caso concreto, primeiro é necessária a interpretação da lei penal (que é um processo abstrato), depois a verificação da subsunção, que é a aplicação de um texto legal ao caso concreto.49 Ou seja a constatação de que uma conduta concreta possui tipicidade, que a perfeita correlação com a conduta abstratamente descrita pela lei penal.50 Configura equívoco partir do caso concreto e constatar se ele possui danosidade social e depois iniciar a argumentação por derivação, para demonstrar que o fato é típico. Nesse caso, haveria uma inversão do processo lógico que viciaria totalmente a interpretação e a subsunção, levando a erros violadores do princípio da legalidade.51

A experiência em sala de aula mostra que diante do estudo de situações como as aqui tratadas, surge a argumentação mediante uma pergunta, como no seguinte exemplo real: “então se alguém falsificar um bilhete do metrô, passar pela catraca e usar o transporte público sem nada pagar, não comete crime de estelionato?”

Já se argumentou sobre o mérito da questão, mas parece relevante é tratar da lógica que está presente nela. Não há em tal argumentação nenhuma pretensa demonstração da presença dos elementos constitutivos do estelionato. Ao contrário, há, implícito na pergunta, um argumento por derivação. Conclui-se que está errado o raciocínio exposto, porque se ele prevalecer não aquela conduta ficará impune. Em outras palavras, a conclusão vem antes do raciocínio lógico e, a argumentação nada mais é que uma forma de justificar a conclusão que houve crime, não porque estejam presentes os elementos do tipo, mas porque a conduta é socialmente reprovável e, por via de consequencia, deve ser tida como típica.

Este parece ser o grande vício do operador do direito, que precisa se conscientizar que o papel da lei penal é a imposição de limites aos aplicadores da lei penal, como forma de garantia da liberdade humana.

5. Conclusões O estelionato para que se configure não prescinde da

existência de alguém — pessoa humana com capacidade intelectiva — induzida em erro.

O sujeito passivo do crime, que é o titular do bem jurídico ofendido (patrimônio), poderá ser a pessoa jurídica, desde

44 MIR PUIG. Derecho penal, 1998, p. 90.45 ZAFFARONI. Derecho Penal, 2008, p. 97.46 “En la medida en que el Derecho penal sólo protege una parte de los bienes jurídicos, e incluso ésa no siempre de modo general, sino frecuentemente (como el patrimionio) sólo frente a formas de ataques concretas, se habla también de la naturaleza ‘fragmentaria’ del Derecho penal.” (ROXIN. Derecho penal, 1997, p. 65)47 MOLINA, Derecho penal, 2000, pp. 335 e 341. É interessante dispositivo do Código Penal Espanhol que estabelece que se o juiz ou tribunal se deparar com um comportamento atípico, mas que a seu juízo deveria ser uma conduta delituosa, deve se abster de “todo procedimento sobre ele e deve expor ao Governo as razões que o levam a crer que deveria ser objeto de sanção penal.” Trata-se de um preceito legal bastante pedagógico, pois deixa claro os limites da atividade jurisdicional, que não se confunde com a função legislativa.48 FERRAJOLI. Direito e razão, 2002, p. 30.49 MAURACH e ZIPF. Derecho Penal, 2008, p. 143.50 CARBONEL MATEU. Derecho penal, 1999, p. 252.51 Nabuco Filho, pp. 67 e 94.

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que haja uma pessoa humana induzida em erro, que realize o ato de disposição do patrimônio da pessoa jurídica. A pessoa jurídica não pode errar, simplesmente porque este é uma falsa representação da realidade e a pessoa jurídica não possui, como é óbvio, capacidade psicológica.

A fraude contra telefones públicos ou contra outras máquinas, como de venda de refrigerantes, não configura o estelionato, já que não há pessoa humana induzida em erro.

As fraudes realizadas por manipulações de sistemas de informática não configuram o crime de estelionato por não contar com pessoa humana induzida em erro.

A fragmentariedade da lei penal, inerente aos regimes democráticos, traz como consequência que certos atos lesivos ao patrimônio não sejam descritos como condutas típicas. Não se pode, na interpretação da lei, partir da

consideração subjetiva do fato, para argumentar que o crime está configurado, pois com isso se faz um argumento por derivação, que prejudica a correta análise dos elementos constitutivos do tipo.

Abstract: This article discusses a problematic issue of the crime of swindle, which is the figure of the person induced to error. First the article approaches its components, then analyzes three specific cases: the fraud against a juridical person, fraud in the use of public telephone or other machinery and fraud by computer manipulation.

Keywords: Swindle. Fraud. Error. Fraud against a juridical person. Fraud in the use of public telephone. Fraud by computer manipulation.

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PEDRO WILSON BUGARIBPromotor de Justiça de São Paulo, mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC – SP), e professor de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado

(FAAP) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC - SP).

O Crime de Genocídio

Resumo. Este artigo trata do crime de genocídio. Entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico ou religioso, como tal: a) assassínio de membros do grupo; b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) transferência forçada de menores do grupo para outro grupo.

Palavras-Chaves: Crime de Genocídio. Grupo nacional, étnico ou religioso. Assassínio de membros do grupo.

1. Conceito de Genocídio

A origem da palavra genocídio provocou certa divergência entre os doutrinadores, tendo sido o próprio nomens juris do delito objeto de discussão acadêmica.

O nome genocídio foi sugerido pela primeira vez, no ano de 1944, pelo internacionalista RAFAEL LEMKIN, professor polonês, radicado nos Estados Unidos. Para LEMKIN o neologismo é de origem híbrida, greco-latina, derivado do vocábulo grego “genos” (raça, nação, tribo), e do sufixo latino “cidio” (matar).

Já na lição de NELSON HUNGRIA1, a etimologia remonta exclusivamente do latim “genus” (raça, povo, nação), e “excidium” (destruição, ruína, aniquilamento).

Para FRANCISCO P. LAPLAZA e MOLINÁRIO, o termo mais adequado deveria ser genticídio, derivado do latino “gens” (raça, estirpe, país, povo, família) e de seu genitivo plural “gentis” e do latim “caedes” (ação de abater, matança), ou “caedo”, “caedere” (matar).

BOISSARIE e JOSÉ AUGUSTIN MARTINEZ, por outro lado, entendiam que a denominação correta seria genicídio, do latim “genus”, “geni”, assim como homicídio, parricídio, infanticídio, etc.2

Para LEMKIN3, genocídio significa o extermínio em massa dos seres humanos por motivo de nacionalidade, raça, religião ou credo político.

A preocupação com o tema teria surgido na V Conferência Internacional para a Unificação do Direito Penal, realizada em 1933, na cidade de Madrid.

LEMKIN pretendia que nessa Conferência se declarasse juris gentium a destruição de coletividades raciais, religiosas ou sociais, apresentando, para tanto, um Projeto de Convenção, dividindo, em dois grupos de delitos, as ações criminosas.

O primeiro – Delito de Barbárie – punia o atentado contra a vida, integridade corporal, liberdade, dignidade ou subsistência econômica de uma pessoa pertencente a ditas coletividades, com o propósito de exterminar.

O segundo – Delito de Vandalismo – a destruição de obras culturais e artísticas em situações semelhantes.4

Na VII Conferência para a Unificação do Direito Penal, realizada em Bruxelas, no ano de 1947, LEMKIN5 definiu o crime de Genocídio como sendo um crime especial, consistente em destruir intencionalmente grupos humanos, raciais, religiosos ou nacionais, e, como o homicídio singular, pode ser cometido tanto em tempo de paz como em tempo de guerra.

Esclarece que em território ocupado pelo inimigo e em tempo de guerra, será crime de guerra, e, se na mesma ocasião se comete contra os próprios súditos, crime contra a humanidade.

Segundo LEMKIN o crime de Genocídio acha-se composto por vários atos subordinados todos ao dolo específico de destruir um grupo humano.

A História revela que o crime de genocídio surgiu em razão da necessidade de se reprimir e punir severamente as atrocidades praticadas pelos nazistas na 2ª Guerra Mundial. A Humanidade conheceu de perto a tragédia de atos de genocídio na Alemanha de Hitler, que sob o pretexto de uma

1 Nelson Hungria. O crime de Genocídio. Conferência proferida no Centro Militar de Estudos de Juiz de Fora em 15 de agosto de 1950, publicada na Revista Forense, vol. 132, em novembro de 1950, p. 21.2 Anor Butler Maciel. Genocídio. Artigo publicado na Revista Forense, vol. 169, fascículos 643 e 644, janeiro – fevereiro de 1957. p. 502. O autor, consultor jurídico do Ministério da Justiça quando da publicação, ainda acerca da etimologia da palavra, menciona que “BOISSAIRE e JOSÉ AUGUSTIN MARTÍNEZ entendiam que se devia escrever genocídio, fazendo originar a palavra genitivo “genus” – “geni”, como se processou com homicídio, parricídio, infanticídio, etc.”. Cita MOLINÁRIO, segundo o qual “a denominação mais adequada seria “genticídio”, de “gens”, raça, estirpe, país, povo, família, oriundo de “gentis”, genitivo plural. Faz ainda o autor, amparado em FRANCISCO P. LAPLAZA na obra “El delito de genocídio e genticídio”, uma crítica ao professor NELSON HUNGRIA, dizendo que a prevalecer o entendimento deste, o termo deveria ser “genoscidio” ou “genixcidio”.3 Ibid., mesma página. Segundo o autor, o termo genocídio foi sugerido por LEMKIN em 1944, em “Axis rule in occupied Europe, Washington, Carnegie Endoument foi International Peace”.4 Francisco P. Laplaza. El Delito de Genocídio o Genticídio, apud Luís Wanderley Torres. Crimes de Guerra. O Genocídio. 2ª edição. Editora Fulgor. Ano 1967. p. 41.5 Cláudio Heleno Fragoso. Genocídio. Revista de Direito Penal. nºs 9/10, janeiro-junho/1973. Editora Revista dos Tribunais., p. 29.

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voraz política racial-nacionalista, exterminou cruelmente milhares de judeus, poloneses, tchecos, russos, prisioneiros de guerra, criminosos comuns, além de pessoas portadoras de doenças mentais e físicas.

A Gestapo (Geheime Staats Polizei), a SS (Schtuzstafeln) e a KL (Kozentrationslager) comandavam os mecanismos de terror e o extermínio dos povos indefesos.6

As monstruosidades eram inúmeras.Cerca de mil e quinhentas pessoas eram fuziladas

diariamente diante de covas previamente escavadas pelas vítimas.

Nas “câmaras de gás” as pessoas morriam por asfixia e não em estado de sono. Nos campos de concentração e de trabalho forçado, milhares de prisioneiros pereciam por subnutrição e exaustão, além daqueles sacrificados friamente que serviam de cobaias em selvagens experiências científicas. Assustadoras e desumanas experiências médicas com a malária, o tifo, a sarna, a inoculação de pus, a esterilização, a ablação de órgãos genitais e exercícios operatórios foram cruelmente praticados contra prisioneiros e civis.

Os campos mais lembrados pelos horrores da guerra foram Auschwitz, Birkenau, Buchenwald, Treblinka, Aradour, Trondheim, Dachau, Gross Rosen, Natzweiler, Sobibor, Bergrn-Belsen, Mathausen, Oslo, Varsóvia, dentre outros que somavam quase 900 (novecentos) em todas as áreas ocupadas pelo III Reich.

A História revelou que no campo de Dachau fabricava-se abat-jour de pele humana, servindo os ossos para o fabrico de botões e o restante dos destroços humanos para sabão.

Os cadáveres eram levados aos milhares para os fornos de cremação.

Incêndios nas cidades e vilarejos exterminavam famílias inteiras em suas residências.

Cerca de seis milhões de judeus, dos doze que vivam na Europa, foram cruelmente assassinados pelos nazistas nos campos de concentração.7

A perplexidade do mundo diante da tirania hitleriana residia no fato do Estado Alemão, ao mesmo tempo em que organizava a matança e não considerava o genocídio uma infração penal, incutir no povo a idéia de que para a purificação da raça ariana era necessária a eliminação de raças inferiores.8

A História ainda descreve como exemplos de atos de genocídio as tragédias bíblicas, a destruição de Catargo pelos romanos, o sacrifício dos cristãos ao tempo da Roma antiga duramente perseguidos desde Nero até Constantino, a Cruzada contra os Albigenses (1209), a guerra santa do

islamismo, as cruzadas, a dizimação dos Astecas e Incas pelas hordas de Cortez e Pizarro, a matança dos Peles Vermelhas pelos pioneiros americanos, a carnificina dos anabatistas em Munster, Westfália (1525/1535)9, as Vésperas Sicilianas (1282), a matança dos huguenotes na trágica noite de São Bartolomeu (1572), a matança dos judeus na Ucrânia e na Polônia (1650), o massacre dos armênios sob o sultanato de Abdul-Hamid (1890-1896), e as atrocidades dos bozers contra os cristãos na China (1900)10.

2. Evolução Histórica

Durante a 2ª Guerra Mundial, os Ministros das Relações Exteriores dos Estados Unidos, da Inglaterra e da Rússia, sentindo a perspectiva de vitória e prevendo a necessidade de punir os criminosos de guerra, realizaram uma Conferência em Moscou, de 19 a 30 de outubro de 1943, da qual resultou, em 1º de novembro de 1943, a Declaração de Moscou.

Merece destaque o seguinte trecho do Comunicado anglo-soviético-americano produzido na Conferência de Moscou: “todos os oficiais, soldados ou membros do partido nazista, que tenham tido qualquer cumplicidade nas atrocidades e execuções nos países invadidos pelas forças alemãs, serão reconduzidos aos países onde esses abomináveis crimes foram cometidos, para serem condenados e punidos segundo as leis desses mesmos países”.11

Conta a História que Roosevelt, Churchill e Stalin, no mesmo dia, mandaram um recado aos nazistas que praticaram crimes em territórios invadidos: “que se precavenham aqueles, cujas mãos ainda não estão tintas de sangue inocente, para que não entrem no rol dos culpados, porque as três Potências Aliadas se comprometem a perseguí-los inexoravelmente aos mais remotos confins da terra entregando-os aos acusadores para que se faça justiça”.12

A primeira idéia das três potências aliadas não seria o julgamento dos criminosos de guerra por um Tribunal Internacional, e sim pelos Tribunais Nacionais dos países invadidos, de acordo com suas respectivas leis.

Em 11 de fevereiro de 1945, no relatório da Conferência de Criméia, já se discutia a necessidade de se “submeter todos os criminosos de guerra a justo e rápido castigo”.13

Mais tarde, as potências aliadas, na célebre Advertência Tripartite, em 24 de abril de 1945, data anterior ao término da guerra, manifestaram o repudio à “violação dos direitos humanos mais elementares” e anunciaram a

6 Vasconcelos Costa. O instituto da extradição do genocídio. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais. Volume 31. nºs 30/31. Anos 1987-1988. p. 67.7 Luís Wanderley Torres. Crimes de Guerra. O Genocídio. 2ª edição. Editora Fulgor, ano 1967., p. 42 e 51.8 Nelson Hungria, op. Cit., p. 21 e 22.9 Ibid., p. 21.10 Anor Butler Maciel, op. cit., p. 502.11 Theodolindo Castiglione. Os Crimes contra a humanidade e o problema da prescrição em face de um Código Penal Internacional. Revista dos Tribunais, novembro de 1967, vol. 385. p. 32.12 Ibid., mesma página.13 Ibid., mesma página.

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punição daqueles que, através de atos militares, praticaram atrocidades contra a população civil.

Em 26 de junho de 1945, na cidade de São Francisco, fora redigida a Carta das Nações Unidas, reafirmando a fé nos direitos fundamentais do homem e na dignidade e valor da pessoa humana.

Finalmente, em 8 de agosto de 1945, em Londres, os governos aliados dos Estados Unidos, do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, da República Francesa e da União de Repúblicas Socialistas Soviéticas, aprovaram o estatuto da constituição do Tribunal Militar Internacional, com sede na cidade de Nuremberg.

Assim ficou redigido um trecho da declaração de Londres: “se estabelecerá um Tribunal Militar Internacional para o justo e rápido julgamento e castigo dos principais criminosos de guerra dos países europeus do Eixo”.14

O Tribunal de Nuremberg foi um marco histórico para a criação de uma legislação internacional que coibisse de vez os chamados “crimes de guerra” e “crimes contra a humanidade”.

A importância da constituição do Tribunal de Nuremberg repousou justamente na coragem dos governos aliados em afrontar a soberania dos Estados vencidos e para isso violar o princípio sagrado no direito penal “nullum crimen nulla poena sine praevia lege”.

Foi, sem sombra de dúvida, um marco histórico para a comunidade internacional, pois, a regra, como vimos, teria sido o julgamento dos criminosos pelos países nos quais as atrocidades da guerra foram cometidas, respeitando, assim, a territorialidade e a soberania de cada Estado.

Ressalte-se que o Tribunal Internacional de Nuremberg foi criado apenas para o julgamento das “autoridades” criminosas, previamente determinadas, por fatos, aliás, cometidos anteriormente à definição das infrações penais pelo seu Estatuto, não se constituindo, assim, em um Código Penal, pois as normas penais haviam sido preteritamente violadas, razão maior da afronta ao princípio da legalidade.

Além da crítica unânime pela não observância do princípio “nullum crimem nulla poena sine lege”, foi também objeto de censura, o fato de o Tribunal de Nuremberg ter sido um verdadeiro tribunal de exceção, formado apenas pelos vencedores, objetivando julgar os vencidos, olvidando-se, para muitos, dos crimes de guerra praticados pelos Aliados.

Ainda sobraram críticas no fato de a responsabilidade pelos atos de barbárie recair apenas no criminoso de guerra e não no Estado – ente político responsável à luz do Direito Penal Internacional.

Todavia, não impedia que o julgamento de outros criminosos de guerra fosse realizado pelos Tribunais dos países invadidos, de acordo com o que previa o artigo 5º

do Estatuto e a Declaração de Moscou de 1º de novembro de 1943.

A Carta de Nuremberg, resultante do Acordo de Londres de 8 de agosto de 1945, em seu artigo 6º, fixando as regras de jurisdição e os princípios gerais a que deveria obedecer o Tribunal, definiu três categorias de infrações penais: crimes contra a paz; crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

Os crimes contra a paz foram definidos como sendo o planejamento, a preparação, a iniciação ou a execução de guerra de agressão ou de guerra que violasse tratados internacionais, acordos ou a participação em plano comum ou em conspiração para executar qualquer de tais atos.

Já os crimes de guerra seriam violações às leis ou aos costumes de guerra, incluindo nestas, os assassinatos, maus-tratos, deportação para trabalhos forçados ou para qualquer outro fim de populações civis dos territórios ocupados ou que neles se encontrassem; assassinatos ou maus-tratos de prisioneiros de guerra ou de pessoas nos mares; execução de reféns, despojamento da propriedade pública ou privada; injustificável destruição de cidades, povos e aldeias; devastação não justificada por necessidades militares.

Os crimes de guerra seriam aqueles cometidos por tropas combatentes contra prisioneiros ou por invasores contra as populações vencidas, com violação às leis e aos costumes de guerra.15

Por fim, a carta de Nuremberg, definiu, na letra “c” do referido artigo 6º, com a seguinte redação, os crimes contra a humanidade: “assassinatos, exterminação, escravidão, deportação e outros atos desumanos praticados contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra; ou perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos, em execução ou em conexão com qualquer crime da jurisdição do tribunal, constituíssem, ou não, violação da legislação interna do país em que tivessem sido perpetrados”.16

O Estatuto estabelecia ainda, em seu artigo 8º, que a alegação de obediência hierárquica ou de cumprimento de ordens de governo na prática do delito não eximia o agente de pena, podendo constituir atenuante.

Em outubro de 1946, o Congresso de Paris concluiu que seriam culpados de crimes contra a Humanidade e puníveis como tais aqueles que exterminassem ou perseguissem indivíduos ou grupos de indivíduos, em razão de sua nacionalidade, raça, religião ou opiniões.

Estes crimes seriam punidos ainda quando cometidos por indivíduos ou organizações operando como órgãos do Estado ou sob sua instigação ou tolerância.

A preocupação com o tema e a necessidade da definição de um tipo penal, levou o VIII Congresso Internacional de Unificação do Direito Penal, realizado na cidade de Bruxelas, no ano de 1947, a editar, numa de suas teses, que a pessoa que, abusando de um poder soberano do Estado, privasse, injustificadamente, em razão de sua raça,

14 Theodolindo Castiglione, op. cit., p. 33.15 Luis Wanderley Torres, op. cit., p. 47.16 Cláudio Heleno Fragoso, op. cit., p. 28.

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nacionalidade, religião ou opiniões políticas, um indivíduo, grupo de indivíduos ou coletividade, de seus direitos fundamentais, cometeria crime contra a humanidade.

Ao final concluiu que tal crime é uma infração internacional, de direito comum e independente de estado de guerra.

VESPASIANO PELLA, autor de um Projeto de Código Repressivo Mundial, definiu o crime de genocídio como sendo o ato de recorrer, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra, a métodos de domínio ou perseguição de populações civis, por motivos ou pretextos de índole racial, política ou religiosa, pondo em risco a vida, a integridade, saúde ou liberdade das pessoas.

Entre 5 a 10 de maio de 1948, uma Comissão do Conselho Econômico e Social da O.N.U (Organização das Nações Unidas), reunida em Lake Sucess, elaborou um Projeto de Convenção Internacional para Prevenção e Repressão do Genocídio.

O projeto foi redigido pelo próprio LEMKIM, em comissão integrada por VESPASIANO PELLA e DONNEDIEU DE VABRES, presidida por MAKTOS.

De acordo com o artigo I do projeto “genocídio é um crime de direito internacional, quer praticado em tempo de paz, quer em tempo de guerra”.

O artigo II estabeleceu que o “genocídio significa qualquer dos seguintes atos deliberadamente praticados com o fim de destruir um grupo nacional, racial, religioso ou político, por motivos de origem nacional ou racial, crença religiosa ou opinião política de seus membros: 1) assassínio dos membros do grupo; 2) lesão à integridade física dos membros do grupo; 3) adoção de medidas ou condições de vida visando à destruição dos membros do grupo; 4) imposição de medidas tendentes a evitar nascimentos no “seio do grupo”.

O genocídio cultural também foi abrangido no referido projeto.

O artigo III convencionou que “genocídio também significa qualquer ato intencionalmente cometido com o fim de destruir o idioma, religião ou cultura de um grupo nacional, racial ou religioso, por motivo de origem nacional, racial ou credo religioso de seus membros, como sejam: 1) proibição de uso do idioma do grupo no intercurso cotidiano ou nas escolas, ou da impressão e circulação de publicações no idioma do grupo; 2) destruição ou impedimento do uso de livrarias, museus, escolas, monumentos históricos, locais de adoração religiosa ou outras instituições e objetos culturais do grupo”.

A tentativa, a conspiração, o incitamento e a cumplicidade também foram abrangidos pelo Projeto.

Estabeleceu o artigo IV que eram puníveis os seguintes fatos: “a) conspiração (conspiracy, entente) para cometer o genocídio; b) incitamento direto, em público ou particularmente, a cometer genocídio, seja ou não seguido de efeito; c) tentativa de genocídio; d) cumplicidade em qualquer dos enumerados atos de genocídio”.

Em relação ao sujeito ativo do delito, o artigo V previa que “aqueles que cometeram genocídio ou qualquer dos atos enumerados no artigo IV serão punidos, quer sejam chefes de Estado, funcionários públicos ou particulares”.

No artigo VI ficou convencionado o compromisso entre os Estados de promulgação, no plano nacional, de leis destinadas à prevenção e repressão do genocídio.

No tocante à delicada questão da jurisdição para o processo e julgamento dos culpados, o artigo VI estabeleceu que “os acusados de genocídio ou de qualquer dos atos enumerados no artigo IV serão processados perante o Tribunal do Estado em que foi o ato cometido ou por competente Tribunal Internacional”.

O projeto foi encaminhado à Sexta Comissão da Assembléia Geral da O.N.U. que, reunida em Paris, no mesmo ano de 1948, entre os meses de setembro a dezembro, após amplo debate, modificou substancialmente alguns pontos do texto original.

A convenção foi aprovada, na cidade de Paris, em 9 de dezembro de 1948, entrando em vigor em 12 de janeiro de 1951, após ter sido ratificada por vinte e dois países, tendo sido o Brasil um dos seus signatários, representado por GILBERTO AMADO e RAMIRO SARAIVA GUERREIRO.

O crime de genocídio, declara o artigo 1º da Convenção, seja em tempo de paz ou em tempo de guerra, é um crime do Direito das Gentes.

De acordo com o disposto no artigo 3º, entende-se por genocídio, qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

O artigo 3ª também declara puníveis a associação de pessoas para cometer o genocídio; a incitação direta e pública a cometer o genocídio; a tentativa de co-autoria no genocídio.

A Convenção de Paris, em relação ao projeto original de Lake Success, entre as mudanças mais substanciais, resolveu suprimir a referência aos grupos políticos dentre aqueles protegidos pelo genocídio, pois, de acordo com o aspecto etimológico, o caráter odioso do delito repousava justamente no extermínio de grupos raciais e não em agrupamentos políticos.

Além do que, as características de identidade, coesão, e estabilidade dos grupos raciais estendida, por analogia, aos nacionais e religiosos, nem sempre estavam presentes nos grupos políticos.

Ademais, buscava-se evitar que Estados autoritários, alegassem como defesa apenas a intenção de reprimir conflitos políticos.

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Foi acrescido ao texto original na relação de atos de genocídio “a transferência forçada de crianças de um grupo para o outro”, em razão da odiosa tentativa de desaparecimento do grupo nacional polonês com a morte de milhares de crianças seqüestradas de suas famílias pelos alemães na 2ª Guerra Mundial.

O “genocídio cultural” (atentados contra o direito ao uso da própria língua e destruição de monumentos e instituições de Arte, História ou Ciência), por sua vez, foi suprimido do texto original, pelo fato de poder ser reprimido na esfera de proteção geral das minorias e dos direitos do homem, bem como não apresentar a gravidade do genocídio físico (assassinato e atos que causem a morte) ou biológico (esterilização e separação de membros do grupo).

Foi excluído também, dentre os atos puníveis, o “incitamento privado”, por não ter força e eficácia suficiente para criar uma situação de perigo concreta, apta a por em risco membros de um grupo.

A proposta soviética de se incriminar a propaganda do genocídio por meio de publicidade difusa não foi aprovada, pois a sua punição seria uma ameaça à própria liberdade de opinião.

Além do que, a propaganda, seja por rádio, jornal, ou qualquer outro meio de imprensa que tenha por finalidade direta a prática de genocídio, poderia ser enquadrada nos atos de “conspiração” ou “incitamento público”.

A sugestão soviética de incriminar os “atos preparatórios” também não foi aprovada. Pretendia-se punir “os estudos e pesquisas tendentes à elaboração técnica do genocídio e a fabricação, aquisição, armazenamento ou fornecimento de matérias ou produtos que se sabe destinados à execução do genocídio”.

Prevaleceu o argumento de que a punição de tais atos poderia por em risco o progresso científico mundial e, nem mesmo a lembrança da bomba atômica ou das experiências da bomba de hidrogênio foram suficientes para a incriminação dos atos preparatórios.

A responsabilidade penal dos Governantes, abstraindo o Estado como pessoa jurídica, e também de seus agentes, ainda que funcionários públicos, permaneceu inalterada.

de se anotar que foi por estreita margem que a Convenção excluiu a responsabilidade das pessoas jurídicas, apesar de não estarem elas sujeitas às penas e não possuírem capacidade penal e culpabilidade.

A sugestão do Tribunal de Nuremberg quanto ao afastamento da escusa da “ordem legal” ou a “de superior hierárquico” não foi acolhida pela Comissão que, atendendo aos critérios doutrinários tradicionais, manteve a excludente.

Todavia, somente a ordem manifestamente ilegal de superior hierárquico é que não deve ser cumprida pelo subordinado, caso contrário não haveria mais respeito à disciplina e hierarquia dentro do Estado. É de se ressaltar

que mesmo nas ordens ilegais o agente pode socorrer-se da excludente da “coação irresistível” ou do “estado de necessidade”.

Foi proposto por CHAUMONT, representante da França, que a caracterização do genocídio dependia da participação ou convivência dos governantes, tese defendida por DONNEDIEU DE VABRES e adotada pelo Congresso de Bruxelas. Isto porque a criação de uma justiça universal somente se justificaria quando da prática de atos de genocídio por parte de Estados signatários de convenção internacional.

Por outro lado, a hipótese de genocídio praticado por particulares deveria ser prevista como modalidade de homicídio nas legislações internas e sujeita, por conseqüência, à jurisdição de um tribunal nacional e não uma corte internacional.

Tese importante mantida foi a que não considerava genocídio crime político para os efeitos de extradição, reafirmando o caráter de crime contra a humanidade, impedindo que os governantes justificassem politicamente seus gestos de atrocidades e alcançassem asilo político em outro Estado, como naqueles não signatários das convenções internacionais.

A Sexta Comissão da Assembléia Geral da O.N.U., a fim de evitar o julgamento por um tribunal nacional, como ocorreu após a 1ª Guerra Mundial, no Tribunal de Leipzig, ou no Tribunal de Nuremberg, finda a 2ª Guerra Mundial – que suprimiu o princípio intransponível para a segurança e liberdade do indivíduo “nullum crimen, nulla poena sine lege” – acolheu, para punir os criminosos de guerra, a tese da criação de uma corte de justiça internacional ou superestatal para o processo e julgamento dos crimes de genocídio, cuja jurisdição seria previamente acordada pelos países signatários da Convenção.

Assim, a Convenção, em seu artigo 6º, estabeleceu competência para os próprios Estados em cujo território ocorreram os crimes para processar e julgar seus próprios governantes, além de declinar, de maneira incompreensível, da competência para aqueles não signatários da convenção que se recusaram assim a reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional.17

Como não poderia ser diferente, a preocupação com o tema também chegou ao Brasil, tendo sido realizado em São Paulo, de 21 a 27 de novembro de 1954, o I Congresso Interamericano do Ministério Público, com a participação, além do Brasil, de representantes de vários países: Antilhas Neerlandesas, Argentina, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, Espanha, Estados Unidos, México, Paraguai e Venezuela.

O Congresso, em sessão plenária de 23 de novembro de 1954, aprovou por unanimidade as seguintes conclusões18:

1º) Elaboração de um Código Mundial capitulando todas as figuras de crimes contra a paz, crimes de guerra e contra a humanidade, cominando-se as correspondentes sanções;

17 Nelson Hungria, op. cit., p. 22/26.18 Luis Wanderley Torres, op. cit., p. 56.

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Bibliografia

2º) Elaboração de um Código de Processo estabelecendo as normas diretivas do processo penal internacional e a organização e competência de um Tribunal Penal Mundial;

3º) Os códigos em apreço deveriam reconhecer o princípio de que não há pena sem lei prévia, nem delito sem lei prévia, nem julgamento sem tribunal legal previamente constituído; o princípio da irretroatividade da lei penal mundial somente seria desprezado quando a nova lei beneficiasse o réu;

4º) Os códigos referidos deveriam ser elaborados sob os auspícios da Organização das Nações Unidas e por ela promulgados. Para a sua plena vigência e conseqüente punição dos crimes capitulados no Código Mundial, a legislação penal de cada país deveria incluí-los na sua própria legislação nacional.

Abstract. This article is about genocide crime. Genocide means any of the following acts committed with intent to destroy, in whole or in part, a national, ethnical, racial or religious group, as such: a) killing members of the group; b) causing serious bodily or mental harm to members of the group; c) deliberately inflicting on the group conditions of life calculated to bring about its physical destruction in whole or in part; d) imposing measures intended to prevent births within the group; e) forcibly transferring children of the group to another group.

Key words: Genocide crime. National, ethnical, racial or religious group. Killing members of the group.

BUTLER MACIEL, Anor. Genocídio. Revista Forense, v. 169, p. 502, jan/fev., 1957.CASTIGLIONE, Theodolindo. Os Crimes contra a humanidade e o problema da prescrição em face de um Código Penal Internacional. Revista dos Tribunais, novembro de 1967, vol. 385.COSTA, Vasconcelos. O instituto da extradição do genocídio. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais. Volume 31. nºs 30/31. Anos 1987-1988, p. 67.FRAGOSO, Cláudio Heleno. Genocídio. Revista de Direito Penal. nºs 9/10, janeiro-junho/1973. Editora Revista dos Tribunais, p. 29.HUNGRIA, Nelson. O crime de Genocídio. Conferência proferida no Centro Militar de Estudos de Juiz de Fora em 15 de agosto de 1950, publicada na Revista Forense, vol. 132, em novembro de 1950, p. 21.LAPLAZA, Francisco P. El Delito de Genocídio o Genticídio, apud Luís Wanderley Torres. Crimes de Guerra. O Genocídio. 2ª edição. Editora Fulgor. Ano 1967, p. 41.TORRES, Luís Wanderley. Crimes de Guerra. O Genocídio. 2ª edição. Editora Fulgor, ano 1967, p. 42 e 51.

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.94

Agravo de Instrumento nº 683.469-4/6-00Agravante: A. P. B. de S.Agravado: M. A. S. A.Comarca: São PauloMM. Juiz de primeira instância: Dr. Eduardo Basso

VOTO nº 4280 EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – Execução de alimentos fixado em sentença – Decisão que determinou a citação do executado pelo rito do artigo 732 do CPC – Inconformismo da agravante, que requer o prosseguimento da execução pelo rito dos artigos 475-I a 475-R do CPC - Razões recursais acolhidas, tendo em vista o novo tratamento dado aos títulos executivos judiciais após a Lei nº 11.232/05 - Decisão reformada - Recurso provido.

RELATÓRIO.

1. Cuida-se de agravo tirado contra r. decisão trasladada às fls. 88 que, nos autos da ação de alimentos que move a agravante em face do agravado, em fase de execução de sentença, determinou a citação do executado pelo rito do artigo 732 do Código de Processo Civil, por entender este especial e não revogado.

2. Inconformada, insurge-se a agravante, alegando, em síntese, que a reforma promovida pela Lei nº 11.232/05 fez com que os atos executivos fossem simplificados, de maneira que o rito para a execução de alimentos fixados em título executivo judicial deve ser aquele que trata sobre o cumprimento de sentença, mais célere e adequado à pretensão deduzida.

3. Requer, assim, a reforma da r. decisão recorrida.

4. Recebi o agravo na forma de instrumento e antecipei a tutela recursal requerida.

5. Dispensei as informações judiciais de praxe, bem como a manifestação da parte adversa, sequer citada, e por ver-me, desde logo, em condições de votar. FUNDAMENTOS.

6. O recurso merece provimento.

7. Com efeito, a Lei nº 11.232/05 veio trazer maior celeridade

à execução dos títulos executivos judiciais. Desta forma, não se faz mais necessária nova ação, nova citação, tampouco comporta embargos.

8. Segundo Maria Berenice Dias1:“Ocorreu a alteração da carga da eficácia da sentença, que de condenatória transformou-se em executiva. Daí ter sido dispensado o processo executório. A mudança atinge toda e qualquer sentença, até a que impõe obrigação alimentar. Não há como impor o uso do rito revogado de execução de título executivo judicial nem impedir o uso da via da coação pessoal. [...] Claro que os créditos alimentares não podem ser afastados dessa possibilidade de cobrança pelo simples fato de o legislador ter se olvidado de proceder à alteração no título que trata da execução de alimentos (CPC 732 a 735)” (grifos no original).9. Portanto, de rigor que seja seguido o rito mais célere para a satisfação do crédito a que tem direito a agravante, dada, sobretudo, a sua natureza.

10. Assim, diante do exposto, pelo meu voto, DOU PROVIMENTO ao presente recurso.

José Carlos Ferreira AlvesDesembargador Relator

Poder JudiciárioTribunal de Justiça do Estado de São Paulo

1 In Manual de Direito das Famílias, 4ª Edição, RT, 2007.

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Cuida-se de pretensão indenizatória movida por XXX e YYY em face de ZZZ.

Aduz a co-autora que se submeteu a exames de imagem por ocasião de sua gestação, tendo a ré os utilizado sem consentimento em divulgação comercial. A exposição não autorizada do então nascituro e da genitora geraram danos indenizáveis.

Contestação versando carência, prescrição e inexistência dos prejuízos alegados.

Houve réplica e manifestação do I. Representante do Ministério Público, não tendo especificado prova os autores.

Breve, o relato.Vinga a pretensão, franqueado o julgamento no estado.

A documentação trazida aos autos dispensa a realização de perícia para relacionar os exames ao folder publicitário da ré. É inequívoca a identidade frente ao cotejo dos dados de cabeçalho, onde riscado apenas o nome da gestante.

E testemunhas são irrelevantes diante da presunção que emerge.

Admite-se que a requerida tem razão no inconformismo vazado contra a pretensão da co-autora Luciana.

Há a questão prescricional à luz do prazo trienal para a reparação civil (inaplicável ao co-autor, menor), haja vista que a litisconsorte não alegou ou tampouco comprovou ciência sobre a veiculação da vetusta propaganda há menos de três anos do ajuizamento. Nesse sentido, as percucientes anotações do douto Promotor de Justiça (fls. 69/71).

Além disso, o nome da genitora foi riscado de modo a não permitir identificação pública de seu exame (por oportuno, ressalte-se que não há alegação nos autos de que isso teria sido feito durante o trâmite do processo, presumindo-se que assim constou na publicação). De qualquer sorte, é evidente que as fotografias utilizadas no folder de fls. 12 têm destaque restrito ao feto e não revelam ‘partes’ do corpo de sua mãe.

Entrementes, o acolhimento da postulação do menor é imperativo, ressaltando-se que a alegação ‘preliminar’ de carência diz com a questão de fundo.

Partindo da premissa referente à comprovada identidade entre a imagem do então nascituro e aquela utilizada pela ré em sua divulgação comercial, sabe-se também que a orientação adotada pelo ordenamento jurídico pátrio confere proteção aos direitos do nascituro (artigo 2º, do Código Civil – dispositivo exaltado pela linha concepcionista). Ainda, é relevante destacar o manto protetor sobre os direitos da personalidade, que se estende desde a Constituição Federal

(artigo 5º, incisos V, X e XXVIII) até o Código Civil (artigo 12).

No caso em tela, a requerida elaborou folder para divulgação comercial utilizando imagem do co-autor Gabriel sem autorização da genitora, com evidente enriquecimento às custas da ausência de paga. Deve indenizá-lo, ainda que a exposição não tenha causado situação vexatória ou prejuízos psíquicos – por motivos óbvios.

A contestação no sentido de que imagens de fetos em seus primeiros meses de gestação são assemelhadas e não permitem individualização pelo público em geral – argumento realmente pertinente – não habilitava a ré para utilizar desautorizada e gratuitamente os exames em que figurava o requerente.

Tal constatação é devida apenas para balizar a fixação da indenização, e não excluí-la peremptoriamente. Também se mostra necessário levar em conta a inexistência de alguma peculiaridade na imagem do autor que lhe destaque das demais, fazendo-a merecedora de reparação especial. Enfim, a ausência de identificação da genitora constitui elemento importante, bem assim o caráter regionalizado da propaganda.

Motivos pelos quais fixo a indenização no montante correspondente a quinze salários mínimos.

Centrado nesses fundamentos, julgo parcialmente procedente o pedido para condenar a ré ao pagamento de R$ 6.225,00 ao autor, verba atualizada desde o ajuizamento e acrescida de juros moratórios mensais em 1% a partir da citação, além de custas, despesas e honorária em 10% sobre a condenação em seu favor, observado o princípio da causalidade.

P.R.I.

São José dos Campos, novembro de 2008.

João José Custódio da Silveira

Juiz de Direito

PRIMEIRA VARA CÍVEL DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOSFeito nº XXX: Sentença.

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.96

Vistos etc.

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO ajuizou a presente ação civil pública com pedido de liminar contra a FAZENDA PÚBLICA MUNICIPAL DE RIBEIRÃO PRETO e a FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO pretendendo que as rés forneçam gratuitamente o medicamento Adalimumabe para Elias Silveira dos Reis, que se encontra acometido de grave doença (Espondilite Anquilosante) e não possui condições financeiras de arcar com o dispendioso tratamento. Sustenta que, apesar de instados, o SUS - Sistema Único de Saúde – órgão do governo estadual - e a Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto, não proporcionaram ao doente o fornecimento do aludido medicamento, ofendendo direito individual indisponível à saúde, insculpido nos artigos 6º, 196 e 203, inciso IV, da Constituição Federal, no art. 219 da Constituição Paulista, na Lei Complementar Estadual nº 791/95 (fls. 02/10). Juntou documentos (fls. 11/57).

Foi concedida a liminar para o fornecimento do medicamento pelas rés (fls. 59/60).

A Fazenda Municipal de Ribeirão Preto contestou o pedido, alegando, em preliminar, ilegitimidade ativa do Ministério Público e ilegitimidade passiva sua, posto que exerce funções de assistência primária dentro do Sistema Único de Saúde, que não engloba o fornecimento do referido medicamento, sendo este de competência exclusiva do Estado, de forma que a inclusão do Município no pólo passivo configura desrespeito à Lei Federal nº 8.080/90 e à Lei Complementar nº 791/95. Prequestionou a aplicabilidade de tais leis frente ao art. 198 da Constituição Federal. No mérito, assevera que a assistência ao paciente mediante fornecimento do medicamento em questão deve ser pleiteado somente junto ao Estado, sob pena de se prejudicar a população de Ribeirão Preto, uma vez que tais tratamentos, abrangidos pelo chamado serviço terciário, prejudica a execução dos serviços primários. Sustenta que o Poder Judiciário não pode subverter a divisão de competências, intervindo em funções próprias do Executivo (fls. 66/78 e documentos de fls. 79/94).

A Fazenda Pública do Estado de São Paulo contestou sustentando, em sede de preliminar, ilegitimidade ativa do Ministério Público, posto que o Parquet está defendendo

nos autos direitos individuais e disponíveis; ilegitimidade passiva sua, diante da Lei n.º 8.080/90, dispondo sobre o repasse da responsabilidade dos serviços de saúde aos Municípios pelo sistema SUS, sendo de responsabilidade da co-ré o fornecimento pleiteado; asseverando, ainda, o descabimento da concessão da liminar. No mérito, aduziu, em síntese, que os recursos destinados à saúde são usados de acordo com a autorização e previsão orçamentárias, não podendo se curvar o Poder Executivo a decisões do Poder Judiciário, sendo que o fornecimento do medicamento a apenas um cidadão - em detrimento de muitos outros - feriria o Princípio da Isonomia, notadamente considerando-se os limites do orçamento do Estado (fls. 95/101).

Seguiu-se réplica (fls. 104/108). É o relatório. Fundamento e decido.

I - Trata-se de matéria de direito, sendo desnecessária a produção de qualquer outra prova, motivo pelo qual se julga o processo no estado em que se encontra, em conformidade com o art. 330, inciso I, do Código de Processo Civil.

II - Não merece prosperar a preliminar arguida pelas rés, de ilegitimidade ativa, porquanto o Ministério Público, valendo-se da prerrogativa de pleitear em nome próprio direito alheio (legitimação extraordinária), procura preservar direito individual indisponível da parte interessada, qual seja, o direito à vida e, via de consequência, o direito público subjetivo à saúde, amparado pelo art. 6º da Constituição Federal, uma vez que a omissão das demandadas poderá piorar a situação do paciente, acometida de doença grave.

Saliente-se que o art. 127 da Carta Magna dispõe que incumbe à Instituição autora a defesa dos interesses individuais indisponíveis.

Disposição semelhante verifica-se no art. 25, inciso IV, alínea b, da Lei n.º 8.625, de 12.02.1993 (Lei Orgânica do Ministério Público), que acresce, ainda, a defesa dos interesses individuais homogêneos como alvo de atuação do Ministério Público por meio de Ação Civil Pública, o que torna indiscutível a legitimidade do Parquet para a propositura desta ação.

PODER JUDICIÁRIOCOMARCA DE RIBEIRÃO PRETO2ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA

Autos nº 882/09 – Lauda nº 1

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III - Da mesma forma, afasta-se a preliminar arguida por ambas as rés, de ilegitimidade passiva, posto que é dever comum dos Entes Federados, de forma solidária, cuidar da saúde e da assistência pública, conforme deflui da análise do art. 196 em consonância com o art. 198 da Constituição Federal, que atribuíram papel relevante aos Estados nessa tarefa, outorgando-lhes competência comum para, juntamente com a União e o Município, preservarem a saúde pública e proteger os portadores de enfermidades graves, por meio da descentralização do sistema de saúde.

No mais, a Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, ao instituir o Sistema Único de Saúde (SUS) não o fez para impor rigidez às atribuições de cada Ente incumbido de promover e recuperar a saúde, mas sim para determinar a co-participação e atuação articulada destes órgãos públicos, no intuito de ampliar e melhorar o atendimento à saúde pública em todo território nacional. Esta é a interpretação absorvida do art. 4º de citada Lei, que assim dispõe:

“O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS)”.

Sobreleva assinalar, ainda, que os dispositivos supra citados foram criados para preservar o maior de todos os bens, a vida, pois sem ela não haveria razão para a existência de quaisquer direitos. Assim, o legislador, ao elaborar as diversas leis especiais que se referem à saúde, o faz com base no direito fundamental à vida e, via reflexa, no direito público subjetivo à saúde.

IV – Frise-se, por oportuno, que a concessão da tutela antecipada é possível quando o magistrado vislumbrar presentes, nos elementos de convicção fornecidos pela parte que a objetiva, os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora. No caso em vértice, nítido se demonstra o caráter emergencial da medida, haja vista a gravidade do quadro clínico da parte interessada, que, certamente encontra amparo constitucional para o seu pedido.

V - O objetivo primordial que aqui se busca é o cumprimento do texto constitucional, que em seu art. 5º, caput, reconhece expressamente o direito fundamental e primário do ser humano à vida, complementado pelo direito à saúde, estabelecido no artigo 196.

A proteção desses direitos também está consubstanciada em outros dispositivos constitucionais, tais como no art.

6º, no art. 23, inciso II, no art. 194 e até no art. 227, caput e seu § 1º, todos da Carta Magna, que se reúnem sob um único prisma: procurar garantir a saúde do cidadão, indistintamente.

VI – Daí, conclui-se que o Poder Judiciário, ao assegurar aos jurisdicionados as garantias que lhe são constitucio-nalmente outorgadas - direito à vida e à saúde -, não interfere na esfera de competência dos outros Poderes, apenas obriga ao cumprimento de normas já existentes no ordenamento jurídico pátrio, uma vez que o controle da Administração Pública por ele exercido se limita ao modo de atuação do Poder Executivo, fazendo com que este obedeça à lei, bem como verificando a legalidade ou legitimidade de seus atos.

Afasta-se, também, a alegação de que o acolhimento do pedido formulado implicaria em ofensa ao Princípio da Isonomia por atender somente a um, dentre tantos doentes, pois, uma vez atestada a importância do medicamento para manter a sobrevida de pessoas que passam pelo mesmo sofrimento que o paciente ora citado, já deveria estar incluído na lista oficial de remédios fornecidos pela rede de atendimento à saúde pública, inclusive, amoldando, se necessário, a dotação orçamentária, de forma a proporcionar tratamento digno às pessoas que dele necessitam.

VII - Verifica-se, por todo exposto, a existência de uma profusão de dispositivos constitucionais tratando da matéria, ante a inegável relevância do tema, restando certa e indiscutível a atribuição que pesa sobre as rés, no sentido de garantir a todo e qualquer cidadão o acesso aos meios que lhe proporcionem o tratamento e a recuperação da saúde, o que resulta na impossibilidade daquelas de se furtarem ao cumprimento da obrigação de realizar tudo o que estiver ao seu alcance para garantir adequado tratamento a todos os cidadãos que se mostrem necessitados de assistência médica, sob pena de virem a ser responsabilizadas pelos resultados de tal omissão.

POSTO ISSO e considerando o mais que dos autos consta, afasto as preliminares arguidas e julgo procedente o pedido, para o fim de tornar definitiva a liminar concedida (fls. 59/60) e para condenar as rés, solidariamente, a fornecerem o medicamento Adalimumabe a Elias Silveira dos Reis, enquanto perdurar a necessidade deste, atestada por profissional competente.

Ressalte-se que é responsabilidade do paciente ou dos familiares (conforme a hipótese) comunicar à Unidade dispensadora do medicamento quando houver suspensão do uso ou intolerância à medicação, mudança de endereço e óbito da parte interessada, sob pena de, oportunamente, o valor despendido para a aquisição do produto ser cobrado dos familiares.

Autos nº 882/09 – Lauda nº 2

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.98Autos nº 882/09 – Lauda nº 3

Sem condenação das Fazendas em despesas, custas e honorários advocatícios, uma vez que tal imposição implicaria em afronta ao princípio da isonomia, já que o Ministério Público não está sujeito ao pagamento de tais verbas quando vencido na Ação Civil Pública.

Deixo de determinar a remessa destes autos para o reexame necessário, uma vez que o valor da causa não supera o valor previsto no artigo 475, § 2º, do Código de Processo Civil.

P. R. e Intimem-se.Ribeirão Preto, 19 de março de 2010.

João Agnaldo Donizeti GandiniJuiz de Direito

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GABRIELA CORBISIER TESSITOREBacharel em Cinema pela Faculdade de Comunicação e Marketing da Fundação Armando Alvares Penteado e aluna do Curso de Direito da mesma FAAP. Foi pesquisadora bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP, onde desenvolveu academicamente o tema “Um estudo sobre as relações entre forma e conteúdo em Teorema,

de Pier Paolo Pasolini”.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

“A tradição dos oprimidos nos ensina que o Estado de Exceção em que vivemos é na verdade regra geral. Precisamos construir um conceito de História que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é criar um verdadeiro Estado de emergência.” (Walter Benjamin, Sobre o conceito da História, 1940, tese VIII)

Volta à tona, por meio da publicação da obra de Victor Klemperer, LTI – a linguagem do Terceiro Reich, a questão do nazismo e permanências. O filólogo judeu alemão assistiu à ascensão do regime nazista e sobreviveu graças à exceção ao casamento misto, contraído com uma ariana1. Pôde, então, acompanhar as diversas fases constitutivas – discriminação, expulsão e genocídio – da doutrina racial que promoveu os “massacres administrativos” de seis milhões de judeus no período de 1933-1945.

Klemperer se destaca por sua análise da linguagem totalitária, em um livro que se situa, nas suas palavras, “a meio caminho entre um relato concreto da própria experiência e uma conceituação acadêmica”.2 Na tentativa de entender o que foi o nazismo e como se instalou, investiga a manipulação de vocábulos e conceitos que tiveram seu sentido deturpado, de maneira a empobrecê-los, bem como a repetição infindável de mentiras concernentes à ideologia do regime:

Não, o efeito mais forte não foi provocado por discursos isolados, nem por artigos ou panfletos, cartazes ou bandeiras. (...). O efeito não foi obtido por meio de nada que se tenha sido forçado a registrar com o pensamento ou a percepção conscientes. O nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio das palavras, expressões e frases impostas pela repetição, milhares de vezes, e aceitas inconsciente e mecanicamente (...). A língua não se contenta em poetizar e pensar por mim. Também conduz meu sentimento, dirige a minha mente, de forma tão mais natural quanto mais eu me entregar a ela inconscientemente. O que acontece se a língua culta tiver sido constituída ou

for portadora de elementos venenosos? Palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico: são engolidas de maneira desapercebida e parecem ser inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz notar. 3

Mediante, pois, o poder dos mecanismos inconscientes da linguagem – como ilustraria depois George Orwell, ao introduzir a novilíngua como um dos pilares do regime totalitário em seu 1984 –, o nazismo se consolidou na mente das massas, inclusive na de suas vítimas, que acabaram por utilizar-se do jargão do Terceiro Reich, submetendo-se à linguagem do vencedor: “todos pecaram, usando alguma palavra anotada no caderno de culpas da minha memória”.4

Esta mesma forma de “testemunho dotado de caráter científico” foi eleita por Hannah Arendt em sua já clássica obra sobre o julgamento de Eichmann. De acordo com a nossa autora, o livro é um comentário, e não uma tese.5 Entretanto, claro está, a partir do subtítulo, que existe uma análise acerca do mal, exposto em sua banalidade, e que, portanto, tal obra não se restringe a um simples relato.

Em Eichmann em Jerusalém, publicado em 1963, a filósofa, a título de correspondente do The New Yorker, fez a cobertura do processo. Sua apreensão essencial do julgamento configurou-se em torno de três questões: nas discussões sobre a condução processual, no que tange à natureza jurídica; na conclusão acerca da banalidade do mal, a partir da análise do personagem-Eichmann; e nas considerações sobre o papel dos conselhos judeus na colaboração para a “solução final”.6

Esta última questão, por sua vez, suscitou uma série de polêmicas, e, para a autora, o processo silenciou especialmente no tocante a essa passividade e ausência de resistência por parte dos conselheiros judeus. Estes foram de suma importância para o sucesso da emergência e consolidação do regime, inseridos como peças-chave no labirinto burocrático do Terceiro Reich.

1 Os judeus casados com “alemães puros” escaparam dos campos de concentração, porém, eram obrigados a usar a estrela de Davi sobre a roupa como forma de identificação.2 Victor Klemperer, LTI – a linguagem do Terceiro Reich, p. 53.3 Idem, Ibidem, p. 55.4 A expressão Alemanha eterna é emblemática dessa situação descrita por Victor Klemperer, da utilização da linguagem do vencedor. Sua amiga, judia e filóloga, a usara em certa conversa com o autor. Nas Judenhäuser, “sua utilização foi só uma escravização irrefletida. Não representou um reconhecimento da doutrina nem uma crença nas mentiras.” Idem, Ibidem, p. 298-309.5 Hannah Arendt apud Nádia Souki, Le “cas Eichmann” et les allemands, p. 169-173. 6 A “solução final” era o nome conferido quando da determinação do extermínio dos judeus, em reunião da cúpula do Partido Nazista, a Conferência de Wannsee, realizada em janeiro de 1942.

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.100

A obra trata, inicialmente, de uma descrição da corte de Jerusalém, do acusado e seus atributos, para, em seguida, retomar, por dez capítulos, o contexto histórico-político subjacente ao nazismo, em suas principais fases. A filósofa discorre, então, sobre as questões do processo em si – as testemunhas, provas, julgamento, apelação e execução – para, no epílogo e no pós-escrito, tecer sua análise acerca das questões jurídicas levantadas.

I- Considerações acerca do processo judicial

Adolf Eichmann, antigo oficial da SS7, responsável pelo comando e organização do deslocamento dos judeus para os campos de extermínio à época do nazismo – “um perito dos transportes, de acordo com o princípio da linha de produção”8 –, foi capturado na Argentina e levado à Corte de Jerusalém por sua participação na “solução final” dos judeus. O acusado, entretanto, não havia sido devidamente preso e extraditado para Israel – pelas vias legais –, para fins de justiça. No entanto, segundo Hannah Arendt, um pedido de extradição teria sido “inútil”, pois, pela lei argentina, todos os crimes ligados a última guerra prescreviam em quinze anos, de tal modo que, após maio de 1960, Eichmann não mais poderia ser extraditado: “em resumo, o reino da legalidade não oferecia nenhuma alternativa ao rapto”.9

Esta é apenas uma das questões polêmicas, no que tange à matéria processual, que permearam o julgamento, conforme descrição da autora. De extrema relevância para o Direito, pois, foram as indagações suscitadas a respeito da competência do tribunal de Jerusalém para processar um ex-oficial alemão, uma vez que todo Estado soberano se reserva no direito de julgar seus próprios acusados, especialmente se o acontecimento em voga constitui, ou não, fato delituoso. Seus atos se constituiriam em crime, em seu país de origem, apenas na forma retroativa10. Entretanto, argumenta Hannah Arendt,

Sua retroatividade, pode-se acrescentar, viola apenas formalmente, não substancialmente, o princípio de nulla crimen, nulla poena sine lege, uma vez que este se aplica significativamente apenas a atos conhecidos pelo legislador; se um crime antes desconhecido, como o genocídio, repentinamente aparece, a própria justiça exige julgamento segundo uma nova lei. Nada é mais pernicioso para a compreensão desses novos crimes (...) do que a ilusão comum de que o crime de assassinato e o crime de genocídio são essencialmente os mesmo, e que este último, portanto, ‘não é um crime novo propriamente falando’. 11

Ora, se as acusações constituíam “atos de Estado” para o sistema legal nazista do Terceiro Reich, Eichmann, então, estava no estrito cumprimento do dever legal, o que

exclui a ilicitude de suas ações. Tais argumentos, porém, já haviam sido descartados em Nuremberg, pois, uma vez aceitos, nem mesmo Hitler, “o único realmente responsável no sentido total, poderia ser acusado – um estado de coisas que teria violado o mais elementar senso de justiça. No entanto, um argumento vencido no plano prático não está necessariamente demolido no teórico”.12

É importante dizer que a filósofa refuta as teses do acusado como peça da engrenagem e da culpa coletiva bem como a idéia de que exista um pouco de Eichmann em todos, uma vez que tais teses caminham entre a total culpa ou total inocência. Na medida em que diferencia culpabilidade de responsabilidade, atribuindo a esta última um caráter político – não jurídico ou moral –, pergunta-se: “Qual o papel das outras nações? Até que ponto vai a responsabilidade dos aliados?”13

Eichmann havia sido levado ao tribunal dos vitoriosos, e seria julgado por juízes judeus, o que fere, de antemão, o princípio da imparcialidade. Não obstante, a justiça fora mais seriamente prejudicada pelo fato da Corte não ter admitido testemunhas de defesa, não alcançando, assim, o contraditório: “em termos de requisitos tradicionais para processos de lei justos e adequados, essa foi a falha mais séria nos procedimentos de Jerusalém”.14

Cabe ainda ressaltar que, de acordo com Hannah Arendt, era intenção do primeiro ministro de Israel, Ben-Gurion, transformar o julgamento em um espetáculo, e isso se tornou evidente diante do seu discurso de abertura: “não é um indivíduo que está no banco dos réus nesse processo histórico, não é apenas o regime nazista, mas o anti-semitismo ao longo de toda a história”.15

Com tal retórica, a acusação acabou por endossar o principal argumento contra o julgamento, a saber, que fora instaurado para aplacar o desejo de vingança das vítimas e não para os fins de justiça. Na sentença, por sua vez, fez-se notório o esforço dos juízes para resistir a todas as tentativas de se ampliar o âmbito do julgamento: a Corte não podia “permitir ser atraída para territórios que estão fora de sua esfera (...) o processo judicial tem seus próprios meios, que são determinados pela lei, e que não mudam, seja lá qual for a matéria do julgamento”.16

II- Considerações sobre o totalitarismo moderno

Para além das considerações sobre a banalidade do mal e do processo Eichmann, Hannah Arendt alcançou, em Origens do totalitarismo (1951), uma compreensão profunda acerca do fenômeno do totalitarismo moderno, no âmbito da filosofia política.

7 A SS, Schutzstaffel, guarda de elite do Partido Nacional Socialista, correspondendo à cúpula do partido.8 Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 81.9 Idem, Ibidem, p. 287.10 Eichmann foi julgando com base na Lei (Punitiva) dos Nazistas e Colaboradores dos Nazistas, de 1950.11 Idem, Ibidem, p. 276/295.12 Idem, Ibidem, p. 313.3 Idem, Ibidem, p. 15.14 Idem, Ibidem, p. 297.15 Ben- Gurion apud Hannah Arendt. Idem, Ibidem, p. 30.16 Idem, Ibidem, p. 303. Neste trecho, Hannah Arendt cita parte da sentença, a qual teve acesso.

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Ao considerar o espanto como móvel inicial da filosofia, a autora evoca Platão, para quem o início de toda a filosofia é o thaumadzein, “o espanto maravilhado face a tudo o que é como é”.17 Refletir acerca do aparecimento e originalidade do totalitarismo, diante da missão de compreendê-lo, exigiu a criação de novos conceitos e novas categorias. Os comentários de Nádia Souki, sobre o assunto, são esclarecedores:

Para ela (Hannah Arendt), a maneira mais fácil de nos enganar a respeito de uma novidade histórica consiste em assimilá-la a algo já conhecido pela tradição; por exemplo, assimilar o governo totalitário a um mal conhecido do passado como agressividade, tirania, conspiração, etc. A sabedoria do passado se torna insuficiente no momento em que nós nos esforçamos em aplicá-la aos problemas políticos fundamentais da nossa época (...). A terrificante originalidade do totalitarismo não se refere a uma nova “idéia” que apareceu no mundo, mas a atos de ruptura com toda a tradição. Esses atos literalmente pulverizam nossas categorias políticas e nossos critérios de julgamento moral.18

É, pois, para Hannah Arendt, uma convergência de acontecimentos, ligados a uma conjuntura histórica, que se cristalizam no anti-semitismo, ensejando o totalitarismo nazista. Difere-se, portanto, do antigo ódio religioso anti-judaico; o anti-semitismo é tratado, sobretudo, como um problema político.

O totalitarismo moderno aparece para a autora como uma forma de ação política sob a égide da sociedade mediada pelas estruturas de massificação, amparado, assim, pela técnica, e calcado em dois pilares: a ideologia e o terror. Cabe, aqui, acentuar o papel relevante da propaganda como meio de comunicação a serviço tanto da ideologia nazista, como do terror perpetuado.19

Por fim, vale ressaltar que a condição de existência dos regimes totalitários foi dada pelo conceito de soberania do Estado bem como pela definição cunhada por Carl Schmitt, de “soberano como aquele que decide sobre o estado de exceção”.20 É possível traçar um paralelo entre a idéia de Giorgio Agamben do estado exceção como paradigma de governo e o totalitarismo moderno como

a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só de adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político (...) o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal. O Terceiro Reich pode ser considerado, do ponto de vista jurídico, como um estado de exceção que durou 12 anos.21

III- A banalidade do mal

No ponto central da obra Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal está um processo judicial; entretanto, figura, como personagem principal, um homem, de carne e osso, terrivelmente assustador em sua normalidade. A compreensão de Hannah Arendt acerca do julgamento extrapolou as matérias de caráter jurídico, político e histórico, para estabelecer um juízo sobre o comportamento de um ser humano. Insere-se, portanto, na tradição da filosofia moral, e é, assim, imprescindível, pois, o diálogo com Kant.

Ela parte do conceito de mal radical, formulado pelo filósofo em A religião dentro dos limites da razão (1793), para quem, o mal, longe de ser absoluto, tem uma dimensão atrelada a nossa existência ordinária, afastando-se, assim, a noção de malignidade e de homem diabólico na sua essência. Desse modo, Kant recusa o mal como “doença hereditária”, ao passo que busca uma origem racional para uma ação má, nos limites do arbítrio humano. Em última instância, inscreve-o em uma abordagem política, aderida à história dos homens.

É, também, nessa recusa em aceitar a condição absoluta do mal que a análise feita, a partir das considerações sobre o homem Eichmann, de Hannah Arendt, situa-se. Diante da insuficiência do conceito kantiano para explicar a modalidade do mal praticada na experiência totalitária do Nazismo, a filósofa cunha a expressão banalidade do mal:

O problema do mal passa, então, a ser questionado dentro de sua dimensão política, numa visão original que é a da sua banalidade (...). Através desse deslocamento, ela pode renovar suas esperanças no homem, resgatando o papel de agente transformador da história, ou, em outras palavras, de agente político.22

Quando, então, do julgamento perante o tribunal de Jerusalém, referindo-se às acusações de crimes contra os judeus, o ex-oficial repetia que era

inocente, no sentido da acusação (...) Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei judeu nem não judeu – nunca matei um ser humano. Nunca dei uma ordem para matar fosse um judeu, fosse um não-judeu; simplesmente não fiz isso.23

A perplexidade maior gerada pelo seu depoimento, contudo, não residia na sua capacidade de mentir ou dissimular o que havia ocorrido; para a autora,

Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada com sua incapacidade de pensar do ponto de vista de outra pessoa (...) A acusação tinha por base a premissa de que o acusado, como toda pessoa “normal”, devia ter consciência

17 Nádia Souki, Hannah Arendt e a banalidade do mal, p. 42.18 Idem, Ibidem, p. 44.19 Goebbels, escreve, em 27 de fevereiro de 1933: “A grande ação de propaganda prevista para o despertar da nação está definida nos mínimoa detalhes. Será uma Shau (parada) esplêndida em toda a Alemanha”. Goebbels apud Victor Klemperer, LTI - a linguagem do Terceiro Reich, p. 233.20 Giorgio Agamben, Estado de exceção, p. 11.21 Idem, Ibidem, p. 13.22 Nádia Souki, Hannah Arendt e a banalidade do mal, p. 35.23 Adolf Eichmaan apud Hannah Arendt, p. 33.

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da natureza de seus atos, e Eichmann era efetivamente normal na medida em que não era uma exceção dentro do regime nazista. No entanto, nas condições do Terceiro Reich, só se podia esperar que apenas as exceções agissem normalmente. O cerne dessa questão, tão simples criou um dilema para os juízes. Dilema que eles não souberam nem resolver, nem evitar.24

Hannah Arendt e a acusação esperavam encontrar um monstro, um homem perverso, típico exemplo da malignidade humana. Ao encontrar um ser absolutamente comum, paradigma do “homem massa”, com notória falta de profundidade, a questão essencial sofreu um deslocamento; foi necessário compreender como um Estado produziu agentes que funcionaram como reprodutores fiéis de seus objetivos.

A meta do totalitarismo moderno, para a realização plena de sua ideologia, na concepção da autora, é tornar-

se um sistema em que os homens fossem supérfluos. Se aceita a premissa kantiana de que o homem é um fim em si mesmo, fala-se em instrumentação quando este deixa de ser um fim e passa a ser um meio. Uma vez meio, perde o ser humano sua “humanidade”, e perde-se também o valor da vida humana, que deixa de ser “necessária e essencial, para ser inconseqüente e banal”.25

A principal lição extraída desse célebre julgamento, a partir da análise do comportamento de Eichmann – condenado, ao final, à pena de morte pela Corte de Jerusalém -, que, de fato, organizou seus atos de forma a colaborar com o massacre de seis milhões de judeus sem que isso fosse atribuído nem as suas convicções ideológicas nem a motivações diabólicas, foi o reconhecimento da banalidade do mal.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.KLEMPERER, Victor. LTI – a linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.SOUKI, Nádia. Hannah Arendt e a banalidade do mal. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

24 Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 62/108.25 Nádia Souki, Hannah Arendt e a banalidade do mal, p. 129.

Bibliografia

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DANIEL ALBERNAZ DE PAIVA BRITOEstudante de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado, estando atualmente no 10º semestre. Este artigo se

baseia em estudo de iniciação cientifica finalizado enquanto cursava o 8ª semestre. Fica a disposição para receber críticas e sugestões a respeito deste artigo no email [[email protected]]

O Amicus Curiae no Processo

Resumo. Este artigo analisa o arcabouço institucional em que o amicus curiea é reconhecido como sujeito do processo e o arcabouço institucional brasileiro.

Palavras-Chaves. Amicus curiae. Instituições sociais.

INTRODUÇÃO

1 Assunto do artigo

Este artigo é originado do estudo de iniciação cientifica “O Amicus Curiae no Processo Civil” que valeu ao autor o primeiro lugar no Concurso de Iniciação Cientifica da Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado realizado 2009, tendo sido orientado pela Professora da Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvarez Penteado, Marina Rosa Vezzoni.

Este artigo sumariza o núcleo essencial do estudo original. O estudo original trata do reconhecimento do amicus curie como sujeito do processo. Principalmente nos países cujo sistema jurídico é o de common law, dá-se o nome de amicus curie a uma espécie de sujeito processual.

Em primeiro lugar, o estudo original se dedica a caracterizar que espécie de sujeito processual é o amicus curiae, a expor que papel costuma ter no processo onde é reconhecido como sujeito, e a dissecar a estrutura social, o arcabouço institucional, de que resulta o reconhecimento do amicus curiae como sujeito do processo.

Em segundo lugar, o estudo original se dedica a comparar o arcabouço institucional de que resulta o reconhecimento do amicus curiae como sujeito do processo, com o arcabouço institucional brasileiro, procurando apontar se o arcabouço institucional brasileiro demanda ou não do reconhecimento do amicus curiae como sujeito do processo, e se sim, em quais casos.

Este artigo, embora siga a mesma linha de exposição do estudo original, será dedicado especialmente a dissecar o arcabouço institucional

de que resulta o reconhecimento do amicus curiae como sujeito do processo. Também será feita breve comparação desse arcabouço institucional com o arcabouço institucional brasileiro buscando por identidades e casos que ensejariam o reconhecimento do amicus curiae como sujeito do processo no Brasil. Dada a limitação de espaço, muitos assuntos que foram tratados no estudo original não serão abordados neste artigo e muitos assuntos tratados com profundidade no estudo original serão tratados apenas superficialmente neste artigo.

Este artigo se baseia nas mesmas fontes em que se baseia o estudo original. As principais fontes em que se baseia o estudo original são, entre outras, o livro do professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Cassio Scarpinella Bueno, “Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro”1, e a obra do sociólogo alemão Max Weber (1864 – 1920) “Sociologia do Direito”2.

2 Divisão do artigo

Este artigo é dividido em duas Seções. A Seção I é dedicada a analise do arcabouço institucional de que resulta o reconhecimento do amicus curiae como sujeito do processo. A Seção II é dedicada a uma breve comparação do arcabouço institucional de que resulta o reconhecimento do amicus curiae com sujeito do processo com o arcabouço institucional brasileiro. Na Seção II é aplicado o desenvolvimento da Seção I na realidade brasileira, tendo em vista averiguar se o arcabouço institucional brasileiro enseja o reconhecimento do amicus curiae ou não, e se sim, em quais casos.

1 SCARPINELLA BUENO, Cassio. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 20062 WEBER, Max. Economia e Sociedade, vol 2: Capítulo VII. Sociologia do Direito. São Paulo: UnB, 2004, pag. 1 a 153.

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Seção I O arcabouço institucional de que resulta o reconhecimento do amicus curiae como sujeito do processo.

A Seção I é dedicada a análise do arcabouço institucional de que resulta o reconhecimento do amicus curiae como sujeito do processo.

Em alguns países, notadamente nos países cujo sistema jurídico é de common law, como a Inglaterra, é reconhecida uma espécie de sujeito do processo denominada de amicus curiae, cuja função precípua é representar em juízo interesses, notadamente sociais – difusos e ou coletivos – que possam não estar representados ou estar representados de forma inadequada, trazendo elementos ao juiz para que ele melhor decida.

O reconhecimento de uma espécie de sujeito processual como essa é fruto de um arcabouço institucional especifico, de uma especifica estrutura de sociedade. A Seção I se dedica a expor qual arcabouço institucional é esse, qual especifica estrutura de sociedade é essa, em que é reconhecida uma espécie de sujeito processual como o amicus curiae.

O que determina a estrutura das sociedades, seu arcabouço institucional, é sua Lei Maior3, as condições de convivência entre seus integrantes estabelecidas pelo consenso entre eles.4

A disposição individual em tolerar os demais, é o que possibilita a convivência entre os indivíduos, independentemente do que lhe dê causa. Com o ajuste entre as disposições individuais de tolerar de todos, ou seja, com a estabilização das relações entre os indivíduos pelo consenso, forma-se a Lei Maior, que é o núcleo estruturante fundamental de uma sociedade, e determina os padrões de interação que prevalecerão entre seus integrantes e determinarão sua interação, ou seja, determina as instituições de uma sociedade.

Assim, para determinar o arcabouço institucional,

a estruturas de sociedade, em que é reconhecida uma espécie de sujeito processual como o amicus curiae, é preciso, antes, determinar as condições de convivência, a Lei Maior, de que resulta esse arcabouço institucional, essa estrutura de sociedade.

A Lei Maior é uma decisão de inteligência que estrutura as sociedades e reflete as características dos indivíduos que lhe dão causa. As instituições sociais são resultado de como as forças individuais se amalgamaram e se equilibraram na formação da Lei Maior.

As forças individuais não são necessariamente equivalentes. 5 Pode haver preponderância de indivíduos ou grupos de indivíduos na formação da Lei Maior, no estabelecimento das condições de convivência, e isso é decisivo para a determinação das instituições sociais. As características dos indivíduos e grupos de indivíduos que tomam parte da formação da Lei Maior determinam as relações de dominação existentes nas sociedades.6

Por diversos fatores, indivíduos ou grupos de indivíduos podem preponderar sobre outros na formação da Lei Maior das mais diferentes formas.7 Quando mudam estes fatores, um novo equilíbrio entre as forças individuais e de grupos de indivíduos pode ser atingido na formação da Lei Maior. Outros setores da sociedade podem preponderar na formação da Lei Maior, sendo alteradas as condições de convivência e, conseqüentemente, as instituições sociais.

Pode-se dizer que durante a evolução das sociedades, a tendência é que, pouco a pouco, não haja mais preponderância de nenhum setor das sociedades na formação da Lei Maior, porque os fatores que mantém setores das sociedades em preponderância na formação da Lei Maior não se mantém com o tempo. Em outras palavras, a tendência é que pouco a pouco todos os indivíduos participem igualmente da formação da Lei Maior até as ultimas conseqüências, ou seja, que gradualmente se efetive a democracia nas sociedades.

3 Dessa forma, pode-se dizer que o consenso, a Lei Maior corresponde ao que conceito de Norma Hipotética Fundamental de Kelsen bem como ao de decisão constituinte de Gregório Robbles, e até mesmo ao conceito de contrato social de Rousseau. De acordo com Kelsen, a Norma Hipotética Fundamental é a norma superior do sistema jurídico que dá a ele sentido e coesão, por isso Lei Maior. Ensina Kelsen que, “[c]omo norma mais elevada ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento de sua validade já não pode ser posto em questão.” (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, 7ª ed.) Como ensina Greorio Robbles, a decisão constituinte é a que determina, dá parâmetros, as decisões intra sistêmicas abaixo dela, ou seja, é a decisão que delimita a estrutura de decisões dentro do sistema jurídico por ela estabelecido; em outras palavras, é a decisão que estrutura o grupo social. (ROBBLES, Gregorio. O Direito como Texto. Sao Paulo: Manole, 2005) Como explica Wayne Morrison, o Contrato Social de Rousseau: “[...] é o principio fundamental que subjaz a uma associação política, no sentido de que oferece um mecanismo por meio do qual todos ajustam sua conduta individual de modo que a harmonize com a verdadeira liberdade dos outros. O homem troca sua ‘liberdade natural’ por uma ‘liberdade ‘civil’ e pela observação dos ‘direitos’ de propriedade [...]” (MORISON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos ao pré-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 188.) Também cumpre observar que o conceito de Lei Maior é conceito mais amplo que o de ordem utilizado pelo sociólogo alemão Max Weber. Para Weber, vigência de uma ordem é mais que regularidade condicionada pelo costume ou pela situação de interesses. (Weber, Max. Economia e Sociedade vol I. Sao Paulo: Unb, 2004, pag. 19) 4 Pode-se dizer, então, que, com o consenso, nasce o direito dentro do grupo social. A palavra direito designa um fenômeno que vai se compondo aos poucos de modo a ser impossível determinar o exato momento de seu nascimento, pois quando de seus primeiros sinais ainda não se caracterizou e quando já se caracterizou já havia dado sinais. Esse fenômeno dá os primeiros sinais quando cada indivíduo, pela necessidade de conviver com outros para sobreviver, deixa de considerar o mundo como se fosse só seu e passa a considerá-lo pensando nos demais. A disposição individual de tolerar os outros e conviver é, portanto, o primeiro sinal do fenômeno direito. Essa disposição individual em conviver, que já significa uma concessão em relação às possibilidades antes consideradas na condição de total isolamento, ainda terá que se adaptar a disposição dos outros, o que significa uma segunda concessão, para que haja o consenso, para que se forme a Lei Maior.5 Mesmo em sociedades cujos governos se dizem governos democráticos, a funçao dos chamados lobistas, que defendem interesses privados junto aos poderes do governo, notadamente junto ao poder legislativo, não é outra senão a de fazer os interesses de determinados setores daquela sociedade preponderarem nas soluçao das questoes de relevancia.6 Como define Plácido e Silva, legitimidade é “a qualidade ou caráter do que é legitimo ou se apresenta apoiado em lei.” (Silva, Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2004, 24ª edição, p.826.) As estruturas de dominação estabelecidas pela Lei Maior serão ilegítimas para os indivíduos sujeitos a elas que não participaram da formação da Lei Maior. Por diversos fatores, as estruturas de dominação estabelecidas pela Lei Maior podem ser legitimas para os indivíduos sujeitos a elas que participaram da formação da Lei Maior.7 A preponderância pode ser das mais variadas formas. Pode ser pela força física, pela dominação física, etc., sem necessariamente deixar de ser legitima, ou seja, sem necessariamente deixar de contar com a aceitação interna dos indivíduos.

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Conseqüentemente, a tendência é que aos poucos haja nas instituições sociais igual representatividade dos indivíduos, sendo elas gradualmente formadas de acordo com os princípios democráticos.

O reconhecimento de uma espécie de sujeito processual como o amicus curiae é resultado dos efeitos do atingimento do equilíbrio entre os setores da sociedade na formação da Lei Maior, ou seja, da efetivação da democracia, até as ultimas conseqüência nos arranjos institucionais que regem um especifico âmbito da convivência, qual seja, a manutenção das condições de convivência estabelecidas pela Lei Maior, notadamente das mais importantes.

Em todas as sociedades, de certa forma, todas as instituições sociais, todos os padrões de interação que prevalecem e determinam a interação, garantem de alguma forma a manutenção das condições de convivência estabelecidas pela Lei maior, porque foram por elas determinadas. Porém, na maioria das sociedades, há instituições sociais voltadas especificamente para a manutenção das condições de convivência mais importantes estabelecidas pela Lei Maior, normalmente utilizando da coação física para esse fim.8

O reconhecimento de uma espécie de sujeito processual como o amicus curiae resulta dos efeitos do atingimento do equilíbrio entre os setores da sociedade na formação da Lei Maior, ou seja, com a efetivação da democracia, até as ultimas conseqüências, nas instituições sociais especificamente voltadas para a manutenção das condições de convivência mais importantes estabelecidas pela Lei Maior.

As instituições sociais voltadas a manutenção das condições de convivência mais importantes estabelecidas pela Lei Maior as consubstanciam, normalmente da mesma forma que é consubstanciado o sistema de comunicação da sociedade, ou seja, através da escrita, para que elas sejam postas unívocas perante todos os integrantes da sociedade para que por elas eles possam pautar sua convivência e para que sirva de norte para que imponham isso aos integrantes da sociedade.9 Uma vez que as condições de convivência são postas unívocas a todos os integrantes da sociedade eles por elas passam a pautar sua convivência. Caso a convivência não se dê de acordo com elas, as instituições sociais voltadas a sua manutenção farão com que a convivência seja de acordo com elas de alguma forma, através de um processo, que pode tomar as mais diversas características de acordo com a sociedade

A consubstanciação das condições de convivência mais importantes estabelecidas pela Lei Maior acarreta um problema ligado a dinamicidade do fenômeno de formação da Lei Maior. Consubstanciar as condições de convivência mais importantes estabelecidas pela Lei Maior, garante sua manutenção, mas ao mesmo tempo, acarreta o problema de aprisionar um fenômeno rico e dinâmico, que se altera com o tempo por diversos fatores. Em primeiro lugar, é impossível apreender completamente a riqueza do fenômeno real que é a Lei Maior, ou seja, a parte da Lei Maior consubstanciada nunca será idêntica a como consta da verdadeira Lei Maior. Em segundo Lugar, a parte da Lei Maior consubstanciada permanecerá correspondendo á Lei Maior enquanto a Lei Maior permanecer a mesma do momento da consubstanciação, porque a Lei Maior sempre se renova com o tempo, de acordo com que mudem as condições dos indivíduos que tomam parte em sua formação, e o que dela for consubstanciado pode perder completamente a correspondência com a verdadeira Lei Maior, conforme estas alterações se processem. Portanto, as instituições sociais voltadas a manutenção das condições de convivência estabelecidas pela Lei Maior, podem não conseguir restaurá-las a partir das condições de convivência consubstanciadas através de um processo quando necessário. A única forma de a partir das condições de convivência consubstanciadas se atingir a verdadeira Lei maior é reproduzir as condições de formação da Lei Maior no processo.

Seção II O arcabouço institucional de que resulta o reconhecimento do amicus curiae como sujeito do processo e o arcabouço institucional brasileiro

Os efeitos do atingimento do equilíbrio entre os setores da sociedade na formação da Lei Maior, ou seja, da efetivação da democracia, até as ultimas conseqüências, nas instituições sociais especificamente voltadas para a manutenção das condições de convivência mais importantes estabelecidas pela Lei Maior são que, em primeiro lugar, todos os integrantes da sociedade passam a participar igualmente em todos os aspectos da consubstanciação das condições de convivência mais importantes estabelecidas pela Lei Maior. Assim, não é mais determinado, por exemplo, apenas a qual autoridade ficará a cargo a consubstanciação. Todos os indivíduos passam a fazer parte, direta ou indiretamente do processo de consubstanciação. No Brasil, por exemplo, como em outros países democráticos, isso se expressa

8 Como observou o sociólogo Max Weber, toda comunidade, desde a doméstica até o partido político recorre a alguma forma de coação, normalmente física, para o cumprimento de sua ordem jurídica. É produto de um desenvolvimento somente a monopolização do emprego legitimo da violência pelo centro de simetria do grupo social. (WEBER, Max. Economia e Sociaedade, vol. II. São Paulo: UnB, 2004, p. 158)9 Às condições de convivência mais importantes estabelecidas pela Lei Maior, cuja manutenção é garantida por instituições sociais formadas especificamente para essa finalidade e que são por elas consubstanciadas, costuma-se dar o nome de ordem jurídica.

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na eleição, por todos os brasileiros, dos membros do Poder Legislativo. No Art. 1º da Constituição Federal brasileira de 1988 é consagrado que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes. Assim, o Poder Legislativo é de todo o povo brasileiro, que o exerce por meio de representantes. Todos participam por meio de representantes eleitos, os deputados e senadores no Congresso, da produção das Leis.

Em segundo lugar, todos os integrantes da sociedade passam a participar igualmente em todos os aspectos, do processo de restauração das condições de convivência com base nas condições de convivência consubstanciadas quando necessário, sendo reproduzidas as condições de formação da Lei Maior, tornando assim possível que a partir das condições de convivência consubstanciadas seja possível restaurar as condições de convivência de acordo com a viva Lei Maior. Assim, o processo não é mais realizado arbitrariamente por uma autoridade, e passa a ser presidido por um órgão publico do qual qualquer integrante da sociedade pode fazer parte, e passa a contar com a participação de todos os indivíduos da sociedade igualmente em todos os aspectos. Tantos os indivíduos cuja convivência não se deu de acordo com as condições de convivência estabelecidas pela Lei Maior quanto qualquer indivíduos passam a poder fazer parte do processo, ou seja, passa a ser reconhecido um sujeito do processo como o amicus curiae.

No Brasil isso se expressa, em primeiro lugar pelas limitações impostas pela Constituição ao Poder Judiciário. No inciso XXXV do Art. 5º da Constituição Federal brasileira de 1988, é garantido o acesso à justiça, que se completa com o princípio dispositivo segundo o qual o judiciário só atua por provocação, consagrado nos artigos 2º, 128 e 262 da Lei processual brasileira. No inciso I do Art. 5º da Constituição, é consagrado o princípio da isonomia, segundo o qual a todos a Lei se aplica igualmente, que reflete no inciso I do Art. 125 da Lei processual brasileira que assegura o tratamento igualitário dos individuos no processo. No inciso LIII do Art. 5º, é consagrado o princípio do juiz natural, ou seja, é estabelecida a obrigatoriedade do juiz competente, que se completa com a proibição da criação de tribunais e juízos de exceção prevista no inciso XXXVII, do mesmo artigo. No inciso IX do Art. 93, está estabelecida a obrigatoriedade de Fundamentação das decisões jurisdicionais. Assim, a constituição também assegura a imparcialidade do juiz. Por fim, coroando estes princípios e limitações, no inciso LV do Art. 5º da

Constituição, está previsto o princípio da ampla defesa e do contraditório.

Em segundo lugar, são reconhecidos pela Lei Processual brasileira como sujeitos do processo, além dos membros do Poder Judiciário, que são o juiz e os auxiliares da justiça, os indivíduos cuja convivência não se deu de acordo com as condições estabelecidas pela Lei Maior, denominados partes. Também são reconhecidos como sujeitos do processo os indivíduos que, além das partes, são integrantes de relações jurídicas, ou seja, relações tratadas nas condições de convivência consubstanciadas, que podem ser afetadas pelo processo, tendo assim o que é considera interesse jurídico em fazer parte dele, a quem denomina terceiros. Finalmente, reconhece o Ministério Público, como ente que defende o interesse público no processo em determinados casos.

No Brasil ainda não é reconhecido o amicus curie como sujeito do processo o que faz com que no processo haja limitação da apreciação do juiz de todos os valores sociais que podem estar em jogo nas causas. A atuação do amicus no processo civil brasileiro deve então se basear nos dispositivos relativos aos terceiros e ao Ministério Público, conjuntamente, dado que o amicus não é parte, como os terceiro, e não tem interesse jurídico para intervir como o Ministério Público.

Porém, há no direito brasileiro previsão de entes que intervém no processo sem que sejam partes ou terceiros, ou seja, sem ter interesse jurídico, que de certa forma, como o Ministério Publico, defendem o interesse publico nas áreas de suas competências, como é o caso da Comissão de Valores Mobiliários – CVM –, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE –, do Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI –, da Ordem dos advogados do Brasil – OAB –, e até mesmo de pessoas jurídica de direito publico.10

Também há Leis no Brasil que estabelecem que em determinado processo poderá intervir ente qualquer sem que tenha interesse jurídico no processo como no controle concentrado de constitucionalidade, no processo de julgamento da ação direta de inconstitucionalidade, declaratória de constitucionalidade e da argüição de descumprimento de preceito fundamental; e no controle incidental de constitucionalidade.

Além disso, há hipóteses no direito brasileiro em que fica patente a necessidade da intervenção de um amicus no processo, como para informar o pedido de uniformização de interpretação de Lei federal quando

10 Os detalhes da intervenção de cada um desses entes no processo como amicus curiae tratada profundamente no estudo original foi suprimida dada a limitação de espaço

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houver divergência entre as Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais Federais, alterar a súmula em que se baseia a aplicação do Art. 285-a do Código de Processo Civil e demonstrar a repercussão da matéria constitucional para ser aceito o recurso extraordinário e o especial

Tudo isso indica que a tendencia é que no Brasil logo seja reconhecido sujeito processual como o amicus curiae sendo entao plenamente efetivada os principios democraticos na sociedade brasileira.

Conclusão

Por todo o exposto, fica claro que o reconhecimento do amicus curiae como sujeito do processo resulda da efetivaçao dos principios democraticos no âmbito do Poder Pudiciario e do processo.No Brasil ainda não é reconhecido sujeito processual como o amicus curiae mas a tendencia é que logo seja

reconhecido.Em qualquer país em que se efetivem os principios democraticos no âmbito do Poder Judiciario, será reconhecida uma espécie de sujeito processual de que possa se valer qualquer um que demonstre representar interesses sociais não adequadamente representados no processo, ou seja, um amicus curiae. A qualquer individuo ou ente da sociedade será possivel intervir em um processo qualquer, demonstrando poder representar valores sociais não adequadamente representado.

Abstract. This article analysis the institutional patterns in which amicus curiae is recognized as subject of civil proceedings and the institutional patterns in Brazil.

Key Words. Amicus curiae. Social institutions

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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo, Editora Atlas, 2006, 19ª edição.MORISON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos ao pré-modernismo. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2006, 1ª edição.PINTO, Fernanda Guedes. Ações Repetitivas e o Novel Art. 285-A do CPC (racionalização para as demandas de massa). São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2004, Revista de Processo, v. 150.REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo; Saraiva, 27ª Ed. 2003RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Responsabilidade Civil, vol. I. São Paulo, Editora Saraiva, 2006, 20ª edição.ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social: Princípios do Direito Político. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2006, 4ª edição.SILVA, Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2004, 24ª edição.THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Dreito Processual Civil. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2003, 40ª ediçao.TUCCI, José Rogério Cruz e. Anotações sobre a Repercussão Geral como Pressuposto de Admissibilidade do Recurso Extraordinário (Lei 11.418/2006). São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007, Revista de Processo, v. 145.

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JULIANO SPYER

CONECTADO

O livro explica o que são e como funcionam sites e softwares colaborativos, descreve a rotina de criação e manutenção de comunidades virtuais, apresenta os cases mais originais da internet e esclarece questões como: O que está por trás de fenômenos como blogs, MSN, Orkut, Wikipédia e You Tube? Por que pessoas oferecem gratuitamente, on line, informações que custam caro fora da rede? Como a internet favoreceu a expansão de uma cultura de colaboração?

O acesso à redes sociais permite que usuários comuns passem a ter o mesmo poder de difusão de informações antes reservado a governos e grandes corporações de mídia. As pessoas falam umas com as outras numa velocidade até então desconhecida.

Juliano mostra como o usuário pode tirar proveito deste novo cenário e como são os riscos desafios que esta incrível comunicação de muitos para muitos provoca.

“Antes, indivíduos só se comunicavam com multidões por meio de organizações de mercado, filantrópicas ou governamentais. Mas a possibilidade aberta pela tecnologia levou ao surgimento de ações conjugadas onde a ação individual, mesmo inconscientemente como nas consultas ao Google, produz o efeito coordenado de um novo e rico ambiente informacional. O modo descentralizado que caracteriza o desenvolvimento de programas livres e em código aberto está se expandindo para a produção de notícias, enciclopédias e entretenimento.”

JULIANO SPYER é historiador pela USP e palestrante. Seus projetos Viva São Paulo, em parceria com a Rádio Eldorado, e Leia Livro, para a Secretaria de Estado e Cultura de São Paulo, são referências no país em termos de conteúdo gerado por usuários. Conectado foi lançado pela Zahar, Jorge Zahar Editores. São 254 páginas.

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.110

BILL TANCER

CLICK

O que milhões de pessoas estão fazendo on-line e por que isso é importante?A eleição de Barack Obama tem muito a ver com a presença on-line das pessoas na rede mundial. O que as pesquisas

tradicionais não conseguem averiguar a respeito da opinião, hábitos e desejos de consumo?Em Click, o autor expõe em gráficos comportamentos medidos a partir dos meios utilizados por milhões de internautas

ao promover a busca de produtos, serviços e qualquer outro assunto de seus interesses. E essa medida pode se transformar em informação a ser usada nos negócios e na vida de todos.

Com suas idéias e percepções surpreendentes, Tancer nos mostra como a internet está mudando a maneira de incorporar novos comportamentos e hábitos de consumo. Em sua palestra na Expomanagement de 2009, o autor resumiu de forma clara e acessível o conteúdo deste livro.

“Hoje, com os websites de notícias, feeds de RSS e blogs temos a possibilidade de receber todas as notícias por encomenda, num formato e lugar adequados à nossas necessidades – em desktops, laptops e, para algumas pessoas, telefones como o iPhone. Para a maioria de nós que somos “conectados”, quando abrimos o jornal de manhã a maior parte do conteúdo é notícia velha, itens que lemos na tarde ou na noite anterior. A ruptura imposta pela internet à indústria das notícias não terminou aí. Os anúncios classificados, outrora fonte de renda vital para os jornais impressos, não são páreo para classificados on-line como Craigslist ou para o gigantesco mercado de compradores e vendedores que negociam no eBay. ... Por fim, o próprio conteúdo já não se limita mais às salas de redação: a ascensão do jornalismo cidadão provou que as notícias já não estão mais sob o domínio dos jornalistas profissionais. ... A compreensão de como mudamos será primordial para o sucesso das empresas e negócios, conforme elas se adaptem ao mercado e servem a suas necessidades de evolução.”

Bill Tancer, um renomado especialista em comportamento on-line, é o gerente geral de pesquisa mundial da Hitwise, o líder mundial em serviços de inteligência competitiva. Tancer e sua equipe de analistas são amplamente citados em toda a indústria sobre as últimas tendências da Internet. Ele aparece como um convidado freqüente na CNBC, foi citado no The Wall Street Journal, The New York Times, o Washington Post e USA Today sobre temas que vão desde o estado de e-commerce para prever vencedores do American Idol com base na investigação termo de busca. O autor escreve uma coluna semanal para a revista Time (Time.com), intitulada “The Science of Search”. Click foi lançado no Brasil pela Editora Globo. São 271 páginas.

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ALESSANDRO BARICCO

SEM SANGUE

A guerra, não se sabe qual e nem é importante saber, terminou. Quatro homens chegaram num velho Mercedez à fazenda do médico Manuel Roca, que ali vivia em companhia de seus filhos, ainda crianças. Um menino e uma menina. Ela, era a Nina.

Os quatro homens, fortemente armados, eram vencedores da guerra finda. O médico era perdedor e teria cometido atrocidades durante o conflito. Imagine o que aconteceu naquela fazenda. Além dos homens armados, que foram embora, a cena triste teve uma testemunha. Nina, que foi escondida pelo pai em um alçapão abaixo do soalho. Ela foi vista por um dos homens, o jovem Tito, que omitiu o fato dos demais.

Muitos anos depois, houve um encontro entre uma senhora e um vendedor de bilhetes de loteria. Mais uma vez, o desfecho que parecia óbvio driblou as expectativas, pois o destino havia reservado surpresas para os protagonistas e seus próprios fantasmas.

“Deitado de costas, na cama grande, completamente nu, o homem fitava o teto perguntando-se se era o cansaço que fazia sua cabeça rodar, ou o vinho que bebera. A seu lado, a mulher estava imóvel, de olhos fechados, virada para ele, a cabeça no travesseiro. Estavam de mãos dadas. ... Lá fora, a noite era indecifrável, e o tempo em que estava se perdendo, desmedido. Pensou que devia ser grato à mulher, pois ela o conduzira até ali pela mão, passo a passo, como uma mãe a um filho. Fizera-o com sabedoria, e sem pressa. Agora, o que restava fazer não seria difícil.”

ALESSANDRO BARICCO nasceu em 1958, em Turim. Pianista de formação, graduou-se em filosofia, foi crítico de música em jornais e televisão. Estreou em literatura com Castelos de raiva (1991). Seguiram-se cinco romances, dos quais a Companhia das Letras publicou Seda, traduzido para mais de vinte idiomas, e Esta história. Recebeu, na França, o prêmio Médicis Étranger e, na Itália, o Selezione Campiello Viareggio e o Palazzo al Bosco. No Brasil, Sem sangue foi lançado pela Companhia das Letras. São 81 páginas.

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.2, jul/dez. 2009.112

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS E TRABALHOS PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA JURIS DA FACULDADE DE

DIREITO DA FAAP

O Conselho Editorial acolherá para publicação na RJFD/FAAP entrevistas, artigos científicos, material • jurisprudencial, questões polêmicas, resenhas e sugestões de leituras.Os artigos científicos deverão respeitar as seguintes regras de padronização: •

Letra 1. Times New Roman, tamanho 14 para títulos, 12 para textos e 10 para notas de rodapé;

Espaço entre linhas: 1,5;2.

Alinhamento: justificado;3.

Recuo de 2 cm. na primeira linha de cada parágrafo;4.

Margens direita e inferior: 2 cm.;5.

Margens esquerda e superior: 3 cm.;6.

Título na língua original, acompanhado de breve currículo qualificativo na área do conhecimento abordada pelo 7. artigo;

Em seguida, deverá constar um resumo, contendo entre 100 e 250 palavras, cuja função é sintetizar os objetivos 8. pretendidos, a metodologia usada, os resultados e as conclusões alcançadas no artigo. Referido resumo deverá ser composto por uma sequência correta de frases concisas e não por uma enumeração em tópicos;

Após o resumo, deverá constar uma relação de palavras chaves, que são termos indicativos do conteúdo do 9. artigo, escolhidos em vocabulário adequado;

Os artigos deverão estar acompanhados de uma tradução, para a língua inglesa, do título, do resumo, com a 10. denominação Abstract, e das palavras chaves, com a denominação Key-words;

Os artigos deverão ser divididos em títulos e subtítulos, apresentando conclusão e bibliografia (incluindo todos 11. os autores citados em notas de rodapé);

No texto, não deverá ser utilizado negrito, nem sublinhado, destacando-se termos somente com itálico;12.

As citações de notas de rodapé deverão ser grafadas seguindo o modelo: sobrenome do autor, título da obra (em 13. negrito), data de publicação, página da citação;

As resenhas deverão conter, na abertura, a título de introdução, um breve relato da obra resenhada;14.

Os artigos deverão ser submetidos a revisão antes da sua publicação, já ciente o autor, não havendo limite de 15. tamanho para a apresentação dos textos;

As referências bibliográficas deverão figurar no final de cada artigo, organizadas segundo a ordem alfabética 16. dos nomes dos autores mencionados e respeitar padrões da NBR 6023/2002 da ABNT, como segue no exemplo: SANTOS, Boaventura de Souza. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. ;

Os autores devem ceder expressamente os direitos autorais à Faculdade de Direito da FAAP.17.