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InocênciaVisconde de Taunay

I�O SERTÃO E O SERTANEJO

Todos vós bem sentis a ação secretaDa natureza em seu governo eterno, E de íntimas camadas subterrâneas.Da vida o indicio a superfície emerge. (Goethe, Fausto, 2ª parte)

Então com passo tranqüilo metia-me eu por algumrecanto da floresta, algum lugar deserto, onde nada meindicasse a mão do homem, me denunciasse a servidão e odomínio; asilo em que pudesse crer ter primeiro entrado,onde nenhum importuno viesse interpor-se entre mim ea natureza.(J. J. Rousseau, O Encanto da Solidão)

Corta extensa e quase despovoada zona da parte

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sul-oriental da vastíssimaprovíncia de Mato Grosso a estrada que da Vila deSant�Ana do Paranaíba vai terao sitio abandonado de Camapuã. Desde aquelapovoação, assente próximo aovértice do ângulo em que confinam os territórios deSão Paulo, Minas Gerais,Goiás e Mato Grosso até ao Rio Sucuriú, afluente domajestoso Paraná, isto é, nodesenvolvimento de muitas dezenas de léguas,anda-se comodamente, de habitaçãoem habitação, mais ou menos chegadas umas àsoutras, rareiam, porem, depois ascasas, mais e mais, e caminham-se largas horas,dias inteiros sem se ver moradanem gente até ao retiro de João Pereira, guardaavançada daquelas solidões,homem chão e hospitaleiro, que acolhe com carinhoo viajante desses alongadosparamos, oferece-lhe momentâneo agasalho e oprovê da matalotagem precisa paraalcançar os campos de Miranda e Pequiri, ou daVacaria e Nioac, no Baixo Paraguai.Ali começa o sertão chamado bruto.Pousos sucedem a pousos, e nenhum teto habitadoou em ruínas, nenhuma palhoça outapera dá abrigo ao caminhante contra a frialdadedas noites, contra o temporalque ameaça, ou a chuva que está caindo. Por toda aparte, a calma da campina nãoarroteada; por toda a parte, a vegetação virgem,como quando aí surgiu pela vez primeira.A estrada que atravessa essas regiões incultas

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desenrola-se à maneira dealvejante faixa, aberta que é na areia, elementodominante na composição de todoaquele solo, fertilizado aliás por um sem-número delímpidos e borbulhantesregatos, ribeirões e rios, cujos contingentes sãooutros tantos tributários doclaro e fundo Paraná ou, na contravertente, docorrentoso Paraguai.Essa areia solta, e um tanto grossa, tem coruniforme que reverbera comintensidade os raios do Sol, quando nela batem dechapa. Em alguns pontos é tãofofa e movediça que os animais das tropasviageiras arquejam de cansaço, aovencerem aquele terreno incerto, que lhes foge desob os cascos e onde seenterram até meia canela.Freqüentes são também os desvios, que da estradapartem de um e outro lado eproporcionam, na mata adjacente, trilha mais firme,por ser menos pisada.Se parece sempre igual o aspecto do caminho, emcompensação mui variadas semostram as paisagens em torno.Ora e a perspectiva dos cerrados, não dessescerrados de arbustos raquíticos,enfezados e retorcidos de São Paulo e Minas Gerais,mas de garbosas e elevadasárvores que, se bem não tomem, todas, o corpo deque são capazes à beira daságuas correntes ou regadas pela linfa dos córregos,contudo ensombram com

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folhuda rama o terreno que lhes fica em derredor emostram na casca lisa a forçada seiva que as alimenta; ora são campos a perderde vista, cobertos de macegaalta e alourada, ou de viridente e mimosa grama,toda salpicada de silvestresflores; ora sucessões de luxuriantes capões, tãoregulares e simétricos em suadisposição que surpreendem e embelezam os olhos;ora, enfim, charnecas meioapauladas, meio secas, onde nasce o altivo buriti eo gravata entrança o seutapume espinhoso.Nesses campos, tão diversos pelo matiz das cores,o capim crescido e ressecadopelo ardor do Sol transforma-se em vicejante tapetede relva, quando lavra oincêndio que algum tropeiro, por acaso ou merodesenfado, ateia com uma faúlhado seu isqueiro.Minando à surda na touceira, queda a vividacentelha. Corra daí a instantesqualquer aragem, por débil que seja, e levanta-se alíngua de fogo esguia etrêmula, como que a contemplar medrosa evacilante os espaços imensos que sealongam diante dela. Soprem então as auras commais força, e de mil pontos, a umtempo, rebentam sôfregas labaredas que seenroscam umas nas outras, de súbito sedividem, deslizam, lambem vastas superfícies,despedem ao céu rolos denegrejante fumo e voam, roncando pelos matagais

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de tabocas e taquaras, atéesbarrarem de encontro a alguma margem de rioque não possam transpor, caso nãoas tanja para além o vento, ajudando com valentefôlego a larga obra dedestruição.Acalmado aquele ímpeto por falta de alimento, ficatudo debaixo de espessacamada de cinzas. O fogo, detido em pontos, aqui,ali, a consumir com maislentidão algum estorvo, vai aos poucos morrendoaté se extinguir de todo,deixando como sinal da avassaladora passagem oalvacento lençol, que lhe foiseguindo os velozes passosAtravés da atmosfera enublada mal pode então coara luz do Sol. A incineração écompleta, o calor intenso, e nos ares revoltosvolitam palhinhas carboretadas,detritos, argueiros e grânulos de carvão queredemoinham, sobem, descem e seemaranham nos sorvedouros e adelgaçadastrombas, caprichosamente formadas pelasaragens, ao embaterem umas de encontro àsoutras.Por toda a parte melancolia; de todos os ladostétricas perspectivas.É cair, porém, daí a dias copiosa chuva, e pareceque uma varinha de fada andoupor aqueles sombrios recantos a traçar às pressasjardins encantados e nuncavistos. Entra tudo num trabalho intimo deespantosa atividade. Transborda a

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vida. Não há ponto em que não brote o capim, emque não desabrochem rebentõescom o olhar sôfrego de quem espreita azadaocasião para buscar a liberdade,despedaçando as prisões de penosa clausura.Aquela instantânea ressurreição nada, nada podepôr peias.Basta uma noite, para que formosa alfombra verde,verde-claro, verde-gaio,acetinado, cabra todas as tristezas de há pouco.Aprimoram-se depois osesforços; rompem as flores do campo quedesabotoam as carícias da brisa asdelicadas corolas e lhe entregam as primícias dosseus cândidos perfumes.Se falham essas chuvas vivificadoras, então, pormuitos e muitos meses, ai ficamaquelas campinas, devastadas pelo fogo,lugubremente iluminadas por avermelhadosclarões sem uma sombra, um sorriso, umaesperança de vida, com todas as suasopulências e verdejantes pimpolhos ocultos, comoque raladas de dor e mudodesespero por não poderem ostentar as riquezas egalas encerradas no ubertoso seio.Nessas aflitas paragens, não mais se ouve o piar daesquiva perdiz, tãofreqüente antes do incêndio. Só de vez em quandoecoa o arrastado guincho dealgum gavião, que paira lá em cima ou bordeja aochegar-se à terra, a fim deagarrar um ou outro réptil chamuscado do fogo quelavrou.

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Rompe também o silêncio o grasnido do caracará,que aos pulos procura insetos ecobrinhas ou, junto ao solo, segue o vôo dosurubus, cujos negrejantes bandos,guiados pelo fino olfato, buscam a carniçaputrefata.É o caracará comensal do urubu. De parceria seatira, quando urgido pela fome, àrês morta e, intrometido como é, a custo de algumabicada do pouco amávelconviva, belisca do seu lado no imundo repasto.Se passa o caracará a vista do gavião, precipita-seeste sobre ele com vôofirme, dá-lhe com a ponta da asa, atordoa-o,atormenta-o só pelo gosto de lhemostrar a incontestada superioridade.Nada, com efeito, o mete em brios.Pelo contrário, mal levou dois ou três encontrões domiúdo, mas audazadversário, baixa prudente à terra e põe-se aidesajeitadamente aos saltos.apresentando o adunco bico ao antagonista, quecom a extremidade das asaslevanta pó e cinza, tão de perto as arrasta ao chão.Afinal, de cansado, deixa o gavião o folguedo,segurando de um bote aserpesinha, que em custoso rasto, procurava algumburaco onde fosse, mais asalvo, pensar as fundas queimaduras.

* * *

Tais são os campos que as chuvas não vêm regar.

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Com que gosto demanda então o sertanejo oscapões que lá de bem longe se avistamnas encostas das colinas e baixuras, ao redor dealguma nascente orlada depindaíbas e buritis?!Com que alegria não saúda os formosos coqueirais,núncios da linfa que lhe há deestancar a sede e banhar o afogueado rosto?!Enfileiram-se às vezes as palmeiras com singularregularidade na altura econformação; mas não raro amontoam-se emcompactos maciços, dos quais sesegregam algumas mais e mais, a acompanhar comas raízes qualquer tênue fiod�água, que coleia falto de forças e quase a sumir-se na ávida areia.Desde longe dão na vista esses capões.É a princípio um ponto negro, depois uma cúpula deverdura, afinal, mais deperto, uma ilha de luxuriante rama, oásis para osmembros lassos do viajanteexausto de fadiga, para os seus olhos encandeadose sua garganta abrasada.Então, com sofreguidão natural, acolhe-se ele aosombreado retiro, onde prestesdesarreia a cavalgadura, à qual dá liberdade para irpastar, entregando-se semdemora ao sono reparador que lhe trará novo alentopara prosseguir na cansativa jornada.Ao homem do sertão afiguram-se tais momentosincomparáveis acima de tudo quantopossa idear a imaginação no mais vasto circulo deambições.

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Satisfeita a sede que lhe secara as fauces, ecomidas umas colheres de farinhade mandioca ou de milho, adoçada com rapadura,estira-se a fio comprido sobre osarreios desdobrados e contempla descuidoso ofirmamento azul, as nuvens que seespacejam nos ares, a folhagem lustrosa e ostroncos brancos das pindaíbas acopa dos ipês e as palmas dos buritis a ciciar amodo de harpas eólias, músicassem conta com o perpassar da brisa.Como são belas aquelas palmeiras!O estípite liso, pardacento, sem manchas mais quepontuadas estrias, sustentadenso feixe de pecíolos longos e canulados, em queassentam flabelas abertascomo um leque, cujas pontas se acurvam flexíveis etremulantes.Na base em torno da coma, pendem, amparados porlargas espatas, densos cachos decocos tão duros, que a casca luzidia, revestida deescamas romboidais e de umamarelo alaranjado, desafia por algum tempo oférreo bico das araras.Também, com que vigor trabalham as barulhentasaves antes de conseguir aapetecida e saborosa amêndoa! Em grupos juntam-se elas, umas vermelhas comochispas soltas de intensa labareda, outrasversicolores, outras, pelo contrário,de todo azuis, de maior viso e que, por pareceremnegras em distancia, têm onome de araraúnas. Ali ficam alcandoradas,

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balouçando-se gravemente e atirandode espaço a espaço, às imensidades das dilatadascampinas notas estridentes,quando não seja um clamor sem fim, ao quereremmultas disputar o mesmo cacho.Quase sempre, porém, estão a namorar-se aospares, pousadas uma bem encostadinha à outra.Vê tudo aquilo o sertanejo com olhar carregado desono. Caem-lhe pesadas aspálpebras; bem se lembra de que por ali podemrastejar venenosas alimárias, masé fatalista; confia no destino e, sem maispreocupação, adormece com serenidade.Correm as horas vem o Sol descambando; refresca abrisa, e sopra rijo o vento.Não ciciam mais os buritis; gemem, econvulsamente agitam as flabeladas palmas.É a tarde que chega.Desperta então o viajante; esfrega os olhos;distende preguiçosamente os braços;boceja; bebe um pouco d�água; fica uns instantessentado, a olhar de um ladopara outro, e corre afinal a buscar o animal, que depronto encilha e cavalga.Uma vez montado, lá vai ele a passo ou a trote,bem disposto de corpo e deespírito, por aqueles caminhos além, em demandade qualquer pouso onde pernoite.Quanta melancolia baixa à terra com o cair datarde!Parece que a solidão alarga os seus limites para setornar acabrunhadora.Enegrece o solo; formam os matagais sombrios,

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maciços, e ao longe se desdobratênue véu de um roxo uniforme e desmaiado, noqual, como linhas a meio apagadas,ressaltam os troncos de uma ou outra palmeiramais alterosa.É a hora, em que se aperta de inexplicável receio ocoração. Qualquer ruído noscausa sobressalto; ora o grito aflito da zabelê nasmatas, ora as plangentesnotas do bacurau a cruzar os ares. Freqüente étambém amiudarem-se os piosangustiados de alguma perdiz, chamando ao ninhoo companheiro extraviado, antesque a escuridão de todo lhe impossibilite a volta.Quem viaja atento às impressões intimas,estremece, mau grado seu, ao ouvirnesse momento de saudades o tanger de um sinomuito, muito ao longe, ou o silvardistante de uma locomotiva impossível. São insetosocultos na macega que trazemessa ilusão, por tal modo viva e perfeita que aimaginação, embora desabusada eprevenida, ergue o vôo e lá vai por estes mundosafora a doidejar e a criar milfantasias.

Espalham-se, por fim, as sombras da noite.O sertanejo que de nada cuidou, que não ouviu asharmonias da tarde, nem reparounos esplendores do céu, que não viu a tristeza apairar sobre a terra, que denada se arreceia, consubstanciado como está com asolidão, pára, relanceia os

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olhos ao derredor de si e, se no lagar pressentealguma aguada, por má que seja,apeia-se, desencilha o cavalo e reunindo logo unsgravetos bem secos, tira fogodo isqueiro, mais por distração do que pornecessidade.Sente-se deveras feliz. Nada lhe perturba a paz doespírito ou o bem-estar docorpo. Nem sequer monologa, como qualquerhomem acostumado a conversar.Raros são os seus pensamentos: ou rememora asléguas que andou, ou computa asque tem que vencer para chegar ao término daviagem.No dia seguinte, quando aos clarões da auroraacorda toda aquela esplêndidanatureza, recomeça ele a caminhar, como navéspera, como sempre.Nada lhe parece mudado no firmamento: as nuvensde si para si são as mesmas.Dá-lhe o Sol, quando muito, os pontos cardeais, e aterra só lhe prende aatenção, quando algum sinal mais particular podeservir-lhe de marco miliário naestrada que vai trilhando.�Bom! exclama em voz alta e alegre ao avistaralgum madeiro agigantado ou umadisposição especial de terras, lá está a peúvagrande... Cheguei ao BarrancoAlto. Até ao pouso de Jacaré há quatro léguas bempuxadas.E, olhando para o Sol, conclui:�Daqui a três horas estou batendo fogo.

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Ocasiões há em que o sertanejo dá para assobiar.Cantar, é raro; ainda assim, àsurdina; mais uma voz intima, um rumorejarconsigo, do que notas saídas dorobusto peito. Responder ao pio das perdizes ou aochamado agoniado da esquivajaó, é o seu divertimento em dias de bom humor.É lhe indiferente o urro da onça. Só por demaisrepara nas muitas pegadas, queem todos os sentidos ficam marcadas na areia daestrada.�Que bichão! murmura ele contemplando um rastomais fortemente impresso nosolo; com um bom onceiro não se me dava de acuareste diabo e meter-lhe umachumbada no focinho.O legitimo sertanejo, explorador dos desertos, nãotem, em geral, família.Enquanto moço, seu fim único é devassar terras,pisar campos onde ninguém antespusera pé, vadear rios desconhecidos, despontarcabeceiras e furar matas, quedescobridor algum ate então haja varado.Cresce-lhe o orgulho na razão da extensão eimportância das viagensempreendidas; e seu maior gosto cifra-se emenumerar as correntes caudais quetranspôs, os ribeirões que batizou, as serras quetransmontou e os pantanais queafoitamente cortou, quando não levou dias e dias arodeá-los com rara paciência.

Cada ano que finda traz-lhe mais um valioso

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conhecimento e acrescenta uma pedraao monumento da sua inocente vaidade.�Ninguém pode comigo, exclama eleenfaticamente. Nos campos da Vacaria, nosertão do Mimoso e nos pantanos do Pequiri, sourei.E esta presunção de realeza infunde-lhe certo modode falar e de gesticularmajestático em sua singela manifestação.A certeza que tem de que nunca poderá perder-sena vastidão, como que o libertada obsessão do desconhecido, o exalta e lhe dáforos de infalibilidade.Se estende o braço, aponta com segurança noespaço e declara peremptoriamente:�Neste rumo daqui a 20 léguas, fica o espigãomestre de uma serra braba, depoisum rio grosso; dali a cinco léguas outro mato sujoque vai findar num brejal. Sevassuncê frechar direitinho assim umas duas horas,topa com o pouso do Tatu, nocaminho que vai a Cuiabá.O que faz numa direção, com a mesmaimperturbável serenidade e firmeza indica emqualquer outra.A única interrupção que aos outros consente,quando conta os inúmerosdescobrimentos, é a da admiração. À mínimasuspeita de dúvida ou pouco caso,incendem-se-lhe de cólera as faces e no gestodenuncia indignação.� Vassuncê não credita! protesta então com calor.Pois encilhe o seu bicho e

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caminhe como eu lhe disser. Mas assunte bem, queno terceiro dia de viagemficará decidido quem é cavouqueiro e embromador.Uma coisa é mapiar à toa, outraandar com tento por estes mundos de Cristo.Quando o sertanejo vai ficando velho, quando senteos membros cansados eentorpecidos, os olhos já enevoados pela idade, osbraços frouxos para manejar amachadinha que lhe da o substancial palmito ou osaboroso mel de abelhas,procura então quem o queira para esposo, algumaviúva ou parenta chegada, formacasa e escola, e prepara os filhos e enteados para avida aventureira e livreque tantos gozos lhe dera outrora.Esses discípulos aguçada a curiosidade com asrepetidas e animadas descriçõesdas grandes cenas da natureza, num belo diadesertam da casa paterna,espalham-se por ai além, e uns nos confins doParaná, outros nas brenhas de SãoPaulo, nas planuras de Goiás ou nas bocainas deMato Grosso, por toda a, parteenfim, onde haja deserto, vão pôr em ativa práticatudo quanto souberam tão bemouvir, relembrando as façanhas do seu respeitadoprogenitor e mestre.

II - O VIAJANTE Próprio de espírito sorumbático, éandar sempre calado:

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tagarelar é o encanto e a alma davida.La Chaussée. Comigo, respondeu Sancho, meuprimeiro movimento é logo tal comichão de falar que nãoposso deixar de desembuchar o que me vem àboca.Cervantes, D. Quixote.

O dia 15 de julho de 1860 era dia claro, sereno efresco, como costumam ser oschamados de inverno no interior do Brasil.Ia o Sol alto em seu percurso, iluminando com seusraios, não muito ardentespara regiões intertropicais, a estrada, cujo aspectohá pouco tentamos descrevere que da Vila de Sant�Ana do Paranaíba vai ter aoscampos de Camapuã.A essa hora, um viajante, montado numa boa bestatordilho-queimada, gorda emarchadeira, seguia aquela estrada. A suafisionomia e maneiras de trajardenunciavam de pronto que não era homem de lidafadigosa e comum ou algumfazendeiro daquelas cercanias que voltasse paracasa. Trazia na cabeça umchapéu-do-chile de abas amplas e cingido de largafita preta, sobre os ombros umponcho-pala de variegadas cores e calçava botas decouro da Rússia bem feitas e

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em bom estado de conservação.Tinha quando muito vinte e cinco anos, presençaagradável, olhos negros e bemrasgados, barba e cabelos cortados quase àescovinha e ar tão inteligente quanto decidido.Na mão empunhava uma comprida vara que haviapouco cortara, e com que iadistraidamente fustigando o ar ou batendo nosramos de árvores que se dobravamao alcance do braço.Vinha só e, no momento em que damos começo aesta singela história, achava-se nobonito trecho de caminho que medeia entre a casade Albino Lata e a do Leal, asete boas léguas da sezonática e decadente Vila deSant�Ana do ParanaíbaNesta porção de estrada, ensombrada pelas árvoresde vistoso cerrado, o leito,ainda que já bastante arenoso, é firme e parecemais aléia de bem tratadojardim, do que caminho de tropas e carreadores.Ainda aumenta os encantos daquele lance ainúmera quantidade de rolas caboclas abrincar na areia e de pombas de cascavel, cujobater das asas produz um arruídotão característico e singular.O nosso viajante, se caminhava distraído e meiopensativo, não parecia, contudo,de gênio sombrio ou pouco divertido.Muito ao contrário, sacudia as vezes o torpor emque vinha e entrava acantarolar, ou assobiar, esporeando a valentecavalgadura, que na marcha que

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tomava ia abanando alternadamente as orelhas como movimento cadencial da cabeça.Numa dessas reações contra alguma preocupação,disse em voz alta, puxando por umrelógio de prata, seguro em corrente do mesmometal:�Às duas horas, pretendo sestear no paiol do Leal.Falta pouco para o meio-dia,e tenho tempo diante de mim a botar fora.Moderou, pois, a andadura que levava o animal emais ativamente recomeçou azurzir os galhos das árvores, bocejando de tédio.Também pouco tempo caminhou só, por isto que embreve ao seu lado emparelhououtro viajante, escanchado num cavalinho feio ezambro, mas muito forte, o qual,coberto como estava de suor, mostrava ter vindoquase a galope.Homem já de alguma idade, o recém-chegado eragordo, de compleição sangüínea,rosto expressivo e franco. Trajava à mineira eparecia, como realmente era,morador daquela localidade.�Olá, patrício, exclamou ele conchegando acavalgadura à da pessoa a queminterpelava, então se vai botando para Camapuã?Olhou o nosso cavaleiro com desconfiança esobranceria para quem o interrogavatão sem-cerimônia e meio enviesado respondeu:�Talvez sim... talvez não... Mas a que vem apergunta?�Ah! desculpe-me, replicou o outro rindo-se, nemsequer o saudei... Sou mesmo

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um estabanado... Deus esteja convosco. Istosempre me acontece... A minha línguafica às vezes tão doida que se põe logo a bater-menos dentes... que é um Deusnos acuda e... não há que avisar: água vai! Olhe,por vezes já me tem vindodano, mas que quer? É sestro antigo... Não que eusela malcriado, Deus de tal medefenda, abrenúncio; mas pega-me tal comichão defalar que vou logo, sem tir-te,nem guar-te, dando à taramela...A volubilidade com que foram ditas estas palavrascausou certo espanto aomancebo e o levou a novamente encarar oinopinado companheiro, desta feita commais demora e ar menos altivo.Notou então a fisionomia alegre e bonachã dotagarela e, com ar de simpatia,correspondeu ao comunicativo sorriso daquele que,à força, queria travarconversação.�Pelo que vejo, disse ele, o Sr. gosta de prosear.�Ora se! retrucou o mineiro. Nestes sertões sósinto a falta de uma coisa: é deum cristão com quem de vez em quando dê unsdedos de pérola. Isto sim, por aquié casqueiro. Tudo anda tão calado!... umaverdadeira caipiragem!... Eu, não. Soudas Gerais, gelaria como por cá se diz; nasci noParaibana, conheci no meu tempopessoas de muita educação, gente mesma de traz efui criado na Mata do Rio comohomem e não como bicho do monte.

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�Ah! o senhor é de Minas?�Gerais, se me faz favor. Batizei-me em Vassouras,mas sou mineiro da gema.Andei ceca e meca antes de vir deitar poita nestepaís. Isto já faz muito tempo,pois também vou ficando velho. Há mais dequarenta anos pelo menos que sai dacasa dos meus pais.E interrompendo o que dizia, perguntou:�O senhor também é de Minas?�Nhor-não, respondeu o outro. Sou caipira de SãoPaulo: nasci na Vila de CasaBranca, mas fui criado em Ouro Preto.�Ah! na cidade Imperial ?...�Lá mesmo.�Então é quase de casa, replicou o mineiro rindo-se ruidosamente. Ora, quemdiria! Por isto me batia a passarinha, quando vi oseu rasto fresco na areia. Aivai, disse eu por vezes com os meus botões, umsujeitinho que não tem pressa depousar. Também tocando o meu canivete, tratei deagarrá-lo para não fazer aviagem a olhar para o céu e a bancar. Acha queobrei mal?�Não, senhor, protestou o moço com afabilidade.Muito lhe agradeço a intenção.Assim alcançarei sem cansaço o Leal, ondepretendo dar hoje com os ossos.�Oh! exclamou o outro todo expansivo, acaminhada é a mesma. Pois, meu ricosenhor, eu moro a meia légua do Leal, torcendo aesquerda e se vosmecê não tem

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compromissos lá com o homem, far-me-á muitofavor agasalhando-se em teto de quemé pobre, mas amigo de servir. Minha tapera é poucoretirada do caminho, e quemvem montado como o senhor, não tem que andarcontando bocadinhos de léguas.Convite tão espontâneo e amável não podia deixarde ser bem aceito, sobretudonaquelas alturas, e trouxe logo entre os doiscaminhantes a familiaridade quetão depressa se estabelece em viagem.�Com toda a satisfação irei parar em sua casa,retrucou o jovem. Nunca vi oLeal, pois agora é a primeira vez que cruzo estesertão, e ando de pouso empouso, pedindo um cantinho de paiol ou de ranchopara passar a noite com os meuscamaradas.Traz então tropa?�Tropa, não; apenas dois bagageiros que vêm comas minhas cargas e uma besta àdestra.�Olá! o amigo viaja à fidalga, observou o mineirocom gesto folgazão.�Qual!... Bastantes privações tenho já curtido.�Decerto não as sentirá em nossa casa todo otempo que lá quiser ficar. Nãoencontrará luxarias nem coisas da capital,unicamente o que pode ter nestesmundos: quatro paredes de pau-a-pique malrebocadas, uma cama de vento, bomfeijão a fartar, ervas a mineira, arroz de papa,farinha de milho torradinha,

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café com rapadura e talvez até um lombo fresco deporco.�Olá! exclamou o moço rindo-se com expansão,vou passar vida de capitão-mor.Não queria tanto, bastava-me...�O que sobretudo desejo é que tenha comigo ocoração na boca. Se não gostar dopassadio, vá logo desembacharido. Na minharancharia pousa pouca gente, porquefica para dentro da estrada... assim, talvez lhe faltealguma coisa; em todo ocaso farei pelo melhor . . .Depois de breve pausa, continuou:�Mas porém, creio que já é ocasião, agora que nosconhecemos como dois amigosdo tempo do Rojão, saber com quem lidamos. Eu,quanto a mim, me chamo Martinhodos Santos Pereira e a minha história conto-lha emduas palhetadas... Sua graça,ainda que mal pergunte ?�Cirino Ferreira de Campos, respondeu o outroviajante, um criado para oservir.� Obrigado, agradeceu Pereira inclinando-secortesmente e levando a mão aochapéu. Como lhe disse há pouco, minha historia éhistória de entrar por umaporta e sair por outra. Minha gente não é de máraça, pelo contrário; meu pai,que Deus lhe dê a glória, possuía alguma coisa deseu e deixou aos seus muitosfilhos um nome limpo e respeitado. Cada qual denós�éramos sete�tomou o seu

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rumo. Quanto a mim, casei muito mocinho e fuimorar na Diamantina, onde abricasa de negócio. Depois de alguns anos, uns bons,outros caiporas, morreu minhadona e mudei-me, a principio, para Pinmi e maistarde para Uberaba. A vidacomeçou a desandar-me de todo, e fiz logo estecálculo: estar tão longe, antesafundar-me no mato de uma boa feita. Vendi minhalojinha de ferragens einternei-me até cá com três escravos. lá doze anosque moro nestes socavões e,palavra de honra, até ao presente não me tenhoarrependido. Na minha situação háfartura, e louvado seja! nunca passei necessidade...Não posso por istoqueixar-me sem ingratidão. Deus Nosso SenhorJesus Cristo tem olhado para mim, eme julgo bem amparado, sobretudo quando melembro do despotismo de misérias, quevai por estas terras fora... Cruzes! nem falar nisto ébom... Diga-me porém umacoisa: vosmecê para onde se atira?�Homem, Sr. Pereira, não tenho destino certo.�Deveras? Então esta caminhando à toa?�Eu ponho-lhe já tudo em pratos limpos. Ando porestes fundões curando maleitase feridas bradas.�Ah! exclamou Pereira com manifestocontentamento, vosmecê é doutor, não é?Físico, como chamavam os nossos do tempo dedantes.�É fato, confirmou Cirino com alguma satisfação.

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�Ora, pois multo bem, cai-me a sopa no mel; sim,senhor, vem mesmo ao pintar...a talhe de foice.�Por quê?�Daqui a pouco saberá... Mas, diga-me ainda...Onde é que vosmecê leu noslivros, aprendeu suas historias e bruxarias? Na cortedo Império?�Não, respondeu Cirino, primeiro no Colégio doCaraça; depois fui para OuroPreto, onde tirei carta de farmácia.E acrescentou com enfatuação:�Desde então tenho batido todo o poente de Minase feito curas que é ummilagre.�Ah! a sabença é coisa boa. . . eu também tinhajeito para saber mais do queler e escrever, isto mesmo mulmente; mas quemnasceu para carreiro, vira, mexe,larga e pega, sempre acaba junto ao carro. Com oque, entonces, vosmecê entendede curar?...�Entendo, afirmou Cirino sem o menorconstrangimento.�Pois caiu-me muito ao jeito na mão; sim, senhor.Estou com uma menina doentede maleitas, minha filha, e por essa causa tinha idoa Sant�Ana buscar quina docomércio; mas lá não havia da maldita e voltavabem agoniado. Ora...�Trago, interrompeu o outro, muito remédio nasminhas malas. Para sezões, tenhouma composição infalível...

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� Já se sabe; entra composição de quina. Deverasé santa mezinha. A pequenatomou a do campo; mas essa pouco talento tem, demaneira que a sezão não lhedeixou o corpo.�Há quantos dias apareceu o tremor de frio?perguntou o intitulado doutor.�Faz hoje, salvo engano, dez dias.Até agora era uma rapariga forçada, sadia e rosadacomo um lambo; nem sei atecomo lhe entrou a maleita no corpo. Ninguém podefiar-se na tal Vila deSant�Ana; é uma peste de febres. Eu bem a nãoQueria levar até lá: mas ela pediutanto age consenti! Demais como era para ver amadrinha, uma boa senhora, demuita circunstância, a mulher do Major Melo Toques... Não conhece?�Pois não.�E dá-se com o major? perguntou Pereira para abrirnovo campo à garrulice.�Quando pousei na vila, estive com ele.�E não gostou? Aquilo sim é homem às direitas.Também é pau para toda a obra naSenhora Sant�ana, é o tutu de lá. Em querendotaramelar um pouco mais a meugosto, busco o compadre. Isto arma logo umaconversa que me dá um fartão... Edepois pessoa de muitas letras... Escreve aogoverno; é juiz de paz, majorreformado, serve de juiz municipal, já fez acampanha dos Farrapos lá no RioGrande do Sul para as bandas dos Castelhanos e

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merece muita estimação. Mora numacasa de andar e tem loja muito sortida, por sinalque bem baratinha para adistancia. E as histórias que conta? f: um nuncaacabar. O homem parece que sabeo Império de cor e salteado! Nem o vigário! Olhe,Sr. Cirino, vou dizer-lhe umacoisa, que talvez lhe pareça embromação: às vezesdou um pulo até a vila só parabater língua com o major, porque com esta gentedaqui não se tira partido:escorraçada e arisca que é um Deus nos acuda!Então, como lhe ia contando,galopeio até lá, e pego numa mapiagem que meenche as medidas. Não há...�Gabo-lhe a pachorra, atalhou Cirino. Mas, diga-me, Sr. Pereira; farei por aquialgum negócio?�Homem, conforme. Gente doente é mato; mastambém mofina como ela só. Meioarredado da minha casa, fica o Coelho que estámorre não morre há muitos anos, eé homem de boas patacas. Este, se vosmecê ocurar, talvez caia com os cobres.Tudo o mais é uma récula de gente mais ou menos.�Vosmecê traz bastante quina do comércio?perguntou em seguida.�Trago, respondeu Cirino, mas é cara.�Que é cara, bem sei. Pois é quanto basta, porqueno fundo aqui tudo sãoserões.Começou então o bom do Sr. Pereira a desenrolar asdiversas moléstias que o

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haviam salteado no correr da vida, raras naverdade, mas todas perigosas; e comeste tema às ordens achou meios e modos de falaraté quase perder o fôlego.Recolheu-se o outro ao silencio e ouviu talvezpreocupado, ou em todo caso,muito distraidamente, o que lhe contava o seu novoamigo, saindo, de vez emquando, da apática atenção para instigar com a voze o calcanhar a cavalgadura,quando esta parecia querer por si tomar descansoou buscava comer os rebentõesmais apetitosos do capim a grelar.Afinal notou Pereira o tal ou qual abatimento docompanheiro. �Vosmecê a modoque está triste? disse ele. Deixou alguma coisa deseu lá por trás?�Homem, para ser franco, respondeu Cirino dandoum suspiro, deixei; e essacoisa é uma dívida... dívida de jogo.�Isto é mau, retrucou o mineiro, fechando umtanto a cara. Por causa dessevicio e das mulheres, é que as cruzes nascem àbeira das estradas. Mas é cocogrosso?�Trezentos mil-réis.�Já é gimbo graúdo. E com quem jogou?�Com o Totó Siqueira, de Sant�Ana. Por istopretendeu atrasar-me a viagem; masprometi mandar-lhe tudo do Sucuriú por umcamarada e passei-lhe um papel. No queestou pensando, e se acharei até lá meios decumprir a palavra.

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�Se lhe pagarem como devem, com certeza. Emtodo o caso aperte um pouco com osdoentes.�Não imagina, replicou Cirino com verdadeirosentimento, quanto me temamofinado essa maldita dívida. Não pelo dinheiro,que dele faço pouco caso; maspor ter pegado em cartas, coisa que nunca tinhafeito na minha vida; isto sim...�Pois meu rico senhor, prosseguiu Pereira, sirva-lheesta de lição e tome tentocom a gente do sertão, não com esses que moram -nas suas casas, sossegados eamigos de servir, mas com viajantes, homens detropas e carreiros. Isso sim, éuma súcia de jogadores, que andam armados debaralhas e vísporas e, por dá cáaquela palha, empurram uma faca na barriga de umcristão ou descarregam umagarrucha na cabeça de um companheiro, como sefosse em melancia podre. Depois, odemônio do jogo, quando entra no corpo de umdesgraçado, faz logo ninho e de lápincha fora a vergonha. Da má vida com raparigasairadas, fadistas e mulheres àtoa, ainda a gente endireita; mas com cartas esortes, só na caldeira de PedroBotelho é que se cuida em mudar de rumo. Quemlhe fala, teve um tio morador nasTrairás, para cá de Camapuã cinco léguas, quetrabalhava todo o ano na terrapara vir jogar até perder o último cobre nasrancharias do Sucuriú.

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Pereira, de posse de tão largo assunto, contou milhistorias, umas lúgubres,outras jocosas, verídicas, inventadas na ocasião oureproduzidas.Haviam, no entretanto, os dois caminhadobastante. Inclinara-se no horizonte oSol, e a brisa da tarde já vinha soprando do lado dopoente, viva, perfumosa.�Nós, observou o mineiro, com a nossa conversadeixamos os nossos animais vircochilando. Também já está aqui a minhaestradinha. Meta-se nela, Sr. Cirino; emfrente ia parar no Leal: minha fazendola começaneste ponto à beira do caminho evai por ai afora ate bem longe, um mundo dealqueires de terra que nem tem conta.Ao dizer estas palavras, tomou ele a dianteira edando a direita à estradageral, enveredou por uma aberta larga e muitosombreado que levava com voltas etortuosidades à margem rasa de copioso e límpidoribeirão, de álveo areento,todo ele. Que sítio risonho, encantador, esse,ensombrado por majestosa eelegante ingazeira, toda pontuada das mimosas ebalsâmicas florezinhas!Os animais, ao perceberem o bater da água,apertaram o passo e, entrando nafresca corrente quase até aos peitos, estiraram opescoço e puseram-se a beberruidosamente, avançando aos poucos de encontroao fio caudal, para buscarem oque houvesse mais puro em linfa.

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�Não deixe a sua besta se empanainar observouPereira. Upa! continuou elepuxando pela rédea do cavalo e batendo-lheamigavelmente na pá do pescoço, upa,Canivete! Vamos matar a fome no milho!Transposto o ribeirão, alargava-se a vereda e,depois de cortar copada mata,abria-se numa verdadeira estrada, que os doiscavaleiros tomaram a meio galope.Transmontava afinal o Sol, quando, atem de ralomatagal, surgiu a ponta de ummastro de São João, que o mineiro saudou commostras de grande alegria, comosinal precursor da querida vivenda.Antes, porem, de nela penetrarmos, digamos quemera aquele mancebo que viajavaornado do pomposo titulo de doutor, e, que mais é,revestido de autoridade parair, a seu talante aplicando remédios e preconizandocuras milagrosas.

III�O DOUTOR

Semeai promessas: a ninguémcausam desfalque, e o mundo é rico de palavras. A esperança quando outros nelacrêem faz ganhar muito tempo.Ovídio, AArte de Amar. Ao morreres, dota a algum colégio

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ou a teu gato. Pope. Sganarelo. � De todo a parte vemgente procurar-me, e se as coisas continuarem assim,sou de parecer que de uma vez devo dedicar-me àmedicina . Acho que de todos os ofícios é este o preferível,porque, ou se faça bem ou mal, sempre no fim há dinheiro.Molière, O Médico à Força.

Nascera Cirino de Campos, como dissera a Pereira,na província de São Paulo, nasossegada e bonita Vila de Casa Branca, a qualdemora Umas 50 léguas do litoral.Filho de um vendedor de drogas, que se intitulavaboticário e a esse oficioacumulava o importante cargo de administrador docorreio, crescera debaixo dasvistas paternas até a idade de doze anoscompletos, quando fora enviado, emtempos de festas e a título de recordação saudoso,a um velho tio e padrinho,morador na cidade de Ouro Preto.Esse parente, solteirão, de gênio rabugento,misantropo, e dado às práticas damais extrema carolice, recebeu o pequeno com maumodo e manifestodescontentamento, tanto mais quanto à presençade um estranho vinha interromperos hábitos de completa solidão a que se

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acostumara desde longos anos.Era homem que trajava ainda à moda antiga,usando de sapatos de fivela, calçõesde braguilha, e cabeleira empoada com ocompetente rabicho.A sua reputação de pessoa abastada era, em toda acidade de Ouro Preto, tão bemfirmada quanto a de refinado sovina, chegando avoz público a afirmar que o seudinheiro, e não pouco, estava todo enterrado emnumerosos buracos no chão daalcova de dormir.�Meu amigalhote, disse o tal padrinho a Cirino,poucos dias depois da chegada,fique sabendo que por qualquer coisinha lhe sacudoa poeira do corpo. Dê-se poravisado e ande direitinho que nem um fuso.O menino, transido de medo, passou a tarde achorar num canto sombrio da casa,onde relembrou, até lhe vir o sono, a alegre vida deoutrora, os folguedos quefazia com os camaradas na viçosa relva do Cruzeiro,à entrada da Vila de CasaBranca e sobretudo os carinhos da saudoso mamãe.Em seguida aquela admoestação preventiva fora otio à casa de uns padres quetinham influência na direção do Colégio do Caraça ecom eles arranjara aadmissão do afilhado naquele estabelecimento deinstrução.Como finório que era, conseguiu este resultado semmulta dificuldade, pagando-o,a juros compostos, com tentadoras promessas.

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�Por ora, resmoneou ele, nada poderei fazer pelaeducação do rapaz; mas...enfim... um dia... estou já velho, e tratarei demostrar que não me esqueci dosbons padres que tanto me ajudam hoje.Lançada, assim, a eventualidade de uma verbatestamentária, ficou decidida aentrada de Cirino na casa colegial.O pressentimento da falta de proteção natural tornaas crianças dóceis eresignadas. Também não fugiu nem mugiu ocaipirazinho ao penetrar no internatoem que devia passar tristonhamente os melhoresanos da sua adolescência.Ótimo negócio fizera incontestavelmente o velhotio. Ia tão-somentedesembolsando boas palavras e, por estar agarradoà vida, chegou até a levar aocemitério dois dos padres que se haviam prendidoàs esperanças de valiosarecordação.Afinal como tinha por seu turno que pagar o tributouniversal, um belo diamorreu quando medos se esperava, deixando muitorecomendado um seu testamento,que foi, com efeito, aberto com sofreguidão dignade melhor êxito.Testamento havia, força é confessar; não játestamento, mas extenso arrazoado,todo da letra do velho barras de ouro, porém, oumaços de notas, nem sombra.Esfuracou-se a casa de alto a baixo, levantaram-seos soalhos, escutaram-se

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todas as paredes, quebraram-se os móveis; nadaapareceu, nada denunciouesconderijo de riquezas, nem coisa que com isso seavizinhasse.Descobriu-se então que aquele carola fora umpensador desabusado, antigoadmirador de Xavier, o Tiradentes, que nunca tiveravintém e vivera comofilósofo, grazinando lá consigo mesmo, de tudo e detodos.Era o seu testamento uma gargalhada meio degosto, meio de ironia, atirada dealém-túmulo e corroborada pelo legado sarcásticoque em pomposo codicilo faziaaos padres do Caraça da sua biblioteca �a fim, diziaele, de ajudar a educaçãodos mancebos e auxiliar as boas intenções dos seushonrados e virtuosos diretores�.Procuraram-se os tais livros, e topou-se com umbaú cheio de obras, em partedevoradas pelo cupim, que foram, incontinenti,entregues às chamas de um grandeauto-de-fé. Eram as Ruínas de Volney, 0 Homem daNatureza, as poesias eróticasde Bocage, o Dicionário filosófico de Voltaire, oCitador de Pigault-Lebrun, aGuerra dos Deuses de Parny, os romances domarquês de Sade e outras produções deigual alcance e quilate, algumas até em francês,mas anotadas por leitor assíduoe mais ou menos convencido.A conseqüência desse pesado gracejo póstumo, quedestruía de raiz o conceito de

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uma vida inteira, foi a imediata exclusão de Cirinodo Colégio do Caraça.Tinha então dezoito anos, e, como era vivo,conseguiu, apesar da natural pechaque lhe atirava o parentesco com o estrambótico edefunto protetor, ir servir decaixeiro numa botica velha e manhosa, onde entredrogas e receituários lhe foramvoltando os hábitos da casa paterno.Leve era o trabalho, e o aviamento de prescriçõestão lento, que os ingredientesfarmacêuticos ficavam meses inteiros nosembaçados e esborcinados frascos àespera de que alguém se lembrasse de tirá-losdaquele bolorento esquecimento.Em localidade pequena, de simples boticário amédico não há mais que um passo.Cirino, pois, foi aos poucos, e com o tempo, criandotal ou qual pratica dereceitar e, agarrando-se a um Chernoviz, já sebosode tanto uso, entrou apercorrer, com alguns medicamentos no bolso e namala da garupa, as vizinhançasda cidade à procura de quem se utilizasse dos seusserviços.Nessas curtas digressões principiou a receber otratamento de doutor. Então paramelhor o firmar, depois de se ter despedido dabotica em que servia,matriculou-se na escola de farmácia de Ouro Pretocom a intenção de tirar acarta de boticário, que o Presidente de Minas Geraistem o privilégio de

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conferir, dispensando documentos de qualquerfaculdade reconhecida.Antes, porém, de conseguir a posse daquelelisonjeiro documento, faz-se Cirino,num dia de capricho, de partida decidida e começouentão a viajar pelos sertõespovoados a medicar, sangrar e retalhar, unindo aalguns conhecimentos de valorpositivo outros que a experiência lhe ia indicandoou que a voz do povo e asuperstição lhe ministravam.Toda a sua ciência assentava alicerces no talChernoviz. Também era oinseparável vademecum; seu livro de ouro; Homeroà cabeceira de Alexandre. Noitee dia o manuseava; noite e dia o consultava àsombra das árvores ou junto aoleito dos enfermos.Contem Chernoviz, dizem os entendidos, muitoserros, muita lacuna, muita coisainútil e até disparatada; entretanto no interior doBrasil é obra queincontestavelmente presta bons serviços, e cujasindicações têm força de evangelho.Conhecia Cirino o seu exemplar de cor e salteado;abria-o com segurança nostrechos que desejava consultar e graças a eleformara um fundo de instrução reale até certo ponto exata, a que unirá o estudonatural das utilíssimas e aindapouco aproveitadas ervinhas do campo.A fim de aumentar os seus recursos em matériamédica vegetal, foi a pouco e

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pouco dilatando as excursões fora das cidades, paraas quais voltava, quando sevia falto de medicamentos ou quando, digamo-losem rebuço, queria gastar nosprazeres e folias o dinheiro que ajuntara com aclínica do sertão.Afinal, afeito a hábitos de completa liberdade,resolvera empreender viagem paraCamapuã e sul de Mato Grosso, não só com ointuito de estender o raio dasoperações, como levado do desejo de ver terrasnovas e longínquas.Curandeiro, simples curandeiro, ia por toda a partegranjeando o tratamento dedoutor, que gradualmente lhe foi parecendo, a sipróprio, titulo inerente a suapessoa e a que tinha incontestável direito.Bem formado era o coração daquele moço, sua almaelevada e incapaz depensamentos menos dignos; entretanto no intimodo seu caráter se haviaminsensivelmente enraizado certos hábitos deorgulho, repassado de tal ou qualcharlatanismo, oriundo não só da flagranteinsuficiência cientifica, como daroda em que sempre vivera.Afastava-se em todo caso, ainda assim com os seusdefeitos, do comum dos médicosambulantes do sertão, tipos que se encontramfreqüentemente naquelas paragens,eivados de todos os atributos da mais crassaignorância, mas rodeados deregalias completamente excepcionais.

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Por toda a parte entra, com efeito, o doutor;penetra no interior das famílias,verdadeiros gineceus; tem o melhor lugar a mesados hospedes, a mais macia cama;é, enfim, um personagem caldo do céu e junto aoqual acodem logo, de muitasléguas em torno, não já enfermos, mas fanatizadoscrentes, que durante largosanos se haviam medicado ou por conselhos devizinhos ou por suas própriasinspirações e que na chegada desse Messiasdepositam todas as ardentesesperanças do almejado restabelecimento.

IV�A CASA DO MINEIRO Está a cela na mesa. Torne o bomacolhimento desculpável o mau passadio.Walter Scott, Ivanhoé

Quando assomaram os dois viajantes à entrada doterreiro que rodeava a vivendade Pereira, correram-lhes ao encontro quatro oucinco cães altos e magros, queaos pulos saudaram o dono da casa com umacainçada de alegria.Puseram-se algumas galinhas a girar atarantadas,ao passo que vários galos, jáempoleirados na cumeeira da morada, bradavamnovidade e uns porcos e bacorinhosaqui e acolá se erguiam dentre palhas de milho e,

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estremunhados, olhavam para osrecém-chegados com olhos pequenos e cheios desono.Do interior da habitação, não tardou a sair umapreta idosa mal vestida,trazendo atado à cabeça um pano branco dealgodão, cujas pontes pendiam ate aomeio das costas.�Olá, Maria Conga, perguntou Pereira, que há denovo por cá?�A tenção, meu senhor, pediu a escrava chegando-se com alguma lentidão.�Deus te faça santa, respondeu o mineiro. Comovai a menina? Nocência?�Nhã está com sezão.�Isto sei eu, rapariga de Cristo; mas como passouela de trasantontem para cá?�Todo o dia, vindo a hora, nhã bate o queixo, nhor-sim.�Está bem... É que o mal ainda não abrandou...Daqui a pouco, veremos. E ajanta?... Está pronta? Venho varado de fome. Quediz, Sr. Cirino? indagou,voltando-se para 0 companheiro.�Não se me dava também de comer alguma coisa.Temos razão para. . .�Pois então, interrompeu Pereira, ponha pé nochão e pise forte que o terreno énosso. Minha casa, ia lho disse, é pobre, masbastante farta e a ninguém ficafechada.Deu logo o exemplo, e descavalgou do cavalinhozambro, o qual foi por si

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correndo em direção a uma dependência da casacom formas de tosca estrebaria.Apeou-se igualmente Cirino, mas, ao penetrar numaespécie de alpendre de palhaque ensombrada a frente toda, mostrou repentina eviva contrariedade no gesto ena fisionomia.�Ora, Sr. Pereira, exclamou ele batendo com otacão da bota num sabugo demilho, só agora é que me lembro que as minhascargas vão todas tomar caminho doLeal e aqui me deixam sem roupa, nemmedicamentos. Que maçada! Devíamos teresperado na boca da sua picada.Respondeu-lhe o mineiro todo desfeito emexpansivo riso:�Olé, pois o doutor é tão novato assim emviagens? Então pensa que lá nãodeixei aviso seguro à sua gente? Não se lembra deum ramo verde que pus bem nomeio da estrada real?�É verdade, confirmou Cirino.�E então? Daqui a pouco a sua camaradagem estábatendo o nosso rasto. Entremos,que a fome já vai apertando.Consistia a morada de Pereira num casarão vasto ebaixo, coberto de sapé, comuma porta larga entre duas janelas muito estreitase mal abertas. Na parede dafrente que, talvez com o peso da coberta, bojavasensivelmente fora da vertical,grandes rachas longitudinais mostravam a urgênciade serias reparações em toda

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aquela obra feita de terra amassada e grandespaus-a-pique.Ao oitão da direita existia encostado um grandepaiol construído de troncos depalmeiras, por entre os quais iam rolando asespigas de milho, com o contínuofossar dos porquinhos, que dali não arredavam pé.Corrido na frente de toda a vivenda, via-se umalpendre de palha de buriti,sustentado por grossas taquaras, ligeiro apêndiceacrescentado por ocasião dealguma passada festa, em que o número deconvidados ultrapassara os limites deabrigo da hospitaleira habitação.Internamente era ela dividida em dois lanços: um,todo fechado, com exceção daporta por onde se entrava, e que constituiu ocômodo destinado aos hóspedes,outro, à retaguarda, pertencia à família, ficando,portanto, completamentevedado às vistas dos estranhos e sem comunicaçãointerna com o compartimento dafrente.Era de barro compacto e secado o chão desta sala,vendo-se nele sinais de que asvezes ali se acendia fogo: pelo que estavam o sapédo forro e o ripamentorevestidos de luzidia e tênue camada de picumãque lhes dava brilho singularcomo se tudo tora jacarandá envernizado.�Isto aqui, disse Pereira penetrando na sala esentando-se numa tripeça de pau,não é meu, e de quem me procura. Poucos vêm cá

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decerto parar, mas enfim é semprebom contar com eles... Minha gente mora nadependência dos fundos.E apontou para a parede fronteira à porta deentrada, fazendo um gesto paramostrar que a casa se estendia além.�Sr. Pereira, disse Cirino recostando-se a umasólida marquesa, não se incomodecomigo de maneira alguma... Faça de conta queaqui não há ninguém�Pois então, retorquiu o mineiro, deite-se umpouco, enquanto vou lá dentro veras novidades. A hora é mais de comer, que decochilar; mas espere deitadinho e agosto, o que é sempre mais cômodo do que ficar depé ou sentado.Não desprezou o hóspede o convite. Tirou o pala,puxou as botas e, cruzando-as,fez dos canos travesseiros, em que descansou acabeça.Quem se coloca em posição horizontal, depois devencidas umas estiradas léguas,adormece com certeza. Depressa veio, pois, o sonocerrar as pálpebras dorecém-chegado e intumescer-lhe o peito comsossegada respiração.Dormiu talvez hora e meia, e mais houvera dormido,se não fosse acordado pelotropel de animais que paravam, e por grita de gentea pôr cargas em terra.Assomou Pereira à porta com ar jovial.�Então, que lhe disse eu?�De fato; estou agora sossegado.

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�E o Sr. tomou uma boa data de sono.�Quem sabe uma hora?�Boa dúvida, se não mais. Fiquei todo esse tempoao lado de Nocência, que defrio batia o queixo, como se estivesse agora emOuro Preto, quando cai geada na rua.�Então não vai melhor?�Qual!... Depois que o Sr. tiver comido, há de ir vê-la. Está, pobrezinha, tãodesfeita que parece doente de uns três mesesatrás.�Felizmente, observou Cirino com algumaenfatuação, aqui estou eu para pô-la depé em pouco tempo.�Deus o ouça, disse Pereira com verdadeira unção.�Patrícios! O gente! gritou ele em seguida para osdois camaradas chegados depouco: vão mecês sentar naquele rancho, ali. Pertohá boa água, e lenha é o quenão falta: basta estender o braço. Olhem, dêemração de fartar aos animais.Aproveitem o milho, enquanto há: é a sustânciadesses bichos. Aqui, vendo-obaratinho. Um atilho por um cobre e não sãoespigas chuchas, nem grão soboró.Eh! lá! Maria Conga, vamos com isso!... janta namesa!...Foram o chamado e as indicações de Pereiracompridas sem demora.Apareceu a velha escrava, que estendeu em larga emal aplainada mesa uma toalhade algodão, grosseira, mas muito alva, sobre a qualderramou duas boas caias de

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farinha de milho: depois, emborcou um prato fundode louça azul, e ao ladocolocou uma colher e um garfo de metal.�Sente-se, doutor, disse Pereira para Cirino, agoranão mariduco com mecê,porque já petisquei lá dentro. Desculpe se nãoachar a comida do seu agrado.Vinha nesse momento entrando Maria Conga comdois pratos bem cheios efumegantes, um de feijão-cavalo, outro de arroz.�E as ervas? perguntou Pereira. Não ha?�Nhor-sim. Eu trago já, respondeu a preta, quecom efeito voltou dai a pouco.Tornou o mineiro a desculpar-se da insuficiência emau preparo da comida.�Não lhe dou hoje lombo de porco: mas oprometido não cai em esquecimento, istolhe posso assegurar.�Estou muito contente com o que há, protestoucom sinceridade Cirino.E, de fato, pelo modo por que começou a comer,repetindo animadas vezes dospratos, deu evidentes mostras de que falava inteiraverdade.�Maria, disse Pereira para a escrava, que se foracolocar a alguma distancia damesa com os braços cruzados, traz agora mel e cafécom doce.�Ah! exclamou Cirino com patente satisfaçãoestirando os braços, fiquei que nemum ovo. O feijão estava de patente. Louvado sejaNosso Senhor Jesus Cristo, queme deu este bom agasalho.

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�Amém! respondeu Pereira.�Agora, amigo meu, disse o moço depois depequena pausa, estou às suas ordens;podemos ver a sua doentinha e aproveitar a paradada febre para mim atalhá-la depronto. Em tais casos, não gosto de adiantamentos.Cobriu-se o rosto do mineiro de ligeira sombra:franziram-se os sobrolhos, evaga inquietação lhe pairou na fronte.�Mais tarde, disse ele com precipitação.�Nada, meu senhor, retrucou Cirino, quanto maiscedo, melhor. É o que lhe digo.�Mas, que pressa tem mecê? perguntou Pereiracom certa desconfiança.�Eu? respondeu o outro sem perceber a intenção,nenhuma. mesmo para bem da moça.Acenderam-se os olhos de Pereira de repentinobrilho.�E como sabe que minha filha é moça? exclamoucom vivacidade,�Pois não foi o Sr. mesmo quem mo disse na prosado caminho?�Ah!... é verdade. Ela ainda não é moça...Quatorze, quinze anos, quandomuito... Quinze anos e meio... Uma criança,coitadinha! . . .�Enfim, replicou o outro, seja como for. Quando oSr. quiser, venha procurar.Enquanto espero, remexerei nas minhas malas etirarei alguns remédios paratê-los mais a mão.�Muito que bem, aprovou Pereira, bote os seustrens naquele canto e fique

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descansado: ninguém bulira neles... Quanto àminha filha... eu já venho... douum pulo lá dentro, e... depois conversaremos.

V�AVISO PRÉVIO Onde há mulheres, aí se congregamtodos os males a um tempo.Menandro Nunca é bom que um Homemsensato eduque seus filhos de modo a desenvolver-lhes demais oespíritoEurípedes, Medéia Filhos, sois para os homens oencanto da alma.Menandro

Estava Cirino fazendo o inventário da sua roupa e jácomeçava a anoitecer,quando Pereira novamente a ele se chegou.�Doutor, disse o mineiro, pode agora Meca entrarpara ver a pequena. Está com opulso que nem um fio, mas não tem febre dequalidade nenhuma.�Assim e bem melhor, respondeu Cirino.E, arranjando precipitadamente o que havia tiradoda canastra, fechou-a e pôs-se de pó.Antes de sair da sala, deteve Pereira o hóspedecom ar de quem precisava tocarem assunto de gravidade e ao mesmo tempo de

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difícil explicação.Afinal começou meio hesitante:�Sr. Cirino, eu cá sou homem muito bom de gênio,multo amigo de todos, muitoacomodado e que tenho o coração perto da bocacomo vosmecê deve ter visto...�Por certo, concordou o outro.�Pois bem, mas... tenho um grande defeito; soumuito desconfiado. Vai o doutorentrar no interior da minha casa e... deve portar-secomo...�Oh, Sr Pereira! atalhou Cirino com animação, massem grande estranheza, poisconhecia o zelo com que os homens do sertãoguardam da vista dos profanos osseus aposentos domésticos, posso gabar-me de tersido recebido no seio de muitafamília honesta e sei proceder como devo.Expandiu-se um tanto o rosto do mineiro.�Vejo, disse ele com algum acanhamento, que odoutor não e nenhum pé-rapado,mas nunca é bom facilitar... E já que não há outroremédio, vou dizer-lhe todosos meus segredos... Não metem vergonha aninguém, com o favor de Deus; mas emnegócios da minha casa não gosto de bater língua...Minha filha Nocência fez 18anos pelo Natal, e é rapariga que pela feição parecemoça de cidade, muitoariscazinha de modos mas bonita e boa deveras...Coitada, foi criada sem mãe, eaqui nestes fundões. Tenho outro filho, este umlatagão, barbudo e grosso que

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está trabalhando agora em portadas para as bandasdo Rio.�Ora muito que bem, continuou Pereira caindo aospoucos na habitual garrulice,quando vi a menina tomar corpo, tratei logo decasá-la.�Ah! é casada? perguntou Cirino.�Isto é, é e não e. A coisa está apalavrada. Poraqui costuma labutar nocostela do gado para São Paulo um homem de mão-cheia, que talvez o Sr.conheça... o Manecão Doca...�Não, respondeu Cirino abanando a cabeça.�Pois isso é um homem às direitas, desempenadoe trabucador como ele só... furaestes sertões todos e vem tangendo pontes degado que metem pasmo. Também dizemque tem bichado muito e ajuntado cobre grosso, oque é possível, porque não égastador nem dado a mulheres. Uma feita queestava aqui de pousada... olhe,mesmo neste lugar onde estava mecê indaagorinha, falei-lhe em casamento... istoé, dei-lhe uns toques .. porque os pais devemtomar isso a si para bem de suasfamílias; não acha?�Boa dúvida, aprovou Cirino, dou-lhe toda a razão;era do seu dever.�Pois bem, o Manecão ficou ansim meio em dúvida;mas quando lhe mostrei apequena, foi outra cantiga... Ah! também é umameninaE Pereira, esquecido das primeiras prevenções, deu

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um muxoxo expressivo,apoiando a palma da mão aberta de encontro aosgrossos lábios�Agora, está ela um tanto desfeita: mas, quandotem saúde é coradinha que nemmangaba do areal. Tem cabelos compridos e finoscomo seda de paina, um narizmimoso e uns olhos matadores . . .Nem parece filha de quem é...A gabes imprudentes era levado Pereira pelo amorpaterno.Foi o que repentinamente pensou lá consigo, demodo que, reprimindo-se, dissecom hesitação manifesta:�Esta obrigação de casar as mulheres é o diabo!..Se não tomam estado, ficamjuraras e fanadinhas...; se casam podem cair nasmãos de algum marido malvado...E depois, as histórias! . Ih meu Deus, mulheresnuma casa, é coisa de metermedo... São redomas de vidro que tudo podequebrar... Enfim, minha filha,enquanto solteira, honrou o nome de meus pais... OManecão que se agüente,quando a tiver por sua .. Com gente de saia não háque fiar... Cruz! botamfamílias inteiras a perder, enquanto o demo esfregaum olho.Esta opinião injuriosa sobre as mulheres é em geralcorrente nos nossos sertõese traz como conseqüência imediata e prática, alémda rigorosa clausura em quesão mantidas, não só o casamento convencionado

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entre parentes muito chegadospara filhos de menor idade, mas sobretudo osnumerosos crimes cometidos, mal sesuspeita possibilidade de qualquer intriga amorosaentre pessoa da família ealgum estranho.Desenvolveu Pereira todas aquelas idéias eaplaudiu a prudência de tãopreventivas medidas.�Eu repito, disse ele com calor, isto de mulheres,não há que fiar. Bem faziamos nossos do tempo antigo. As raparigas andavamdireitinhas que nem um fuso...Uma piscadela de olho mais duvidosa, era logopau... Contaram-me que hoje lá nascidades... arrenego!... não há menina, porpobrezinha que seja, que não saibaler livros de letra de forma e garatujar no papel...que deixe de ir afonçonatas com vestidos abertos na frente comoraparigas fadistas e quesaracoteiam em danças e falam alto e mostram osdentes por dá cá aquela palhacom qualquer tafulão malcriado... pois pelintras ebeldroegas não faltam..Cruz!... Assim, também é demais, não acha? Cá nomeu modo de pensar, entendo quenão se maltratem as coitadinhas, mas também épreciso não dar asas àsformigas... Quando elas ficam taludas, atamanca-seuma festança para casá-lascom um rapaz decente ou algum primo, e acabou-sea historia...

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�Depois, acrescentou ele abrindo expressivamentecom o polegar a pálpebrainferior dos olhos, cautela e faca afiada para algummeliante que se faca detolo e venha engraçar-se fora da vila e termo...Minha filha...Pereira mudou completamente de tom:�Pobrezinha... Por esta não há de vir o mal aomundo... É uma pombinha docéu... Tão boa, tão carinhosa!... E feiticeira!!!Não posso com ela.. só o pensar em que tenho deentregá-la nas mãos de um homem,bole comigo todo... E preciso, porém. Há anos...devia já ter cuidado nessearranjo, mas... não sei... cada vez que pensavanisso... caia-me a alma aos pés.Também é menina que não foi criada como asmais... Ah! Sr. Cirino, isto defilhos, são pedaços do coração que a gente arrancado corpo e bota a andar poresse mundo de Cristo.Umedeceram-se ligeiramente os cílios do bom pai.�O meu mais velho pára, Deus sabe onde... Se eumorresse neste instante, ficavaa pequena ao desamparo... Também, era precisoacabar com esta incerteza... Alémdisso, o Manecão prometeu-me deixá-la aqui emcasa, e deste modo fica tudoarranjado... isto é, remediado, filha casada é trasteque não pertence mais aopai.Houve uns instantes de silêncio.�Agora, prosseguiu Pereira com certo vexame, que

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eu tudo lhe disse, peço-lheuma coisa: veja só a doente e não olhe paraNocência... falei assim a mecê,porque era de minha obrigação... Homem nenhum,sem ser muito chegado a este seucriado, pisou nunca no quarto de minha filha... Eulhe juro... Só em casosdestes, de extrema percisão...�Sr. Pereira, replicou Cirino com calma, lá lhe dissee torno-lhe a dizer que,como médico, estou há muito tempo acostumado alidar com famílias e arespeitá-las. t: este meu dever, e ate hoje, graças aDeus, a minha fama éboa... Quanto às mulheres, não tenho as suasopiniões, nem as acho razoáveis nemde justiça. Entretanto, é inútil discutirmos porquesei que isso são prevençõesvindas de longe, e quem torto nasce, tarde oununca se endireita... O Sr.falou-me com toda a franqueza, e também comfranqueza lhe quero responder. Nomeu parecer, as mulheres são tão boas como nos,se não melhores: não há, pois,motivo para tanto desconfiar delas e ter os homensem tão boa conta... Enfim,essas suas idéias podem quadrar-lhe à vontade, e écostume meu antigo a ninguémcontrariar, para viver bem com todos e delesmerecer o tratamento que julgo terdireito a receber. Cuide cada qual de si, olhe Deuspara todos nós, e ninguémqueira arvorar-se em palmatória do mundo.

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Tal profissão de fé, expedida em tom dogmático esuperior, pareceu impressionaragradavelmente a Pereira, que fora aplaudindo comexpressivo movimento de cabeçaa sensatez dos conceitos e a fluência da frase.

VI � INOCÊNCIA Nesta donzela é que se achamjuntas a minha vida e a minha morte.Henoch, O Livro da Amizade Jamais vira coisa tão perfeita comoo seu rosto pálido. Os seus olhos franjados de sedososcílios multo espessos e o seu ar meigo e doentio.George Sand, Os Mestres Galteiros Tudo, em Fenela, realçava a idéiade uma miniatura. Além do mais havia em sua fisionomia e,sobretudo, no olhar extraordinária prontidão, fogo eatilamento.Walter Scott, Peveril do Pico

Depois das explicações dados ao seu hóspede,sentiu-se o mineiro maisdespreocupado.�Então, disse ele, se quiser, vamos já ver a nossadoentinha.� Com muito gosto, concordou Cirino.

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E saindo da sala, acompanhou Pereira, que o fezpassar por duas cercas e rodeara casa toda, antes de tomar a porta do fundo,fronteira a magnifico laranjal,naquela ocasião todo pontuado das brancas eolorosas flores.�Neste lugar, disse o mineiro apontando para opomar, todos os dias se juntamtamanhos bandos de graúnas, que é um barulho dosmeus pecados. Nocência gostamuito disso e vem sempre coser debaixo doarvoredo. ~ uma menina esquisita...Parando no limiar da porta, continuou comexpansão:�Nem o Sr. imagina... Às vezes, aquela criança temlembranças e perguntas queme fazem embatucar... Aqui, havia um livro dehoras da minha defunta avó....Pois não é que um belo dia ela me pediu que lheensinasse a ler?... Que idéia!.. Ainda há pouco tempo me disse que quisera ternascido princesa... Eu lheretruquei: E sabe você o que é ser princesa? Sei,me secundou ela com toda aclareza, é uma moca muito boa, muito bonita, quetem uma coroa de diamantes nacabeça, muitos lavrados no pescoço e que mandanos homens... Fiquei meio tonto Ese o Sr. visse os modos que tem com os bichinhos?!. . . Parece que está falandocom eles e que os entende... Uma bicharia, emchegando ao pé de Nocência, ficamansa que nem ovelhinha parida de fresco .. Se

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fosse agora a contar-lhehistórias dessa rapariga, seria um não acabarnunca... Entremos, que é melhor...Quando Cirino penetrou no quarto da filha domineiro, era quase noite, demaneira que, no primeiro olhar que atirou ao redorde si, só pode lobrigar, alémde diversos trastes de formas antiquadas, umadessas camas, muito em uso nointerior; altas e largas, feitas de tiras de couroengradados. Estava encostadaa um canto, e nela havia uma pessoa deitada.Mandara Pereira acender uma vela de sebo. Vinda aluz, aproximaram-se ambos doleito da enferma que, achegando ao corpo epuxando para debaixo do queixo umacoberta de algodão de Minas, se encolheu toda, evoltou-se para os que entravam.�Está aqui o doutor, disse-lhe Pereira, que vemcurar-te de vez�Boas-noites, dona, saudou Cirino.Tímida voz murmurou uma resposta, ao passo que ojovem, no seu papel de médico,se sentava num escabelo junto à cama e tomava opulso à doente.Caía então luz de chapa sobre ela, iluminando-lhe orosto, parte do colo e dacabeça, coberta por um lenço vermelho atado portrás da nuca.Apesar de bastante descorada e um tanto magra,era Inocência de belezadeslumbrante.Do seu rosto irradiava singela expressão de

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encantadora ingenuidade, realçadapela meiguice do olhar sereno que, a custo, pareciacoar por entre os cíliossedosos a franjar-lhe as pálpebras, e compridos aponto de projetarem sombrasnas mimosas faces.Era o nariz fino, um bocadinho arqueado; a bocapequena, e o queixoadmiravelmente torneado.Ao erguer a cabeça para tirar o braço de sob olençol, descera um nada acamisinha de crivo que vestia, deixando nu um colode fascinadora alvura, em queressaltava um ou outro sinal de nascença.Razões de sobra tinha, pois, o pretenso facultativopara sentir a mão fria e umtanto incerta, e não poder atinar com o pulso de tãogentil cliente.�Então? perguntou o pai.�Febre nenhuma, respondeu Cirino, cujos olhosfitavam com mal disfarçadasurpresa as feições de Inocência.�E que temos que fazer?�Dar-lhe hoje mesmo um suador de folhas delaranjeira da terra a ver setranspira bastante e, quando for meia-noite,acordar-me para vir administrar umaboa dose de sulfato.Levantara a doente os olhos e os cravara em Cirino,para seguir com atenção asprescrições que lhe deviam restituir a saúde.�Não tem fome nenhuma, observou o pai; háquase três dias que só vive de

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beberagens. 11: uma ardência continua, isto aténem parecem maleitas..�Tanto melhor, replicou o moço; amanhã verá que afebre lhe sai do corpo, edaqui a uma semana sua filha está de pé comcerteza. Sou eu que lhe afianço.�Fale o doutor pela boca de um anjo, disse Pereiracom alegria.�Hão de as cores voltar logo, continuou Cirino.Ligeiramente enrubesceu Inocência e descansou acabeça no travesseiro.�Por que amarrou esse lenço? perguntou emseguida o moço.�Por nada, respondeu ela com acanhamento.� Sente dor de cabeça?�Nhor-não.�Tire-o, pois: convém não chamar o sangue; soltepelo contrário, os cabelos,Inocência obedeceu e descobriu uma espessacabeleira, negra como o âmago dacabiúna e que em liberdade devia cair ate abaixo dacintura. Estava enrolado embastas tranças, que davam duas voltas inteiras aoredor do cocoruto�É preciso, continuou Cirino, ter de dia o quartoarejado e por a cama na linhado nascente ao poente.�Amanhã de manhãzinha hei de virá-la, disse omineiro.�Bom, por hoje então, ou melhor, agora mesmo, osuador. Fechem tudo, e que adona sue bem. A meia-noite, mais ou menos, vireiaqui dar-lhe a mezinha.

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Sossegue o seu espirito e reze duas Ave-Mariaspara que a quina faça logoefeito.�Nhor-sim, balbuciou a enferma.�Não lhe dói a luz nos olhos? perguntou Cirino,achegando-lhe um momento a vela ao rosto.�Pouco... �um nadinha.�Isso é bom sinal. Creio que não há de ser nada.E levantando-se, despediu-se:�Ate logo, sinhá-moça.Depois do que, convidou Pereira a sair.Este acenou para alguém que estava num canto doquarto e na sombra.�Ó Tico, disse ele, venha cá...Levantou-se, a este chamado, um anão muitoentanguido, embora perfeitamenteproporcionado em todos os seus membros. Tinha orosto sulcado de rugas, como sejá fora entrado em anos; mas os olhinhos vivos e anegrejante guedelha mostravamidade pouco adiantada. Suas perninhas um tantoarqueadas terminavam em péslargos e chutos que, sem grave desarranjo naconformação, poderiam pertencer aqualquer palmípede.Trajava comprida blusa pardo sobre calças que, porhaverem pertencido a quemquer que fosse muito mais alto, formavam embaixovolumosa rodilha, apesar deestarem dobradas. A cabeça, trazia um chapéu depalha de carandá sem copa, demaneira que a melena lhe aparecia toda arrepiada eerguida em torcidas e

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emaranhadas grenhas.�Oh! exclamou Cirino ao ver entrar no círculo de luztão estranha figura, istodeveras é um tico de gente.�Não anarquize o meu Tonico, protestou sorrindo-se Pereira. Ele é pequeno...mas bom. Não é, meu nanico?O homúnculo riu-se, ou melhor, fez uma caretamostrando dentinhos alvos eagudos, ao passo que deitava para Cirino olharinquisidor e altivo.�0 Sr. vê, doutor, continuou Pereira, estacriaturinha de Cristo ouveperfeitamente tudo quanto se lhe diz e logocompreende. Não pode falar... istoé, sempre pode dizer uma palavra ou outra, masmuito a custo e quase a estourarde raiva e de canseira. Quando se mete a quererexplicar qualquer coisa, é umbarulho dos seiscentos, uma gritaria dos meusRecados, onde aparece uma vozaqui, outra acolá, mais cristãzinhas no meio dabarafunda.�É que não lhe cortaram a língua, observou Cirino.�Não tinha nada que cortar, replicou Pereira. Denascença é o defeito e nãopode ser remediado. Mas isto é um diabrete, quecruza este sertão de cabo arabo, a todas horas do dia e da noite. Não éverdade, Tico?O anão abanou a cabeça, olhando com orgulho paraCirino.�Mas é filho aqui da casa? perguntou este.

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�Nhor-não; tem mãe à beira do Rio Sucuriú, daquia quarenta léguas, e enveredade lá para ca num instante, vindo a pousar pelascasas, que todas recebem comgosto, porque é bichinho que não faz mal aninguém. Aqui fica duas, três e maissemanas e depois dispara como um mateiro para acasa da mãe. E uma espécie decachorro de Nocência. Não é, Tico?Fez o mudo sinal que sim e apontou com ar risonhopara o lado da moça.Pereira, depois de todas aquelas explicações que oanão parecia ouvir comsatisfação, disse, voltando-se para este, ou melhorabaixando-se em cima da sua cabeça:�Agora, meu filho, vai ao curral grande e apanhapara mim uma mãozada de folhasde laranjeira da terra... daquele pé grande queencosta na tronqueira.Mostrou o homúnculo com expressivo gesto queentendera e saiu correndo.Ia Cirino deixar o quarto, não sem ter olhado comdemora para o lugar ondeestava deitada a enferma, quando Pereira ochamou:�Ó doutor, Nocência quer beber um pouco de água.. . Fará mal?�Aqui não há limões-doces? indagou o moço.� E um nunca acabar... e dos melhores.�Pois então faça sua filha chupar uns gomos.Pereira, depois de ter paternalmente arranjado edispostos os cobertores aoredor do corpo da menina, acompanhou Cirino que,

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parado à porta de saída, estavamirando as primeiras estrelas da noite.�Vosmecê achou doutor, perguntou o mineiro comvoz um tanto trêmula, algumperigo no que tem aquele anjinho�Não, absolutamente não, respondeu Cirino. Verá oSr. que, daqui a três dias,sua filha não tem mais nada.�Malditas febres!... Quando não derrubam umcristão, o amofinam anosinteiros... Eu não quisera que minha filha ficasseesbranquiçada, nem feia .. Asmoças quando não são bonitas, é que estãodoentes... Ah! mas ia me esquecendodos limões-doces... Que cabeça! . . .Adiantou-se Pereira no terreiro e, pondo as mãosjunto à boca chamou com voz forte:�Ó Tico!Prolongado grito respondeu-lhe a certa distânciaO mineiro pôs-se a assobiar com modulações àmaneira dos índios.Houve uns momentos de silencio; depois veiocorrendo o anão e, chegando-se paraperto, mostrou por sinais que não ouvira bem orecado.�Uns limões-doces, já!... Nocência está comsede...Disparou o pequeno como uma seta, sumindo-selogo na densa escuridão que já seespessara entre as árvores do pomar.

VII� O NATURALISTA

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A minha filosofia toda resume-seem opor a paciência as mil o uma contrariedades de que avida está inçada.Hoffmann, O Reflexo Perdido

Serena e quase luminosa corria a noite. No parocampo do céu cintilava, comiriante brilho, um sem-número de estrelas,projetando na larga fita da estradado sertão, misteriosa e dúbia claridade.Pelo caminhar dos astros havia de ser quase meia-noite; e, entretanto, a essahora morta, em que só vagueiam à busca de pastoos animais bravios do deserto,vinham a passo lento, pelo caminho real, doishomens, um a pó, outro montadonuma besta magra e já meio estafada.Mostrava o pedestre ser, como de feito era, umsimples camarada, e vinha comgrossa e comprida vara na mão rangendo diante desi lerdo e orelhudo burro,sobre cujo lombo se erguia elevada carga decanastras e malinhas, cobertas porum grande ligamQuem estava montado e cavalgava todo encurvadosobre o selim, com as pernasmuito estiradas e abertas, parecia entregue aprofunda cogitação. Devia serhomem bastante alto e esguio e, como oobservamos, apesar da hora adiantada danoite, com olhos de romancista, diremos desde jáque tinha rosto redondo,

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juvenil, olhos gázeos, esbugalhados, nariz pequenoe arrebitado, barbascompridas, escorrido bigode e cabelos muito louras.O seu traje era o comum emviagem: grandes botas, paletó de alpaca emextremo folgado, e chapéu-do-chiledesabado. Trazia, entretanto, a tiracolo, umasquatro ou cinco caixinhas delunetas ou quaisquer outros instrumentos especiais,e na mão segurava um paufino e roliço, preso a uma sacola de fina gaze cor-de-rosa.Homem de meia-idade, de fisionomia vulgar ebalorda, era o camarada, e, pelosmodos e impaciência com que fustigava o animal decarga, indicava não estarafeito ao gênero de vida que exercia.Em silencio e na ordem indicada, caminhava atropinha: o burro carregado nafrente, logo atrás o inábil recoveiro, em seguidafechando a marcha, o viajanteencarrapitado na magra cavalgadura.Houve momento em que, depois de algumaspautadas de incitamento, pareceu querero cargueiro protestar contra o tratamento que tãofora de hora recebia e,fincando os pés na areia, resolutamente parou.Provocou a relutância, porem, uma chuva deverdadeiras cacetadas que ecoaramlonge e se confundiam com os brados e pragas docamarada.�Burro do diabo! berrava ele. Mil raios te partam,bicho danado! Arrebenta de

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uma vez!... Vá para os infernos! Entrega a carcaçaaos urubus!Durante uns bons minutos, o cavaleiro, que fizeraparar o seu animal, esperoupacientemente qualquer resultado: ou que arenitente azêmola se desse afinal porconvencida e avançasse, ou então estourasse.�Juque, disse ele de repente com acentofortemente gutural e que denunciava aorigem teutônica, se porretada chove assim no seulombo, você gosta?O homem a quem haviam dado o nome de Juca,voltou-se com arrebatamento:�Ora, Mochu, isto é um perverso sem-vergonha,que deve morrer debaixo do pau.Esta vida não me serve!...�Mas, Juque, replicou o alemão com inalterávelcalma, quem sabe se a cangalhanão esta ferindo a pobre criatura?�Qual! bradou o camarada, isto é manha só.Conheço este safado, este infame, este...E, levantando o varapau, descarregou tal pauladano traseiro do animal que lhefez soltar surdo gemido de dor.�Juque, observou o patrão em tom pausado, quemsabe se na frente há pau caídoou pedra, que não deixe ele ir para diante?�Pedra, Mochu, e pau na cabeça até rachá-la, é queprecisa este ladrão...�Vê, Juque, insistiu o alemão.�Ora, Mochu...�Vê, sempre...Saiu resmungando o camarada de detrás do borrego

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e deu a volta.Na frente avistou logo o ramo quebrado que Pereiradeixara cair no meio daestrada para desviar os acompanhadores de Cirino.�Uê! Uê! exclamou com muita surpresa, aquiesteve alguém e pôs este sinal paraque neo se passasse....�Eu não disse a vóce, replicou o cavaleiro com vozate certo ponto triunfante.Asno tem razão: para diante há alguma coisa.�Mas na vila, contestou José, nos disseram que ocaminho vai sempre direitinhosem atrapalhação nenhuma...�Na vila disseram isso, confirmou o outro.�E então?E então? repetiu o alemão.Houve uns segundos de silêncio.Depois o cavaleiro acrescentou com a mesmaimperturbável serenidade, e como queachando explicação muitíssimo natural:�Na vila muita gente não sabe caminho. à:...�Mil milhões de diabos, interrompeu o camaradatodo frenético, levem o gostodesandar por esses matos do inferno a horas tãoperdidas! Eu bem disse a Mochu,ninguém viaja assim. Isto é uma calamidade. . .� que, atalhou por seu turno o patrão, o que é queadianta estar a berrar comoum danado?... Olhe, antes, se por ai vóce não vêalgum caminho do lado.Obedeceu o outro e sem dificuldade achou aentrada da picada que levava a morada de Pereira.�Esta aqui, Mochu, está aqui! anunciou ele com

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alegria. ,: um trilho que cortaa estrada e vai dar nalguma casa pertinho ..Mudando repentinamente de tom, observou com voztristonha:�Contanto que ate lá não haja alguma légua debeiço..�Ah! eu não lhe disse, respondeu o alemão. Agoratoque barro devagarinho; eleanda que nem vento.Pareceu o animal compreender, o alcance moral davitória que acabara de colher eprestes enveredou pela trilha com alento novo e atédesusada celeridade.A razão é que também daí a pouco sorvia ele,teimoso e marralheiro bicho, comosoem ser os da sua espécie, a bela água doribeirão, em que se haviam refrescadoas cavalgaduras de Cirino e de Pereira.

Vlll�OS HÓSPEDES DA MEIA-NOITE Sei, sim, sei que é noite!Xavier de Maistre, Viagem ao Redor do Meu Quarto

Não tardou muito que os dois noturnos viajantescomeçassem a ouvir os latidosfuriosos dos cães que, no terreiro de Pereira,denunciavam aproximação de gentesuspeita junto à casa entregue a sua vigilanteguarda.�Por aqui perto fica algum rancho, Mochu, avisou ocamarada; havemos enfim dedescansar hoje .. Mas, que gritaria faz a

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cachorrada!... São capazes de nosengolir antes que venha alguém saber se somoscristãos ou não... Safa! Quecanzoada!... Ó Mochu, o Sr. deve ir na frente...rompendo a marcha... � Vóce,respondeu o alemão, bate neles com cacete...�Nada, retrucou José com energia, isso não é doajuste... Quem está montado,caminhe adiante... Ainda por cima agora essa!Depois de resmonear algum tempo, exclamou:� Ah! espere, já me lembrei de uma coisa.. . Ofilho do velho é mitrado. . .E, dizendo esta palavra, de um só pulo montou naanca do cargueiro, que, aosentir aquele inesperado acréscimo de peso, paroupor instantes e com surdoronco procurou lavrar um protesto.� Juque, observou o alemão sem a menor alteraçãona voz, assim burro quebracadeira. Depois morre... e vóce tem de levar ascargas dele às costas...Quis o camarada encetar nova discussão, mas aesse tempo chegavam ao terreiro,onde o ataque furioso dos cães justificou a medidapreventiva de José, o qualentrou, todo encolhido atrás das cargas, a gritarcomo um possesso:�0 de casa! Eh! lá, gentes! Ó amigos!Aumentou a algazarra da cachorrada por tal modo,que os tropeiros de Cirino,pousados no rancho próximo, acordaram e bradaramjuntos:�Que diabo é isto? Temos matinada de

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lobisomens?Abriu-se nesse momento a porta da casa eapareceu Cirino na frente de Pereira,trazendo este uma vela que com a mão abertaamparava da brisa noturna.�Quem vem lá? clamaram os dois a um tempo.�Camarada e viajante, respondeu com voz forte esimpática o alemão,achegando-se à luz e tratando de descer dacavalgadura. Quem é o dono destacasa?�Está aqui ele, respondeu Pereira levantando avela acima da cabeça para darmais claridade em torno de si. �Muito bem,replicou o recém-chegado. Desejoagasalho para mim e para o meu criado e peçomuitas desculpas por chegar tão tarde.Aproximara-se também o José, cuidando logo, nomeio de muxoxos e pragas, de pôrem terra a carga do burrinho, o qual amarrara pelocabresto a uma vara fincada no chão.�Mas, observou Cirino, que faz o Sr. por estashoras mortas a viajar? . . .�Deixe o homem entrar, atalhou Pereira, eacomodar-se com o que achar... Pois,meu senhor, desapeie. Bem-vindo seja quemprocura teto que é meu.�Obrigado, obrigado, exclamou com efusão oestrangeiro.E, apresentando a larga mão, apertou com tal forcaas de Cirino e Pereira quelhes fez estalar os dedos.Em seguida, penetrou na sala e tratou logo de

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arranjar os objetos que trazia atiracolo, colocando-os cuidadosa e metodicamenteem cima da mesa, no meio dosolhares de espanto trocados por quantos o estavamrodeando.Na verdade, digna de reparo era aquela figura à luzda bruxuleante vela de sebo;compridas pernas, corpo pequeno, braços muitolongos e cabelos quase brancos, detão louros que eram.�Será algum bruxo? perguntou a meia voz Cirino aPereira.�Qual! respondeu o mineiro com sinceridade, umhomem tão bonito, tão bem limpo!Entrara José com uma canastra ao ombro e,descarregando-a no canto menos escurodo quarto, julgou dever, sem mais demora, declinara qualidade e importância dapessoa que lhe servia de amo.�O Sr. aqui é doutor, disse ele apontando para oalemão e dirigindo-se paraCirino...�Doutor?! exclamou este com despeito.� Sim, mas doutor que não cura doenças. É alamãolá da estranja, e vem desde acidade de São Sebastião do Rio de Janeiro caçandoanicetos e picandoborboletas...� Borboletas? interrompeu com admiração Pereira.� Acui cui! Por todo o caminho vem apanhandobichinhos. Olhem... aquele sacoque ele traz...�O meu camarada, avisou com toda a tranqüilidade

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e pausa o naturalista, é muitofalador. Os senhores tenham paciência... Ande,Juque, deixe de tagarelar! ...�Não, protestou Pereira levado de curiosidade, ébom saber com quem se lida...Então o Sr. vem matando anicetos? mas para que,Virgem Santíssima! . . .�Para quê? retrucou o camarada descansando asmãos na cintura. O patrão e eu játemos mandado mais de dez caixões todoscheinhos lá para as terras dele...�Depois o pais fica sem borboletas, respondeuCirino, num assomo de despeitadopatriotismo.�Mas, como é que o Sr. se chama? perguntouPereira, voltando-se para o alemãoque estava virado para a parede a contemplar umdesses grandes e sombrioslepidópteros, da espécie dos esfinges.�Juque, disse ele sem lhe importar a interpelação eacenando para o camarada,depressa... um alfinete, dos grandes... dosmaiores: . .�Temos história, avisou José, fazendo expressivosinal a Cirino, o Sr. vaiver...O naturalista, de posse de um comprido acúleo,fincou-o com segura e adestradamão bem no meio do inseto, o qual começou abater convulsamente as asas e girarem torno do centro a que estava preso.�A pita! A pita! exclamou o patrão. Vamos, Juque,Satisfez José o pedido, depois de abrir uma

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malinha, onde ia estavamenfileirados e espetados vinte ou trinta bonitosbichinhos.� É uma satúrnia .. e não comum, murmurou oalemão fisgando num pedaço de pitao novo espécime, sobre o qual derramou algumasgotas de clorofórmio, de umvidrinho que sacou dum dos muitos bolsos dasobrecasaca.�O Sr. é viajante zoologista, não é? perguntouCirino, depois que viu terminada a operação.O interrogado levantou a cabeça com surpresa erespondeu todo risonho:� Sim, senhor; sim, senhor! Como é que o Sr. osoube? Viajante naturalista, simsenhor! Eu vejo que o Sr. e muito instruído... Muitobem, muito bem! Muita instrução!E, abrindo uma carteira de notas, escreveu logoumas linhas tortuosas.�Ah! este também e doutor, disse Pereira comcerto orgulho por hospedar em suacasa sabichão de tal quilate.�Oh, doutor? doutor!? Muito bem, muito bem.Doutor que curra ?�Sim, senhor, respondeu com gravidade o próprioCirino.� Ah! . . . Ah! muito bem.Pereira, porém, voltara à carga.�Mas, como é que o Sr. se chama?�Meyer, respondeu o alemão, para o servir.�Mala ? perguntou o mineiro.� Não, senhor, Meyer; sou da Saxônia, daAlemanha.

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�Isto deve ser o mesmo que Mala na terra dele,observou Pereira, abaixando umpouco a voz.O camarada José, no entretanto, trouxera paradentro todas as malas e canastrase sem-cerimônia alguma intrometeu-se naconversação.�Este Mochu, disse, vem de muito longe só porcausa destas historias debarboletas, e com o negócio ganha coco grosso...Quanto a mim� Juque, atalhou Meyer com fleuma, vai bota osanimais no pasto.�Não, disse Pereira, solte-os no terreiro até raiar odia, roerão o queacharem; há por aí muito resto de milho nossabugos...�Pois é o que fiz, declarou o camarada; mas comolhes dizia, sou carioca do Riode Janeiro, chamo-me José Pinho e venho de bemlonge acompanhando este alamão,que é um homem muito de bem.� É verdade? indagou Pereira, olhando para Meyer.Este esbugalhou mais os olhos e confirmou tudocom um sinal gutural que ecoou emtoda a sala.�Ele o que tem, continuou José é que é muitoteimoso. Eu lhe digo, sempre:Mochu, isto de viajar de noite é uma tolice e umacanseira à-toa... Qual! pensalá no seu bestunto que assim é melhor. Também agente anda por estas estradasafora como se fosse alma do outro mundo a penar...

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algum currupira... ou boitatá... Cruzes!�Pois, Sr. Mala, disse Pereira, tome posse destasala, e faça de conta que ésua... Se quiser uma rede...�Muito obrigado, muito obrigado! . minha cama écanastra. Não se incomode...�Amanhã então conversaremos, concluiu Pereira,esfregando as mãos de contente.Prometia-lhe na verdade a companhia boas ocasiõesde dar largas à volubilidade,sobretudo com o tal José Pinho, filho da Corte doRio de Janeiro e, pelo queparecia, tagarela de grande força.�Assim, pois, disse Pereira, durmam bem orestante da noite.E abriu a porta para se retirar.�Ui! exclamou ele olhando para o céu. Doutor, jápassa muito da meia-noite...Com a breca, o Cruzeiro está virando de uma vez. ..Cirino, que tornara a deitar-se, com presteza calçouas botas e tomou unspapeizinhos que de antemão preparara e pusera aum canto da mesa.�Não faz mal, disse, já estou com tudo pronto eem tempo havemos de dar oremédio. Vá o Sr. deitar um pouco de café num pirese acorde sua filha, casoesteja dormindo, como é muito natural depois dosuador.Saiu então Pereira, levando a vela e, acompanhadode Cirino, deu volta à casa

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para buscar a entrada dos aposentos interiores.Ficaram, pois, o alemão e seu criado em completaescuridão; ambos, porém, jáestirados a fio comprido, um em cima das canastrastendo por travesseiro roliçamaleta, outro sobre o ligal aberto e estendido nomeio do aposento.�O Mochu, perguntou José, que mastigava qualquercoisa, está já ferrado?�Ferrado? replicou Meyer levantando a cabeça. Queé isto agora?�Pergunto se já pegou no sono?�Pois, Juque, se eu falo, como é que posso estardormindo?�Então não quer petiscar?�Comer, não é?�Esta visto.�Oh! Se tivesse!... Pensava agora nisso...�Pois eu estou manducando... Quer um bocadinho?�Que é que vóce me da?�Rapadura com farinha de milho... Está deveras depatente!... Gostoso comotudo...�Então, Juque, passe-me um pouco.Levantou-se o ofertante com toda a boa vontade eàs apalpadelas começou aprocurar a cama do patrão, o que só conseguiudepois de ter esbarrado na mesa enumas cangalhas velhas atiradas a um canto dasala.Afinal agarrou num dos pés do naturalista, a quementregou uma nesga de rapadurae uns restos de farinha embrulhados em papel,

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pitança mais que sóbria, que foidevorada com satisfação pelo bom do saxônio.

IX � O MEDICAMENTO Não tendes que labutar com doentemuito grave, e eis o serviço que de vós esporo...Hoffmann, A Porta Entaipada Quem me poderá dizer por que meparece tão duro o leito?.. Por que passei esta noite que seme figurou tão longa, sem gozar um momento de sossego?...Surge a verdade: em meu seio penetraram as agudas setas doamor.Ovídio, Elegia

Quando Cirino entrou no quarto de Inocência, jáestava ela acordada. Sentara-seo pai à cabeceira da cama, a cujos pés se acocoraraTico, o anuo, sobre umagrande pele de onça.�Então, perguntou o médico tomando o pulso àmimosa doente, como se sente?�Melhor, respondeu ela.�Suou bastante?�Ensopei três camisas.�Muito bem... Agora a senhora esta com a pelefresquinha que mete gosto. Istode sezões, não e nada, se a gente acode a tempo eo sangue não tem maus humores.

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Mas quando tomam conta do corpo, nem o democom elas pode. Que é do café? pediuele em seguida a Pereira.�Já vem já... Homem, vou eu mesmo buscá-lo, lá àcozinha. A Maria Conga estáficando uma verdadeira lesma. Venha paraLevantando-se então da cadeira, indicou-a a Cirino,a quem fez sentar antes de sair.Ficou este, pois, ao lado da menina e, como sobre olindo rosto batesse de chapaa luz colocada numa prateleira da parede, pôs-se acontemplá-la com enleio evagar, ao passo que da sua parte o anão lhedeitava olhares inquietos e algosombrios.Pousara Inocência a cabeça no travesseiro e, paraocultar a perturbação de sever tão de perto observada, fingia dormir. Pelomenos tinha as grandes pálpebrascerradas e o rosto sereno; mas arfava-lheapressado o peito e, de vez em quando,fugaz rubor lhe tingia as faces descoradas.Pereira tardava; e Cirino com os olhos fixos, afisionomia meditativa e um poucode palidez, que denunciava a intima comoção, nãose fartava de admirar a belezada gentil doente.Uma vez, entreabriu os olhos e a medo atirou umolhar que se cruzou com o domancebo, olhar rápido, instantâneo, mas que lherepercutiu direito ao coração elhe fez estremecer o corpo todo.Sem saber por que, batia-lhe o queixo e um arrepio

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de frio lhe circulava nas velas.�Sente mais febre? perguntou Cirino muitobaixinho.�Não sei, foi a resposta, e resposta demorada.�Deixe-me ver o seu pulso.E tomando-lhe a mão, apertou-a com ardor entre assuas, retendo-a, apesar dosligeiros esforços que para a retrair, empregou elapor vezes.Nisto, entrou Pereira. Inocência fechou compresteza os olhos e Cirino voltou-serapidamente, levando um dedo aos lábios pararecomendar silêncio.�Está dormindo, avisou com voz sumida.�Ora, disse Pereira no mesmo tom, a tal MariaConga deixou entornar acafeteira, de maneiras que precisei fazer outraporção. Demorei muito?�Não, respondeu Cirino com toda a sinceridade.�Mas agora, observou Pereira, é mister acordar apequerrucha.�Não há outro remédio.Chegou-se o pai à cama e, com todo o carinho,chamou: Nocência! Nocência! E comonão a visse despertar logo, sacudiu-a com branduraate que ela abrisse uns olhosespantados.�Apre! Que sono! disse o bondoso velho. Numinstante que fui lá dentro?!...Vamos, são horas de tomar a mezinha.Deitara Cirino sulfato de quinina no café e diluía-ovagarosamente.�Olhe, dona, aconselhou ele, beba de um só trago

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e chupe, logo depois, unsgomos de limão-doce.�Então é muito mau? choramingou a doente.�É amargo; mas num gole mecê toma isto.�Papai, recalcitrou a moça, não quero... eu nãoquero.�Ora, filhinha do meu coração, não se canhe; epreciso... Amanhã há de vocêsentir-se boa; não é doutor?�Com certeza, se tomar esta poção, assegurouCirino.�Depois, quando eu u lá à vila, hei de trazer paravocê uma coisa bonita... unslavrados, Ouviu? �Nhor-sim.�Ande, Tico, acrescentou o mineiro voltando-separa o anão, vai depressa buscarlimão-doce; na cozinha há um meio cascado.�Tome, dona, implorou por seu turno Cirino,aproximando o pires da boca daformosa medicanda.Levantou uns olhos súplices e, agarrandoresolutamerte o remédio, bebeu-o todode um jacto.Depois deu um suspiro de enjôo e ficou com oslábios entreabertos, à espera queo adocicado sumo do limão lhe tirasse o amargor domedicamento.�Então, exclamou Pereira, era maior o medo que acoisa em si! Você tomou a dosenuma relancina.�Amanhã de manhã, ou melhor, hoje demadrugada, temos que engolir outra dose,.declarou Cirino. Depois, a dona, poderá levantar-se.

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�Ainda outra? protestou Inocência com gesto deamuo.�Nhã-sim; é de toda a percisão, replicou o amorosomédico, modificando pelasuavidade da voz a dureza das prescrições.�Decerto, corroborou também Pereira.�Depois deve mecê deixar de comer carne fresca,ervas, ovos ou farinha de milhopor um mês inteiro, e de provar leite por muitotempo. Há de sustentar-se só decarne-de-sol bem seca, com arroz quase sem sal epor cima tomará café com muitopouco doce.�Fica ao meu cuidado, asseverou Pereira, olharpara o rejume .�Agora, durma bem e não se assuste de lheaparecer zoeira nos ouvidos e ate dese sentir mouca. Isto é da mezinha; pelo contrário,é muito bom sinal.�Estes doutores sabem tudo, murmurou Pereira,dando ligeiro estalo com alíngua.Não se descuidou Cirino, antes de se retirar, denovamente tomar o pulso e, àconta de procurar a artéria, assentou toda a mão nopunho da donzela,envolvendo-lhe o braço e apertando-o docemente.Saiu-se mal de tudo isso; porque, se tratava dacura de alguém, para siarranjava enfermidade e bem grave.Com efeito, de volta à sala dos hóspedes, não podemais conciliar o sono e, semque houvesse conseguido fruir um só momento de

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descanso, viu ralar a aurora.Parecia-lhe que o peito ardia todo em chamas asubirem-lhe às faces,abrasando-lhe o pensamento.Aquele venusto rosto que contemplara a sós;aqueles formosos olhos, cujo brilhoa furto percebera, aquele colo alabastrino que amedo se descobrira, aquelasindecisas curvas de um corpo adorável, todo aqueleconjunto harmonioso eencantador que vira à luz de frouxa vela, fatalmenteo lançavam nesse pélagosemeado de tormentos que se chama paixão!Efeitos de tão temível mal já ia o mísero sentindo.Inquieto se revolvia (fatovirgem!) no duro leito, ao passo que a respiraçãoisocrônica e ruidosa docompanheiro de hospedagem, o alemão Meyer,respondia ao sonoro ressonar dogárrulo José Pinho.

X�A CARTA DE RECOMENDAÇÃO Aquele bom velho, cuja benévolahospitalidade não tinha limites, Julgara do seu dever tratardo melhor modo possível a Waverley, tosse ele oúltimo camponês saxônio... Mas o título de amigo deFergus fê-lo considerar como precioso depósito,merecedor de toda a sua

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solicitude e da mal� atentaobsequiosidade.Walter Scott, Waverley

Quando Meyer abriu os olhos, já achou Cirino de pé,arranjando uma canastrinha.�Oh! exclamou ele em tom de louvor, o Sr. madrugamuito.�É verdade, replicou o outro, um tanto melancólico.�E Juque ainda dorme!... Este Juque parece maisum tatu do que um homem... Todoo dia o estou acordando...E juntando o feito ao dito, foi o pachorrento amosacudir o criado. Depois de seespreguiçar à vontade, sentou-se este no couro emque dormira, e pôs-se aesfregar com todo o vagar os olhos papudos aindacheios de sono.�Deus esteja com vossuncês, disse ele entre doisbocejos. Ora, Mochu, o Sr.acordou-me no melhor do sono. Estava sonhandoque voltara para o Rio de Janeiroe ia acompanhando uma música pelo Largo do Rocioafora. Conhece o Largo doRocio? perguntou a Cirino.�Não, respondeu-lhe este.�Xi! Que largo! Hem, Mochu?E novo bocejo cortou-lhes a descrição da louvadapraça.�Juque, exclamou Meyer coçando a barba com aralegre, o dia hoje está claro ebonito. Havemos de apanhar pelo menos umas doze

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borboletas novas.�E quanto me dá Mochu, se eu agarro vinte ecinco?�Vinte e cinco? repetiu o alemão com algumadúvida.�Sim, vinte e cinco... e até mais, vinte e seis.Diga, quanto me dá?�Oh! eu dou a vóce dois mil-réis.�Está dito, fecho o negócio. Eu cá sou assim, pãopão, queijo queijo; tão certocomo chamar-me José Pinho, seu criado, carioca denascimento e batizado naFreguesia da Lagoa, lá para as bandas do Broco,e...�Agora, interrompeu Meyer, vá buscar água paralavar a cara, e tire sabão epente na canastra.�Olhe, Sr. doutor, continuou o camarada sentadosempre e voltando-se para olado de Cirino, esta minha vida é levada deseiscentos mil diabos. Nós saímos doRio já há mais de dois anos; não é, Mochu?�Vinte e três meses, retificou Meyer.�Pois bem; desde esse tempo estamos a viajarcomo se fosse penitencia deconfissão. E não é só isso, não, senhor. Todos osdias ando pelo menos noveléguas correndo aqui e acolá, dando voltas, caindo,atrás dos bichos voadores...� Juque! tentou atalhar Meyer, olhe...�Pois é o que lhe digo, prosseguiu José Pinho.Tenho hoje uma raiva daquelasporcarias todas... Nem sei por que, Nosso Senhor

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Jesus Cristo foi criar estasúcia de criaturas sem préstimo... Enfim, Ele équem sabe. . . Quanto a mim, sepudesse, atacava fogo em todas as lagartas,porque da lagarta é que nascem essesanicetos, que estão enchendo mundos... Mas, veja,Sr. doutor, lá na terra destehomem,� (coitado, é bem bonzinho e me estimamuito) ! � valem esses bichosmais do que ouro em pó... Também, se o Mochu nãogostasse de mim, havéra de sermuito ingrato... Outro como eu não encontra mais,não, senhor... Tenha a santapaciência .. não, senhor, isto é o que lhe possoafiançar.No meio desse fluxo de palavras, Meyer fora empessoa procurar na canastra opente e o sabão.Mostrando os objetos ao falador, ordenou comenergia:�Cale a boca, Juque, cale a boca, tagarela! Vábuscar água já; senão... nãolevo vóce ao mato hoje.Levantou-se de pronto José Pinho e meio aresmungar saiu, tomando uma dascanastras.�Esse camarada, disse Meyer depois de algumsilêncio e para explicar o seuprocedimento, é uma pessoa muito boa... fiel einteligente. Mas... fala demais.É-me precioso, porque apanha borboletas commuito talento e jeito.Entrando José Pinho e ouvindo o final do elogio,

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depôs, com ar de graveimportância, a bacia no chão.Diante dela, e depois de tirar do nariz os óculos,colocou-se logo Meyer, ouantes acocorou-se e, em relação ao tronco, tãocompridas eram as suas pernas,que, inclinado por sobre a água, lhe ficava a cabeçaà altura dos joelhos.Levou a ablução uns largos minutos e foi com oscabelos grudados ao casco eescorrendo água que ele se levantou, justamentequando entrava Pereira.Nesse momento, assumira o tipo daquele homemproporções do mais pasmosogrotesco; entretanto, tão vária é a apreciação decada um, tão caprichoso ojulgamento individual, que o mineiro, acercando-sede Cirino, disse baixinho:� Vosmecê já reparou, amigo, como este estranja éfigura bonita? Tão arco! eque olhos que tem!... As mulheres hão de perder acachola por causa destebicharrão... Então, Sr. Mala, continuou interpelandoem voz alta o seu espécimede beleza masculina, que tal, passou aqui a noite?�Oh! Sr. Pereira!... Desculpe, se o não vi... Estavasem óculos. Já lherespondo... espere um bocadinho.E ainda todo molhado, correu a tomar os óculos,que assentou em cima dossalientes lúzios.�Agora, muito bem... Dormi, meu bom amigo, comoquem não tem pecados...

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�Então, observou Cirino, quase mau grado seu,tenho-os eu; porque, dameia-noite para cá, não pude mais pregar olho...�Isto e volta de algum namoro, replicou Pereira,batendo-lhe com força no ombroe rindo-se.Cirino descorou ligeiramente.� Sim, vosmecê é moço... deixou lá por Minasalgum rabicho, e de vez em quandoo coração lhe comicha... Está na idade...�Pode muito bem ser, apoiou Meyer com gravidade.�Não é? insistiu Pereira. Ora, confesse... não lhefica mal... Isso é volta deenguiço...�Juro-lhes, balbuciou Cirino.�Oh! se é, confirmou José Pinho, que julgou devermeter o bedelho na conversa,eu no Rio de Janeiro... Negócio de salas, é de porum homem tonto. Não lhesconto nada, mas uma vez...Voltou-se o alemão para ele com calma, e,interrompendo-o:�Juque, vá ver onde estão burrinhos e não bote suacolher, quando gente brancaestá falando com o seu patrão.E, como o camarada quisesse retorquir:�Ande, ande, verberou sempre sereno, discussãonunca serviu para nada.Deu José meia dúzia de muxoxos abafados e foiembora, praguejando entre dentes.Novamente supôs Meyer dever desculpá-lo.�Bom homem, disse, bom homem... porém falaterrivelmente!

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�Mas agora me conte, perguntou Pereira com ar dequem queria certificar-se decoisa posta muito em dúvida, deveras o senhoranda palmeando estes sertões parafisgar anicetos?�Pois não, respondeu Meyer com algumentusiasmo; na minha terra valem muitodinheiro para estudos, museus e coleções. Estouviajando por conta de meugoverno, e já mandei bastantes caixas todascheias... E muito precioso!�Ora, vejam só, exclamou Pereira. Quem havéra dedizer que até com isso se podebichar! Cruz! Um homem destes, um doutor, andarcorrendo atrás de vaga-lumes evoadores do mato, como menino às voltas comcigarras! Muito se aprende nestemundo! E quer o senhor saber uma coisa? Se eu nãotivesse família, era capaz deir com vosmecê por esses fundões afora, porquesempre gostei de lidar compessoas de qualidade e instrução... Eu sou assim...Quem me conhece, bem sabe.Homem de repentes... Vem-me cá uma idéia muitoestrambótica às vezes, masembirro e acabou-se; porque, se há alguémesturrado e teimoso, é este seucriado... Quando empaco, empaco de uma boavez... Fosse no tempo de solteiro, eeu me botava com o senhor a catar toda essabicharada dos sertões. Era capaz deir dar com os ossos lá na sua terra... Não me olhepasmado, não... Isso lá eu

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era... Nem que tivesse de passar canseiras comoninguém... O caso erameter-se-me a tenção nos cascos... Dito e feito;acabou-se.. Fossem buscar oremédio onde quisessem... mas duvido que oachassem.�Como vai a doente? perguntou distraidamenteCirino, cortando aquela catadupade palavras.�Ora estou muito contente. Já tomou nova dose, eparece quase boa. Está comoutra feição. O Sr. fez um milagre...�Abaixo de Deus e da Virgem puríssima, concordouCirino com toda a modéstia.�O Sr. não cura? perguntou Pereira a Meyer.�No senhor. Sou doutor em filosofia pelauniversidade de Iena, onde...�Isso é nome de bicho? atalhou o mineiro.�No senhor. É uma cidade.�Ninguém diria... Pois, Sr. Mata, continuou Pereiraapontando para Cirino, aliestá um com quem moléstias não brincam.�Ah! rouquejou o alemão abrindo ainda mais osolhos. Estimo muito conhecê-locomo notabilidade... Nestes lugares aqui é muitoraro...�Se é.! exclamou Pereira. Felizmente passou por cánem de propósito, para pôrde pé a menina... uma filha minha... Caiu-me atalho de foice e...Não pôde Cirino furtar-se a um movimento devanglória. Com ar grave interrompeu:�Não fale nisso, Sr. Pereira; o caso era simples.

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Febre das enchentes... nãovale quase nada. Vi logo o que era de urgência; umsimples suador, duas ou trêsdoses de sulfato de quinina... e ficou tudo sanado...E simplicíssimo... Oestômago não estava sujo... não havia necessidadede vomitório...Ouvira Meyer estas indicações terapêuticas com osolhos muito fitos em quem asdava: depois, voltando-se para Pereira, disse comum aprobatório aceno de cabeça:�Pom médico! Com médico!Desse momento em diante, votou Cirino ao alemãoa mais decidida da simpatia; ePereira, presenciando o congraçamento daquelesdois homens, de si pára siilustres e incontestáveis sabichões, sentiu-se felizpor abrigá-los a um tempoem sua humilde vivenda.�Então, disse o mineiro voltando à questão dasborboletas, com o que seugoverno paga-lhe bem, não Sr. Maia?�Suficientemente... demais, todas as autoridadesdeste belo pais muito meajudam. Tenho muitos ofícios... cartas derecomendação. Olhe, quer ver? Juque,Juque! chamou Meyer, sem reparar que o criado hámuito se fora do quarto,dê-me... É verdade, foi levar os burrinhos à água. ..Não faz mal... Mostro-lhe já tudo...�E, procurando entre as cargas uma malinhacoberta de pano impermeável, abriu-ae tirou um maço de cartas cuidadosamente

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numeradas, com fitas de diversas cores.�Isto é para Miranda, em Mato Grosso. Isto paraCoxim, Cuiabá... para Poconé,Diamantina... isto são cartas cujos donos nãoencontrei, e que hão de voltarpara as pessoas que as escreveram.�E são muitas? perguntou Pereira.� Três ou quatro. Vejamos... uma é para o Sr. JoãoManuel Quaresma, noPitangui; esta, para o Sr. Martinho dos SantosPerreira, em Piumi...�Que é? perguntou o mineiro levantando-se de umpulo e mostrando muitaadmiração. Leia outra vez... leia por favor...Meyer obedeceu.�Mas este nome é o meu! exclamou Pereira. Estacarta então é para mim...�Hu, hu! gaguejou o alemão boquiaberto. É muitocurrioso isto!�Sou eu, sou eu mesmo! continuou o mineiroabrindo os diques à volubilidade.Está claro, claríssimo!... Quando me escreveram,pensavam que eu ainda morava láem Piumi. Pois, se nunca contei a ninguém em queburaqueira me vim meter... Abraa carta sem susto... Oh! Senhora Sant�Ana, que diahoje! Quem diria? Uma carta!Uma carta nestas alturas! Pode ler, Sr. Maia... Estoudoido por saber quem sedeu ao trabalho de me escrever... Martinho dosSantos Pereira, de Piumi... soueu! Que dúvida: não há dois. Veja só o nome... peloamor de Deus, o nome de quem

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me direge a carta.Rompeu o alemão com alguma dúvida e escrúpulo oselo; correndo com os olhos alauda escrita, procurou a assinatura epausadamente leu �Francisco dos SantosPereira�.�Gentes! bradou o mineiro no auge da alegria, meuirmão... o Chiquinho!... E euque o fazia morto e enterrado!... Nosso Senhor oconserve por muitos anos!... OChiquinho!... Já se viu coisa ansim?... Como seanda neste mundo, hem, Sr.Cirino? Quem havéra de dizer que este homem, queaqui chegou ontem por acaso ealta noite, havia de trazer na canastra uma carta deum irmão que não vejo hámais de quarenta anos?!... Ora esta!... São voltasdeste mundo... As pedras seencontram... Foi em 1819... não, em 20... Masdepressa... leia a carta.. vamosver o que me diz o Chiquinho... Da família passavapor ser o de mais juízo;também era o mais velho de todos nós... ORoberto, o caçula... Seja o senhormuito bem-vindo nesta casa... Depois de tantosanos, trazer-me noticias da minha gente!Cortou Meyer aquele movimento de efusão queprometia ir longe, começando a lercom todo o vagar ou, melhor, a soletrar a carta,cujos garranchos, que nãoletras, por vezes se viu obrigado a encostar aosolhos para poder decifrar.�Martinho, dizia a despretensiosa epístola, dirijo-te

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estas mal traçadas linhassó para saber da tua saúde e dizer que o portadordesta um senhor de muitaleitura e vai para os sertões brutos, viajando eestudando países e povos.Veio-me do Rio de Janeiro muito recomendado. Peçoque o agasalhes, não como a umtransuente qualquer, mas como se fosse eu empessoa, teu irmão mais velho echefe da nossa família ... ��Pobre mano! exclamou Pereira meio choroso.�E homem, continuou Meyer, de bastante criação.Adeus, Martinho. Eu estouestabelecido na Mata do Rio, numa fazendola.Tenho cinco filhos, três machos eduas famílias, estas casadas, e que me deramnetos; já faz bastante tempo. Nãoestou muito quebrado de forças. H§ mais de oitoanos que não tenho notíciastuas. Soube que o Roberto tinha morrido noParanan...��Roberto?... Coitado do Roberto! atalhou Pereiracom voz angustiosa.E repentinamente, representando-lhe a memória ostempos da infância,arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas.�Sem mais aquela concluiu Meyer, adeus. Felicidadee saúde. Teu irmão, Franciscodos Santos Pereira�.�Deveras, disse o mineiro depois de breve silêncio,adiantando-se para o alemãoe apresentando-lhe a destra aberta, o Sr. me deuum fartão de alegria. Toque

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nesta mão e, quando ela se levantar para bulir numsó cabelo de sua cabeça ou dealguém da sua família qualquer que seja o agravoque me possam fazer, seja elalogo cortada por Deus, que nos está ouvindo.�Obrigado, Sr. Pereira, respondeu com animação ooutro, retribuindo o aperto demão e corroborando-o com um concerto degarganta.�Sim, senhor, continuou o mineiro. Esta carta vale,para mim, mais que umaletra do Imperador que governa o Brasil. É o que lhedigo, Sr. Maia...�Meyer, corrigiu o alemão apoiando com força naúltima sílaba, Meyer.�Ah! é verdade. É preciso traduzir Meyer, Meyer.Agora já atinei com a coisa.Mas como ia lhe dizendo, esta casa é sua. Meuirmão, o meu irmão mais velhodeu-me ordem que eu o recebesse como se fosseele mesmo em pessoa, o Chico;...acabou-se.O Sr. é como se fosse dos meus. Não há que ver, éo que ele quer. Entendi logo;o mais é ser multo bronco e, com o favor de Deus,não me tenho nesta conta. OSr. ponha e disponha de mim, da minha tulha, dasminhas terras, meus escravos,gado... tudo o que aqui achar. Parta e reparta..Quem está falando aqui, não émais dono de coisa nenhuma;... é o Sr.... Meu irmãome escreveu, é escusadopensar que não sei respeitar a vontade de meus

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superiores e parentes. É como serecebesse uma ordem do punho do Sr. D. Pedro n,filho de D. Pedro I, que pinchouos emboabas para fora desta terra do Brasil elevantou o Império nos campos doIpiranga, lá para os lados de São Paulo dePiratininga, onde houve em seu tempocolégio de padres e fradaria grossa, e donde osmamalucos saiam para ir poresses mundos afora bater índios brabos e caçaronças, botando bandeiras até nacosta do Paraguai e no Salto do Paraná, tantoassim que deram nas reduções etrouxeram de lá uma imundície de gente amarrada,por sinal que muitos amolaram acanela em caminho, e só chegaram uns cento etantos, tão magros que...Enfiava Pereira todas estas frases comsurpreendedora rapidez, ao passo queMeyer o contemplava extático, à espera que atorrente de palavras lhe dessetempo e ocasião de exprimir algum vocábulo deagradecimento.Só, porém, minutos depois, e a custo, é que elepronunciou um áspero eretumbante:�Obrigado!E acrescentou em seguida:�Mas o senhor fala que nem cachoeira. E nãocansa?�Qual! replicou o mineiro com ufania. A gente daminha terra é de seu naturalcalada; eu, não; mesmo porque fui criado em

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povoados de muita civilidade...Tomando esse novo tema, começou novamente adiscorrer, mostrando visívelcontentamento por achar na estimável pessoa do Sr.Guilherme Tembel Meyer umouvinte de força, incapaz de pestanejar e cujafixidez de olhos era provaevidente de que tomava interesse por todos osassuntos possíveis de conversação.

XI�O ALMOÇO Comam e bebam: nada decerimônias comigo. Minhas casa e franca; eu também. Façam provisãode alegria e de mim disponham sem constrangimento.Plauto. Miles Gloriosus

Levantou-se de repente Cirino da marquesa em quese sentara.�Tenho vontade de amanhã seguir viagem...�Quê, doutor? protestou Pereira. Partir já? issonunca... Vosmecê ainda nãocurou de todo minha filha. Pago-lhe todos osprejuízos da sua estada aqui... sefor preciso.�Oh! Sr. Pereira, reclamou por seu turno o jovem,isso quase me ofende...�Desculpe-me, e muito; mas, antes de duassemanas, não o deixo sair daqui.�Porém...�Doentes não lhe hão de faltar. A minha rancharia

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vai ser visitada como sefosse casa de presepe, e o Sr. não poderá dar vazãoaos que o vierem procurar.Olhe, hoje mesmo mandei avisar o Coelho, e daquia pouco está ele cá, rente comopão quente. Atrás do primeiro, virá uma chusma dosmeus pecados... Então querdeixar Nocência como ainda esta?...�Verdade é, balbuciou Cirino.�Pois então? Nem pensar nisso é bom. Deixe tudopor minha conta; vosmecê há deaqui arranjar os seus negócios.�Já que o senhor o diz... Eu tinha receio de vexá-lo. Uma vez que até cá venhamdoentes...�Hão de vir, esteja sossegado...�Ficarei, decidiu Cirino, quanto tempo for do seuagrado.�Ora, muito que bem, exclamou Pereira esfregandoas mãos com sincerasatisfação, estou como quero. Quanto ao Sr. Maia..,Meyer, quero dizer, este háde criar raízes nesta casa...�Isso também não: tenho tempo marcado pelomeu governo...�Bem, bem; mas em todo caso, fará uma boatemporada conosco. É pena que oManecão não chegue, porque apressávamos ocasório, e arranjávamos uma festançacomo nunca se viu nestes matarrões... Mas estouaqui a dar com a língua nosdentes, sem pensar que os nossos estômagos aindaesperam sua matula. O almoço

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não pode tardar; é um pulo só... Se consentem vouver 1á dentro.Ao dizer estas palavras, saiu da sala, voltandopouco depois acompanhado deMaria, a velha escrava que trazia a toalha da mesae a competente cuia defarinha.� Á mesa! gritou Pereira. Almoço hoje comvosmecês. Sr. Meyer, o senhor comerádora em diante comigo e com a menina, lá nointerior da casa; ouviu?E, voltou-se para Cirino.�Bem sabe, explicou logo, como se fosse oChiquinho.Depois de pronta a mesa, sentaram-se os trêsalegremente.�Olhe, Sr. Meyer, disse o mineiro servindo oalemão, isto e feijão-cavalo e domelhor. Misture-o com arroz e ervas; deite-lhe unssalpicos de farinha...Começou o naturalista a mastigar com a lentidão deum animal ruminante,interrompendo de vez em quando o morosoexercício para exclamar:�Delicioso, com efeito! Muito delicioso.Comia Cirino pouco e em silêncio.�Na Alemanha, observou Meyer contemplando umgrão de feijão, a maior fava nãochega a este tamanho. Aqui a fava de lá teriapolegada e meia pelo menos. Umalmoço, assim, havia de custar na Saxônia doistáleres, ou pelo câmbio quedeixei no Rio de Janeiro, dois mil e quinhentos

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réis...Interrompeu-o Pereira com gesto cômico.�Dois mil e quinhentos? Ora, que terra essa! Comoé que se chama?� Sac-sônia, respondeu o alemão com gravidade.�Saco-sonha! exclamou Pereira. Não conheço...Mas, então lá muita gente há deandar a morrer de fome...�Pelos últimos cálculos, replicou Meyer com váriaspausas durante as quaisintroduzia enormes colheradas da mistura que lheaconselhara o anfitrião, ésabido que em Londres morrem no inverno oitopessoas à míngua, em Berlim cinco,em Viena quatro, em Pequim dose, em Iedo sete,em...�Salta! atalhou Pereira exultando de prazer, entãoviva cá o nosso Brasil! Neleninguém se lembra até de ter fome. Quando nadase tenha que comer, vai-se nomato, e fura-se mel de jataí e manduri, ou chupa-semiolo de macaubeira. Isto écá por estas bandas; porque nas cidades, bastaestender a mão, logo chovemesmolas... Assim é que entendo uma terra... o maisé desgraça e consumição . . .�Decerto! corroborou o alemão, o Brasil é um paísmuito fértil e muito rico. Dácafé para meio inundo beber e ainda há de dar paratodo o globo, quando tivermais gente... mais população...�Bem eu sempre digo, acudiu Pereira tocando noombro de Cirino e deitando-lhe

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uns olhos de triunfo. Lá fora é que nos conhecem,nos fazem justiça... Não acha,patrício? Homem, agora reparo ...vosmecê está tãocalado!... meio casmurro, queé isso? sempre aquele negócio?De fato, Cirino, depois que ouvirá o convite a Meyerpara conviver no interiorda casa de Pereira, tornara-se sombrio, inquieto,meditabundo. O corpo aliestava, mas a sua imaginação vigiava zelosa oquartinho onde repousava aquelamenina febricitante, tão bela na sua fraqueza epalidez enferma.�Se são mulheres, ponderou Pereira, deixe-sedisso; não há maior asneira... Éfazenda que não falta.No meio dos exercícios mandibulares, julgou Meyerque o seu hospedeiroconsiderava o sexo feminino do ponto de vistameramente estatístico e acreditouconveniente assentar melhor a idéia, um tantovagamente aventada.�Na raça eslava, disse dogmaticamente, aproporção é de duas mulheres para umhomem; na germânica, há aproximadamentenúmero equivalente, na latina de doishomens para uma mulher. Na França, a proporçãopara o lado masculino é de...�Mas o senhor contou? interrompeu Pereira. Deixe-lhe dizer uma coisa: eu cá nãoengulo araras...�Ni eu, afirmou Meyer com alguma surpresa eenergia, nem sei como o senhor me

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vem falar nessas aves agora. . . Se as consideracomo caça, deve saber que ostrepadores têm a carne dura, preta e...Riu-se Pereira do equívoco e, explicando-o,continuou a discutir com o seuinterlocutor, que não discrepava uma linha dos seusprincípios de método eescrupulosa polidez.�Pode o senhor falar um ano inteiro, disse omineiro para concluir; mas quantoa mim, não entendo patavina das suas contas ejigajogas. Quem me tira databuada, bota-me no mato... E agora, vamosagradecer a Deus Nosso Senhor JesusCristo o ter-nos dado esta comida, ainda queinsuficiente e mal temperada.E, unindo o exemplo à palavra, levantou-se e, demãos postas ao peito, orou emvoz baixa com unção, no que foi imitado pelos doishóspedes.�Esteja convosco o Senhor, disse ao terminar, emvoz alta, persignando - se.�Amém, responderam Cirino e Meyer.�Agora, anunciou o mineiro saindo da mesa, voudar um giro pela minha roga,onde estão na capina três negros cangueiros, umdos quais é o meu fazendeiro;depois, hei de visitar uns conhecidos meus,avisando-os da sua chegada, doutor.Ah! acrescentou todo desfeito em amável sorriso,falta-lhe mostrar minha filha,Sr. Meyer.�Sua filha! exclamou o alemão. Então tem filhos?

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�Sim, senhor. Não se lembra que o seu vulto é o domano Chiquinho? Pois então?Que maior prova lhe posso dar de confiança eamizade?... Não é verdade, Sr.Cirino?�Sem dúvida, balbuciou a custo o mancebo.�Minha filha chama-se Nocência e só hoje é que selevantou da cama... Estevedoentinha... Assim mesmo, não sei se as maleitasa deixaram... O corpo é àsvezes caroável dessas malditas e...�Isto está ao meu cuidado, atalhou Cirino comalguma pressa. Ainda ao meio-diahá de tomar quina...�Vosmecê faça o que for melhor... Quer vir, Sr.Meyer?�Pois não! pois não! respondeu amavelmente oalemão.� É a única pessoa da família que tenho aqui, alémde um marmanjão que estáagora na carreira por essas estradas, agenciando avida . . . Então, vamos!Venha também, continuou ele voltando-se paraCirino, um cirurgião é quase decasa.Saíram, pois, os três. Pereira na frente, seguiu ooitão da direita, e, abrindouma tranqueira do cercado dos fundos, entrou pelacozinha, onde a velha pretaConga estava lavando pratos e arrumando louçanuma prateleira.

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XII � A APRESENTAÇÃO Quem, porém, mostrava maissurpresa o admiração era Sancho Pança. Nunca, em dias de sua vida,vira perfeição Igual.Cervantes, Dom Quixote, CXXIX Ao bálsamo, fazem as moscas. quenele morrem, perder a suavidade do perfume. Umaparvoíce, ainda que pequena e de pouca dura, da motivo a não se terem conta nem sabedoria nem glóriaEclesiastes, X

Depois de atravessarem um quarto bastante escuro,chegaram os visitantes a salade jantar, vasto aposento ladrilhado, mas semforro, a um canto do qual estava afilha do mineiro, mais deitada do que sentada numaespécie de canapé de taquara.Tinha os pés sobre uma bonita pele de tamanduá-bandeira, onde se acocorara,conforme o hábito, o anão a quem Pereira chamaraTico.Ao ver chegar tanta gente, abriu a formosa meninauns grandes olhos de espanto;quis toda enleada erguer-se, mas não pôde e,corando ligeiramente, teve como queum delíquio de fraqueza.Aproximara-se logo Cirino com vivacidade.�A dona, disse ele para Pereira, esta tão fraca quemete do.

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Chegou-se o pai juntamente com Meyer e, tomandoas mãos da filha, perguntou-lhecom voz meiga e inquieta:�Sente-se pior, meu benzinho?�Nhor-não, respondeu ela.�Pois então!... t: preciso não entregar o corpo àmoleza... Abra os olhos...Olhe... esta aqui este homem (e apontou paraMeyer) que é alamão e trouxe umacarta do tio de mecê, o Chico, lá da Mata do Rio.Quero mostrar que, para mim,vale tanto como se fosse esse próprio parente tão anós chegado. Por isso é quevenho apresentá-lo...Ela nada articulou.�Vamos, diga... Tenho muito gosto em lheconhecer... diga.Com vagar e acanhamento, repetiu Inocência estaspalavras, ao passo que Meyerlhe estendia a mão direita, larga como umabarbatana de cetáceo, e franca como oseu coração.�Gosto, muito gosto tenho eu, disse ele com trêsou quatro sonoros arrancos degarganta. Só o que sinto é vê-la doente... Mas odoutor não nos deixará ficarmal; não é, Sr. Cirino?...E apoiou esta pergunta com um hem? que ecoou portoda a sala.�A senhora, respondeu o interpelado, precisariatomar por alguns dias um poucode bom vinho do Porto, em que se pusesse casca dequina do campo... Mas, onde

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achar agora vinho? Só na Vila de Sant�Ana . . .�Vinho? perguntou Meyer.�Sim.�Vinho do Porto?�Melhor ainda.�Pois tudo se arranja, na minha canastra tenhouma garrafa do mais superfino ecom a maior satisfação a ofereço à filha do meupom amigo o Sr. Pereira.�Oh! Sr. Meyer, agradeceu este com efusão, nãosabe quanto lhe f ico . . .�Qual! não tem obrigação, não, senhor. Além domais, sua filha é muito bonita,muito bonita, e parece boa deveras... H§ de terumas cores tão lindas, que eudaria tudo para vê-la com saúde...Que moça! . . . Muito bela!Estas palavras que o inocente saxônio pronunciaraex abundantia cordisproduziram extraordinário abalo nas pessoas que asouviram.Tornou-se Pereira pálido, franzindo os sobrolhos eolhando de esguelha para quemtão imprudentemente elogiava assim, cara a cara, abeleza de sua filha;Inocência enrubesceu que nem uma romã; Cirinosentiu um movimento impetuoso,misturado de estranheza e desespero, e, lá da suapele de tamanduá-bandeira,ergueu-se meio apavorado o anão.Nem reparou Meyer e com a habitual ingenuidadeprosseguiu:�Aqui, no sertão do Brasil, há o mau costume de

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esconder as mulheres. Viajantenão sabe de todo se são bonitas, se feias, e nadapode contar nos livros para oconhecimento dos que lêem. Mas, palavra de honra,Sr. Pereira, se todas separecem com esta sua filha, é coisa muito e muitodigna de ser vista e escrita!Eu...�O Sr. não quer retirar-se? interrompeu Pereira commodo áspero.�Pois não! replicou o alemão.E como despedida acrescentou, dirigindo-se paraInocência: �Chamo-me GuilhermeTembel Meyer, seu humilde criado, e estimo muitoconhecê-la por ser a senhorafilha de um amigo meu e prender a gente com o seulindo rosto...Estendeu então a mão, fez um movimento decabeça, e acompanhou ao mineiro que jáia saindo, branco de cólera concentrada.�E que mediz o Sr. deste homem?perguntou a Cirino a meia voz e puxando-o departe.�Reparei muito nos seus modos, respondeu-lhe ooutro no mesmo tom.�Nem sei como me contenha... Estou cego deraiva... Que presente me mandou oChico!... É uma peste, este diabo melado... Vê umarapariguinha e enche logo asbochechas para lhe dizer meia dúzia depachouchadas e graçolas... Não está máesta!... 1!: um perdido. Nada... Isto não me cheirabem: vou ficar de olho nele.

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�Faz muito bem, apoiou Cirino.�Vejam só, continuou Pereira retendo o seuinterlocutor para deixar Meyerdistanciar-se, em boas me fui eu meter! . . . Se nãofosse a tal carta do mano,o cujo dançava ao som do cacete... Malcriadaço!Uma mulher que daqui a dois diasesta para receber marido... Deus nos livre que oManecão o ouvisse...Desancava-o logo, se não o cosesse a facadas...Vejam só, hem?... Sempre é gentede outras terras... Cruz! Também vi logo... umlatagão bonito. .. todofaceiro... havéra por força de ser rufião.Ouvia-o Cirino em silêncio.�E mulher, prosseguiu o mineiro com raivosavolubilidade, é gente tão levada dabreca, que se lambe toda de gosto com ditinhos erequebros desta súcia deembromadores. Com elas, digo eu sempre, não háque fiar... Má hora me trouxeeste alamão... Mil raios o rachem!... E logo oChico... Tenho agora que ficar dealcatéia... meter-me em tocaia e fazer fojos paraque o bracaiá não me entre nogalinheiro. Ora que tal!�Também, breve se vai ele embora, lembrou Cirinoa modo de consolo.�Que o demo o leve quanto antes, replicou Pereira.Já estou todo enfernizadocom o tal homem...Neste momento, como que de propósito, voltava-seMeyer para os dois:

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�Sr. Pereira, disse ele, ficarei em sua casa talvezumas duas semanas. Osburrinhos vão engordar no seu pasto e eu hei defazer compridas viagens nestasua fazenda, apanhando tudo o que nelaencontrar... Ouviu?Reprimiu o interpelado um gesto de vivacontrariedade e, levado pelo instinto edever de hospitalidade, de pronto respondeu,embora secamente:�Fique duas semanas, ou dois meses ou dois anos.Já lho disse: a casa é sua, epalavra de mineiro não volta atrás. Quem esta aqui,não é o Sr., é meu irmãomais velho.Agarrando então com força na mão de Cirino,acrescentou em voz surda eangustiada: �Olhe, doutor; veja só isto! Que lhedizia eu?... Ah! meu Meyer,quer se engraçar comigo, não é? Mas cá fico... e,uma vez avisado, nem dois, nemtrês me botam poeira nos olhos... Não é com essa!Nocência nasceu filha depobre, mas, graças a Maria Santíssima, tem aindapai com braço forte e muitosangue nas veias para defendê-la dos garimpeiros ecruzadores de estrada... Eleque não brinque com o Manecão; é homem decabelinho na venta e se lhe bota a mãoem cima, esfarela-lhe os ossos, como se foraveadinho do campo enroscado porsucuri...Ia, contudo, Meyer, de todo ponto alheio ao

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temporal provocado por suasinconsideradas palavras e, sem dúvida, estimuladaem suas reminiscências pelavista da menina que acabava de admirar,cantarolava entredentes uma velha valsaalemã, dançada talvez com alguma loura patríciaem épocas remotas e de menosrigorismo científico.

XIII�DESCONFIANÇAS Muitas vezes, somos iludidos pelaconfiança: mas a desconfiança faz que sejamos pornós mesmos enganados.Príncipe de Ligne

Quando o nosso saxônio entrou na sala em queestavam as suas cargas, vinha tãocontente do agasalho recebido, da firmeza dotempo, das futuras caçadas deborboletas, que despertou a atenção do seucamarada José.Estava este encostado a uma canastra, aesgaravatar, de faca comprida em punho,a planta dos pés, verificando se alguma pedrinha daestrada não se haviaincrustado na grossa e já insensível sola.�Homem, disse ele com familiaridade, Mochu estáhoje muito alegre . . . Viupassarinho verde ?�Passarinho verde? perguntou Meyer. Que é isso?Não vi passarinho nenhum... Vi

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uma moça muito bonita...�Olé... melhor ainda... Conte-me isso... e quem éela.�E a filha cá do Sr. Pereira.�Parabéns! parabéns! exclamou José com toda aindiscrição. Moça bonita é frutarara por estas matarias e brenhas do inferno...Quanto a mim, ainda não botei oolho senão em velhas corcorócas e serpentões...Outra coisa é no Rio... Não selembra Mochu, da procissão de São Jorge?... Aí éque sai à rua uma tafularia dedeixar a gente tonta de uma vez, de queixo caído.Umas tão alvas!... Outras corde café com leite... crioulas chibantes.�Juque, repreendeu o alemão revestindo-se de arsevero, não tome confiança comgente que não é da sua classe...�Mas eu não disse nada de mau, Mochu,desculpou-se o criado recolhendo-se meioenfiado ao silencio e voltando ao exame dos pés.Quem estava em cima de umbraseiro, era Pereira. Decididamente, aquelehóspede o punha a perder,proclamando assim com a trombeta da fama quevira Inocência e com elaconversara, que a achava do seu gosto... umarapariga já noiva! Quantasincongruências, que perigos, ó Santos do Paraíso!Tornava-se caso de muita prudência. Qualquerpasso menos pensado acarretariaconseqüências irremediáveis,Necessário e penetrar-se a força dos sentimentos

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que sobressaltavam o mineiro,para bem aquilatar os transes por que passava eachar natural que seguisse umalinha de proceder toda de duvida e vacilações.Se, de um lado, criava involuntária admiração porMeyer e, rodeando-o, em suaimaginação, do prestigio de uma beleza irresistível,via aumentar o seu receioem abrigar tão perigoso sedutor; do outro, sentiaas mãos presas pelasobrigações imperiosas da hospitalidade, a qual, coma recomendação expressa deseu irmão mais velho, assumia caráter quasesagrado. Juntem-se a isto ospreconceitos sobre o recato doméstico, aresponsabilidade de vedar o santuárioda família aos olhos de todos, o amor extremoso àfilha, em quem não depositava,contudo, como mulher que era, confiança alguma,as suposições logo ideadasacerca da impressão que naturalmente aqueleestrangeiro produzira no coração dasua Inocência, já quase pertencendo ela a outrem,e as colisões que previu paramanter inabalável a sua palavra de honra, palavradada em dois sentidos agoraantagônicos�um mundo enfim de cogitações e deterrores. E tudo istorevolvendo-se na cabeça de Pereira, refletia-se comsombrios traços deinquietação em seu rosto habitualmente tão jovial.�Por que razão é, perguntou ele a José Pinho paradesviar aquela conversa que

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tanto o magoava, que vosmecê chama Mochu ao Sr.Meyer?Sorriu-se o carioca com ar de superioridade erespondeu desembaraçadamente:�Ah! E um modo de falar...�Como assim?�Já lhe ponho tudo em pratos limpos... Vosmecênão lhe chama Sr.?�Chamo.�Pois, então?... Eu também lhe chamo assim...mas falo em francês, Mochu querdizer senhor, nessa língua.�Ah! replicou Pereira dando-se por convencido,então e isso? Pensei que fosseoutra coisa...�Juque; avisou Meyer que estava a remexer nascanastras, prepare tudo; nósvamos ao mato agora mesmo...�Venha comigo, propôs o mineiro com vozinsinuante. Eu lhe apontarei lugaresonde há dessa bicharia miúda, coisa nunca vista.�Com muito gosto, concordou o alemão.E voltando-se para o camarada:�Ande, Juque, ordenou ele, bote a pita para fora,caixas de folha-de-flandres,clorofórmio, rede pronta... Depressa homem,depressa!José Pinho, instigado por estas palavras, entrou avoltear de um lado para ooutro, como que atarantado com o excesso deserviço.�Minhas lentes, pediu o naturalista, o saco para osbichos de casca grossa...

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Depressa... Vou ajudá-lo.E, por seu turno, começou a tirar das canastras osobjetos de que necessitava,enfiando a tiracolo dois ou três talabartes finos quesustentavam umas caixinhasencouradas. Numa delas, havia um copo de pratacom a competente corrente noutra,um faqueiro de peças dobradiças e de metal dopríncipe. Também assentou aoflanco uma frasqueira defendida de choquesexternos por fino trançado de vime eque continha aguardente, comprada de fresco naVila de Sant�Ana do Paranaíba.Não contente com o peso de todos esses apêndicesà sua pessoa, fingiu largotalim com uma espécie de patrona de folha-de-flandres e que sustentava um grandefacão inglês, um revólver e uma espada de caça.Depois de ter vagarosamente arranjado sobre sicada uma destas peças com grandeespanto de Pereira e até de Cirino, substituiu Meyeros óculos habituais poroutros, de vidros afumados, multo grandes econvexos, destinados a proteger-lheamplamente os olhos dos ardores do Sol. Muniu-se,além disso, de outro singularmeio de preservação: uma rodela ampla de panobranco forrado de verde queaumentava as abas do chapéu-do-chile,descansando em parte sobre elas.Com esse trajo ficou decerto a mais estapafúrdiafigura que algum cristãoencontrar poderia naquelas trezentas léguas em

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derredor; entretanto, Pereira,ofendido com aqueles cuidados de prevençãomeramente científica, que lá no seubestunto qualificava de faceirice feminil:�Veja só, disse ele para Cirino, como este maricasgosta de se enfeitar!...Você não me engana, não, Sr. alamão das dúzias...Mirava-se nesse momento o naturalista, paraverificar se lhe faltava alguma coisa.�Estou pronto, exclamou afinal, e muito desejosode entrar no mato.�Ponham-te a tinir os carrapatos, resmoneouPereira.�Ah! disse Meyer, e as minhas luvas?... Juque,procure na canastra nº 2, àesquerda, no segundo canto.Sacou o camarada umas grandes lavas de lã,brancas, muito largas, já usadas esujas, nas quais o alemão enfiou de um jacto asmãos espalmadas.�Agora, sim! anunciou ele com satisfação.E, dando um sonoro e prolongado hum! empunhou arede de apanhar borboletas.Depois, levando um dedo à testa:�Ah! exclamou, e o vinho! Não me iaesquecendo?... O vinho para sua filha, Sr.Pereira, sua linda filha.Encolheu o mineiro com furor os ombros e disse emparte a Cirino:�Fez-se de esquecido só para falar na menina...Veja bem. Este calunga não mebota areia nos olhos.E acrescentou alto, recebendo a garrafa que o

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camarada José Pinho tirara de umadas canastras:�Agradeço o seu presente, Sr. Meyer, mas se... lhefaz a menor falta .. amenina há de curar-se sem isto...� Não, não, não, não, respondeu o saxônio comuma série de negativas quepareciam não dever ter fim.�Neste mundo, rosnou Pereira mais para si do quepara ser ouvido, ninguém meteprego sem estopa; mas com sertanejos... não sebrinca.Cirino tomara a garrafa.�Isto, afirmou ele, acaba com certeza a cura.E, esquivando-se de pronunciar o nome e aqualidade da pessoa de quem estava tratando:�Ela há de ter hoje algum apetite e poderálevantar-se um pouco, pois já tomouo seu caldinho.�Então, ao meio-dia, recomendou Pereira muitobaixinho a Cirino, vosmecê mandechamar a nossa doente e dê-lhe a mezinha. Ouviu?Já avisei lá dentro...Cirino abanou a cabeça, tomando ar misterioso.�Eu por mim estarei de olho vivo no bichão...Parece-me suçuarana à espreita deveadinhas campeiras... Não terá este vinho algumfeitiço?Contestou o outro com energia tal possibilidade.�Eu sei lá, insistiu Pereira. Estes namoradores sãocapazes de muita coisa...Nunca ouviu contar histórias de pirlas ebeberagens.. hem? diga-me, nunca?

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�Sossegue, Sr. Pereira, acudiu Cirino, hei deexaminar o liquido... tenhocerteza de que não haverá novidade.�Muito que bem .. Então, ao meio-dia em ponto...chame a Maria Conga ou o Tico.Nocência há de arrastar-se até cá... e o doutor lhedará a dose...�Ela sair já? objetou Cirino com admiração. Não,senhor; em tal não consinto...Irei dar-lhe o remédio... Não me custa nada...Pereira ficara meio perplexo.�Não sei...E com súbita resolução:�Pois bem, virei da roga até cá... Se eu nãoaparecer, então o Sr. dê um pulo efaça-lhe tomar a poção... Quanto a este alamãomelado, levo-o para longe e não otrago senão bem tarde e tão moído do passeio quesó há de pensar em dormir.Com Pereira se dava um fato natural e comezinhonas singularidades do mundomoral.A medida que as suspeitas sobre as intenções doinocente Meyer iam tomando vultoexagerado, nascia ilimitada confiança naquele outrohomem que lhe era tambémdesconhecido e que a princípio lhe causara tantaprevenção quanto o segundo.E que as dificuldades e colisões da vida, quando seagravam, tão fundo nosincutem a necessidade do apoio, das simpatias edos conselhos de outrem, quequalquer aliado nos serve, embora de muito mais

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proveito fora bem pensadareserva e menos confiança em auxiliares deocasião.

XIV�REALIDADE Cordélia.�Há de o tempo desvendaro que hoje esconde a discreta hipocrisia.Shakespeare, O Rei Lear, Ato I

Depois que Cirino viu sumir-se Pereira com os doiscompanheiros além do laranjalda casa, seguindo em direção à roça por umavereda pedregosa e cheia de seixosrolados, nos quais iam as patas dos animaisbatendo; depois que teve certeza deque ficara só naquela vivenda, entrou em grandeagitação.Ora, passeava pelo quarto rápida einquietantemente; ora, media-o com passolento em muitas direções; ora, enfim, saia para oterreiro e ali, com a cabeçadescoberta, ficava a olhar atentamente paradiversos lados, abrigando com a mãoaberta os olhos, dos vivíssimos raios do sol.Prometia o dia ser muito cálido. Por toda a partechiavam as estrídulascigarras, e ao longe se ouvia o metálico cacarejardas seriemas nos campos.Às vezes, encarava Cirino o Sol; depois tapava osolhos deslumbrados e, tomadode vertigem, voltava para a sala, onde recomeçava

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os seus passeios.Por que, porém, não descansava o mancebo?Entrando familiarmente pela sala adentro, osbacorinhos se haviam abrigado dosardores do dia e, deitados debaixo de uns jiraus,ressonavam, presa de gostoso sono.Tudo quanto vivia apetecia a sombra e o repouso.Fora, o Sol reverberavaviolento em seus fulgores, e as sombras dasarvores iam cada vez maisdiminuindo. Até uma égua com o esguio e peludopoldrinho deixara o distantepasto e viera abrigar-se, à proteção da casa, juntoà qual parara já meio a cochilar.A enervadora ação do calor estival, juntavam suainfluência as monótonasmodulações de umas chulas e modinhas, cantadasao som da viola de três cordaspelos camaradas de Cirino, acomodados no ranchojunto ao paiol de milho.A tudo, entretanto, resistia o jovem, e comascendente desassossego consultava oseu relógio de prata, tirando-o cada instante dobolso.Passaram-se segundos, minutos e horas. Afinalsoltou ele um suspiro de alivio:�Meio-dia!,.. Cuidei que nunca havia de chegar!...Saindo todo animado para o terreiro, chamou comvoz forte:�Maria... O Maria Conga!...Ninguém lhe respondeu. Só do lado da cozinhaladraram uns cães.Depois de esperar algum tempo, rodeou Cirino toda

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a casa, como fizera comPereira e, encostando-se à cerca que impedia aaproximação do lanço dos fundos,tornou a chamar:�Ó Maria?... Maria!... Está dormindo, minha velha?Vendo que os gritos ficavam sem resposta, saltouentão o cercado e foicaminhando para a porta da cozinha, devagar,porém, e como que a medo.�Ó Maria?!... Minha tia!... Olá! Ó de casa! chamavaele.Afinal apareceu não a velha escrava, mas o anãoTiro, que pareceu, com imperiosomovimento de cabeça, indagar a causa daqueleintempestivo alarma.�Que é da Maria Conga? perguntou Cirinochegando-se a ele.Por meio de moderada gesticulação, mas muitoexpressivamente, deu Tico aentender que a preta fora ao córrego lavar roupa.�E não há mais ninguém em casa? inquiriu o outro.Mostrou o anão, com singular expressão de orgulhoe despeito, que ali estava .ele e deitou um olhar de cólera para o imprudentecurioso.�Bem, replicou Cirino sorrindo-se, vá você entãodizer à sinhá dona, que jáchegou a hora de tomar o remédio. Trago o vinho, eé preciso quanto antespreparar café.Desapareceu Tico, fazendo um aceno ao intituladomedico para que esperasse fora.�Ora, exclamou este com aborrecimento e tom de

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chacota, aqui ao Sol?... Nãoestá má esta!. .. E tal o mestre nanica?. . .Sem mais cerimônia entrou, pois, na casa,penetrando no quarto que ficava entrea cozinha, teatro da atividade de Maria Conga e asala de jantar, onde se dera aapresentação de Meyer a Inocência.Daí a pouco, ouviu passos arrastados e aos seusolhos mostrou-se Inocênciaembrulhada em uma grande manta de algodão deMinas, de variegadas cores, e comos longos e formosos cabelos caídos e puxadostodos para trás. Os grandes eaveludados olhos orlados de fundas olheiras, e oquebrantamento do semblante,muita fraqueza denunciavam ainda; entretanto, ascetinosas faces como que seapressavam a tomar cores, à semelhança de rosasimpacientes de desabrochar eexpandir-se vivazes e alegres. Ao chegar à porta,não a tranpôs; masencostando-se à grossa trave que fazia de umbral,ali ficou parada, indecisa,com o olhar turbado e esquivo.� Ao vê-la, deu Cirino com timidez alguns passosao seu encontro; depois, porseu turno estacou junto a uma cadeira de compridoespaldar, antigo e sólidotraste trazido por Pereira da sua casa de Piumi.Após longa pausa, em que por vezes se cruzaramincertos os olhares perguntou comesforço:�Então... minha senhora... como está?... Sente-se

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melhor?�Melhor, obrigada, respondeu Inocência com vozaflautada e muito trêmula.�Comeu já alguma coisa?�Nhor-sim... uma asa de frango, mas com...bastante vontade.�Sente o corpo abatido?� A canseira está passando... ontem muito mais...A pouco e pouco, fora Cirino recuperando o sanguefrio e se aproximando da moça,que mais se apegou à umbreira, como que aprocurar abrigo e proteção.De um lado da porta ficou ela: do outro Cirino,ambos tão enleados e cheios desobressalto que davam razão às olhadas deespanto com que os encarava Tico,empertigado bem defronte dos dois em suasencurvadas perninhas.�Pois chegou a hora de tomar o remédio...�Já, seu doutor? implorou Inocência.�Nhã-sim.�Eu não tenho mais nada...�É para cortar de uma vez as sezões... Olhe, seelas voltassem... era um grandedesgosto para mim...�Mas é tão mau, objetou ela.� Não é bom deveras... mas bem melhor é voltar àsaúde...Com um bocadinho de coragem, a gente engoletudo sem muito custo... Já que lheamarga tanto... beberei também um pouco...�Oh! não! protestou Inocência.�É: para lhe mostrar... que quero sentir... o que

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mecê sente.Fez-se a menina da cor da pitanga, levantou unsolhos surpresos e voltou logo orosto para fugir dos olhares ardentes de Cirino.�A mezinha? pediu ela por fim toda comovida.�Ah! é verdade! exclamou Cirino. Ande, Tico: vábuscar café a cozinha. Lave bemum pires... percebeu?O anão fitou o moço com altivez e não se mexeu.�Você é surdo?�Não, respondeu Inocência. Tico, às vezes, pormanha é que se faz ansim demouco.Voltando-se então para o homúnculo, insistiu comvoz meiga e carinhosa:�Vai, Tico; é para mim, ouviu?Transformou-se repentinamente a fisionomia doanão. Pairou-lhe nos lábiosinefável sorriso, meneou a cabeça duas ou trêsvezes com a força de umaafirmação, mas, colérico, enrugou a testa e moveuolhos inquietos e duvidosos.Inocência teve que repetir o recado. �Já lhe disse,Tico: vai buscar o café.A esta quase ordem não ousou ele resistir mas saiudevagarzinho, voltando-sevárias vezes antes de entrar na cozinha, onde muitopouco se demorou.Neste entrementes tomara Cirino o pulso deInocência e, sem pensar no que fazia,quebrando a débil resistência da menina, cobrira-lhede beijos o braço e amãozinha que havia segurado.

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�Meu Deus! balbuciou ela, que é isto?... Olhe, aívem Tico.Recuou então o mancebo e, para melhor disfarçar acomoção adiantou-se para oanão que vinha trazendo na mão direita umavasilha de folha-de-flandres, e naoutra um pires com colher.�Muito bem, disse ele, ponha tudo em cima damesa.E preparando rapidamente o medicamentoapresentou-o a Inocência. que semhesitação o sorveu todo.�Deixe-me um pouco, exorou com ternura Cirino,um pouco só... Se é tão mau...sofra eu também.�Não, respondeu ela com alguma energia, por quehavéra de mecê sofrer?E, ou por efeito do inexprimível e desconhecidoabalo que experimentara noestado de debilidade a que chegara, ou por seraquela a hora em que costumava afebre salteá-la, o certo é que teve de encostar-seou melhor, agarrar-se aoumbral para não cair a fio comprido no chão.�Oh! exclamou com angústia Cirino, a senhora vaidesmaiar.Transpondo então o limiar da porta, tomou nosbraços a pálida donzela, semrelutância encostou a desfalecida cabeça ao seuombro e, com o hálito ofegante,aos poucos lhe foi fazendo voltar às faces oprecioso sangue.�Estou melhor, balbuciou ela procurando afastar a

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cabeça de Cirino.�Não faça de forte à toa, acudiu este. Vamos ateaquela cadeira.E, com toda a lentidão e cuidado, foi levando aconvalescente até sentá-la,desembaraçando-a, depois, dos muitos cabelos que,todos revoltos, lhe haviaminvadido o colo e se esparziam sobre o rosto.�Quanto cabelo! exclamou Cirino meio risonho.Com muita atenção seguira Tico as peripécias detoda aquela cena. Ao verInocência perder quase os sentidos, soltou um gritosurdo de desespero; depois,foi seguindo-a até a cadeira e, ajoelhado diantedela, contemplou-a cominquietação.Cirino quis aproveitar a ocasião para um.congraçamento.�Então está com cuidado, Sr. Tico?... Não é nada...sua ama fica boa logo...Não é o que você quer?Ao ouvir esta interpelação, levantou-se o anão ecorrespondeu ao simpáticoanúncio do moço com um olhar de desprezo e poucocaso, como que a dizer:�Não se meta comigo, que não quero graças comvocê, médico de arribação!�Agora, disse Cirino voltando-se para Inocência,vai mecê beber dois golesdeste vinho .. Vera logo, que sustância há de sentirdentro do corpo.Desarrolhou então, com a ponta da comprida facaque tirou do cinto, a garrafa de

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vinho oferecida por Meyer, e num caneco de lousabranca apresentou à moça umpouco do ruborante líquido.Molhou a doentinha os lábios e gratificou oobsequioso mancebo com um sorrisoencantador.Decididamente lhe agradava aquele medico: curavado seu corpo enfermo eentendia-lhe com a alma. Raros homens que nãoseu pai e Manecão, além de pretosvelhos, tinha até então visto; mas a ela, tãoignorante das coisas e do mundo,parecia-lhe que ente algum nem de longe poderiaser comparado em elegância ebeleza a esse que lhe ficava agora em frente.Depois, que cadela misteriosa desimpatia a ia prendendo àquele estranho, simplesviajante que via hoje, para,sem duvida, nunca mais tornar a vê-lo?Quem sabe se a meiguice e bondade que lhedispensava Cirino não eram a causaúnica desse sentimento novo, desconhecido, que dechofre nascia em seu peito,como depois da chuva brota a florzinha do campo?A muito obriga a gratidão.Rápidos correram esses pensamentos pela mentede Inocência, ao passo que as suaspupilas se iam erguendo até se fixarem em Cirino,límpidas, grandes, abertas,como que dando entrada para ele ler claro o que selhe passava na alma.�Sinto-me tão bem, disse ela com metal de vozmuito suave, tão leve de corpo,

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que parece nunca mais hei de ficar mofina.�Não, não, decerto! exclamou Cirino, nunca mais.Além disso, aqui estou e...Com a sua chegada, interrompeu Maria Conga, avelha negra, aquele começo dediálogo. Vinha da fonte com volumosa trouxa deroupa que entrou a estender emcompridos bambus, assentes horizontalmente sobreforquilhas fincadas no chão.Despedindo-se, então, Cirino de Inocência: �Agora,lhe disse ele risonho epegando-lhe na mão, sossegue um pouco: depoistome um caldo e... queira-me bem.�Gentes! Por que lhe não havéra de querer?perguntou ela com ingenuidade. Mecênunca me fez mal...�Eu, retrucou Cirino com fogo, fazer-lhe mal? Antesmorrer... Sim...dona... daminha alma, eu...E, sem concluir, disse repentinamente:�Adeus!Depois, com passo lento, foi se retirando e passoudiante da janela junto à qualficara Inocência sentada.�Olhe! recomendou ele recostando-se ao peitoril,cuidado com 0 sereno...�Nhor-sim...�Não beba leite...�Mecê já disse.�Coma só carne-de-sol...�Já sei...�Então, adeus... adeus, menina bonita!E, a custo, despegou-se daquele lugar, onde quisera

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ficar, ate que de velhicelhe fraqueassem as pernas.

XV � HISTÓRIAS DE MEYER Grande felicidade é ter um filhoprudente e instruído; mas, quanto a filhas, é para todo opai carga bem pesada.Menandro, Os Primos

Com a tarde voltaram Meyer, José Pinho e Pereira e,pouco depois pois deles,três avelhantados escravos; estes dos trabalhosagrícolas, aqueles de grandesexcursões entomológicas.Vinha o mineiro meio risonho e em altos gritosacordou Cirino, que, deitando-sea dormir, sonhara todo o tempo com a graciosadoente.�Olá, amigo! olá, doutor! chamou Pereira com vozretumbante, isso e que é vida,hem? Enquanto nós trabalhamos, eu e o Mochu doJosé, você está nessa cama develudo!...�É verdade, concordou o moço, apenas os Srs. seforam, estendi as pernas e atéagora enfiei um sono só...�E o remédio da menina? perguntou Pereiraabaixando a voz.�Ora, Sr., e eu que me esqueci!... Não faz mal... seela não teve febre... Ah!espere... agora me lembro!... Eu lho dei... estou

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ainda tonto de sono.Riu-se Pereira.�Estes doutores matam a gente, como se tossecachorro sem dono... Num momento,lhes passa da cachola se deram ou não mezinhas evenenos a cristãos. ..Vendo que Meyer saíra da sala, mudourepentinamente de tom prosseguindo em vozbaixa e muito rapidamente:�Então, sabe que o tal alamão levou todo o dia, sóquerendo puxar conversasobre a menina?�Deveras?�É o que lhe digo... E... eu com as mãos atadaspor aquele oferecimento delevá-lo a comer lá dentro!... Nada, nem quedesconfie e se arrenegue dos meusmodos... não me pisa em quarto de família. . . Deuste livre! . . .Com efeito, à hora da ceia, Meyer manifestousurpresa de comer na mesma sala;não que tivesse motivo para desejar outro qualquerlocal; mas, metódico comoera, gravara na mente a promessa de Pereira e, pordelicadeza, supunha deverlembrar-lha.As desculpas que o mineiro apresentou foramarranjadas de momento e ajudadasvitoriosamente por Cirino, carregando este com aresponsabilidade de haverrecomendado à enferma muito sossego, quasecompleta solidão.De modo muito expansivo se manifestou também o

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reconhecimento de Pereira.�Estou conhecendo, disse ele em aparte eapertando a mão de Cirino, que odoutor é homem sério e com quem se pode contar...Deixe estar... o Manecão há deser amigo seu... Isso há de sê-lo... Pessoas de bemdevem conhecer-se eestimar-se... Ora, veja o tal cujo... que temível,hem?... Não faz mal, há deter o pago.Se Pereira se mostrava contrariado e inquieto,muito pelo contrário parecia onaturalista nadar em mar de rosas.�Sr. doutor, declarou ele a Cirino à mesa da ceia,por muitos motivos estou emextremo contente com a minha estada aqui... Hojeachei mais bichinhos curiososdo que em todas as zonas por que tenho andado.�Vosmecê nem imagina, interrompeu Pereiradirigindo-se para Cirino, o que fazeste senhor quando está dentro do mato. Ainda háde quebrar o pescoço nalgumbarranco a que se atire, pois caminha com asventas para o ar... Não sei comonão tem ambos os olhos furados... não repara emgalhos nem em nada... só o quequer e agarrar anicetos... Já o avisei umas poucasde vezes; agora, sua alma,sua palma...Judiciosas eram as advertências do mineiro e bemcabidas; tanto assim que numadas tardes seguintes voltou Meyer todo arranhado ecom um gilvaz tão grande, que

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imediatamente deu nas vistas de Cirino.�Que foi isso, Sr. Meyer? perguntou ele comadmiração. O Sr. andou por ai aforaaos trambolhões com alguma onça?�Oh! não é nada, respondeu fleumaticamente oalemão.�E a sua roupa vem suja de barro... toda rota...Desatou Pereira a rir.�Isto são histórias deste homem... Bem lhe diziaeu que mais dia menos dia issohavia de acontecer. Meu amigo não sabe do ditado:...Fia-te na Virgem e nãocorras, veras o tombo que levas!... Também foi umdia em que me ri a mais nãopoder. Tomei um fartão... Imagine vosmecê que otal Sr. Meyer, como já lhecontei, anda pulando dentro da mata como se fosseveado mateiro... O José Pinho,que é mitrado, vai sempre pela estrada limpa...�Preguiçoso, atalhou Meyer a modo de observação.�Juízo tem ele, prosseguiu o mineiro: mas, como iadizendo cá, o Sr. com seusarrancos e saltos parece anta disparada. Emaparecendo bichinho voador, zás-trásque darás lá vai ele logo sem olhar para os paus,podendo pisar em cobras eespinhos, com aquela rede na mão, e tanto faz queengalfinha sempre algumanimalejo... Hoje fui para a roça, e o homem furouo mato, enquanto José buscavauma sombrinha e entrou logo a roncar como umperdido...�Eu, não senhor, protestou José Pinho, que queria

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ouvir a historia.�Vóce sim, corroborou Meyer com severidade,preguiçoso!... Ande... dê cá a pita.�Pois bem, continuou Pereira, daí a duas horasvoltou Mochu neste estado poucomais ou menos; mas trazia uma caixa cheia debichos do mato...�Oh! perguntou Cirino, e são bonitos?�Não há mais nada, suspirou Meyer com tomdolente, o trabalho ficou perdido!...Eu tinha apanhado cinco espécies novas... Umaqueda...�Deixe-me contar o caso, atalhou Pereira. Oh! euri-me... ri -me. E, paraconfirmar a asserção, pôs-se novamente a dargargalhadas, que foram acompanhadaspor José Pinho e até por Meyer, da parte deste commenos expansão, contudo.�Apareceu-me o Mochu muito contente com a suacaixa, como se tivesse o rei nabarriga. Era uma imundície de besouros, cascudos ecigarras, que o Sr. nem podeimaginar... Havia de tudo; depois, quando voltamosda roça, enxergou ele num paupodre um aniceto vermelho e foi correndo a apanhá-lo. Eu bradei-lhe: � Olhe,que ai tem barranco: a árvore é podre e oca, evosmecê rola pelo despenhadeiro,que nem a sua alma se salva. � Qual! O homem éteimoso, como um cargueiroempacador... Eu gritava-lhe: �Tome tento, Mochu!�Sem atender a nada, começou acaminhar em cima da cipoada que cobria a boca de

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um percipício, fundo como tudoneste mundo... Quando ia botar a mão no tal bichoencarnado, encostou-se ao paue... zás!... afundou-se, dando um grito esganiçadoque parecia de cotia. Malteve tempo de agarrar-se aos cipós e ia ficou entrea vida e a morte, chamandoJuque, Juque!... Eu, quando vi isso, mandei a todapressa buscar à roça uma varacomprida e, se ela não chega logo, o Sr. Meyer etoda a sua bicharada rolavam deuma vez por aqueles fundões.�Não, retificou o alemão, bicho rolou; caixa abriu etudo lá se foi nofundão...�Pois bem, o Mochu segurou-se com unhas edentes ao pau e nos puxamosdevagarinho, devagarinho, com um medo, ummedo!... Maria Santíssima! . . .Fazendo breve pausa:�0 mais engraçado ainda não chegou, avisou omineiro: Ah! vosmecê vai tomar umaboa data de riso. Quando o Mochu ganhou pé emterra, pôs-se a pular como umcabrito doido, por aqui, por acolá, pulo e mais pulo,e gritando como se oestivessem esfolando... Estava .. ah! meu Deus!...estava cheio de formigasnovatas!� Sim, exclamou Meyer com desespero, formiga depau podre!... mein Gott ... Eurasgo a roupa... eu pulo... eu gemo... fico nu comoquando minha mãe me botou no

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mundo!... Horrível Formiga do diabo! . . . Fazcalombo em todo o meu corpo. . .Muita dor!Com reiteradas e estrondosas gargalhadasacolheram Pereira, Cirino e José Pinhoessas enérgicas imprecações.�Poderá isso, observou o mineiro, curá-lo da maniade não ouvir os outros queconhecem as coisas.E voltando-se para Cirino:�Verdade é que o corpo dele... Que corpo, Sr.doutor, tão arvo!... ficou todoempolado que foi preciso esfregá-lo com folhas defumo. Depois, tomou um banhono ribeirão...�Tudo estava muito bem, observou Meyer, se caixanão abre e atira no buraco meutrabalho...�Ora, ficará para amanhã, consolou filosoficamenteo camarada.Pereira, acalmado o frouxo de riso, aproximara-sede Cirino e lhe falava a meia voz:�Ah! doutor, tive uma vontade de deixar estealamão sumir-se no socavão!...Se não fosse meu hóspede, enfim, e recomendadode meu mano, palavra de honrapinchava-o de uma vez no inferno...Não sou nenhum pinóia...�Mas por quê? indagou Cirino simulandoadmiração...�O Sr. ainda me pergunta?... Porque o homem nãome faz senão falar emNocência... Outra vez me disse que ela era muito

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bonita e mil coisas.. perguntouse estava casada, se não; que era preciso casar asmulheres para bem delas. Eulá sei o que mais?... Isto é um bruto perdido... umnamorador!...�Qual, Sr. Pereira!...�É o que lhe digo!... Por acaso sou cobra de duascabeças(4) que não veja?...Ah! que peso uma filha! Ah! E então uma meninaque já está apalavrada... Isto éuma anarquia! Que diria meu genro, o Manecão?...�Não poderá dizer nada, retrucou o moço. E quediga, não faltará quem queirasua filha...�Louvado Deus, não decerto! Eu é que não queroque ela ande de mão em mão... Oucasa com o Doca ou...� Ou... o quê? perguntou Cirino com inquietação,mas fingindo poucacuriosidade.�Ou mato a quem lhe vier transtornar a cabeça ..Comigo ninguém há de tirarfarofa!... E não hei de ter mil cuidados quando vejoeste estranja estar comsuas macaquices a dar no fraco das mulheres ?�Por ora, nada fez ele...�Por ora .. só leva a falar na pobre menina, que aSrª Sant�Ana guarde de todoo mal!... Pudesse eu adivinhar, e macacos memordam, se punha os olhos em cimade Nocência. Nem que viesse com cartas e ordensdo Sr. D. Pedro II .Chamei o José Pinho, prosseguiu ele em voz baixa e

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dei-lhe uns toques. � Então,disse-lhe eu, seu amo é o diabo com mulheres,hem? Ele, que é muito ladino,respondeu-me logo. �Nhor-não. �Assuntei aembromação.�Qual, você, carioca,tem levado areia nos olhos. � Eu?... não é capaz.�Então você não tem visto oque faz seu amo? � Tem sido um santo, retrucou oespertalhão. No Rio, sim. �NaCorte?�Nhor-sim, na Corte. Ia todas as noites auma casa de bebidas, assim umaespécie de venda de muito luxo e lá estava horasperdidas petiscando econversando com senhoras muito bonitas, bemlimpas... algumas com o pescoço e osbraços todos à mostra...�Contou-lhe isso? atalhou Cirino com algumadúvida e sobressalto.� Contou, afirmou Pereira com furor.Vejam só que homem, hem? É um mequetrefe!...Esta noite e dora em diante, venhodormir nesta sala a ver se ele se mexe da cama.Ah! se eu pudesse!... caia-lhede calaboca em cima, que lhe deixava as costelasem. lascas.Acabavam as imprudentes histórias de José Pinhode pôr a ultima pedra noedifício da desconfiança que tão depressa erigira aimaginação de Pereira emdesconceito de Meyer. O que nelas havia deverdade, eram apenas algumas horas delazer, consagradas, durante a estada no Rio deJaneiro, pelo naturalista ao

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consumo de grandes copázios de cerveja no caféStadt Coblenz, e nas quaisentretivera risonhos, bem que inocentes colóquios,com pessoas do sexo amável,freqüentadoras daquele estabelecimento e decostumes não lá muito rigorosos.

XVI�O EMPALAMADO Ao homem não faltamimportunações quanto à vossa capacidade, bem a conhecemos.Molière, O Médico à Força

Conforme o prometido, trouxe Pereira a rede para asala dos li hóspedes e,encetando um modo de vigilância muito especialainda que perfeitamente inútil emrelação à pessoa suspeitada, associou os sonorosroncos do valente peito àruidosa respiração de Meyer.Se, contudo, não tivessem seus olhos a venda daconfiança ou, melhor, se o sononão os acometesse sempre com tamanhaimposição,, decerto em breve houveraestranhado a cruel agitação em que vivia Cirino eque este não podia mais encobrir.Na verdade, o modo por que o infeliz mancebopassava as noites era de fazernascer suspeitas no espírito mais indiferente edesprevenido. Ou se revolvia nacama, dando mal abafados suspiros, ou então saiapara o terreiro, onde se punha

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a passear e a fumar cigarros de palha uns apósoutros, até que os galos,alcandorados na cumeeira da casa e nas árvoresmais próximas, anunciassem asprimeiras barras do dia.Desabrida paixão enchia o peito daquele malsinado;dessas paixões repentinas.explosivas. irresistíveis, que se apoderam de umaalma, a enleiam por toda aparte, prendem-na de mil modos e a sufocam comoas serpentes de Netuno aLaocoonte. Conhecedor como era, dos hábitos dosertão, do jugo absoluto dospreconceitos, do respeito fatal à palavra dada,antevia tantas dificuldades,tamanhos obstáculos diante de si, que, se de umlado desanimava, do outro maissentia revoltado o nascente e já tão violento afeto.�Deus me ajudará, pensava consigo mesmo: o quesó quero e a amizade deInocência Há dias que não a vejo... se não pudermais vê-la... dou cabo da vida...Sublevava-se o seu coração, girava-lhe o sanguecom vertiginosa rapidez nasvelas e vinha toldar-lhe a vista, trazendo ondas derubro calor ao descoradorosto.�Nossa Senhora da Abadia, implorava ele puxandoos cabelos com desespero,valei-me neste apuro em que me acho! Dai-me pelomenos esperanças de que aquelamenina poderá um dia querer-me bem.., Nada maisdesejo... Possa o fogo que me

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consome abrasar também o seu peito...Costumava a fervorosa prece dirigida à santa daespecial devoção de toda aProvíncia de Goiás acalmar um pouco o mancebo,que alquebrado de forças pegavano sono para, instantes depois, acordarsobressaltado e cada vez mais abatido.Também estava sempre de pé quando Pereiracostumava saltar da rede.�Oh! observou ele da primeira vez, isto é que sechama madrugar.�Pois é contra o meu costume, replicou Cirino,todas estas noites tenho passado mal...�Na verdade vosmecê não está com boa cara...�Creio que me entraram no corpo as maleitas.�Essa é que é boa! Então o doutor foi emprestar(�)da doente a moléstia?...Olhe, é preciso por-se forte, porque hoje mesmo háde lhe chegar uma boa maquinade doentes...�Melhor...�Já está tudo espalhado por ai da sua chegada e aromaria não há de tardar.�Cá a espero...�Naturalmente virá primeiro o Coelho... t: boaocasião de pagar a sua divida...Não tenha receio de puxar mais no preço...�Daqui mesmo pretendo despachar um próprio parame ver livre dessa obrigação...�Isso mostra que o Sr.é pessoa de brio... Não écomo certa gente que conheço...Ao dizer estas palavras, voltara-se Pereira paraMeyer a contemplá-lo

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atentamente.Estava na verdade o alemão digno de exame, postoainda de parte outro qualquermotivo que não o de simples curiosidade.Dormia com as pernas e braços abertos e caldospara fora do estreito leito dascanastras: tinha o queixo muito levantado pelaposição incômoda da cabeça,deixando a boca meio aberta ver uma fieira demagníficos dentes.�Está roncando, hem? murmurou o mineiro.Cavouqueiro... a mim você nãoengana..., mas é o mesmo!Iam as prevenções de Pereira tomando proporçõesde idéia fixa, e Meyer, nasimplicidade da ignorância, como que de propósitoministrava elementos para queelas mais e mais se fossem arraigando.Assim, ao almoço, lembrou-se de perguntar entreduas enormes colheradas defeijão:�Sua filha, Sr. Pereira? Como vai? É melhor?�É melhor o quê, Mochu? exclamou o pai com modoesquivo.�A saúde dela é melhor?�Está melhor; está, está, respondeu Pereira muitosecamente. Está boa... vaifazer uma viagem...�Viagem, para onde?... Até a vila?�Homem; Mochu, observou o mineiro um tantodesabrido, vosmecê está que nemmulher velha, tudo quer saber...Meyer, nessa repreensão, que lhe causou vexame e

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alguma admiração, só enxergoucensura justa a sua curiosidade, falta queconfessou com toda a nobreza, emboraagravando a situação.�É verdade, Sr. Pereira, concordou ele. A boaeducação não manda o que eu fiz.. mereço, porém, desculpa, mereço... Sua filha étão interessante... que melembro sempre dela... Tenho comigo unspresentezinhos...�Guarde-os, rosnou Pereira abafando a reflexãonum acesso de tosse.E para evitar o prosseguimento de semelhanteassunto, deu por finda a refeição,levantando-se da mesa.� Aí vem o Coelho, doutor, exclamou ele olhandopara fora. Xi! como estaamarelo!... Há tempos que o não via... já parecealma do outro mundo... É do talem quem falamos... Aperte-o, porque é mofinocomo tudo...E, interpelando a quem chegava gritou: �Bonsolhos o vejam!... Se não fosse,amigo Sr. Coelho, ter médico em casa, nunca havérade vê-lo por cá; não éverdade?�Ora, respondeu o outro com um gemido, andosempre tão doente. Nem faz gostoviver assim... Mas qu�é dele, o homem?�Está aqui...�Já me disseram que faz milagres. Deixou nomepara lá das Parnaíbas... Sabia?� Lá que tivesse deixado nome, não: mas que é

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cirurgião de patente, tenhocerteza, porque, num abrir e fechar de olhos, mepôs de pé uma pessoa cá decasa.�Se ele me curar... não sei mesmo como lheagradecer.�É pagar-lhe, concluiu Pereira, tratando logo deadvogar os interesses dohóspede.�Sim, hei de... pagar-lhe, confirmou o outro comalguma hesitação.�Em todo caso, desça do animal.Pouco depois, entrava na sala e cumprimentava aCirino e a Meyer a pessoa a quemo mineiro chamara Coelho. Era homem já de idade,muito mais quebrantado porenfermidades que pelos anos; tinha a testaenrugada, as bochechas meio inchadase balofas, os lábios quase brancos e os olhosempapuçados.�Qual dos senhores é o doutor? perguntou ele.�Sou eu, respondeu Cirino, revestindo-se deconvicto ar de importância,enquanto Meyer apontava para ele, cedendo direitosque talvez pudesse contestar.Interveio Pereira com amabilidade:�Sente-se, Sr. Coelho, sente-se. Não se ponha logoa falar de moléstias... Istonão vai de afogadilho... Descanse um pouco... Olhe,já almoçou?�O pouco que como, retrucou o outro, já estácomido.�Pois bem, ponha-se primeiro a gosto: depois

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então, converse com o doutor...Diga-me: que há de novo pela vila?�Que eu saiba, nada... Também há mais de anoque de lá nenhuma noticia tenho...já não se me dá do que vai pelo mundo... Quemnão goza saúde, perde o gosto detudo... E mesmo uma calamidade . . .Enquanto Coelho, em toada monótona, desfiavaoutras queixas no mesmo sentido,tirara Cirino da canastra o seu Chernoviz e algumaservas secas que depôs emcima da mesa.�O senhor, declarou ele voltando-se para o doente,está empalamado..�É verdade, Sr. doutor.� Eu, que não sou físico, observou Pereira, dirialogo isso...�Xi, compadre! atalhou Coelho com impaciência epedindo silêncio.�O senhor, continuou Cirino com entono, tevemaleitas muitos anos afios depoiscomeçou a sentir fastio e o estômago embrulhado;inchou todo e em seguidadefinhou... Aos poucos, foi perdendo a sustância eo talento.�Tal qual! murmurou Coelho seguindo comcautelosa atenção a marcha do diagnóstico.�Agora, o Sr. não pode comer que não sintaafrontação, não é?�Muita, Sr. doutor.�Este homem, disse Pereira para Meyer, leubastante nos livros . . . �Veio-lhedepois uma canseira, e, quando o Sr. anda, dão-lhe

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uns suores e tremuras portodo o corpo... O baço está ingurgitado e o fígadotambém... De noite fica o Sr.sem poder tomar respiração, mais sentado quedeitado... As vezes tosse muito,uma tosse sem escarrar, como quem tem um pigarroseco...�Tal qual! repetiu o enfermo com unção e quaseentusiasmo.�Pois bem, terminou Cirino, como já lhe disse, o Sr.está empalamado.�E não há cura? perguntou Coelho meio duvidoso.�Há, mas o remédio é forte�Contanto que faça bem...�Muita gente, replicou Cirino, tenho já curado emestado pior que o Sr.; mas,repito, o remédio é violento...�Tomarei tudo, afirmou Coelho: há anos que façoum horror de mezinhas e denenhuma delas tiro proveito. Vamos ver.Cirino neste porto mudou o tom de voz e olhandopara Pereira:�O Sr. sabe, observou ele que o meu modo de vidaé este...Com um movimento de cabeça aplaudiu o mineiroaquela entrada em matéria.O mesmo não pensou Coelho, que tartamudeou:�Ah!... Estou pronto... Sou pobre, muito pobre...Piscou Pereira um olho com malícia.�Costumo, continuou Cirino, receber o pagamentoem duas ametades. . .Depois acrescentou, um tanto vexado:�Se falo nisto agora com esta pressa, é porque

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também tenho precisão urgente dedinheiro. . Não acha, Sr. Meyer?�Pois não, pois não, concordou o alemão: tem todoo direito.�Meu amigo, corroborou Pereira, o doutor nãotrabalha para o bispo; tem queganhar honradamente a vida.�Então, como lhe dizia, prosseguiu o outrodirigindo-se para Coelho, o senhorpagar-me-á no principio da aplicação e no fim.Assim, não há enganos...Serve-lhe?�Que remédio! suspirou Coelho. Eu lhe darei... atétrinta mil-réis... ou...quarenta...�Qual! retorquiu Cirino. O meu preço é um só.�E a quanto monta?�A cem mil-réis.�Cem mim réis! exclamou Coelho aterrado.�Cinqüenta no principio, cinqüenta no fim.Gemeu o doente lá consigo.�Ora o que é isto para você, compadre? interveioPereira. Um atilho de milhopara quem tem tulhas cheias a valer!...�Nem tanto, nem tanto assim, objetou Coelho.�Deixe-se de historias, continuou Pereira. Sevosmecê não tivesse bons patacos,eu diria logo ao nosso amigo:�Olhe que este é dosnossos, não tem onde cairmorto � e ele havéra de curar de graça... não é?�Decerto, decerto, declarou Cirino com muitaprontidão.�Mas com vosmecê o caso é defronte! Doutra

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maneira, por que razão havia umcirurgião de andar por estes socavões? Tambémquer bichar um pouco...� É muito justo...�Cinqüenta... mil... réis, balbuciava Coelho; assimde pancada. . .�Se o médico o cura, disse Meyer intrometendo-se,é negócio da China.Nada dizia Cirino por dignidade própria. Estavafolheando o Chernoviz, cujaspáginas mostravam continuo manusear, algumasaté enriquecidas de notas eobservações à margem.Assim no artigo opilação ou hipoemia intertropicalhavia ele escrito ao lado: �Eo que se chama no sertão moléstia deempalamado�. E, no fim abrira grande chavepara encerrar esta ousada e peremptória sentença:�Todos estes remédios de nadaservem. Sei de um muito violento, mas seguro. Foi-me, há anos, ensinado porMatias Pedroso, curandeiro da Vila do Prata, nosertão da Farinha Podre, velhode muita prática e que conhecia todas as raízes eervas do campo�.�Pois bem, disse Coelho depois de grandehesitação, está o negócio fechado.Mas, olhe que entrará no pagamento o preço dasmezinhas, e as visitas hão de serfeitas em minha casa...�Não há duvida, concordou Cirino; irei à suafazenda todos os dias... Não élonge daqui?

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�Nhor-não... duas léguas pequenas, pela estrada.�Bem. O senhor, em voltando a casa, meta-se logona cama.Coelho fez sinal que sim.�Amanhã, continuou o moço, deve tomar estes pósque lhe estou mostrando. Dividaisto em duas porções; há de fazer-lhe muito efeito;depois descanse dois ou trêsdias, se acaso se sentir muito fraco; em seguida:E parando de repente, encarou Coelho algunsinstantes:�O Sr. quer mesmo curar-se?�Oh! se quero!�E tem confiança em mim?�Abaixo de Deus só mecê pode salvar-me.�Então, tomará às cegas o que eu lhe receitar?�Até carvão em brasa.�Olhe bem o que diz . . Não gosto de começar atratar para depois parar...�Não tenha esse medo comigo...Viver como vivo, antes morrer...�Então, continuou Cirino com pausa, acabados osdias de sossego, há de o senhorengolir uma boa data de leite de jaracatiá.� Jaracatiá?! exclamaram com assombro o doente ePereira.�Jarracatiá?! gaguejou por seu turno Meyer,arregalando os olhos, que é jarracatiá?�Mas isso vai queimar as tripas do homem,observou o mineiro.Cirino replicou um tanto ofendido:�Não sou nenhum criançola, Sr. Pereira. Sei bem oque estou dizendo. Este

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remédio é segredo meu, muito forte, muitodaninho; mas não é nem uma, nem duasvezes, que com ele tenho curado empalamados. Acoisa está no modo de dar o leitee na quantidade: por isso, é que não faço mistério,avisando contudo que com umaporçãozinha mais do que o preciso, o doente estána cova...�Salta! atalhou Pereira, tal mezinha não queroeu... antes ficar empalamado.�Que é jarracatia? tornou a perguntar Meyer.Coelho abaixou a cabeça e parecia estar refletindona resolução que havia deabraçar.Depois, com voz melancólica:�O dito, dito, declarou, aceito tudo o que vosmecême der. Agora, quanto fizerestá bem feito... Como é que devo tomar ojaracatiá??�Em tempo lhe direi, replicou Cirino. Fazem-se trêscortes no pé da árvore edeixa-se correr o primeiro leite: eu mesmo hei derecolher o que for bom. Tenhatoda a confiança em que o senhor ficará são... Bemsabe, ninguém em negócio dedoença, mais do que outro qualquer, pode nuncadizer: isto há de ser assim ouassado... Todos estamos nas mãos de Deus. Só Elepode saber se a moléstia nossairá do corpo ou nos há de atirar à sepultura. Todoo bom cristão conhece istoe deve conformar-se com a vontade divina... O queo médico faz é ajudar a

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natureza e dar a mão ao corpo quando ele podeainda levantar-se...�Justo, justo! apoiou Meyer, então todo empenhadoem picar um formoso coleóptero.�Assim também é que eu entendo, disse o mineiro.�Mas, o que é jarracatiá, Sr. Pereira? insistiu oalemão.Voltou-se o interpelado com impaciência:�E uma árvore, Sr Meyer, árvore grande, de folhascortadas, que dá umasespécies de mamõezinhos. Deitam leite muitogrosso e queimam os beiços quando agente não tem cuidado. E uma árvore, ouviu? Umaárvore!�Ah! exclamou o alemão concertando a garganta.Nesta ocasião sacou Cirino da canastra outrosremédios e passou-os a Coelho,dando-lhe minuciosas informações sobre o modo porque havia de usar deles.�Tem muito enjôo, quando come? perguntou ocurandeiro.�Muito, Sr. doutor.�Assim é, mas deixe estar; depois do leite dejaracatiá, volta-lhe a apetência.Nos primeiros tempos, o senhor só há de beberclaras de ovos bem batidas.Depois, ira a pouco e pouco tomando maisalimento.�Deus o onça...Levantou-se Pereira e, chegando-se à porta,anunciou:�Ai vem gente... Estou ouvindo passos de animalmontado... Sem dúvida e algum

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pobre engorovinhado de doença. Isto de moléstias,não faltam no mundo. Também hátanta maldade, que não pudera ser por menos.Depois de ligeira pausa, acrescentou em tom desurpresa e aborrecimento.�Hi meu Deus!... Nossa Senhora nos socorra...Sabem quem vem chegando?... É oGarcia; está com o mal! há mais de dois anos e nãoquer crer na desgraça...Pobre coitado, sem dúvida vem comprar odesengano... Tenho muita pena dessagente... mas, deveras, não a quero ver em minhacasa... Vamos, Sr. doutor,despache o Garcia depressa. Com lázaros não sebrinca. A Senhora Sant�Ana de talnos livre! Nem olhar é bom.E, Pereira, voltando-se para dentro, pediuapressadamente:�Não deixe o homem desapear, doutor: ficava-medepois o desgosto de ter que lhefazer alguma má-criação. Pelo amor de Deus vá láfora... Veja o que ele quer...e dê-lhe boas tardes da nossa parte... Olhe, estachamando... Sala, doutor,saia!Ouvia-se, com efeito, uma voz perguntar se estavaem casa o Sr. Pereira.Este, vendo que Cirino não se apressava à medidados seus desejos, ou temendoque o recém-chegado lhe entrasse na sala, semdemora apareceu à soleira da portae, com manifesta sequidão, respondeu ao humildecumprimento de chapéu e à meiga

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saudação que lhe era dirigida.

XVII�O MORFÉTICO O leproso. � Interesse? Ah! nuncainspirei senão compaixão... O militar � Quão feliz fora eu sepudesse dar-vos algum consolo!...

Não devo ter sociedade senãocomigo mesmo, nenhum amigo, senão Deus. Generoso estrangeiro, adeus, sefeliz. Adeus para sempre!Xavier de Maistre, O Leproso de Aosta

A pessoa que chegara, bem que tivessedescavalgado, não se adiantou ao encontrodo dono da casa. Pelo contrário como que recuou,conservando-se depois imóvel,encostado a um burrinho, cujas rédeas segurava.De seu lugar, perguntou-lhe Pereira com expressãonão muito prazenteiro:�Então, como vai, Sr. Garcia?� Como hei de ir, respondeu o interpelado. Mal...ou melhor, como sempre.�Pois esteja na certeza de que muito sinto.�Está ai o cirurgião? indagou Garcia.

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�Não tarda a vir vê-lo ai fora... Olhe, é uminstantezinho.Palavras tão cruéis não pareceram fazer mossa aodesgraçado.� Esperá-lo-ei com toda a paciência, replicoumelancólico.�Já sei que volta hoje para casa, afirmou Pereira.�Volto. Se a noite me pegar em caminho, ficarei nopouso das Perdizes.�E verdade: lá há uma tapera. Mas o Sr. não temmedo de almas do outro mundo?Dizem que o tal rancho velho é mal-assombrado. �Eu? exclamou o infeliz. Sótenho medo de mim mesmo. Quisesse um defuntovir gracejar um pouco comigo, e deagradecido lhe beijava os dedos roídos dos bichos.Olhe, Sr. Pereira, continuoucom voz um tanto alta e agoniada, não levo a mal osenhor não me convidar paraentrar em sua casa; não, no seu caso havia de fazero mesmo.Oh! Sr. Garcia! quis protestar Pereira.�Nada;... digo-lhe isto do coração... Na minhafamília sempre tivemos nojo delázaros... Sou o primeiro... O Sr. nem imagina... Vivimuitos anos meiodesconfiado... A ninguém contei o caso... Derepente, arrebentou o mal fora. Jánão era mais possível enganar nem a um cego...Ah! meu Deus, quanto tenhosofrido!...�Permita Ele, interrompeu Pereira em tomcompassivo, que este doutor tenha

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algum remédio... Bem vê... às vezes...�Curar a morféia? replicou Garcia com sorrisopungente de sarcasmo. Não há essepintado... que em tal pense...�Então para que quer ver o médico?� Só para uma coisa... Saber pelos livros que eletem lido e pelo conhecimentodas moléstias, se isto pega... É só o que quero...Porque então fujo de minhacasa. Desapareço desta terra... e vou-mearrastando até tombar nalgum canto porai... Dizem uns que pega... outros que não... que ésó do sangue... Eu nãosei...É, abanando tristemente a cabeça, apoiou-se aotosco selim.Depois, ergueu os olhos para os céus, e exclamou:�Cumpra-se tudo quanto Deus Nosso Senhor JesusCristo houver determinado!... Seo médico me desenganar, não quero que a minhagente fique toda... marcada...Irei para São Paulo...Pereira cortou este doloroso diálogo:�Está bem, patrício Garcia, disse, vou já mandar-lhe o homem. . . espere umpouco. . .E, entrando, reiterou o pedido a Cirino, que sedemorara a receitar a Coelhoumas beberagens de velame e pés-de-perdiz,plantas muito abundantes naquelasparagens, de grandes virtudes diuréticas e quedeveriam ser empregadas um mêsdepois da aplicação do leite de jaracatiá.

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�Ande, doutor, instou Pereira, vá lá fora ver ocoitado do outro e despache-odepressa. Estou todo enfernizado por vê-lo no meuterreiro.Cirino saiu então e, caminhando com lentidão,parou a alguns passos domal-aventurado Garcia, cujo rosto repentinamentese contraiu enquanto tirava ochapéu com submissão e receio.Vinha então a tarde descendo, e a luz do crepúsculoirradiava por toda a parte,tão melancólica e suave que, sem saber por que, aalma de Cirino de repente seconfrangeu.Com assombro o encarava o lázaro. Diante dele seerguera quem lhe ia apontar ocaminho da eterna proscrição. Dos seus lábios iacair a sentença última,irremediável, fatal! Quanta angústia no olhardaquele homem! Que pensamentossinistros! Quanta dor!Também ficara ali atônito, boquiaberto, à esperaque a palavra de Cirino lhequebrasse o horroroso enleio. �Então, disse estedepois de breve pausa, que mequer o senhor? �Doutor, balbuciou Garcia...primeiro que tudo quero...pagar-lhe;... trouxe algum... dinheiro... mas,talvez... seja... pouco.Interrompeu-o Cirino:�Não recebo dinheiro para tratar... da sua moléstia.�Quer isto dizer, replicou com acabrunhamentoGarcia, que ela não tem cura...

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Eu bem sabia, mas. . é tão duro ouvir sempre isso!.. Olhe, o meu mal é de pouco. . . está em principio. Quem sabe... se o Sr. nãoconhecerá alguma erva?...� Infelizmente, respondeu Cirino, nem eu, nemninguém conhece essa planta...�Enfim!E Garcia, fechando os olhos como que paraconcentrar as forças, continuou:�Ah! doutor, eu sou um pobre homem... velho jácansado... Por que não me velo amorte em lugar desta podridão que me estacomendo as carnes?... Muito tempo asenti dentro de mim... Disfarcei, até ao dia em queminha neta... a filha do meucoração.. a Jacinta. . . ela mesma, mostrou certoreceio de me abraçar . . Ah!senhor, quanto se sofre nesta vida!E Garcia parou ofegante, empalidecendo muito.�Dê-me água, exclamou ele, água... pelo amor deDeus!... Pudesse agora... ser omeu dia... A minha garganta... está que nem fogo! .. .E agarrou-se aos arreios para não cair no chão.Cirino correu a buscar água.�Onde há de ser? perguntou Pereira.�Onde queira, respondeu o outro com pressa, vejaque aquele cristão estásofrendo...�Ah! leve a caneca de louça... Depois aquebraremos...Com sofreguidão tomou o lázaro o vaso, bebeu deum trago e pareceu melhorar.

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�Foi um vagado, disse reassumindo aos poucos acalma. Mas, como lhe contava,certeza tinha eu do mal. Agora, só quero saber umacoisa e vou-me de partida.Esse mal... pega, doutor?�Pega, afirmou Cirino com tristeza.�E que me resta fazer?�Pedir à Senhora Sant�Ana paciência e a NossoSenhor Jesus Cristo. . Garciaabanava a cabeça acabrunhado....que o proteja na sua vida de desgraças. �MeuDeus, balbuciou o morfético ameia voz, dai-me forças... coragem para que eufaça o que devo fazer.E, com súbita resolução:�Cumpra-se a vontade do Altíssimo! exclamou,enfim. Doutor, obrigado! O pobrelázaro há de pedir ao Todo-Poderoso que nestemundo e no outro lhe pague as suaspalavras de homem de letras... Adeus! Eu me voupara as terras de São Paulo...Talvez me junte à gente da minha espécie Adeus...E, a custo montando a cavalo, voltou-se para aspessoas que tinham de longevindo assistir à consulta.� Adeus, disse ele acenando com o chapéu, gentee patrícios. Sr. Pereira, Sr.Coelho, mais senhores, adeus! Eu me boto de umafeita para lá das Parnaíbas. . .Este sertão não me vê mais nunca!,Acolheu o silêncio essas palavras de eternadespedida.Garcia então, esporeando com o calcanhar o ventre

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da cavalgadura, a passo tomourumo da estrada geral e sumiu-se numa das voltasdo caminho, quando já vinha anoite estendendo o seu lúgubre manto.

XVIII�IDÍLIO Mas, que luz e essa que ali aparecenaquela janela? A janela é o Oriente e Julieta o Sol.Sobe, belo astro, sobe e mata de inveja a pálida lua.Shakespeare, Romeu e Julieta, Ato II Entretanto, desde algum tempo,sentia-se Virgínia agitada de mal desconhecido... Em suafronte, não pousava mais a serenidade, nem o sorriso lhepairava nos lábios... Pensa ela na noite, na solidão, e logodevorador a abrasa toda.B. de Saint-Pierre, Paulo e Virgínia

Decorreram sem novidade dias e dias uns apósoutros; Cirino diagnosticando ecurando ou melhor, receitando; Meyer aumentandocada vez mais a sua bela coleçãoentomológica, sempre feitorizado por Pereira, quecautelosamente tratava demantê-lo no suspeito círculo da sua apertadavigilância.Confidente de todos os infundados e malempregados receios era Cirino.

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�O alamão, dizia o mineiro, não me deixa pôr péem ramo verde, mas tambémtrago-o vigiado que é um gosto... Se desconfiasse,teria medo até da suasombra... Estou em brasas... Não sei por que nãochega o Manecão Doca... Queroarriar a carga no chão... Agora, mais do que nunca,devo casar Nocência... Estasmulheres botam sal na moleira de um homem.Salta! E ainda isto tudo não é nada.�Então espera muito breve o Manecão? perguntouo outro com ansiedade.�Não pode tardar... por estes dois ou três diasquando muito... Vem de Uberabae sem dúvida por lá arranjou todos os papéis... Deia certidão do meucasamento... a do batismo da pequena... e adianteidinheiro para as despesas...bem que ele refugasse meio vexado.� Então está tudo decidido? perguntou Cirino comvivacidade.�Boa dúvida!... Já lhe tenho dito mais de uma vez.Hoje é coisa de pedra ecal... Se até trato o Manecão de filho... A honradesta casa é também honradele.�Mas sua filha?� Que tem?�Gosta dele?�Ora se!. . Um homenzarrão... desempenado. E,quando não gostasse, é vontademinha, e está acabado. Para felicidade dela e, comoboa filha que é , não tem

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que piar... Estou, porém, certíssimo de que o noivolhe faz bater o coração...tomara ver o cujo chegado!Já nesse tempo, como dissemos, Inocência de todose restabelecera, ainda queCirino tivesse feito quanto possível render aenfermidade. Mas, quando o ruborda saúde voltou à acetinada cútis da sertaneja e 0vigor ao esbelto corpo, nãohouve pretexto a que se apegar, e as entrevistascurtas e graves de médico foramcortadas, até mesmo para não desviar a atenção dePereira da pessoa de Meyer.Com o coração, pois, partido de dor, declarou que ose eus cuidados e presençase tornavam completamente desnecessários.Seguiram-se então semanas inteiras, sem quepudesse por os ansiosos olhos naformosa namorada, e por tal modo se exacerbou asua paixão que, para encobri-lac disfarçar a excitação nervosa, a falta de apetite epalidez extrema, teve querecorrer a desculpas de moléstia; caiu realmentedoente.A incerteza em que se via, sem, pelo menos, saberse o seu afeto era ou nãocorrespondido, dava-lhe acessos de violentaangústia, que a desoras tocava àsratas da exasperação.Uma noite, em que havia luar embaciado por ligeirabruma, tomou a sua afliçãotal violência que ele decidiu fugir daquele local desofrimentos e incertezas,

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logo na manhã seguinte.Assente uma vez nesta resolução, ergueu-se doleito em que jazia prostrado pelomais cruel desalento e, com algum custo, saiu parao terreiro, abrindocautelosamente a porta da casa, a fim de nãoacordar os companheiros de quarto.Uma vez fora, sentou-se num tronco de madeiro eali ao ar fresco e acariciadorda madrugada, entrou com mais tranqüilidade apensar no caso.Seria uma hora depois de meia-noite.Estavam os espaços como que iluminados por essaluz serena e fixa que irradia deum globo despolido; luz fosca, branda, semintermitências no brilho, semcintilações, e difundida igualmente por toda aatmosfera.Haviam j á os galos cantado uma vez, e, ao longe,muito ao longe, de vez emquando, se ouvia o clamor das anhumapocas.Levantou-se de repente Cirino.Depois de alguma vacilação, deu uma volta por todaa habitação, pulando oscercados, e tomou o ramo do frondoso laranjal, acuja espessa sombra se abrigoupor algum tempo. Achegou-se, em seguida, à cercados fundos da casa e parou nomeio do pátio, olhando com assombro para umajanela aberta.Um vulto ali estava!... Era o dela; Inocência.. Nãohavia duvidar.A principio, nenhum movimento fez; mas, depois,

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lentamente se foi retirando eaos poucos fechou o postigo.Cirino deu um só pulo e de leve, muito de leve,bateu apressadas pancadas natábua da janela.�Inocência!... Inocência!... chamou com vozsumida, mas ardente e cheia desúplica.Ninguém lhe respondeu.�Inocência, implorou o moço, olhe... abra, tenhapena de mim... Eu morro porsua causa...Depois de breve tempo, que para Cirino pareceu umséculo, descerrou-se a medo ajanela, e apareceu a moça toda assustada, semsaber por que razão ali estava nemexplicar tudo aquilo.Parecia-lhe um sonho.Quis, entretanto, dar qualquer desculpa à situaçãoe, fingindo-se admirada,perguntou muito baixinho e a balbuciar:�Que vem... mecê... fazer aqui?... já... estou boa.Da parte de fora, agarrou-lhe Cirino nas mãos.�Oh! disse ele com fogo, doente estou eu agora...Sou eu que vou morrer...porque você me enfeitiçou, e não acho remédio parao meu mal.�Eu... não, protestou Inocência.�Sim... você que é uma mulher como nunca vi...Seus olhos me queimaram... Sintofogo dentro de mim... Já não vivo... o que só queroé vê-la... é amá-la, nãoconheço mais o que seja sono e, nesta semana,

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fiquei mais velho do que em muitosanos havia de ficar... E tudo, por quê, Inocência?�Eu não sei, não, respondeu a pobrezinha comingenuidade. �Porque eu amo...amo-a, e sofro como um louco... como um perdido.�Ué, exclamou ela, pois amor é sofrimento?�Amor é sofrimento, quando a gente não sabe se apaixão é aceita, quando se nãovê quem se adora; amor é céu, quando se estácomo eu agora estou,�E quando a gente está longe, perguntou ela, quese sente?... �Sente-se umador, cá dentro, que parece que se vai morrer.. Tudocausa desgosto: só se pensana pessoa a quem se quer, a todas as horas do diae da noite no sono, na reza,quando se pede a Nossa Senhora, sempre ela, ela,ela!... o bem amado... e...�Oh! interrompeu a sertaneja com singeleza, entãoeu amo... �Você? indagouCirino sofregamente.�Se é como... mecê diz...�É é... eu lhe juro!...�Então... eu amo, confirmou Inocência.�E a quem?... Diga: a quem? Houve uma pausa, ea custo retrucou ela ladeando aquestão: �A quem me ama.�Ah! exclamou o jovem, então é a mim... é a mim,com certeza, porque ninguémneste mundo, ninguém, ouviu? é capaz de amá-lacomo eu... Nem seu pai... nem suamãe, se viva fosse... Deixe falar seu coração... Sequer ver-me fora deste

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mundo... diga que não sou eu, diga!...�E como ia mecê morrer? atalhou ela com receio.�Não falta pau para me enforcar, nem água parame afogar.�Deus nos livre! não fale nisso... Mas, por que éque mecê gosta tanto de mim?Mecê não é meu parente, nem primo, longe queseja, nem conhecido sequer... Eulhe vi apenas pouco tempo... e tanto se agradou demim?�E com você... não sucede o mesmo? perguntouCirino.�Comigo?�Sim, com você... Por que é que está acordada aestas horas? Por que é que nãopode dormir?... que a cama lhe parece um braseiro,como a mim também parece?...Por que pensa em alguém a todo o instante?Entretanto, esse alguém não é primoseu, longe que seja, nem conhecido sequer?...�É verdade, confessou Inocência com doce candura.Depois quis emendar a mão:�Mas, quem lhe disse que vivo pensando em mecê?�Inocência, implorou o moço, não queira negar,vejo que sou amado . . .�Sempre amar! observou ela, mais para si do quepara quem a ouvia. No ano quejá passou e por ocasião da Sra. Sant�Ana, aquivieram umas parentas minhas ecaçoaram comigo, porque eu não as entendia: tantoassim que uma delas, a NhãTuca, me disse: �Deveras, mecê ainda não gostoude nenhum moço? E eu respondi:

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Não assunto o que mecês estão a prosear�. Aquiloera certo, e tão verdade comoestar nosso Deus no paraíso... Hoje...�E hoje?�Hoje? repetiu a moça. Quem sabe se não era bemmelhor não ter nunca gostado deninguém?�Isso não está na gente. . . É ordem lá de cima. . .�Enfim, se for destino, que se cumpra.Conservava-se Inocência ainda um pouco arredadada janela, de modo que Cirino,para lhe falar baixinho, tinha o corpo inclinado dolado de dentro. Segurava asmãos da namorada e puxava-a com doce violência,quando mostrava quererafastar-se.Era o ardente colóquio dos dois cortado defreqüentes pausas, durante as quaisse embebiam recíprocos os olhares carregados depaixão.�Deixa-me ver bem o teu rosto, dizia Cirino aInocência Para mim, é muito maisbelo que a Lua e tem mais brilho que o Sol.E, apesar de alguma resistência, fraca embora, masconscienciosa, que lhe foioposta, conseguiu que a formosa rapariga serecostasse ao peitoril da janela.�Amar, observou ela, deve ser coisa bem feia.�Por quê?�Porque estou aqui e sinto tanto fogo no rosto!...Cá dentro me diz um palpiteque é pecado mortal que faço...�Você tão pura! contestou Cirino.

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� Se alguém viesse agora e nos visse, eu morria devergonha. Sr. Cirino,deixe-me . . . vá-se embora! . . . o Sr. me atiroualgum quebranto... aquela suamezinha tinha alguma erva para mim tomar... e mevirar o juízo...� Não, atalhou o mancebo com força, eu lhe juro!Pela alma de rainha mãe... oremédio não tinha nada!�Então por que fiquei... ansim, que me nãoconheço mais?... Se papaiaparecesse... não tinha o direito de me matar?...Foi-se-lhe a voz tornando cada vez mais baixa esumiu-se num golfão de lágrimas.Atirou-se Cirino de joelhos diante dela.�Inocência, exclamou, pela salvação de minhaalma lhe dou juramento, nada demau fiz para prender o seu coração.. Se você mequer, e porque Deus assimmandou... Sou um rapaz de bons costumes . Atehoje nunca tinha amado mulheralguma... mas não sei como deixar de amar umamoça como você... Perdoe-me; sevocê sofre... eu também padeço muito... perdoe-me...Alçara o mancebo um pouco a voz.De repente Inocência estremeceu.�Não ouviu ruido? perguntou ela com terror.�Não, respondeu Cirino.�Alguém acordou lá dentro...�Pois... então vá ver... o que é... e se não fornada, volte... Aqui a espero,escondido à sombra da parede...

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Minutos depois, reapareceu a moça.�Não vi nada, disse.� Então foi abusão.�É melhor que o Sr. se vá embora.�Não, Inocência tenha pena de mim... Eu nãopoderei vê-la tão cedo e... precisoconversar... mesmo para arranjo da nossa vida. . OManecão não tarda...�Ah! exclamou ela com sobressalto, então mecêsabe...�Sei; e desgraçadamente, breve está ele batendoaqui...�Eu bem dizia que o Sr. me havéra de perder...Antes de o ter visto... casarcom aquele homem, me agradava até... Era umanovidade... porque ele me disse queme levava para a vila... Mas agora esta idéia memete horror! Por que é que mecêmexeu comigo? Sou uma pobre menina, que nãotem mãe desde criancinha... Não hátanta moça nas cidades... nos povoados?... Por queveio tirar o sono... avontade de viver a quem era .. tão alegre... que atéhoje não pensou emmaldade... e nunca fez dano a ninguém?�E eu? replicou com energia Cirino, pensa entãoque sou feliz?... Olhe bem umacoisa Inocência: Digo-lhe isto diante de Deus: ouhei de casar com você... oudou cabo da vida... Quem arranjou tudo assim... foio meu caiporismo... Se eutivesse passado aqui antes daquele homem, queodeio, que quisera matar... nada

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impediria que eu fosse hoje o ente mais feliz domundo!... Mais feliz aqui nestesertão, do que o Imperador nos seus paços lá nacorte do Rio de Janeiro! Eu jálhe disse... culpa não tive...�Não há nada que nos possa salvar, atalhou amoça.�Nada?... Talvez... Soou nesse momento, erepentinamente, do lado do laranjalum assobio prolongado, agudíssimo, e uma pedra,arremessada por mão misteriosa ecom muita força, sibilou nos ares e veio bater naparede com surda pancada,passando rente à cabeça de Cirino.Deu Inocência abafado grito de terror e fechourapidamente a janela, ao passoque o mancebo, esgueirando-se com celeridade pelasombra, resoluto correu para oponto donde presumia ter partido a pedra.Não viu ninguém.Por toda a parte, o ruído misterioso e peculiar auma noite calma de verão.Percorreu em todos os sentidos o pomar, e só ouviua bulha dos seus passos.Afinal, de cansado, deixou o sitio e cautelosamentese dirigiu para o terreiroda frente.Quando lá chegou, parou atônito.O mesmo assobio, prolongado e finíssimo, destafeita talvez mais estridente,feriu-lhe os ouvidos.

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XIX�CÁLCULOS E ESPERANÇAS Apesar, porém, de jovem, apesar daviolência do amor que a prendia a Julião, sabia ela conter osmovimentos do coração e desconfiar de si mesma.Walter Scott, Peveril do Pico Lisa. � Contento que tenhasbastante resolução... Lucinda.� Que queres que eu façacontra autoridade de um pai? Se ele for inexorável aos meuspedidos?...Molière

Durante os dias de estada nas terras de Pereira, asquais não tinham limites nemvizinhos dali a muitas léguas, aumentou Meyer asua interessante coleção comextraordinária variedade de bichinhos e sobretudoborboletas.Tal era a alegria de que se possuíra por esse faustomotivo, que a cada momentoa manifestava num tom de franqueza capaz de porsi 80 convencer o mais descrentedos homens em questão de sinceridade.�Sr. Pereira, dizia o naturalista, afianço-lhe que emparte alguma do Brasilestive ainda tão bem como em sua casa.�Eu te entendo, maroto, rosnava o mineiro.�Deveras!... Só o que sinto é que sua filha não nos

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aparecesse mais... Sintomuito, na verdade...Sorriu-se Pereira com riso amarelo e replicou,apertando os punhos de raiva:�Mochu sabe. isto são costumes cá da terra. Asmulheres não são feitas para...� Para quê? perguntou Meyer com pausa.� Para prosearem com qualquer um...�Que é prosearem?�É conversar, dar de língua, explicou Cirino.� Obrigado, doutor, retorquiu Meyer, agradecendomais aquela indicaçãofilológica que foi imediatamente enriquecer o seucaderno de notas. Prosear econversar. Muito bem!. . Pois é pena, Sr. Pereira,porque sua filha é uma bonita senhora!�Nesta arapuca não caio eu, seu tratante... Hei detoda a vida andar com olhoem ti, murmurava o mineiro.�E pena, confirmava Meyer duas e três vezes .. épena...Por certo não era esta a linguagem mais própriapara desvanecer as prevenções ereceios de Pereira; ao invés, mais e mais recresciaa sua vigilância sobreMeyer, o que proporcionava ao verdadeiro culpado aliberdade de que carecia paratornar a ver o mal guardado tesouro.Não foi todavia sem custo a nova conferência.Ficara a pobre menina tãoimpressionada com o final da primeira entrevista,que, por alguns dias, mal saiado quarto.

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Escrever-lhe Cirino, era de todo inútil, por isso queela nunca aprendera a ler;e, depois, qual o meio de lhe fazer chegar às mãosqualquer papel ou recado?Sobravam, portanto, razões para que o jovem seralasse de impaciência e quasedesesperasse da sorte. Passava as noites em claro,metido no laranjal eprocurando uma solução a tanta dificuldade;atordoavam-no ainda aqueles doisassobios que não podia explicar e sobretudo aquelapedrada tão bem dirigida, quepor pouco talvez o houvesse estendido por terra.Numa dessas noites de ansiedade, viu afinalreabrir-se a janela de InocênciaA pobrezinha, abrasada também de amor, queriarespirar o ar da noite e beber naviração do sertão um pouco de tranqüilidade parasua alma não afeita aotumultuar dos sentimentos que a agitavam e, quemsabe? verificar se por ai nãoandava rondando aquele que no seio lhe inocularatamanho desassossego, ímpetostão desconhecidos e violentos, superiores a todasas suas tentativas deresistência.Cirino, rápido como uma seta, rápido como aquelapedra arrojada tãovigorosamente, achou-se ao pé da janela e cobriude beijos as mãos da sua amada.�O grito? balbuciou ela. Dois gritos... e apedrada... Que foi?�Ah! não foi nada, respondeu apressadamente

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Cirino; foi ver no laranjal... eraum macauã O que pareceu pedrada era um noitibóque frechou para mim e veio darcom a cabeça na parede.�Deveras? perguntou ela incrédula.�Deveras. A principio tomei também um grandesusto. Depois, verifiquei que nãopassava de miragem. De noite, a gente em tudo vêmaravilhas... Para mim, a únicaque vi era você, minha vida, meu anjo do céu...Com este madrigal encetou Cirino uma conversaçãocomo a da primeira noite, comoa que balbuciam duas cândidas almas na eterna esempre nova declaração de amor,desde que Adão e Eva a trocaram. a sombra dasmaravilhosas árvores do Éden.Mostrou-se o moço receoso da rivalidade de Meyer.Riu-se ela e gracejou, comespírito e bondade, da figura do estrangeiro. Comtoda a confiança, chegou aidear planos de risonho futuro:�Agora, que sei o que é amar, direi a meu pai quejá não quero o Manecão, ..� E se ele insistir?� Hei de chorar .. chorar muito...� Lágrimas, muitas vezes, de nada servem.�Mas tenho cá comigo outro recurso...� Qual é ? perguntou Cirino.� Morrer! . . .�Não! Há outros... hei de dizer-lhe...Tomou Inocência ar grave e meio ofendido.�Escute, Cirino, observou ela, nestes dias tenhoaprendido muita coisa. Andava

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neste mundo e dele não conhecia maldadealguma... A paixão que tenho por mecêfoi como uma luz que faiscou cá dentro de mim.Agora começo a enxergar melhor...Ninguém me disse nada; mas parece que a minhaalma acordou para me avisar do queé bom e do que é mau... Sei que devo de ter medode mecê porque pode botar-me aperder... Não formo juízo como, mas á minha honrae a de toda a minha famíliaestão nas suas mãos...Inocência quis interromper Cirino.�Deixe-me falar, deixe contar-lhe o que me enche opeito... Depois ficareisossegada... Sou filha dos sertões; nunca morei empovoados, nunca li em livros,nem tive quem me ensinasse coisa alguma... Se euo magoar, desculpe, será semquerer... Lembra-me que, há já um tempão, pararamaqui umas mulheres com unshomens e eu perguntei a papal por que é que elenão as mandava entrar cá paradentro, como é de costume com famílias... O pai merespondeu: �Não, Nocência,,são mulheres perdidas, de vida alegre. Fiquei muitoassombrada.�Mas, então,melhor, se são alegres hão de divertir-me.�Aquilo égente airada, sem-vergonha,secundou ele. �Tive tanto dó delas que mecê nãoimagina. Depois fui espiar..caíam tontas no chão... pitavam e cantavam muitoalto com modos tão feios, queme fizeram corar por elas! E são os homens que

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fazem ficar ansim as coitadas!...Antes morrer... Parece-me que Nossa Senhora há deter pena dos que amam... masdesampara com certeza os que erram... & nãohouver outro remédio, temos que noslembrar que as almas, quando se acaba tudo nestemundo, vão, pelos céus cheiosde estrelas, passeando como num jardim... Se eume finasse e mecê também,punha-se a minha alma a correr pelos ares,procurando a de mecê procurando,procurando, e então nós dois juntinhos íamosviajando ora para aqui, ora paraali, às vezes pelo carreiro de São Tiago, as vezesbaixando a este ermo a veronde é que botaram os nossos corpos... Não era tãobom?Envolvida em sua pureza como num manto debronze, entregava-se Inocência comexaltamento e sem reserva a força da paixão. Eessa natureza pudica e delicada atal ponto dominava a Cirino que invencívelacanhamento o prendia ante a débildonzela, alheia a todos os mistérios da existência.Por isso, ao inflamado mancebo não acudia a idéiade saltar por aquela janela emenos a de praticar qualquer ação desrespeitoso.Consumia o tempo em beijos nasmãos da namorada, em tagarelices de amor,protestos, juras e ilusões de futuro.�Amanhã, dizia Cirino, hei de, com cuidado,assuntar a seu pai.. falando no seucasamento... depois... hei de virar a conversa para

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mim...�Papai, observou a menina, é muito bom, muitomesmo. Mas tenho um medo dele!Tem um gênio meu Deus!...�Quanto a mim... hei de falar bem claro eexplícito... O que quero, é que vocême seja constante.Mas do sentimento de temor, que sobressaltavaInocência, também participavaCirino. Por isso, chegado o dia, não ousava tocar namelindrosa questão, bem queas continuas queixas de Pereira contra Meyer lhedessem ensejo mais ou menosfavorável para desembaraçadamente encetá-la. Comgosto adiava o momento decisivoe esperava perplexo qualquer incidente, que melhorservisse a seus planos,Entretanto, apesar de se acumularem os dias semque trouxessem modificaçõesnaquele estado de coisas, doce esperança pairavano fundo do seu coração,consentindo-lhe planos de venturoso porvir e felizdesenlace às dúvidas esofrimentos em que vivia.

XX�NOVAS HISTÓRIAS DE MEYER Disse-me Sancho:Cada qual abrabem o olho e fique alerta, porque o diabo entrou na dança ese lhe deram ensejo, ver-se-ão maravilhas. Virai-vos emmel, e as moscas vos

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comerãoCervantes, D. Quixote, Cap. XLIX

Uma ocasião, de volta do trabalho diário, atingiu ahabitual irritação Pereiracontra Meyer grande intensidade. Entraracabisbaixo, sorumbático e fez gesto aCirino de que precisava falar-lhe a sós. Dali apouco, saindo ambos, caminharamsilenciosos pela estrada ate a um regato que ficavaa meio quarto de légua dacasa.�Que terá este homem hoje? dizia Cirino consigomesmo. Talvez vá chegando omomento de tratar do assunto.Voltou-se de repente Pereira e, com voz alterada,prorrompeu em exclamações:�Sabe, doutor, que não posso mais aturar essealamão?... Aquilo é ummandingueiro, uma suçuarana, vinda do inferno parame botar a perder!... Meuirmão... meu irmão, que presente me fez você! . . .�Mas, que houve? perguntou Cirino.�Olhe... se não fosse aquela carta, e a palavra quedei ao maldito... mil raioso partam, surucucu do diabo! potro melado!... já umbom balázio lhe teria varadoos miolos.�Que novidades há então, Sr. Pereira? tornou ainquirir Cirino.�Vim mesmo ate aqui para tirar este peso docoração...�Mas...

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�Sabe o senhor que aquele Mochu é pior que umtigre preto?... Parece homemà-toa, um punga, incapaz de matar uma pulga, nãoé?... Pois aquilo é uma almadanada... um sedutor...�Sempre as suas desconfianças! observou Cirino.�Desconfianças, não: agora, certeza. Pois o quequer dizer o homem todo odia... estar a lembrar-se da menina..- Procurartrazê-la a conversa?�Como estásua filha? pergunta-me ele sempre. �Esta boa, deuma vez para todas. E ele,toda a vida a insistir... Isto me põe o sangue aferver, mas vou-lhe respondendocom bom modo... Hoje, saiu-se o cujo de seuscuidados e disse-me como quem tomaleite com farinha de milho: �Sua filha vai casar?�Vai, respondi-lhe todotrombudo. � Com quem? Tive vontade de lhe dizer:Não é da tua conta, seubisbilhoteiro, seu biltre, e atacar-lhe uma cabeçada,mas, como é meu hóspede,secundei-lhe enfarruscado: com um homem dosertão que há de amolar a faca napele da barriga do mariola que vier mexer com amulher dele. O alamão não se deupor achado e, com todo o sem-vergonhismo, meretrucou: Pois o senhor faz mal. Asua filha é muito mimosa e deveria casar comalguém da cidade.�Então, perdi apaciência: Mochu, lhe disse, cada um manda em suacasa como entende: eu naminha, não quero ser anarquizado; ele, quando me

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viu fulo de raiva, pediu-me mildesculpas, contou-me muitas histórias, isto, aquilo,aquilo outro, et coetera etal, que era para bem de minha filha e não sei maiso que, numa língua que poucoentendi...� Não fez bem, atalhou Cirino.�Boa dúvida! Aquilo é uma alma danada... boapara as caldeiras de PedroBotelho, um judeu... enfim, um caçador deanicetos: está dito tudo! . . . Masainda não lhe contei o mais. . . Parece que hojeestava mesmo com o diabo nocorpo... Meteu-se no mato perto da minha roca,onde eu trabalhava com os meuscativos, e lá fazia um barulhão a quebrar galhos eromper o cipoal como se fosseanta; de repente ouvi uma gritaria muito grande;era o tal Meyer com o camaradaJosé Pinho a berrar como dois minhocões. Corri aver o que era e os achei muitocontentes a olhar para uma barboleta grande jáfincada num pau de pita. 0 alamãopôs-se a pular como um cabrito.�É novo, me disse ele, é novo! �Novo o que,Mochu?�Este bicho, ninguém odescobriu antes de mim! É coisa minha... Entendeu?E vou botar-lhe o nome de sua filha!...Quando ouvi aquilo, fiquei tão passado, que nãopude engolir o cuspo da boca...Vejam só... o nome de Nocência numa bicharada!.Até parece mangação... Agora,quero saber do doutor o que devo fazer... Venho

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pelo menos desabafar... Nãoposso meter uma bala naquele patife como bemmerecia... mas também e demaistê-lo em casa... é demais! Peço-lhe um conselho...Felizmente, sempre o tragoarredado de casa, e a menina de nada desconfia; docontrário como mulher que é,havéra de me dar que fazer... Também não sei porque é que o Manecão nãochega... só ele é quem havia de me livrar destesapuros... Uma vez que o talalamão visse a rapariga com o noivo, deixava-asossegada... Não acha? Olhe,palavra de honra, isto ansim não é viver! Fui feitopara dizer o que penso,tratar bem a todos. .. mas estes modos que tenhoagora, só Deus sabe quanto mecustam... Até o meu serviço vai sofrendo, porquemuitas vezes largo a roga eponho-me a correr atrás dos bichinhos, só para nãodeixar de olho o tal marreco,em lugar de feitorar o trabalho dos negros... O meufazendeiro é um diabo ruim ejá velho... Ah! meu irmão, que carga você me pôsem cima das costas! Eu então,que não nasci para esconder o que sinto cádentro!...E Pereira, de tão atribulado que trazia o espíritodeixou-se cair num cômoro de terra.Cirino, defronte dele, ficara de pé e pensativo.Afinal, depois de breve dúvida, decidiu tentarfortuna e encetar a grave questãoque lhe importava a felicidade.

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�Sr. Pereira, disse bastante comovido, acho que oalemão faz mal em andarbatendo língua em pessoa da sua família e dourazão às suas inquietações...�Ah! vosmecê é homem de confiança.�Mas, continuou o moço a custo e parando em cadapalavra, penso que num pontotem ele alguma razão... É quando... lhe deu...conselho... que o senhor nãocasasse sua filha... assim... sem perguntar a ela...se... enfim não sei... mastalvez o Manecão lhe não agrade...Ergueu-se Pereira de um pulo e, aproximando aface, repentinamente incendida decólera, junto ao rosto de Cirino:�O quê? exclamou com voz de trovão, eu...consultar minha filha? Pedir-lhelicença... para casá-la?... O senhor está doido?...Ou está mangando comigo...Ai... que também...E vago lampejo de desconfiança lhe iluminou achamejante pupila.Compreendeu logo Cirino a perigosa situação e,sem demora, tratou de desfazer amá impressão que produzira.�Ah! disse com fingido riso, é verdade... Isto sãocostumes da cidade... aqui,no sertão, há outros modos de pensar... Desculpe-me, Sr. Pereira, este Meyer éque está a contundir-me todas as idéias. Pois eujulgo... já que pede a minhaopinião, que o senhor deve continuar a ter olho noestrangeiro... e eu hei de

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ajudá-lo, quanto estiver nas minhas forças.�Também agora, disse o mineiro depois de ligeirapausa, não há de ser por muitotempo... Há mais de um mês que ele aqui pára e jáme... contou que breve segueviagem para Camapuã....Desenganou-se afinal... Otal meco não chegará ate lá...mas é o mesmo. Um destes dias, leva por ai algumtiro para lhe botar juízo nacachola, ou alguma facada que lhe ponha as tripasa mostra... Nem sempre há deter cartas de irmão para sair-se bem da rascada... Odiabo o leve para longe!...Voltemos, Sr. Cirino... Já demais temos deixado obicharoco sozinho,E encaminhou-se para a vivenda, acompanhado deCirino. Ia este desalentado; narealidade, bem rentes lhe ficavam cortadas asesperanças que o haviam animado natentativa de oposição ao projetado casamento daamada com o terrível e fatalManecão.Ainda a meio do caminho, voltou-se Pereira e disse-lhe peremptoriamente:�Deveras, Sr. Cirino, aquelas suas palavras mebuliram com o sangue todo...Ainda o sinto galopar nas veias... Que idéiasestúrdias!... Que lembrança! Ah...a tal vida das cidades... cruzes!

XXI�PAPILIO INNOCENTIA Considerai a arte da composição

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das asas da borboleta: a regularidade da escamas, cobrindo-as como se fosse penas; a variedade das cambiantes cores:a tromba enrolada, com que suga o alimento no seio dasflores : as antenas, órgãos delicados do tato, que lhecoroam a cabeça, cercada de uma rede admirável de mais demil e duzentos olhos...Bernadin de Saint-Pierre, Harmonias da Natureza

Meyer, que estava sentado na soleira da porta comas compridas pernasencolhidas, ergueu-se precipitadamente ao avistarCirino e correu ao seuencontro.Trazia o coração no rosto, um coração cheio dealegria e triunfo.�Oh! Sr. doutor, exclamou. todo risonho, venha,venha ver uma preciosidade. ..uma descoberta. .. espécie nova. :. não há emparte alguma... Ouviu? Coisa assimvale um tesouro... E fui eu que o descobri!... Nemsequer Juque me ajudou...pois estava deitado e dormindo... Não é verdade,Sr. Pereira?�Veja, murmurava o mineiro, que barulhada faz elecom o tal aniceto... Aomenos, se fosse um animal grande!�E uma espécie... nova... completamente nova!Mas já tem nome... Batizei-a

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logo... Vou-lhe mostrar... Espere um instante...E, entrando na sara, voltou sem demora com umacaixinha quadrada defolha-de-flandres, que trazia com toda a reverenciae cujo tampo abriucuidadosamente.Da própria garganta saiu um grito de admiração,que Cirino acompanhou, emboracom menos entusiasmo.Pregada em larga tábua de pita, via-se formosa egrande borboleta, com asas meioabertas, como que disposta a tomar vôo.Eram essas asas de maravilhoso colorido; assuperiores, do branco mais puro eluzidio; as de baixo, de um azul metálico de brilhovivíssimo.Dir-se-ia a combinação aprimorada dos dois maisbelos lepidópteros das matasvirgens do Rio de Janeiro, Laertes e Adônis, estes,azuis como cerúleo cantinhodo céu, aqueles, alvinitentes como pétalas demagnólia recém-desabrochada.Era sem contestação lindíssimo espécime,verdadeiro capricho da esplêndidanatureza daqueles paramos. Também Meyer nãotinha mão em si de contente.�Este inseto, prelecionou ele como se o ouvissemdois profissionais na matéria,pertence à falange das Helicônicas. Denominei-alogo, Papilio Innocentia, emhonra à filha do Sr. Pereira, de quem tenho recebidotão bom tratamento. Tributotodo o respeito ao grande sábio Linneu �e Meyer

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levou a mão ao chápeu�mas masa sua classificação já está um pouco velha. A classee, pois, Diurna; a falange,Helicônia; o gênero Papilio e a espécie, Innocentia,espécie minha e cuja glórianinguém mais me pode tirar... Daqui vou, hojemesmo, oficiar ao secretárioperpétuo da Sociedade Entomológica deMagdeburgo, participando-lhe fato tãoimportante para mim e para a sábia Germânia.Dizia Meyer tudo isto com legítima ufania e lentidãodogmática.Depois, com mais volubilidade, e apesar de tropeçaramiudadas vezes em palavras,o que, para comodidade dos leitores, temos quasesempre deixado de indicar,continuou:�Reparem, meus senhores, neste lepidóptero comos olhos cuidadosos da ciência.Tem quatro pés caminhantes: as antenas determinação comprida e oval, cavada emforma de colher; os palpares maiores do que acabeça e escamosos; tromba todabranca e lábio quase nulo. Não perdi nem sequerum pouco do seu pó, porque o pó,um só grão de pó, vale tanto como uma pena depássaro, e a comparação éperfeita, visto como cada uma destas escamas, àsemelhança das penas, éatravessada por uma traquéia, por onde circula o ar.Oh! que achado! prosseguiuele. Que triunfo para mim! A SociedadeEntomológica de Magdeburgo há de ficar

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muito orgulhosa... Sem dúvida alguma farão umasessão solene, extraordinária.Mein Gott!... Estou que não posso de alegria...Também, daqui a três ou quatrodias, vou-me embora desta casa... ainda que cheiode saudades. . .Deveras? atalhou Pereira, vai partir?�Sim, senhor. O meu itinerário é para Camapuã;depois. vou a Miranda e talvezNiac... Hei de subir até ao Coxim e ai, ou embarcopara Cuiabá no Rio Taquari,ou sigo por terra pelo Pequiri.�E o senhor volta para sua pátria?�Boa dúvida!... Daqui a ano e meio, pretendoapresentar a minha coleção todaarranjada à Sociedade Entomológica...�Homem, observou Pereira com intenção que seuhóspede não podia nem de leveperceber, eu quisera já estar nesse dia. Daqui a anoe meio, que voltas terádado o mundo?...�Terá percorrido, respondeu Meyer gravemente,dezoito signos do Zodíaco�Pois bem, eu queria ver isso... Já me tarda essedia.�Quando ele chegar, continuou o alemão comsinceridade e um tanto comovido, heide lembrar-me com gratidão do tratamento querecebi... nos sertões do Império...e hei de dizer... bem alto... que os brasileiros:.. sãofelizes porque sãomorigerados e têm muito boa Índole hospitaleiroscomo ninguém.

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�Acrescente, interrompeu Pereira com algumazedume, que zelam com todo ocuidado a honra de suas famílias.Obedeceu docilmente Meyer e repetiu palavra porpalavra.�E zelam com todo o cuidado a honra de suasfamílias.�Multo bem, replicou o mineiro, diga isso, e o Sr.terá dito uma verdade.

XXII � MEYER PARTE Adeus, pois amigos bela companhia!Aos lares distantes cada qual de nós, por caminhosdiversos, deve um dia chegar.Catulo, Epigrama XLVI

Não haviam descontinuado as visitas feitas a Cirinopor enfermos de muitasléguas em torno. Tão freqüentes e teimosos eramos casos de sezões ou maleitasque a porção de sulfato de quinina que trouxera emsuas canastras estava todaesgotada, pelo que se vira levado a substituir essemedicamento sem tantaconfiança, porém, por plantas verdes do campo ouervas secas, fornecidas por unsbolivianos que encontrara em Minas, vindos deSanta Cruz de ia Sierra emperegrinarão pelo interior do Brasil e a tratarem dedoentes, sem Chernoviz em

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punho, nem aqueles resquícios de conhecimentosterapêuticos que ostentava onosso doutor.Entre os enfermos que o vinham diariamenteprocurar, alguns acusavam moléstiascujas qualificações eram complicadas eestrambóticas; assim declaravam-sesalteados de engasgue, espinhela caída, mal deencalhe, tosse de cachorro,feridas brabas, almorreimas, eripelas, atéassombração e mau-olhado.Quem se queixava de engasgues era o capataz deuma fazenda minada do Vau,distante umas boas cinqüenta léguas.�Sr. doutor, disse c enfermo, a minha vida é umcontinuo lidar de sofrimentos.Estou com este mal vai fazer cinco anos no SãoJoão por sinal que me veio comuma grande dor na boca do estómbago. Vezes háque não posso engolir nada, sembeber muitos galos de água, de maneira que meencharco todo e fico que mal memexo de um lugar para outro.�E a dor, perguntou Cirino, ainda a sente?� Toda a vida, respondeu o capataz... O que meaflege mais é que há comidasentão que não me passam a goela... É um fastiodos meus pecados... Boto unspedacinhos no bucho e parece-me que dentro tenhoum bolo que me está a subir edescer pela garganta...Receitou o médico umas doses de erva-de-marinheiro como emético, e fez mais

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algumas prescrições que o enfermo ouviu com todaa religiosidade.No estado de perturbação moral em que se achavao jovem facultativo, natural eque fosse uma coisa por outra; mais importanteporém, era a fé que suasindicações incutiam a fé, essa alavanca poderosa damedicina, esse contingenteprecioso que o espírito ministra aos ingentesesforços da natureza na suaconstante lota contra os princípios mórbidos.O doente de espinhela caída acusava um pesomuito forte e perene no peito e aimpossibilidade de levantar as mãos juntas amesma altura.Prescreveu-lhe Cirino amargo do campo, genciana equina, e ordenou-lhe certascautelas firmadas na voz geral, mas com. algumfundo de razão; verbi c rata.engolir sempre a saliva e sobretudo deixar de fumardepois de comer.O infeliz moço, ao passo que tratava de curar osoutros, mais que ninguémprecisava de quem nele cuidasse, pelo menos daalma.Via não só Meyer fazendo os seus preparativos departida, e em véspera dedeixá-lo a sós com Pereira, podendo este descobrirafinal o engano em que havialaborado, como também a clínica quase esgotada,aconselhando-lhe a conveniênciade transportar-se para outro ponto e continuar ainterrompida jornada.

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Tudo isto, e o amor a aumentar, a tirar-lhe todo osossego, a consumi-lo a fogo lento...Meyer, na realidade, desde o achado da suamagnífica borboleta. não pensavasenão em partir�Oh! dizia ele, eu quisera estar já emMagdeburgo... Quantas léguas, MeinGott!... Papilio Innocentia... a minha glória! Quediz, Sr. Cirino?...�E verdade... mas quem sabe se o senhor nãodeveria ficar mais tempo aqui?...Talvez achasse outra borboleta nova...�Não, é impossível... Era felicidade demais... Alémdisso, o dinheiro não mehavia de chegar.�Oh! posso emprestar-lhe....�Muito obrigado... mas é de todo Impossível aminha estada aqui... Veja osenhor: tenho ainda que ir a Camapuã, a Miranda, aCuiabá para então voltar... Esó me restam poucos meses... A SociedadeEntomológica de Magdeburgo conta comigona primavera do ano que vem...Metida uma vez essa idéia na cabeça, Meyer nãodeixou mais de falar na suaviagem um só instante e, para que a execuçãocorrespondesse ao prometido, mandouna tarde seguinte, José Pinho, o camarada, alçarcargas às costas do burro,depois de as ter, ele próprio, arranjado e revistadocom toda a cautela.Julgou o carioca nesse momento dever lavrar umprotesto:

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�Mochu, disse ele, vai recomeçar com o seu modode andar por essas estradas ànoite.. Afinal havemos todos de cair nalgumaburaqueira, eu, o senhor, o barrode carga e os bichos; e não chegaremos, nem eu aoRio de Janeiro, nem eles e osenhor à sua terra. Enfim, já estou cansado de oavisar.No momento da partida, apresentava o naturalistaaquele mesmo aspecto da célebrenoite da chegada; eram aquelas mesmasfrasqueiras a tiracolo, aquele mesmo artranqüilo e bonachão com que viera, fora de horas,pedir pousada a casa de Pereira.Este, ao ver o hóspede a cavalo e prestes a deixarpara sempre a sua morada,sentiu-se possuído de alegria, mesclada, sem saberpor que, com surpresarepentina e intima, de tal ou qual comoção. Nofundo, achou de si para si asdesconfianças mal empregadas, e deixou-se levarpela simpatia que em todosincutia o caráter naturalmente inofensivo e meigodo saxônio.�Chegou, declarou Meyer, a hora da minhadespedida.E, sacudindo com força a mão e o braço do mineiro:�Sr. Pereira, meu amigo,adeus!... nunca mais nos havemos de ver... mas heide lembrar-me do senhor todaa vida... Quando eu estiver na minha pátria, daqui amiihares e milhares deléguas... pelo pensamento recordarei os dias

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felizes... que aqui passei.�Oh! Sr. Meyer, balbuciou Pereira.�Sim, felizes, continuou Meyer com muita lentidão,felizes porque correram...sem eu perceber que o tempo estava caminhando...De todo o Brasil fica em mim alembrança... mas desta sua casa... essa lembrançaé mais viva e mais forte.Acompanhara o alemão o seu pensamento comacentuado gesto, acenando com o punhofechado para mostrar a lealdade daquelasimpressões.Voltando-se para Cirino, acrescentou:�Sr. doutor, as suas receitas estão todas marcadasno meu caderno... O senhorpode enganar-se às vezes... mas as suas intençõessão sempre boas... e issobasta para desculpá-lo... Eu...Interrompendo o que ia dizendo, ficou instantes aolhar para Cirino e Pereira,que estavam igualmente silenciosos, e uma lágrimacomprida deslizou-se-lhe pelaface, sem que a fisionomia mostrasse a menoralteração.�Adeus! concluiu ele de repente.�Boa viagem, Sr. Meyer, boa viagem, disse Pereiraajudando-o a montar a cavalo.�Adeus! adeus... repetiu ele...E interpelando o camarada:�Juque, vá na frente!... Toque pouco no burrinho...Nosso pouso é daqui a meialégua...Deu Meyer então de rédeas e caminhou a passo,

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logo após de José Pinho, estemunido de cabeçudo cacete, evidentemente hostilas costas do cargueiro entregueaos seus cuidados.�Lá vai o homem, exclamou Pereira ao ver atropinha pelas costas. E umalivio... Ele, coitado, não era mau... mas não tinhamodos... Safa, hei de melembrar para sempre do tal Sr. Meyer! Foi umacampanha.. Ué... Olhe, Sr.Cirino... não está ele de volta?... Teria esquecidoalguma bugigangasCom efeito reaparecia a trote o alemão em carne eosso, como quem vinha procurarou dizer coisa de importância.�Então que tem? perguntou Pereira adiantando-see alçando a voz. Deixou algumtrem? Daqui a pouco é escurão.Meyer, no entanto, ia chegando e de certa distanciaentrou a explicar a rasão da volta:�Não deixei coisa alguma, Sr. Pereira. Tão-somentefaltei a um dever.�Qual é? indagou o mineiro.�Não me despedi de sua filha...�Ah! replicou Pereira com vivacidade... não erapreciso... tanto mais queela... está dormindo... meio adoentado... Há poucotinha muito peso na cabeça...Eu lhe hei de dizer... Não se incomode . . .�Pois então, observou Meyer com muita gravidade,diga-lhe que tem em mim umcriado, em toda a parte onde esteja... O seu nomeficou para sempre na ciência e

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a estima em que a tenho é grande... E uma moçamuito bela... digna de ser vistana Europa... �Pois não, pois não, interrompeuPereira, vá sem susto...�Sim, eu me vou, adeus!�Vá indo... olhe que o Sol dobra de repente aquelemato e a noite cai logo...�Sim, sim, adeus, disse ele despedindo-se de umavez.E na estrada areenta, à luz do astro quedescambava, foi-se tornando comprida amais e mais a sombra do bom Meyer, à medida queele marchava atrás do seucamarada, do cargueiro e da coleção entomológica.

XXIII � A ÚLTIMA ENTREVISTA Está a máscara da noite sobre meurosto: a não ser ela, verias as minhas faces tintas dorubor virginal.Shakespeare, Romeu e Julieta, Ato 11

Mais cresce a luz, mais aumentamas trevas das nossas desgraças.Shakespeare, Romeu e Julieta,Ato IV

Grave modificação trouxe a retirada de Meyer nosistema de viver daquelavivenda, onde se agitava um dos problemas maiscomezinhos da natureza moral, masque ali apresentava cores algum tanto carregadas,

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senão já sombrias.Fora Pereira dormir no interior da casa, passando alia maior parte do tempo.Assim os encontros dos dois apaixonados tornaram-se de todo impossíveis, e, nãotendo mais a atenção do mineiro o alvo que semprecolimara durante a estada doalemão, começava como era de prever, a voltar-separa Cirino, a quem confessouter tratado Meyer com injusta prevenção.� Hoje, dizia o mineiro, dói-me a consciência domodo por que desconfieidaquele homem... Quem sabe se tudo que euparafusei não foi abusão cá dacachola? Sr. Cirino, quando a gente entra a dar voltaao miolo.. é que vê quetodos têm queda para malucos... Sim senhor!...Hoje estou convencido que o talalamão era bom e sincero... Olhou para a menina...achou-a bonitinha... e disseaquele despotismo de asneiras sem ver a mal... Empessoa que não guarda o quepensa, é que os outros se podem fiar... Às vezes operigo vem donde nunca seesperou... Enfim não me arrependo muito de terfeito o que fiz... Receei e tomeitento...Amiudando-se estes e outros dizeres iguais, deramque refletir a Cirino. De umahora para outra compreendeu que as vistasinquisitoriais poderiam tornar a suaposição insustentável.Por enquanto tratou de encontrar-se com Inocência.

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Grandes eram as dificuldades;o meio único, tentar novamente as entrevistasnoturnas; pelo que do laranjal nãoarredava pé, noites e noites inteiras, ficando alicom os olhos presos à janelada querida do coração.Certa madrugada, viu afinal a sombra de Inocência.Achou-se, num ápice, o mancebo junto dela eagarrou-lhe com violência nas mãos.�Enfim, exclamou ele, eu a vejo.�Meu pai, murmurou a moça com voz tão fraca quemal se ouvia, pode acordar...� Não importa, replicou Cirino desabrido, descubra-se tudo... não posso maisviver assim,..�Xi! observou ela, cuidado! Se ele nos acha aqui,mata-nos logo... Olhe, vá-meesperar junto ao corguinho para lá do laranjal...daqui a nada vou ter commecê... A porta esta só encostada . . .O moço fez sinal que obedecia e sumiu-seincontinenti na escuridão do pomar.Aquela hora dava a Lua de minguante algumaclaridade à terra; entretanto, comoque se pressentia outra luz a preparar-se no céupara irradiar com súbitoesplendor e infundir animação e alegria à naturezaadormecida. Nos galhos daslaranjeiras, ouvia-se o pipilar de pássaros prestes adespertar, um gorjeiointimo e aveludado de ave que cochila; e ao longeum sabia mais madrugadordesfiava melodias que o silêncio harmoniosamente

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repercutia. Riscava-se ooriente de dúbias linhas vermelhas, prenúncio malpercebível da manhã; nosespaços pestanejavam as estrelas com brilhobastante amortecido, ao passo quefina e amarelada névoa empalecia o tênuesegmento iluminado do argênteo astro.Não era mais noite; mas ainda não era sequer aaurora.Tão comovido se sentia Cirino, que teve de sentar-se, enquanto esperava por Inocência.Esta não tardou: vinha vestida de uma sala dealgodão grosseiro e, à cabeça,trazia uma grande manta da mesma fazenda, cujasdobras as suas mãos prendiamjunto ao corpo. Estava descalça, e a firmeza comque pisava o chão coberto deseixinhos e gravetos, mostrava que o hábito lhehavia endurecido a planta dospés, sem lhes alterar, contudo, a primitiva elegânciae pequenez.Parecia muito assustada, e, mau grado seu, dosolhos lhe rolavam lágrimas a fio.O mancebo, apenas a avistou, correu-lhe aoencontro.�Inocência, exclamou ele notando um gesto dedúvida, nada receie de mim... Heide respeitá-la, como se fora uma santa... Nãoconfia então em mim?...�Sim! disse ela apressadamente. Por isso é quevim até cá... Entretanto, estoucom a cara ardendo... de vergonha...E levando uma das mãos de Cirino às suas faces:

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�Veja, Cirino, como tenho o rosto em brasa...Por que é que mecê veio bulir comigo? Eu era umamoça sossegada... agora, semecê não gostasse mais de mim... eu morria...� Deveras?�Eu lhe juro... t: mais fácil apagarem-se derepente estas estrelas todas, doque eu deixar de amá-la...�E Manecão? perguntou ela com terror.�Oh! esse homem, sempre esse nome maldito!...�Há de ser meu marido...�Isso nunca, Inocência... É impossível!... E sefugíssemos?... Olhe, amanhã aestas mesmas horas ou mais cedo, trago para aquidois bons animais... Você montanum, eu noutro... batemos para Sant�Ana e, agalope sempre, havemos de chegar aUberaba... onde acharemos um padre que noscase... Vamos, ouviu?�E mecê havia de me estimar toda a vida?�Sempre... Diga, sim... diga pelo amor de Deus, eestamos salvos. . . diga!� E meu pai, Cirino? Que havéra de ser? .. Atirava-me a maldição... eu ficavaperdida... uma mulher de má vida... sem a bênçãode meu pai... Não... mecê estáme tentanto... Não quero fugir... Antes a desgraçapara toda a existência... masfique eu sendo o que meu nome diz que sou... Jámuito peco, fazendo o que faço..Mecê é moço da cidade; não lhe custa enganar umacriatura como eu... Até...�Pois bem, interrompeu Cirino, você não quer?...

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não falemos mais nisso .. Nãohei de querer, senso aquilo que achar bom... E seeu, por fim, me decidir afalar a seu pai?�Deus nos livre! retorquiu ela aterrada. Pensei aprincipio que pudera ser, masdepois vi que era pior... Mecê não conhece o que épalavra de mineiro... ferroquebra, ela não... Manecão? há de ser genro dele...�Quem sabe, Inocência? Hei de falar tanto... pedircom tanta humildade.�Ché, que esperança!... de nada serviria...�Então, que fazer? bradou o moço. A que Santaagarrar-nos? Por que é que o céunos quer tanto mal?E ocultando a cabeça entre as mãos, desatou achorar ruidosamente. Inocência,por seu lado, encostou a fronte ao ombro doamante, e ambos, unidos, choraramcomo duas crianças que eram.Foi ela quem primeiro rompeu o silêncio�Ah! meu Deus, se o padrinho quisesse!...� Seu padrinho? perguntou Cirino. Quem é?... quemé ele?�Um homem que mora para lá das Parnaíbas, jános terrenos Gerais.�Onde?... É longe?...�Meio longe, meio perto. .. Mecê não conhece oPauda ?�Conheço... A 16 léguas do Rio Paranaíba...�Pois é aí que padrinho pára... A esquerda dafazenda do Pauda, numas terras desesmaria...

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�E como se chama ele?�Antônio Cesário... Papai lhe deve favores dedinheiro e faz tudo quanto elemanda... Se dissesse uma palavra, Manecão?havéra de ficar atrapalhado...�Oh! exclamou Cirino com confiança, estamossalvos então!,.. Amanhã mesmo,monto a cavalo e toco para lá... Daqui à vila sãosete léguas... Até lá, umasdezessete... f: um passeio... Chego... conto-lhetudo... ponho-me de rastos aosseus pés... e...�Mas, interrompeu Inocência, não lhe fale em mim,ouviu? Não lhe diga quetratou comigo... que comigo mapiou... Estava tudoperdido... Invente umashistórias... faça-se de rico... nem de leve deixeassuntar que foi por meu juízoque mecê bateu à porta dele... Hi! com gentedesconfiada, é preciso sabernegacear ..�Oh! meu Deus, disse Cirino no auge da alegria,estamos salvos!... Não hádúvida... Vejo agora como há de tudo acontecer...Depois de um dia ou dois deparada na casa, desembucho o negócio. O velhoescreve uma carta a seu pai e,pelo menos, se não se arredar logo o Manecão? ..ganha-se tempo... Eu já quiseraestar montado na minha besta tordilha queimada, abater a estrada por aiafora... Dois dias para ir, dois para voltar, dois outrês de pousada... Com

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pouco mais de uma semana, estou de volta,trazendo ou a felicidade ou a caiporade uma vez. Não! Tenho fé em Nossa Senhora daAbadia... Ela nos ajudará... ejuntos havemos ainda de cumprir a promessa que jáfiz...�Que permessa foi? perguntou Inocência comcuriosidade.�Irmos nós daqui até a vila a pé, botar duas velasbentas no altar de NossaSenhora.�Sim, confirmou a moça com fogo, eu juro... Fosseaté ao fim do mundo! . . .�Oh! minha santa do Paraíso, exclamou o moçoapertando-a de encontro ao peito,quanto você me ama!!E assim abraçados, quedaram eles inconscientes,enquanto a aurora vinhaclareando o firmamento e desferindo para a terraraios indecisos como que asondarem a profundidade das trevas; enquanto ospássaros chilreavam à surdina,preparando as gargantas para o matutino concerto,enquanto o orvalho subia daterra ao céu molhando o dorso das folhas dasgrandes árvores e suspendendo, àsdas rasteiras plantinhas, gotas que cintilavam jácomo diamantes.Ao longe, à beira de algum rio, as aracuãslevantavam a sonora grita, e o macauãatirava aos ares os pios prolongados da ásperagarganta.�É dia, observou Inocência desprendendo-se dos

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braços de Cirino.�Já! exclamou este amuado.�Meu Deus, e eu que tenho de ir até a casa... vou-me embora...�Então, partirei hoje mesmo, disse o moço.�Sim...�E na semana que vem, estou de volta...�Pois bem... Leve com mecê esta certeza; a minhavida ou a minha morte dependedo padrinho...�A minha também, replicou o mancebo beijandocom fervor as mãos de Inocência...�Deixe-me... deixe-me, implorou ela. Adeus, estoucom um medo!... Felizmenteninguém me viu...Nesse momento e, como que para responder àasseveração, de dentro do pomarpartiu aquele fino assobio que tanto assombrara osamantes na primeira das suasentrevistas.Inocência quase caiu por terra.�Meu Deus! balbuciou ela, que agouro!... Quemsabe se não é gente?Ao assobio seguiu-se uma espécie de gargalhada,que gelou o sangue nas veias dosdois míseros.Agarrou-se a menina a Cirino.�É alma do outro mundo, murmurou elapersignando-se.Não perdera o mancebo o sangue frio. Invocando aSão Miguel, fez o sinal-da-cruzna direção dos quatro pontos cardeais; depoissuspendeu a moça em seus braços e,

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transpondo a toda a pressa o pomar, foi depô-lajunto à porta da casa, porta queestava entreaberta, naturalmente pelo vento.Quase desmaiara Inocência entretanto, reunindo asforças pôde entrar, ecautelosa correu o ferrolho interior.Mais sossegado a esse respeito, voltou Cirino aolaranjal e, como da primeiravez, pôs-se a percorrê-lo em todos os sentidos,indagando, à nascente claridadedo dia, se era ente humano ou fantasma quem deleparecia fazer joguete.No momento em que passava por junto de umalaranjeira mais copada, viu derepente certa massa informe cair-lhe quase nacabeça e no meio de folhas e ramosquebrados vir ao chão com surdo grito de angústia.�Cruz! T�esconjuro! bradou o moço.E, como uma visão, passou-lhe por perto umacriaturinha, desaparecendo logoentre os troncos das árvores.Ali esteve Cirino com os cabelos eriçados, os olhosfixos, os braços hirtos deterror, os lábios secos a tartamudear um exorcismo,e as pernas a tremer.Uma voz, a certa distancia, arrancou-o desseespasmo.Era Pereira; com a mão encostada a boca,interpelava a um dos seus escravos.�Faz fogo, José!... Se for alma do outro mundo oulobisomem, a bala não pega...Se for gente, melhor.E um tiro troou.

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Sibilou uma bala aos ouvidos de Cirino, indo cravar-se numa árvore próxima.Por outra, não esperou ele. Com o favor daescuridão que ainda reinava, deslizourápido e foi buscar a frente da casa, quando já iamacordando os camaradas.Mal chegara a sala, apareceu-lhe Pereira à porta.�Que foi isso? perguntou Cirino compondo afisionomia.�Lá sei, respondeu o mineiro. Uma matinada degritos no laranjal, que pareciaum inferno... A pequena ficou toda que pareciaquerer morrer de medo. Desconfioque a alma do Coletor andou hoje me rondando acasa... Não seja presságio demal... A Senhora Sant�Ana nos proteja.�Pois eu cá dormi como um chumbo, disse Cirino;acordei com um tiro...�Não há de poder enfiar outra soneca daqui a umnadinha, está o sol batendo noterreiro.Com efeito, depressa caminhava o alvorecer, edebaixo daquelas vivas impressõesacordaram aqueles que haviam conciliado o sono,na morada de Pereira.

XXIV�A VILA DE SANT�ANA Debaixo do céu há uma coisa quenunca se viu: é uma cidade pequena sem falatórios, mentiras ebisbilhotices.Lavergne

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Nesse mesmo dia, montou Cirino a cavalo edespediu-se de Pereira por uma semanaou pouco mais, dando por motivo de tão inesperadaviagem, não só a necessidadede visitar alguns doentes mais afastados, senãotambém procurar, quer na vila,quer mesmo nos campos da província de MinasGerais, uns remédios e símplices quelhe iam faltando.�Daqui a um terno de dias estarei de volta, disseao partir.Desde a casa de Pereira até ao Albino Lata é tãoensombrada e agradável aestrada, que essas três léguas lhe foram muitofáceis de vencer.Ali, porém, começam campos dobrados e soalheirosque, num estirão de quatroléguas, até a Vila de Sant�Ana tornam penosa aviagem, sobretudo quando sãopercorridos sob os ardentes raios do sol do meio-dia.Exaltam-se e irritam-se os incômodos do espíritos,no momento em que o físicocomeça a sofrer.Quando Cirino passou por aquelas campinasdesabrigadas, abrasado de calor,desanimou completamente do êxito da empresa aque se atirara. Tanta esperança oalvoroçara quando ia seguindo a vereda encoberta eamena, quanto desalentosentia agora; e, descoroçoado, deixava que oanimal o fosse levando a passo

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vagaroso e como que identificado com a disposiçãode animo do cavaleiro.�Que vou eu fazer? pensava quase alto... Comoencetar aquela conversa?Tamanha era a duvida que o salteava que chegouquase a blasfemar contra a amadado seu coração.�Maldita a hora em que vi aquela mulher... Seguiaeu sossegado o meu rumo...botaram-me a perder os seus olhos!... Depois,exclamou contrito:�Perdão, Inocência! perdão, meu anjo! Estou aamaldiçoar a hora da minhafelicidade... Eu, que sou homem, posso fugir...deixar-te... mas tu, amarrada àcasa... Infeliz, fui o culpado!...E, engolfado em dolorosa cogitação, alcançou a Vilade Sant�Ana do Paranaíba.De longe é sumamente pitoresco o primeiro aspectoda povoação.Ponto terminal do sertão de Mato Grosso, assentano abaulado dorso de umouteirozinho. O que lhe dá, porém, encantoparticular para quem a vê de fora, éo extenso laranjal, coroado anualmente de milharesde áureos pomos, em cujafolhagem verde-escura se encravam as casas eressalta a cruz da modesta igreja matriz.Transpondo límpido regato e vencida pedregosaladeira com casinholas de sapé àdireita e à esquerda, chega-se à rua principal, quetem por mais grandiosoedifício espaçosa casa de sobrado, de construção

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antiquada. Ornamenta-a umavaranda de ferro e um telhado que se adianta paraa rua, como a querer abrigá-laem sua totalidade dos ardores do sol.É aí que mora o Major Martinho de Melo Taques,baixote, rechonchudo, corado.Na sua loja de fazendas, ao rés-do-chão, reúne-sea melhor gente da localidade,para ouvi-lo dissertar sobre política, ou narrar aguerra dos farrapos no RioGrande do Sul e a vida que se leva na corte do Riode Janeiro, onde estiverapelos anos de 1838 a 1839.De vez em quando, naquela silenciosa rua em quetão bem se estampa o tipomelancólico de uma povoação acanhada e emdecadência, aparece uma ou outra tropacarregada, que levanta nuvens de pó vermelho eatrai às janelas rostosmacilentos de mulheres, ou a porta crianças pálidasdas febres do Rio Paranaíbae barrigudas de comerem terra.Também aos domingos, à hora da missa, por alicruzam mulheres velhas,embrulhadas em mantilhas, acompanhando outrasmais mocinhas, que trajam capotecomprido até aos pés e usam daqueles pentesandaluzes, de moda em tempos que jávão longe.Atravessou Cirino a vila, e passando por defronte doSr. Taques saudou-o com amão, e sem parar.Estava o major, como de costume, sentado ao

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balcão, de chinelos, sem meias, erodeado das pessoas gradas do lugar, a contar nãosó as próprias proezas, quemuitas tinha aquele estimável cidadão, senãotambém as façanhas dos antigossertanejos, histórias que sabia na ponta da língua.�Lá vai o doutor, disse um dos presentes apalestra da loja.�O Sr. Cirino! interpelou o major correndo para aporta. Então que é isso? Por aqui?�É verdade, respondeu Cirino, e vou de passagem;também por pouco tempo: talveznesses oito ou dez dias esteja de volta.Tudo quanto enchia a salinha havia saído para arua, de modo que o moço ficoulogo cercado. Recostavam-se uns quase à anca doanimal; afagavam-lhe outros a pádo pescoço ou brincavam com o freio.Achava-se a curiosidade aguçada: era preciso dar-lhe pasto.Compreendeu o major o alcance da situação.�Cada qual tem os seus negócios particulares,disse logo para começar; mas, senão há segredo que quer dizer esta sua volta?�Já devia estar bem longe de acá, observou umsujeito. Há quase dois meses queparou aqui na cidade e...Espere, interrompeu o vigário, não há tal doismeses. O doutor passou por estarua há um mês e vinte dois dias, às oito horas damanhã.�Pois bem, continuou o major, tinha tempo. desobra para estar já por bandas de Miranda...

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�Isso, se fosse escoteiro, replicou Cirino, reparemque levava cargas... e,demais, viajava curando...�É verdade! confirmou o coletor (homem esguio,que trazia um chapéu muito altoe afunilado), não pensam nisso. O que querem éfalar... falar...�Creio que o senhor não atira a mim, observou ovigário com ar rusguento.�Quem em tal cuida, senhor padre? protestou logoo outro. Estou dizendo emgeral... Em geral. Eu não...�Mas, doutor, atalhou o major, onde esteve osenhor de molho este tempãotodo?... nalguma fazenda?Prometia ir longe o interrogatório.�Eu já estava quase perto do Sucuriú, disse Cirinomeio perturbado, no...�Não é tão perto assim, objetou o vigário. Umavez...�Ouçamos, senhor padre, atalhou o coletordenunciando rixa velha com o clérigo.O moço não disse que seja perto daqui...Repetiu o major as palavras de Cirino, acentuando-as de certo modo:�Então o doutor já estava quase perto do Sucuriú,não é?�De fato. Ali encontrei uma pessoa que me devia,há meses um dinheiro...�Um dinheiro? perguntou o vigário. Uma pessoa?...Que pessoa? Quem será?�Homem, quem poderá ser? indagaram a um tempovozes sôfregas.

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Prosseguiu o major implacável:�Deixem o doutor explicar-se... Vocês fazem logouma algazarra! . .Foi quase a balbuciar que Cirino procurou continuar:�Sim... certo tropeiro... mandou ordem para mimcobrar... de um parente umabolada... Também eu tinha que... pagar outrapessoa... que...�Espere, espere, interrompeu o major, então osenhor velo receber dinheiro oudesembolsar? Não é uma e a mesma coisa...�Por certo, apoiaram os circunstantes.Cirino fez repentina parada nas suas explicações.�Também, disse com alguma volubilidade, muitobreve estarei voltando cá. Tenhode ir para lá do rio...�Vai até as Melancias? Indagou o coletor ajeitandoo nome de um pouso para verse acertava.�Mais adiante, respondeu o moço. E vendo aimpossibilidade de escapar de tãoterrível inquirição, mudou de tática.�Na volta, disse ele dirigindo ao major, hei de lhecomprar algumas fazendas...�Já adivinhei, exclamou o vigário cortando apalavra a Cirino, o doutor vaicasar.�Ora, chasquearam alguns, para que tantosegredo?... Ninguém lhe vai roubar anoiva!...�Sobretudo quando as coisas têm de me vir pararàs mãos, ponderou o padre.Por instante, deram o acanhamento e o silêncio de

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Cirino azo a muitasobservações.�Parabéns! dizia um.�Quem é essa feliz sertaneja? perguntaram outros.�Juro-lhes, meus senhores, protestou o moço, nãohá nada...Prosseguiu o padre:�Pois, se quer um conselho, apresse isso; de umacajadada matarei doiscoelhos... E o senhor e o Manecão.�Na verdade, concordaram os presentes.�Mas, onde se meteu ele? perguntou um deles.�Há pouco estava aqui...�Quem? o Manecão?�Sim...�Ali vem ele! anunciou alguémNo fim da rua, aparecia, com efeito, um homemmontado em fogoso cavalo quesofreava com firmeza e mão adestrada.Era a personificação do capataz de tropa.Cabelos compridos e emaranhados, ar selváticos esobranceiro tez queimada evigorosa musculatura constituíam um tipo queatraia de pronto a atenção.Metidos os pés numa espécie de polainas de courocru de veado, grandes chinelasde ferro, lenço vermelho atado ao pescoço,garruchas nos coldres da sela echicote de cabo de osso em punho, tudo indicava otropeiro no exercícios da sua lida.�Nosso Senhor... convosco, disse ao chegar,erguendo ligeiramente a aba dochapéu com a ponta do dedo indicador.

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�Bons dias, Sr. Manecão? respondeu por todos omajor, ou melhor, boas tardes...Já sei que desta feita vai de batida..�Boa dúvida, grazinou o vigário, vai ver apequerrucha.Sorriu-se o capataz com melancolia:�Não é por isso Sr. vigário. Não me deixoanarquizar por mulheres; mas, enfim agente deve um dia deitar a poita... A vida é umaviagem...Haviam Cirino e Manecão? ficado no meio doscuriosos.Fitaram-se: um, indiferente e altivo no modo deencarar; outro, descorado meiotrêmulo�Este cujo é o cirurgião? Perguntou à meia vozManecão? adernando no selim parao lado do coletor. A Cula da venda me disse quetinha chegado... Tem-me cara deenjoado.�Xi! retrucou o outro, mas tem cabeça. Por aí fezum despotismo de curas.Cirino, notando que tratavam dele, cumprimentoucom um sorriso de amabilidade�Boa tarde, patrício.�Ora viva, correspondeu o tropeiro em tom áspero.E, olhando para o Sol, acrescentou:�Vejam lá o que é um homem estar como mulher...a bater língua... A tarde vemdescendo, e muito tenho hoje que palmear... Minhagente, adeus... Sr. major, atémais ver... Sr. vigário, breve estou por cá...Esporeou o animal o circulo abriu-se, e Manecão?

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partiu em boa marcha.Aproveitando, por seu turno, aquela saída rápida,que rompera a cadela dos que orodeavam, apertou Cirino a mão do major e tomourumo do Rio Paranaíba em cujamargem contava passar a noite.Mal desaparecera, e choveram comentários que nemsaraiva.�Notou o senhor, disse o vigário para o major,como esta mudado? .. todojururu...�Nem tanto, contrariou o coletor, nem tanto...O Sr. Taques, major e juiz de paz, tomou ar deprofunda meditação.�Hão de os senhores ver, disse por fim levantandoum dedo para o ar, que ai hádente de coelho.Durante aquela noite e muitos dias subsequentes,repetiu a vila todas estascélebres palavras.�Foi o major quem o disse, asseveravam convictos,ali há dente de coelho.

XXV�A VIAGEM Às vezes sinto necessidade demorrer, como pessoas acordadas sentem necessidade dedormir.Mme Du Deffand Encantador país! Teu aspecto, teussolitários bosques ar puro e balsâmico, tem o poder de

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dissipar toda a sorte de tristezas, menos a da perda daesperança.Carlota Smith

Cirino em pouco mais de uma hora, transpôs adistancia da povoação ao rio.Também, na légua e quarto que ate lá media só háde ruim o trecho em que fica afloresta que borda as margens da majestosacorrente.Nessa mata, trazem os troncos das árvores vestígiodas grandes enchentes; oterreno é lodacento e enatado; centro de putrefaçãovegetal donde irradiam osmiasmas que, por ocasião da retirada das águas, seformam em dias de calorabrasador e sufocante.Abundam ali coqueiros de estípite curto e folhudacoroa chamados aucuris, a querodeiam numerosas lagoinhas de água empoçada ecoberta de limo.Em nada é, pois, aprazível o aspecto, e a lembrançade que ali imperam astemidas sezões faz que todo o viajante apresse atravessia de tão tristonhas paragens.Ouve-se a curta distancia o ruído do rio que correlargo, claro e com rapidez.Como duas verdes orlas refletem-se no espelhadoda superfície as elevadasmargens, a cujo sopé moitas de sarandis, curvadaspelo esforço das águas e numbalancear continuo, produzem doce marulho.

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Causa-nos involuntário cismar a contemplação degrande massa liquida a rolar, arolar mansamente, tangida por força oculta.Bem como a ondulação incessante e monótona dooceano agita a alma, assim tambémaquele perpassar perene, quase silencioso, de umacorrente caudal,insensivelmente nos leva a meditar.E quando o homem medita, torna-se triste.Franca e espontânea é a alegria, como todo o fatorepentino da natureza. Atristeza é uma vaga aspiração metafísica umaelação inquieta e quase dolorosaacima da contingência material.Ninguém se prepara para ficar alegre. A melancolia,pelo contrário, aos poucos éque chega como efeito de fenômenos psicológicos aencadear-se uns nos outros.De que modo nasceu aquela enorme mole de água?Donde velo? Para onde vai? Quemistérios encerra em seu seio?Largo tempo ficou Cirino a olhar para o rio. Em suamente tumultuavam negrospensamentos.Já se havia difundido o crepúsculo, e bandosfolgazões de quero-queros saudavamos últimos raios do Sol e despertavam os ecos emdescomunal gritaria. De vez emquando, passava algum pato selvagem, batendopesadamente as asas; sobre aságuas, adejavam garças estirando e encolhendo oníveo colo e pombas, aos centos,cruzavam de margem a margem a buscar inquietas

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o pouso de querência.Foi a luz gradativamente morrendo no céu, seguidade perto pelas sombras; e orio tomou aspecto uniforme como se fora imensalâmina de prata não brunida.�Enfim, -conheci o Manecão? pensava Cirino. Epara esse é que reservam a minhagentil Inocência . . . Bonito homem para qualquer...para mim, para ela,horrendo monstro!... E como é forte ! . . .Digamo-lo, sem por isso amesquinhar o nossoherói, a Idéia de força no rivalacabrunhava-o.�Se eu pudesse... esmagava-o!... Eque ar sombrio edesconfiado!... Meu Deus, dai-me coragem... dai-meesperanças... Nossa Senhorada Abadia!... Nosso Senhor da Cana-Verde... vaiei-me!...E o mancebo, diante daquela naturezaacabrunhadora a quem tanto Importava apaixão que lhe atanazava-o peito, como o inseto achilrar debaixo da folha dehumilde erva, caiu de joelhos, orando com fervorou, melhor, desfiandoautomaticamente as preces que sua mãe lhe havia,em pequeno, ensinado.E o rio lá se ia sereno; e uma onça ao longe urrava,ou algum pássaro da noitesoltava gritos de susto, esvoaçando às tontas.Transpondo na manhã seguinte, o Rio Paranaíba,pisou Cirino território de Minas literais.Depois de légua e meia em mata semelhante à damargem direita, abrem-se campos

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dobrados, um tanto arestados do sol, de aspectopouco variado, masabundantíssimos em perdizes e codornas. Tãopreocupado levava o moço o espíritoque, nem sequer uma só vez, imitou o pio daquelasaves; distração, a que aliásnão se furta quem por lá viaja, tão Instantes osmotivos de instigação.Foi com impaciência mais e mais crescente quepercorreu as dezesseis léguasintermédias à fazenda do Pauda.Ia com o coração cheio de apreensões e os olhos selhe arrasavam de lágrimas, decada vez que contemplava o melancólico buriti.Então pelo pensamento voava àcasa de Inocência. Também, ali junto ao córrego emcuja borda se dera a últimaentrevista, se erguia uma daquelas palmeiras,rainha dos sertões.Que estaria fazendo a querida dos seus sonhos?Que lhe aconteceria? E Manecão?! Já teria láchegado?Ao pensar nisto, aumentava-se-lhe a agitação ecom vigor esporeava acavalgadura.Transformava-se para ele o caminho em dolorosavia, que numa vertiginosacarreira quisera vencer mas que era preciso irtragando pouso a pouso, ponto a ponto.A majestosa impassibilidade da naturezaexasperava-o.Quando o homem sofre deveras, deseja nos raptosdo alucinado orgulho, ver tudo

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derrocado pela fúria dos temporais, em harmoniacom a tempestade que lhe vai no intimo.�Meu Deus! murmurava Cirino, tudo quanto merodeia está tão alegre e é tãobelo! Com tanta leveza voam os pássaros: as floressão tão mimosas; os ribeirõestão claros... tudo convida ao descanso... só eu apadecer! Antes a morte... Quemme dera arrancar do coração este peso! esta certezade uma desgraça imensa! Queé afinal o amor?... Daqui a anos talvez nem melembre mais da pobre Inocência...Estarei me atormentando à toa... Oh não! Essamenina é a minha vida! é o meusangue... o meu farol para os céus... Quem marouba mata-me de uma vez. Venha amorte... fique ela para chorar por mim... um diacontará como um homem soubeamar! . . .Levantara Cirino a voz. De repente, deu um grandegrito, como que o sufocava:�Inocência!... Inocência!E as sonoridades da solidão, dóceis a qualquerruído, repetiram aquele adoradonome, como repetiam o uivo selvático dasuçuarana, a nota plangente do sabiá oua martelada metálica da araponga.Como tudo, afinal, tem termo, alcançou Cirino, noquarto dia, a casa de AntônioCesário. Acolheu-o este com toda a amabilidade efranqueza.

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XXVI�RECEPÇÁO CORDIAL Assinalemos este dia entre os maisfelizes não se poupem ânforas; e, como Sábios, descansonão demos aos nossos pés. Horácio Ode XXVI

Em breve chegara Manecão à casa do futuro sogro.Não é grande a distancia de Sant�Ana até lá, eentretanto o animal brioso edescansado que montava o tropeiro viera sempreestimulado do férreo acicate.Batia de impaciência o coração do capataz, e alembrança da formosa noiva que oesperava, enchia-o de desconhecido alvoroço.Também, por vezes, fugia-lhe dorosto o toque habitual de severidade e tênuesorriso afastando a custo os densosbigodes lhe pairava nos lábios,Acolheu-o Pereira com verdadeira explosão dealegria.�Viva! viva! exclamou de longe acenando com osbraços, seja bem-vindo nesterancho... Ora, até que afinal!... Faltam rojões parafestejar a sua chegada...Que demora!... Pensei que não topava mais com ocaminho da casa... Nocência vaipular de contente. . .Enquanto o mineiro enfiava estas palavras quaseem gritos, apeou-se o sertanistaque, de chapéu na mão, veio pedir-lhe a bênção.�Deus o faça um santo, disse Pereira abençoando-o com fervor. Você não queria

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chegar...�Como vai a dona? perguntou Manecão.�Agora, muito bem. Teve sezões, mas já está detodo boa...�E lembrou-se de mim?�Olhe, que enjoado... Pois se ele enfeitiça agente... Eu mesmo só pensava emvocê... Quando estará por cá aquele marreco? diziaeu comigo mesmo:... e botavauns olhos compridos por essa estrada afora...quanto mais, mulher! Isto é um nãoacabar nunca de saudades. Mas, observou ele,estamos a bater língua e não o façoentrar... Agorinha mesmo, Nocência foi para ocórrego... Desencilhe o pingo edeixe-o por ai...Fez Manecão o que disse Pereira. Tirou os arreios,não de súbito, mas comcautela e lentidão para que o animal, encalmadocomo estava, não ficasse airado,deixou sobre o lombo a manta e, apanhando umsabugo de milho, esfregou devagar aanca e o pescoço.Depois de dar termo aqueles cuidados, penetrou nacasa fazendo soar ruidosamenteas esporas, que pelas dimensões desproporcionadaso obrigavam a caminhar firmadonos dedos do pé e com a planta levantada.O mineiro não cabia em si de contente.�Então, está tudo arranjado? perguntoualegremente.�Tudo. Os papéis já foram tirados... Tive que ir atéUberaba, e foi o que me

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atrasou... Quando mecê queira... botamo-nos departida para a SenhoraSant�Ana... Amanhã cá chegam os cavalos quecomprei... Está falado o Lata... ovigário avisado; só... falta o dia...�Nestes casos, quanto mais depressa melhor...Não acha?� Certo que sim...�Então, se quiser, daqui a dois domingos...�Como queira . . Eu, cá por mim. . . Bem sabe, istode casórios, o que custaé... tomar resolução... depois... deve-se pegar nacarreira... A rapariga estapronta?...�Não sei... há de estar... Vejo-a sempre cosendo...Quero ficar bem certo dodia, porque mando chamar a gente do Roberto...Afinal, é preciso matar a porcadae mandar buscar restilo. Quando se casa uma filhae... filha única, asalgibeiras devem ficar veleiras. Já estão todoscombinados... é só dar osinal... Tudo se arma logo... Aqui, em frente dacasa, faz-se um granderancho... A latada para a janta há de ser no oitãodireito... Já encomendei deSant�Ana alguns rojões, e o mestre Trabucoprometeu-me uns que deitam lágrimas.. Depois, tiros de bacamarte e ronqueiras hão detroar . . .�Eu, interrompeu Manecão, mandei com a sualicença vir da cidade duas dúzias degarrafas de vinho da casa do major...

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�Olaré! Você meteu-se em gastos!... Duas dúziasde garrafas de vinho?�Nhor-sim...�Pois essas, meu caro, hão de ser reguladinhas dasilva... Para o vigário..para o major... o coletor... o professor... Enfim,gente de algumarepresentação, porque com ela conto, sem falar naarraia miada. Isto há de haverum despotismo. Quero que, dez dias antes dafonçonata venha a comadre do Ricardocom o seu povaréu para prepararem sequilhos,tarecos, broas, biscoitos depolvilho e brevidades. Haverá regalo de chicolatetodas as manhãs... Você veráque desta festa falarão... E o sapateado à noite?Os descantes?... Talvez sepossa arranjar um cururu valente...�Mas, perguntou Manecão, qu�é de sua filha?Riu-se Pereira.�Maganão! não pensa noutra coisa, hem? Tambémfui ansim... cada qual tem o seutempo... Isto é regra de Nosso Senhor Jesus Cristo.E, saindo para o terreiro, gritou com força, fazendodas mãos buzina:�Nocência!... Nocência!...Não teve resposta.�Coitadinha da pequena, disse ele, há de saltarque nem veadinha, quando voltardo rio.E acrescentou:�Já que ela não vem... entremos. Você é de casa:tome por cá e chegue até o meu

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quarto... Rede e peles macias não faltam.Ao dizer estas palavras, Pereira bateuamigavelmente no ombro de Manecão e fê-loseguir para o lanço do fundo da casa.

XXVII� CENAS ÍNTIMAS Santa Maria, advogada nossa, ouvinossos rogos. Virgem pura, ante Vós se prostra umainfeliz donzela.Walter Scott, Os Dois Desposados

Descrever o abalo que sofreu Inocência ao dar, caraa cara com Manecão foraimpossível Debuxaram-se-lhe tão vivos nafisionomia o espanto e o terror, que oreparo, não só da parte do noivo, como do própriopai habitualmente tãodespreocupado, foi repentino,�Que tem você? perguntou Pereiraapressadamente.�Homem, a modos, observou Manecão comtristeza, que meto medo a senhora dona...Batiam de comoção os queixos da pobrezinha:nervoso estremecimentobalanceava-lhe o corpo todo.A ela se achegou o mineiro e pegou-lhe no braço.�Mas você não tem febre?... Que é isto, raparigade Deus?Depois, meio risonho e voltando-se para Manecão:�Já sei o que é... Ficou toda fora de si... vendo oque não contava ver...

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Vamos, Nocência, deixe-se de tolices.�Eu quero, murmurou ela, voltar para o meuquarto.E encostando-se à parede, com passo vacilante seencaminhou para dentro.Ficara sombrio o capataz.De sobrecenho carregado, recostara-,se à mesa efora, com a vista, seguindoaquela a quem já chamava esposa.Sentou-se defronte dele Pereira com ar deadmiração.�E que tal? exclamou por fim... Ninguém podecontar com mulheres, iche!Nada retorquiu o outro.�Sua filha, indagou ele de repente com voz muitoarrastada e parando a cadapalavra, viu alguém?Descorou o mineiro e quase a balbuciar:�Não... isto é, viu... mas todos os dias... ela vêgente... Por que me perguntaisso?�Por nada...�Não;... explique-se... Você faz assim umapergunta que me deixa um pouco...anarquizado. Este negócio é muito, muito sério.Dei-lhe palavra de honra queminha filha havéra de ser sua mulher... a cidade jásabe e... comigo não querohistórias... t: o que lhe digo.�Esta bom, replicou ele, nada de percipitações.Toda a vida fui ansim... Jávolto; vou ver onde pára o meu cavalo.E saiu, deixando Pereira entregue a encontradas

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suposições.Decorreram dias, sem que os dois tocassem maisno assunto que lhes moía ocoração. Ambos, calmos na aparência, viviam vidacomum, visitavam as plantações,comiam juntos, caçavam e só se separavam á horade dormir, quando o mineiro iapara dentro e Manecão para a sala dos hóspedes.Inocência não aparecia.Mal saia do quarto, pretextando recaída de sezões:entretanto, não era o seucorpo o doente, não; a sua alma, sim, essa sofriamorte e paixão; e amargaslágrimas, sobretudo à noite, lhe inundavam o rosto.�Meus Deus, exclamava ela, que será de mim?Nossa Senhora da Guia me socorra.Que pode uma infeliz rapariga dos sertões contratanta desgraça? Eu vivia tãosossegada neste retiro, amparada por meu pai...que agora tanto medo me mete...Deus do céu, piedade, piedade.E de joelhos, diante de tosco oratório alumiado poresguias velas de cera, oravacom fervor, balbuciando as preces que costumavarecitar antes de se deitar.Uma noite, disse ela:�Quisera uma reza que me enchesse mais ocoração... que mais me aliviasse opeso da agonia de hoje...E, como levada de inspiração, prostrou-semurmurando:�Minha Nossa Senhora mãe da Virgem que nuncapecou, ide adiante de Deus.

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Pedi-lhe que tenha pena de mim... que não medeixe assim nesta dor cá de dentrotão cruel. Estendei a vossa mão sobre mim. Se écrime amar a Cirino, mandai-me amorte. Que culpa tenho eu do que me sucede?Rezei tanto, para não gostar destehomem! Tudo... tudo... foi inútil! Por que então estesuplício de todos osmomentos? Nem sequer tem alivio no sono? Sempreele... ele!As vezes, sentia Inocência em si ímpetos deresistência: era a natureza do paique acordava, natureza forte, teimosa.�Hei de ir, dizia então com olhos a chamejar, àigreja, mas de rastos! No rostodo padre gritarei: Não, não!... Matem-me... mas eunão quero...Quando a lembrança de Cirino se lhe apresentavamais viva, estorcia-se dedesespero. A paixão punha-lhe o peito em fogo...�Que é isto, Santo Deus? Aquele homem me teriabotado um mau olhado? Cirino,Cirino, volta, vem tomar-me... leva-me!... eu morro!Sou tua, só tua... de maisninguém.E caia prostrada no leito, sacudida por arrepiosnervosos.Um dia, entrou inesperadamente Pereira e achou-atoda lacrimosa.Vinha sereno, mas com ar decidido.�Que tem você, menina, perguntou ele, meioterno, de alguns dias para cá?Inocência encolheu-se toda como uma pombinha

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que se sente agarrar.Puxou-a brandamente o pai e fê-la sentar no seucolo.�Vamos, que é isto, Nocência? Por que se socouassim no quarto?... Manecão láfora a toda a hora está perguntando por você... Istonão bonito... É, ou não, oseu noivo?Redobraram as lágrimas.�Mulher não deve atirar-se a cara dos homens...mas também é bom não se canharassim... É de enjoada... Um marido quase, como elejá é...De repente o pranto de Inocência cessou.Desvencilhou-se dos braços do pai e, de pé diantedele, encarou-o com resolução:�Papai. sabe por que tudo isto?�Sim.�É porque eu... não devo...�Não devo o quê?�Casar.Arregalou Pereira os olhos e de espanto abriu aboca.�Que? perguntou ele elevando muito a voz...Compreendeu a pobrezinha que a lata ia travar-se.Era chegado o momento.Revestiu-se de toda coragem.�Sim, meu pai, este casamento não deve fazer-se..�Você está doida? observou Pereira com fingidatranqüilidade.Prosseguiu então Inocência com muita rapidez, asfaces incendiadas de rubor:�Conto-lhe tudo papai... Não me queira mal... Foi

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um sonho... O outro dia,antes de Manecão chegar, estava sesteando e tiveum sonho... Neste sonho, ouviu,papai? minha mãe vinha descendo do céu...Coitada! estava tão branca que metiapena... Vinha bem limpa, com um vestido todoazul... leve, leve!�Sua mãe? balbuciou Pereira tomando de ligeiroassombro.�Nhor-sim, ela mesma...�Mas você não a conheceu! Morreu, quando vocêera pequetita... . .�Não faz nada, continuou Inocência, logo vi queera minha mãe... Olhava paramim tão amorosa!... Perguntou-me: Cadê seu pai?Respondi com medo: Esta na roga;quer mecê, que ele venha? � Não, me disse ela,não é perciso; diga-lhe a eleque eu vim ate cá, para não deixar Manecão casarcom você, porque há de serinfeliz... muito!... muito!...�E depois? perguntou Pereira levantando a cabeçacom ar sombrio, girando osolhos.�Depois... disse mais... Se esse homem casar comvocê, uma grande desgraça háde entrar... nesta casa que foi minha e onde nãohaverá mais sossego. Bote seupai bem sentido nisso. E sem mais palavra, sumiu-se como uma luz que se apaga.Cravou Pereira olhar inquiridor na filha.Uma suspeita lhe atravessou o espírito.�Que sinal tinha sua mãe no rosto?

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Inocência empalideceu.Levando ambas as mãos à cabeça e prorrompendoem ruidoso pranto, exclamou:�Não sei... eu estou mentindo... Isto tudo émentira! mentira! Não vi minhamãe!... Perdão, minha mãe, perdão!E, caindo de bruços sobre a cama, ficou imóvel comos cabelos espargos pelasespáduas.Contemplou-a Pereira largo tempo sem saber quepensar, que dizer.Súbito se inclinou sobre o corpo da filha e ao ouvidolhe segredou com muitaenergia:�Nocência, daqui a bocadinho Manecão chega daroça... você ha de ir para asala... se não fizer boa cara, eu a mato.E erguendo a voz:�Ouviu? Eu a mato!... Quero antes vê-la morta,estendida, do que... a casa deum mineiro desonrada...As pressas saiu do quarto, deixando Inocência namesma posição.�Pois bem, murmurou ela, já que é preciso... morraeu!

XXVIII�EM CASA DE CESÁRIO Ah! a perspectiva que pode maisdocemente sorrir ao meu coração é a do aniquilamento.Klopstock, A Messíada

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Cirino, logo que se estabeleceu em casa do seunovo hospedeiro, tratou de lhecaptar as simpatias. Medicou um escravo queestava de cama, fez valer oconhecimento e amizade que tinha comPereira, conversou muito a respeito dele eincidentemente deu noticias deInocência.Atalhou-o Antônio Cesário neste ponto.�Mecê a viu? perguntou ele.�Pois não, respondeu o moço, por sinal que a cureide sezões.�Ah! É uma guapa rapariga...�Parece-me...�Isso é... falo assim, porque afinal... daqui apoucos dias está casada... nãosabe?�Ouvi contar.�Pois é verdade. O noivo passou por cá e levou aminha licença. É homem demão-cheia. A pequena deve estar contente. Ah!nem todas no sertão são felizesassim. Tem-se por aqui o mau vezo de arranjarcasamentos as cegas, e às vezes seencambulha um mocetão com uma fanadinha ouentão uma sujeita de encher o olhocom algum rapaz todo engrouvinhado. . . Cruz! E,uma vez dada a palavra,acabou-se...Achou Cirino a ocasião própria e redargüiu comvivacidade:�Então o senhor não é desse parecer.� Conforme, respondeu logo Cesário com reserva.

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Aos pais é que convém inziminaressas coisas.�Boa dúvida... Mas... se... sua afilhada... nãogostasse de Manecão?�Não gostasse?�Sim.�E que nos importa isso? Uma menina como elanão sabe o que lhe fica bem oumal... Ninguém a vai consultar. Mulheres, o quequerem é casar. Não ouviu já opatrício dizer que elas não casam com carrapato,porque não sabem qual é omacho?E Cesário sorriu.Depois, fechando de repente a cara, perguntou:�Por que é que estamos a dar de língua nesseparticular? Não sou amigo disso.Quer-me parecer que mecê é um tanto namorador. ..�Eu? protestou Cirino com vivacidade.�Boa dúvida. Eu cá nem falar nelas quero. Mulher épara viver muito quietinhaperto do tear, tratar dos filhos e criá-los no temorde Deus; não é nem paraparolar-se com ela, nem a respeito dela.Sempre as mesmas teorias de Pereira: a mesmagrosseria repassada de desprezo aosexo fraco, a mesma suscetibilidade para desconfiarde qualquer pessoa ou dequalquer palavra que lhes parecesse menos bemsoante aos prevenidos ouvidos.�Minha afilhada, continuou Cesário, deve levantaras mãos para o céu. Achou um

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marido que a há de fazer feliz e torná-la mãe deuma boa dúzia de filhos.Estremeceu Cirino, mas nada disse.Por toda a parte esbarrava de encontro apreconceitos que nada podia vencer.Nessa mesma tarde quis montar a cavalo e voltarpara Sant�Ana entretanto, opensamento da resistência com que Inocênciaencetara a terrível lata com seupai, atuou em seu espírito e o reteve.Decidiu-se a atacar o touro pelas aspas.Restar-lhe-ia ao menos o consolo do desabafo, enum jogo perdido arriscava aindaousado lance.�Sr. Cesário, disse ele na manhã seguinte, precisomuito falar-lhe emparticular.�A mim?�Sim, senhor.�Pois, estou aqui às suas ordens.�Quisera que saíssemos. O que lhe vou dizer...ninguém pode... ninguém deveouvir.�Oh! O senhor me assusta... Então tem segredosque me contar?�Tenho...�Pois vá lá... Mapiaremos fora... Ao meio-diaesteja na minha roga... sabe ondeé?�Sei...� Espere-me num pau de peroba seco que estáderrubado.�Lá estarei.

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Muito antes da hora aprazada, achava-se Cirino nolugar indicado.Devorava-o a impaciência.Resolvido a desvendar sem rebuço os seus amoresa esse homem a quem muiconhecia, que por ele não tinha senão razões depassageira simpatia, e de quem,contudo, estava dependente sua felicidade,considerava decisivos os momentos.Quem em tais circunstâncias se acha, enxerga emtudo quanto o rodela sintomas debom ou mau agouro, e nesse instante a Cirinopouco parecia sorrir a natureza.Não chovia; mas o tempo estava carregado esombrio.Tinha o céu cor acinzentada e do lado do poentelinhas negras e continuasdenunciavam trovoada talvez para a tarde.Era o local, além disso, tristonho. Enfileiravam-senuma grande área, pés demilho já pendoados, dentre os quais surgiampossantes madeiros de tronco rugosoe galhada completamente despida de ramagem,uns, da base à extrema ponta,lugubremente enegrecidos pelo fogo lançado antesda sementeira; outros perdidastodas as folhas em conseqüência da incisãoprofunda e circular com que o machadoimpedira a ascensão da selva. Esses quedavamvivos mas de uma vida latente eesmorecida, denunciada por entanguidos brotos nomais alto do tope.Quando o dia é claro, aqueles gigantes da floresta,

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que pela robustez do cernehaviam desafiado as chamas e os esforços dohomem, servem de poleiro a inúmerosbandos de papagaios, periquitos, araçaris, ou degraúnas que formam concertoscapazes de ensurdecer os ecos.Naquela ocasião, porém, tudo era silêncio.Só de vez em quando se ouviam pancadas surdas eintermitentes dos pica-paus decrista vermelha, agarrados aos troncos das árvorese a explorar-lhes os pontoscarunchosos, subindo em ziguezagues.A hora ajustada, apresentou-se Antônio Cesário.Por cautela vinha armado de uma espingarda decaça, que bem serviria paraderrubar alguma onça, ou animal daninho.Seu rosto, habitualmente sereno, indicava certainquietação, repassada decuriosidade.�Aqui me tem, doutor, disse ele descansando aarma sobre o pau derrubado esentando-se ao lado de Cirino. Estou pronto paraouvi-lo quanto tempo queira...Muito pensara Cirino nesse momento a que deviachegar e, entretanto, não puderaachar o modo por que encetasse as suasdeclarações. Parafusara de continuo milpretextos sem nada assentarFoi, pois, a balbuciar que respondeu:�0 Sr... há de me desculpar... o incômodo que... lhedou. .�Incomodo nenhum.�E deve estar... espantado do que lhe pedi... vir

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falar comigo... em lugarermo... comigo que sou como qualquer hospede.como tantos que sua casa tãofranca todos os dias recebe�Com efeito, confirmou Cesário.�Pois bem, daqui a nada tudo lhe ficará claro eexplicado . Se enquanto eufalar... o ofender, perdoe-me, ouviu?Sr. Cesário, continuou Cirino após breve pausa, se oSr. visse um homemarrastado numa corredeira e pudesse atirar-lhe umacorda e salvá-lo... o faria?�Boa dúvida, replicou o outro com forca. Ainda quecorra perigo de vida, nãodeixarei homem nenhum, branco ou preto, livre ouescravo, rico ou pobre,conhecido ou não, sem o socorro de meu braço.�Pois bem, exclamou Cirino arrebatadamente, soueu esse homem que vai morrer,que está perdido e a quem o Sr. pode salvar...E respondendo à tácita suspeita de quem o ouvia:�Não acredite que esteja doido... não. Estou tãosão de juízo como o Sr. efalo-lhe a verdade. Uma palavra esclarece-lhetudo... eu morro de paixão por umamulher e essa mulher é... sua afiIhada! . . .Inocência!De um pulo levantou-se Cesário. Seus lábiostremiam, os olhos de súbitoinjetados de sangue. A mão procurou a arma quelhe ficava ao lado.�Que é isso? balbuciou encarando fixamente Cirino.Adivinhara-lhe este todos os pensamentos.

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Erguera-se também, cara a cara com Cesário:� Mate-me, bradou ele, mate-me... E um favor queme faz.. Dê cabo desta vidadesgraçada.Já arrependido do gesto que fizera e um tantocorrido de sua precipitação,replicou o outro todo sombrio:�Não tenho razões para matá-lo... O Sr. nunca mefez mal...�Não, prosseguiu Cirino no meio desvairado, peço-lhe por favor... Se o Sr. temcaridade, e é bom, �se gosta de seus filhos, se tempai e mãe no céu... por tudoisso eu lhe peço de joelhos! mate-me... mate-me!E deixou-se cair aos pés de Cesário, ocultando acabeça entre as mãos.Contemplou-o largos instantes o mineiro comsurpresa.Inclinando-se para o moço, bateu-lhe no ombro equase com brandura lhe disse:� Que história é essa, doutor?... Isso é loucura!Conte-me que há... Querosaber se a sua bola está girando ou não. Souhomem do sertão, mineiro de lei...mas sei tratar com gente...A estas palavras, recobrou Cirino algum alento epôs-se de pé.Sentando-se então ao lado de Cesário, narrou-lhetudo, o desespero que o minava,a certeza que tinha do amor de Inocência e aimplacável sentença preferida porPereira.Ouvia-o Cesário atentamente. Só de vez em quando

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deixava escapar estaexclamação:� Ah! mulheres!... mulheres! É a nossa perdição.Depois que Cirino acabou de falar, encarou-odetidamente e, com ar severo,perguntou:�Fale-me a verdade, doutor, o senhor nunca trocoupalavra com Inocência?Nunca esteve só com ela?� Estive, respondeu o outro meio receoso.As faces de Cesário subiu uma onda de sangue.�Então, rouquejou ele, a desgraça...�Deus meu, atalhou Cirino com fogo, caia a almade minha mãe no inferno, seInocência não é pura... se...Conteve-o Cesário com um gesto.�Basta moço: quem jura assim, não mente...Também no meu tempo tive uma paixãoinfeliz... e sei o que é sofrer..,�Oh! Sr. Cesário, salve-me!...�Que posso eu fazer? Não sabe o senhor que elahoje hão pertence nem mesmo aopai, ao seu próprio pai? Pertence a palavra dehonra, e palavra de mineiro nãovolta atrás... Não sabia o senhor disso, quandodeixou que o amor lhe entrassepelos olhos?... Mulheres não pensam... mulheres oque querem é ver os homensderretidos por elas... sacrificam tudo... e por umrequebro pincham na rua ahonra de suas casas ..�Não, protestou Cirino, ela não é assim...�Então é melhor que as outras? objetou Cesário

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com desdém.�Sim, sim, é melhor do que tudo deste mundo.Acima dela, só Nossa Senhora!Ligeiramente sorriu o mineiro.�Qual! observou ele, bem disse o outro: a paixão éum transtorno. Fica um homemque nem uma miséria! É. . .�Então? interrompeu Cirino.�Então o quê?... Já lhe não disse quanto basta?Minha afilhada pertence tanto aManecão, como uma garrucha ou um guampolavrado que Pereira lhe tivesse dado...Não há meios e modos de voltar atrás...Não desanimou o mancebo.Falou por muito tempo com verdadeira eloqüência,apelando principalmente para aproteção que todo o cristão tem obrigação dedispensar ao ente que leva à piabatismal, a seu segundo filho, ao pagãozinho porquem o padrinho se tornaresponsável perante Deus.Feriu o sentimento religioso do mineiro e comoveu-o.�Não me fale assim, contrariou este, o senhor querver se me puxa para o seulado... E quem me assegura que Nocência gostatanto da sua pessoa?... Quem?�O coração está-lho dizendo baixinho, respondeucom calma Cirino. O senhor, queé homem de honra, acredita que eu estejamentindo? Que tudo isso é falso?...diga, acredita?Cesário tartamudeou:

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�Sim... Assunto verdades, mas...�Ah! exclamou Cirino, o Sr. sente a consciênciabater-lhe que sua afilhada estádesamparada, que vai ser sacrificada... e agoratapa os ouvidos e diz: Não queroouvir, não quero cumprir a minha palavra! Por que adeu então o Sr. . . essapalavra de honra de que tanto tala?... NossaSenhora que a proteja... que a tiredeste mundo .. Isso há de pesar-lhe no peito... e,quando um dia tiver noticiaque Inocência morreu de desgostos, há de dizer láconsigo que ajudou a cavar-lhea sepultura.Estava Cesário abalado; com verdadeira ansiedaderetorquiu:�Que histórias me conta o Sr.? Eu metido no meucanto... vivendo tãosossegado... não bulindo com ninguém, e agoraanarquizado por estes mexericos! .. . Quem o mandou vir cá?�Quem seria, retrucou Cirino, senso Inocência?Porventura eu o conhecia?...algum dia o vi?... Não; foi aquele anjo que medisse: busca meu padrinho, é o último recurso. Seele não nos amparar, então...estamos perdidos de uma vez.Estas palavras convenceram de todo Cesário.Ficou em silêncio, recolhido, a meditar; Cirino oobservava ofegante.�Pois bem, disse por fim o mineiro em tom grave epausado, hei de pensar no queo Sr. me conta...

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�Oh! Sr. Cesário!...�Levarei dois dias a remoer sobre o caso... O quedisse uma vez, não digoduas... No fim desse tempo, monto a cavalo eapareço por casa de Pereira...�Sim, sim, balbuciou o moço.�Amanhã mesmo, de madrugada, o Sr. sal daqui evai esperar-me na SenhoraSant�Ana.�Irei... salve-me...Cesário parou um pouco.�Agora, quero que o Sr. me faça um juramento...pelas cinzas de sua mãe.�Estou pronto.�Pela salvação de sua alma...�Pela salvação de minha alma, repetiu Cirino.�Pela vida eterna...Cirino acenou a cabeça.� Jure!O mancebo cruzou os dois índices e beijo-os comunção abaixando os olhos eempalidecendo.�O Sr., disse Cesário, Jurou antes de saber o queera... Deu-me boa idéia doseu caráter... Farei tudo por ajudá-lo, mas exijo-lheuma condição... Se quiseraceitá-la, fica valendo o juramento; senão... o ditopor não dito...�Que será, meu Deus? murmurou Cirino.�E ficar o Sr. esperando em Sant�Ana. Se euaparecer por estes oito dias,iremos juntos à casa do compadre. Se não, é quedecidi contrário. Neste caso,

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virá o Sr. até cá e aqui esperará as suas cargas quemandarei buscar. Será sinalde que nunca mais há de procurar botar as vistasem Inocência... nem sequerfalar nela. Aceita?�Aceito, respondeu o moço com exaltação; masfique certo de uma coisa: se oSr., no tempo marcado, não estiver na vila, reze poralma de Cirino, porque eleterá deixado este mundo de aflições.Cesário meneou tristemente a cabeça e retirou-se,sem dizer mais palavra.

XXIX�RESISTÊNCIA DE CORÇA Acasto.� Não pode ela falar? Osvaldo � Se falar é tão-somentefazer ouvir sons por meio da língua e dos lábios. eaquela criatura muda; mas se tão maravilhosa faculdadeconsiste também em tornar compreensíveis os menorespensamentos por acionados e expressivos gestos, pode dizer-seque ela a possui, pois seus olhos cheios de eloqüênciatêm uma linguagem inteligível, embora falha de sons depalavras.Antiga Comédia Inglesa citada por Walter Scott

Deixamos Inocência tão abatida de corpo, quanto

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resoluta de espírito.Pressentia os choques que tinha de suportar, erobustecia a alma na meditaçãocontinua e firme de sua infelicidade.Estava de joelhos diante da imagem de NossaSenhora, quando a voz de seu pai afez levantar.�Nocência! chamava ele.Rapidamente passou a pobrezinha a mão pelo rostopara apagar os vestígios decopioso pranto, e com passo quase seguro penetrouna sala.Estavam Pereira e Manecão sentados junto à mesa.O anãozinho Tico aquecia-se aospálidos raios de um Sol meio encoberto e, sentadoà soleira da porta, brincavacom umas palhinhas.�Estou aqui, papai, disse Inocência em voz alta eum pouco trêmula.Encarou-a Manecão com ar entre sombrio eapaixonado.Julgou dever dizer alguma coisa.�Até que afinal a dona saiu do ninho... E que hojeo dia está de sol, não é?A moça nada lhe respondeu; fitou-o com tantainsistência que o fez abaixar osolhos.�Ela esteve doente, desculpou Pereira.E voltando-se para a filha:�Sente-se aqui bem perto de nós... O Manecãoquer conversar com você emnegócios particulares.� Bem percebe ela, observou o desazado noivo

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intentando abrir o motivo pararisos.Inocência replicou em tom incisivo:�Não percebo.�Está se... fazendo de... engraçada, balbuciouManecão. Pois já... seesqueceu... do que tratei com seu pai?... Pareceque comeu muito queijo.Com a mesma entoação e cortando-lhe a palavraretorquiu ela:�Não me lembro.Houve uns minutos de silencio.Acumulava-se a cólera no peito de Pereira; seusolhares irados Iam rápidos deManecão à imprudente filha.�Pois, se você não se lembra, disse ele de repente,eu cá não sou tãoesquecido,�Ora, recomeçou Manecão levantando-se e vindorecostar-se à beira da mesa paraficar mais chegado à moça, faz-se de enjoada atoa... o nosso casamento...�Seu casamento? perguntou Inocência fingindoespanto.�Sim...�Mas com quem?�Ué, exclamou Manecão, com quem há de ser...Com mecê...Pereira fora-se tornando lívido de raiva.O anão acompanhava toda essa cena com muitaatenção Cintilavam seus olhinhoscomo diamantes pretos; seu corpo raquíticoestremecia de impaciência e susto.

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A resposta de Manecão, levantou-se rápidaInocência e, como que acastelando-sepor detrás da sua cadeira, exclamou:�Eu? .. Casar com o senhor?! Antes uma boamorte!... Não quero... não quero...Nunca... Nunca...Manecão bambaleou.Pereira quis por-se de pé, mas por instantes nãopôde.�Está doida, balbuciou, está doida.E, segurando-se à mesa, ergueu-se terrível.�Então, você não quer? perguntou com os queixosa bater de raiva.�Não, disse a moça com desespero, quero antes...Não pode terminar.O pai agarrara-a pela mão, obrigando-a a curvar-setoda.Depois, com violento empurrão, arrojou-a longe, deencontro à parede.Caiu a infeliz com abafado gemido e ficou estendidapor terra amparando o peitocom as mãos. Mortal palidez cobria-lhe as faces ede ligeira brecha que seabrira na testa deslizavam gotas de sangueIa Pereira precipitar-se sobre ela como paraesmagá-la debaixo dos pés, masparou de repente e, levando as mãos ao rosto,ocultou as lágrimas que dos olhoslhe saltavam a flux.Manecão não fizera o menor gesto. Extáticoassistira a toda essa dolorosa cena.A fisionomia estava impassível, mas, por dentro,seu coração era um vulcão.

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Lúgubre silencio reinou por algum tempo naquelasala.O anão chegara-se a Inocência, tomando-lhe umadas mãos: depois, a fizera sentare, no meio de carinhos, mostrara-lhe por sinais anecessidade de retirar-se.A custo pôde ela seguir aquele conselho. Quase derastos e ajudada por Tico éque saiu da presença do pai e de seu perseguidor.Nenhum movimento fizeram os dois para retê-la.Calados como estavam, deixaram-seficar de pé, um ao lado do outro, ambosacabrunhados pela grandeza daqueladesgraça.Com frenesi cofiava Manecão o basto bigode.Pereira tinha a cabeça pendida sobre o peito.Afinal, exclamou:�É preciso que eu desembuche o que tenho cádentro, senão estouro .. Quem forhomem que seja... Manecão, Nocência para nósestá perdida... para nós, porque umhomem lhe deitou um mau-olhado . . . �E quehomem é esse? perguntou em tomsurdo e ameaçador o outro.�Agora vejo como tudo foi... Eu mesmo meti odiabo em casa... Estive alerta...mas o mal já caminhava.�Mas, quem é ele? tornou a perguntar comimpaciência Manecão.�Um maldito! um infame, um estrangeiro que aquiesteve... Roubou-me o sossegoque Deus me deu...Contou então às pressas Pereira todas as

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tentativas do alemão Meyer, tentativasque haviam sido descobertas, mas queinfelizmente, pelo menos assim supunha, jáhaviam produzido os seus danosos frutos.�Ah! disse por fim abaixando a voz, pensou aquelecachorro que tudo era namorarmulheres e depois dar com os pés em polvorosa,não é?... Amanhã mesmo eu lhesaio no rasto.�Para quê? interrompeu Manecão.�Respondam os urubus...�Para matá-lo?�Sim...Houve breve pausa.�Não será, o senhor, disse o capataz, que lhe háde dar cabo da pele.�Por quê?�É negócio que me pertence. O senhor é pai.,. euporem sou.,. noivo. Mangaramcom os dois... mas o alamão fica no chão.�Pois seja, concordou Pereira, parta amanhãmesmo ou hoje... agora, se possívelfor. Cão danado deve logo ser morto, para que ababa não dê raiva. Vá depressa evenha contar-me que aquele homem já não existe...Como velho, como pai...abençôo a mão que o há de matar. Cala o sangueque correr... sobre os meuscabelos brancos . . .Havia toda esta conversa sido atentamente ouvidapor alguém: o anão Tico.Viera a pouco e pouco aproximando-se da mesa comos olhos a fulgir.

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De repente, colocou-se resolutamente entreManecão e Pereira.�Que quer você aqui? perguntou o mineiro comaspereza. Começou então ohomúnculo a explicar por gestos vagarosos, masmuito expressivos, que de tudoestava ciente, participando de todos os projetos edo mesmo sentimento deindignação e desespero que enchia os doisofendidos.Depois, apressando mais a gesticulação e por sonsmeio articulados, fez ver quePereira laborava em engano, tão-somente quanto apessoa.Com multa propriedade de imitação e perfeitamímica, ora levantando o braço paracaracterizar as fisionomias, tão exatamenterepresentou Meyer e Cirino, que omineiro logo os reconheceu.�Bem sei, bem sei, Tico, murmurou ele. Você falado doutor e daquele...Ai o anão fez um gesto de negação e, apontandopara o quarto de Inocência,indicou que nada tinha ela com o alemão.Ficaram pasmos os dois.� Então, balbuciou Pereira, quem será?... Ci...rino,meu Deus?!�Sim... Sim! gritou o anão com violento esforçoabaixando muitas vezes acabeça.�Qual! protestou Pereira, o doutor?...Com muita habilidade e segurança Tico desenvolveuas provas que tinha.

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Gesticulou como um possesso; correu para fora decasa; denunciou as entrevistas;reproduziu ao vivo todas as passadas de Cirino;mostrou o lugar do laranjaldonde vira tudo, o galho quebrado em razão da suaqueda; repetiu o grito quedera; lembrou a cena da madrugada, findando comaqueles tiros; exprimiu-se porsinais tão adequados e tais movimentos de cabeçae fisionomia, que toda a dúvidadesapareceu do espírito de Pereira.Então tudo se lhe descortinou claro e deslumbrante,e sua cólera subiu a um graude violência inexprimível.Esteve a cair fulminado.�Infame, murmurou roxo de ira, tu me pagas!�Infame... Infame!Depois voltando-se para Manecão:�Dê-me esse... eu o quero...Abanou o capataz a cabeça.� Não, respondeu surdamente. Esse me pertence...Caçoou com o senhor... e fezde mim chacota.�Então, disse apressadamente Pereira, partahoje... parta já . E quando voltar,diga só: estamos desagravados... Inocência serásua...Parando um pouco. concluiu tomado de enleio:�Se quiser aceitá-la.�Havemos de conversar,Teve o mineiro uma explosão de desespero�Meu Deus, exclamou com dor, em que mundovivemos nos? Um homem entra na minha

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casa, come do que eu como, dorme debaixo do meuteto, bebe da água que carregoda fonte, esse homem chega aqui e, de umamorada de paz e de honra, faz um lugarde desordem e vergonha! Não, mil raios mepartam!... Não quero mais saberqueesse miserável respire o ar que respiro. Não! milvezes, não! E desde já enxotoa canalhada que trouxe, gente do inferno como ele!. . . Hei de cuspir-lhes nacara. . . Pinchá-los fora como cães que são!...Ladrões! .. Eu... Interrompeu-oManecão com calma:�Não faça nada... E preciso que ninguém saiba doque se está passando aqui...Ninguém!... percebe?�E então?�Faça de conta que recebeu uma letra de Sant�Ana.O cujo foi quem a mandou,para que os camaradas o vão esperar no Leal...Ouviu?Pereira fez sinal de tudo compreender.�Depois, acrescentou Manecão com voz sinistra,mãos a obra.�Você diz bem, retorquiu Pereira, tenha pena demim... Estou com esta cabeçacorno um cortiço de guaxupés... E um zumbido!...Mostre que já é dono desta casae faça como entender... Entrego-me de pés e mãosatados a você... Tudo lhepertence... Enquanto a honra do mineiro não fordesafrontada .. não levanto orosto... Meu Deus, meu Deus, que vergonha! .

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�Coragem, coragem, aconselhou o outro.�Se este socavão não chegar para esconder minhasmisérias... mudo-me para asbandas do Apa... Parece que vou morrer... sintofogo dentro da cabeça...E, vencido pela emoção, encostou a testa à mesa,deixando cair os braços.Bateu-lhe Manecão no ombro.�Que é isso, meu pai? animo! De que serve serhomem?... Olhe cara a cara a suadesgraça... que também é minha. Não o consola acerteza de que aquele homembrevemente...�Sim, replicou Pereira levantando a cabeça ereparando que o anão se retirara,mas que faremos deste tico de gente, que sabetudo ?�Não o deixe sair mais de casa.�Qual!... É que nem muçu. Quando a gente malpensa, surge no Sucuriú e até noCorredor.�Pois bem... Ficará sabendo que... um só piscar deolho... pode sair-lhecaro... muito caro.�Então implorou Pereira, vá quanto antes limpar omeu paiol daquela gente vá...Se eu pudesse ainda dormir... esquecia um pouco,mas .Com estas palavras retirou-se a custo o mineiro.Incontinenti foi Manecão despachar os camaradasde Cirino, os quais, poucodepois saiam com destino à casa do Leal.Em seguida, montando o tropeiro a cavalo, partiu

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em carreira desapoderada para aVila de Sant�Ana do Paranaíba, onde chegou altanoite.

XXX�DESENLACE Estão contados os grãos de areiaque compõem a minha vida. É aqui que devo tombar. É aqui queela há de acabar.Shakespeare, Henrique V, Ato 1 Eis que vi um cavalo amarelo, equem o montava, era a morte.São João, Apocalipse

Durante três dias, foi Cirino rigorosamenteespreitado pelo noivo de Inocência.Com a cautela própria dos seus hábitos esquivos,soube Manecão acompanhar-lhetodos os passos sem ser pressentido.Assim notou que o rival montava a cavalo e ia atécerto ponto da estrada comoque esperar por alguém que não chegava. Na ida,mostrava impaciência einquietação; na volta vinha melancólico e curvadosobre si mesmo, absorto emfundo meditar.Ia o infeliz mancebo ao encontro de Cesário; maseste não aparecia.Estava quase expirado o prazo combinado, eprestes a soar a hora do completodesengano.

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Oh! se ele pudera!... Agarraria com forças de Josuéesse Sol que lhe marcava osdias e o deixaria imóvel, até que o seu salvador seresolvesse a estender-lhe a mão.E já ia findando a semana!...Completo o círculo de horas, se Cesário nãoaparecesse, começava a imperar ojuramento que dera, irrevogável, implacável!�Matar-me-ei, dizia Cirino; ficarão sabendo quenão menti às minhas palavras.Nessa firme resolução saiu da vila; passou o RioParanaíba e, como costumava,caminhou pela estrada de São Francisco de Sales,talvez três léguas. Contavapousar por aqueles sítios de modo que alongava oseu passeio.Claro era o dia; lindo: Por toda parte cantavam milpássaros. Gritavam asgralhas nos cerrados; piavam as perdizes no relvosochão.Cirino ia multo agitado. Nada ouvia; os seus olhos,fitos sempre na frente,buscavam na estrada, ansiosos, o vulto de umcavaleiro.Soou-lhe de repente aos ouvidos o tropel de umanimal.Alguém vinha a galope.Seu coração pulsou que parecia ter entrado tambéma galopar.Mas o som partia de detrás.Sem dúvida, algum viajante vindo da vila.Continuou Cirino na vagarosa marcha.O estrupido vinha indicando carreira folgada e que

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breve consigo estariaemparelhando, quem extravagantemente em horatão imprópria corria à desfilada.O mancebo de nada cuidava, tanto que mal reparouque alguém a trote largopassara por perto de si, quase a rogar animal contraanimal.Dali a pouco, novo galope se fez ouvir.Parecia que o mesmo cavaleiro havia dado derédeas, cortando o rumo que levava.Dessa vez, porém, Cirino acordou do letargo,esporeou vigorosamente a suacavalgadura e... esbarrou com Manecão.Instintivamente empalideceu. O outro estavatambém muito descorado.Estacaram eles os animais e fitaram-se algunsminutos, de um lado comdesconfiança e pasmo, de outro com malconcentrado furor.�Patrício, interpelou por fim o capataz em tomprovocador, que faz mecê poraqui?�Eu? perguntou Cirino.�Nhor-sim, mecê mesmo.�É boa... viajo.�Ah! viaja! replicou Manecão. Então é andejo?�Andejo, não, contestou Cirino com força. Não sounenhum bruto.E por prevenção levantou a capa do coldre em quehavia uma pistola, fazendomenção de a sacar.�Não será andejo, continuou o capataz, mas entãoo que é?

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�Sou o que sou, não é da sua conta.Contraiu-se o rosto de Manecão.De um tranco chegou o cavalo bem junto a Cirino edisse-lhe em voz surda:�É um ladrão... é um cachorro! .A esse insulto, puxou Cirino a pistola.�Mato-o já, bradou com violência se continua adestratar-me.Sorriu-se o capataz com desprezo.�Gentes, observou cuspindo para um lado, vejamsó que valentão... E sabemanejar garrucha!...�Acabemos com isso, gritou Cirino.�Acabemos, retorquiu Manecão com fingida calma.�Mas quem é o Sr.? perguntou Cirino.�Eu?�Sim!... sim!...�Então não me conhece?�Não, balbuciou Cirino.�Conhece Nocência? uivou Manecão com vozterrívelE de supetão tirando uma garrucha da cintura,desfechou-a à queima-roupa emCirino.Varou a bala o corpo do infeliz e o fez baquear porterra.Dois gritos estrugiram.Um de agonia, outro de triunfo.Ficara Cirino estendido de bruços. Reunindo asforças, que se lhe escapavam como sangue, voltou-se de costas e prorrompeu emvociferações contra o inimigo, queo contemplava sardônico.

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�Matador!. vil! .. sim! .. conheço Inocência... Ela éminha .. Infame! ..Mataste-me... mas mataste também a ela!... Quete fiz eu?... Deus te há deamaldiçoar... sim, meu Deus, meus Santos ..maldição sobre este assassino...Foge, foge... minha sombra há de seguir-tesempre...�Melhor, interrompeu Manecão do alto do cavalo,isso mesmo é 0 que eu quero.�Ah! queres? continuou Cirino com vozrouquejante, não é?... Pois bem!... Denoite e de dia... minha alma há de estar contigo . .sempre, sempre! . . .Calou-se por um pouco e, revolvendo-se no chão,passou a mão pela testa.Lentejava-lhe dos poros o suor frio e visguento damorte.Foi seu rosto abandonando a expressão de rancor; arespiração tornou-se-lhe mais difícil�Não murmurou com pausa e gravidade, não queromorrer... assim. Devo sair destavida... como cristão... Hei de saber perdoar... Ereunindo as forças,acrescentou com unção e energia: Manecão... eu teperdôo... por Cristo... quemorreu... na cruz, para nos salvar... eu te perdôoNosso Senhor tenha pena deti... Eu te perdôo, ouviste?A medida que o moribundo pronunciava estaspalavras, esbugalhara Manecão osolhos de horror com o corpo todo a tremer.�Não quero o teu perdão, bradou ele a custo.

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�Não importa, respondeu-lhe Cirino com voz suave.Ele é... dado do fundod�alma... Cata sobre tua cabeça...Quero, quero morrer como cristão... Que me importaagora o mundo, a vingança...tudo?... só Inocência!... Coitada de Inocência...Quem sabe... se... ela... nãomorrerá? Manecão, dá-me água. Água pelo amor deDeus! . . . Desce do cavalo,homem. . . É um defunto que te pede... Desce!...E com os braços erguidos acenava para Manecão.�Água, bradou o mancebo forcejando por levantar-se, dá-me água... eu te dou asalvação...Sentia o capataz escorrer-lhe o suor dentre oscabelos. Queria fugir e nãopodia. Parecia que os seus olhos tinham deacompanhar passo a passo a agonia dasua vitima. Aquela cena, se lhe afigurava umpesadelo, e completo torpor lhetolhia os membros.Tirou-o desse enleio o bater das patas de umanimal que vinha pela estrada a trote.Ouvira também Cirino o estrupido e arregalara comansiedade os olhos.Desabrochou-lhe nos lábios um sorriso de acretristeza.Alguém vinha chegando.Esporeou Manecão com vigor o cavalo e, levantandouma nuvem de poeira,desapareceu num abrir e fechar de olhos.Nisto assomava um cavaleiro numa das voltas docaminho.

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Era Antônio Cesário.Vendo um homem estirado por terra apressou opasso.� O doutor?! exclamou apeando-se rapidamente etodo horrorizado.�Eu mesmo, respondeu Cirino com voz fraca.�Mas, quem lhe fez este dano, santo Deus?E correndo para o moço ajoelhou-se junto dele elevantou-lhe o corpo.�Quem foi o assassino?�Ninguém, rouquejou o mísero, foi... destino...Morro contente... Dê-me água ..e fale-me de Inocência...�Água? exclamou Cesário com desespero, aqui nomeio do cerrado?... O córregofica a três léguas pelo menos...�Ah! replicou Cirino meio desvairado, se não há...com que estancar a sede docorpo... estanque a... da alma... Inocência... ondeesta? quero vê-la...Diga-lhe que morri... por causa dela...�Mas, quem o matou? bradou o mineiro.�Não vale a pena dizê-lo, respondeu o manceboentre gemidos. Cuide agora... sóde mim... Olhe nunca fui mau... não tenho pecados.. grandes... Acha que Deusme... há de perdoar?� Acho, respondeu Cesário com força ..�Que fiz eu... na minha vida? Talvez... enganasseos outros... dizendo que era.. médico... Mas também curei alguns . De nadamais me recordo . . . Ah! sim . .. uma divida de honra . . . Na minha carteira... há

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uns seiscentos mil-réis;pague... trezentos -ao Totó Siqueira, da vila; de...cinqüenta mil-réis. a cadacamarada... meu... o mais... distribua.. todo...pelos pobres, sobretudo...morféticos... depois das .. missas... que por mim...mandar... rezar...ouviu?... ouviu?Fez o mineiro sinal que sim.Vinha a morte desdobrando as suas sombras norosto de Cirino. Ia-se-lheempanando o brilho dos olhos; ficara a línguatrôpega, afilara-se-lhe o nariz esinistro palor mais realçava a negra cor dos seuscabelos e barbas.Sentara-se Cesário no chão para segurar com maisjeito o corpo do moribundo.Duas lágrimas vinham-lhe sulcando as másculasfaces.Ligeiro estremecimento agitava o corpo de Cirino.�Agora, acrescentou com voz muito sumida,chegou... o meu dia... Mas... eu lhepeço... nada diga... à sua afilhada... Não consinta...que case com... Manecão.�Então, interrompeu Cesário, foi ele quem?...�Não, não, contestou Cirino, mas... ela havia deser... infeliz... Ouviu?Promete-me?�Prometo, respondeu Cesário com firmeza. Juroaté...�Pois bem, suspirou o agonizante, agora...agradeço a morte. Quero apegar-me...às Santas do Paraíso... e chamo por...

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E com esforço, no último alento, murmurou mais emais baixo:�Inocência!Na tarde deste dia, o viajante que passasse poraquele sitio poderia ver umacova coberta de fresco, sobre a qual se erguia umacruz tosca feita de doisgrossos paus amarrados com cipós.Eram mostras da caridade do mineiro AntônioCesário

EPÍLOGO�REAPARECE MEYER Possuí-te do justo orgulho e coroemos louros de Apolo tua cabeça.Horácio

No dia 18 de agosto de 1863, presenciava a cidadede Magdeburgo pomposoespetáculo, há muito anunciado no mundo científicoda sabia Germânia.Era uma sessão extraordinária e solene daSociedade Geral Entomológica, a qualchamava a postos não só todos os seus membrosefetivos, honorários,correspondentes, como muitos convidados deocasião, a fim de acolher e levar aocapitólio da glória um dos seus mais distintosfilhos, um dos mais infatigáveisinvestigadores dos segredos da natureza, intrépidoviajante, ausente da pátriadesde anos e de volta da América Meridional, em

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cujas regiões centrais por talforma se embrenhara, que impossível havia sidoseguir-lhe o roteiro, até nosmapas e cartas especiais do grande colecionadorSimão Schropp,Revestira-se de mil galas a ciência. Todos os sóciosde casaca preta, gravata eluvas brancas alguns com discursos nos bolsos,enchiam a sala das sessões muitoantes da hora marcada; a orquestra executava asonata nº 26 de Ludwig vanBeethoven, e senhoras ostentavam toilettes ricas ede aprimorado gosto.De repente atroou um grito:�Vivat Meyer! Hurrah! Vivat! Hoch! Hoch!...E, ao passo que todos os pescoços se estiravampara ver quem entrava sacudiam-seno ar com entusiasmo lenços e chapéus.Acalmada a ruidosa manifestação, levantou-se opresidente da SociedadeEntomológica, um presidente magro como umespeto e ornamentado de ruivacabeleira que lhe dava o aspecto de um projeto deincêndio.�Sim! exclamou ele depois de ter bebido uns golesd�água açucarada e de haverpreparado a garganta; eis enfim, aqui, no meio denós, o grande, o vencedor, oincomparável Guilherme Tembel Meyer! . . .E neste gosto falou duas horas seguidasNo dia seguinte, traziam as gazetas de Magdeburgoextensa relação da festa,transcreviam o discurso do presidente e, como

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apêndice às notas biográficasrelativas a Meyer, enumeravam os prodígiosentomológicos que havia recolhido emsuas dilatadas peregrinações.�O que há de mais digno de admiração, dizia OTempo (Die Zeit), em toda a imensae preciosíssima coleção trazida pelo Dr. Meyer dassuas viagens, é semcontestação uma borboleta, gênero completamentenovo e de esplendor acima dequalquer concepção. É a Papilo Innocentia...(Seguia-se uma descrição deminuciosidade perfeitamente germânica).�O nome, acrescentava a folha, dado pelo eminentenaturalista àquele soberboespécime foi graciosa homenagem à beleza de umadonzela (Mädchen) dos desertosda Província de Mato Grosso (Brasil), criatura,segundo conta o Dr. Meyer, defascinadora formosura. Vê-se, pois, que também ossábios possuem coraçãotangível e podem por vezes, usar da ciência comomeio de demonstrar impressõessentimentais de que muitos não os julgamsuscetíveis.�

* * *Inocência, coitadinha...Exatamente nesse dia fazia dois anos que o seugentil corpo fora entregue àterra, no imenso sertão de Sant�Ana do Paranaíba,para aí dormir o sono daeternidade.