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APONTAMENTOS ACERCA DOS TEMPOS DE ESCRITA DA NAÇÃO CARLOS HENRlQUE ARMANI* RESUMO Pretendo apresentar neste artigo algumas interpretações sobre os diferentes tempos de escrita da nação. o Que envolve a reflexão em torno das tradicionais bases de pensamento acerca da identidade nacional. bem como das novas formas de pensar aquelas dimensões. tomando como centro para a análise o pensamento de Homi Bhabha sobre a experiência pós-colonial de tempo e de espaço. PAIAVRAS-CHAVE: tempo histórico. identidade nacional. ABSTRACT I intend to show in this artícle some interpretations concerning the dilferent times of writing about nation. which involves the reflection on traditional bases of thought about national ldentity, as well as the new ways to think that dimensions. taking as core for the analysís the thought of Homi Bhabha about post-colonial time and space experíence. KEYWORDS: historical time. national identlty. Escrever acerca do tempo pressupõe. de antemão. a imersão na complexidade de uma experiência Que seouer se sabe se existe para além do mundo fenomênico. Não obstante a tentativa de autores do porte de llya Prigogine l não temos como provar a existência do tempo fora do mundo dos fenômenos. Por outro lado, ao arrostarmos este limite - o Que aparentemente é a redução do complexo ao simples - nos deparamos com a complexidade do Que poderíamos denominar as temporalidades * Mestrando em História - PUCRS/CNPQ, E-mail: [email protected] I Prigogine _ Nobel em Química - pretende provar a existência do tempo anteriormente à matéria e refutar a hipótese fenomenológica do tempo. predominante na filosofia contemporânea. Deve-se salientar Que sua concepção de tempo não está relacionada com aquelas pretensões objetivistas de um tempo absoluto newtoniano. Prigogine pressupõe a criatividade. a assimetria. a incerteza ea instabilidade a partir da experiência da termodinâmica e dos processos QuímiCOS não-lineares. Ver: PRIGOGINE. I!>'a. O fim das certezas. tempo. caos e leis da natureza. São Paulo: UNESP. I996. Biblos, Rio Grande. 1S: 17-24.2003. 17

APONTAMENTOS ACERCA DOS TEMPOS DE ESCRITADA NAÇÃO

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Page 1: APONTAMENTOS ACERCA DOS TEMPOS DE ESCRITADA NAÇÃO

APONTAMENTOS ACERCA DOSTEMPOS DE ESCRITA DA NAÇÃO

CARLOS HENRlQUE ARMANI*

RESUMOPretendo apresentar neste artigo algumas interpretações sobre os diferentes tempos deescrita da nação. o Que envolve a reflexão em torno das tradicionais bases de pensamentoacerca da identidade nacional. bem como das novas formas de pensar aquelas dimensões.tomando como centro para a análise o pensamento de Homi Bhabha sobre a experiênciapós-colonial de tempo e de espaço.

PAIAVRAS-CHAVE: tempo histórico. identidade nacional.

ABSTRACTI intend to show in this artícle some interpretations concerning the dilferent times ofwriting about nation. which involves the reflection on traditional bases of thought aboutnational ldentity, as well as the new ways to think that dimensions. taking as core for theanalysís the thought of Homi Bhabha about post-colonial time and space experíence.

KEYWORDS: historical time. national identlty.

Escrever acerca do tempo pressupõe. de antemão. a imersão na complexidadede uma experiência Que seouer se sabe se existe para além do mundo fenomênico.Não obstante a tentativa de autores do porte de llya Prigoginel• não temos comoprovar a existência do tempo fora do mundo dos fenômenos. Por outro lado, aoarrostarmos este limite - o Que aparentemente é a redução do complexo ao simples -nos deparamos com a complexidade do Que poderíamos denominar as temporalidades

* Mestrando em História - PUCRS/CNPQ, E-mail: [email protected] Prigogine _ Nobel em Química - pretende provar a existência do tempo anteriormente à matéria e refutar ahipótese fenomenológica do tempo. predominante na filosofia contemporânea. Deve-se salientar Que suaconcepção de tempo não está relacionada com aquelas pretensões objetivistas de um tempo absolutonewtoniano. Prigogine pressupõe a criatividade. a assimetria. a incerteza e a instabilidade a partir daexperiência da termodinâmica e dos processos QuímiCOS não-lineares. Ver: PRIGOGINE. I!>'a.O fim das certezas. tempo. caos e leis da natureza. São Paulo: UNESP. I996.

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subjetivistas, de duração intelectual ou mesmo de oualouer espessura de duração nalinha de Bergson ou da ritmanálise de Bachelard.

Como se sabe, tanto Bergson Quanto Bachelard pretendem sustentar o "ser" dotempo na esfera do espírito, do intelecto, da consciência, em oposição ao tempoobjetivlsta cosmo lógico. Para Bergson, a temporalidade é duração, a "nossa própriapessoa em seu fluir através do tempo", no Qual o passado cresce sem cessar a cadapresente Que incorpora em seu caminho, onde a memória prolonga esse passado emnosso presente, de modo Que, do contrário, "não haveria duração, mas somenteínstantaneldade'". Bachelard. na esteira subjetiva de Bergson, sustenta Que a realidadetemporal é a do instante. Contrariamente, porém, à duração bergsoniana, Bachelardaflrma Que o tempo é fundamentalmente descontínuo. Segundo o filósofo francês,"a concepção de um tempo único, levando embora nossa alma e as coisas parasempre, só poderia corresponder a uma visão de conjunto Que resume de forma muitoimperfeita a diversidade temporal dos fenômenos".'

Talvez seja estéril insistir na dicotomia tempo objetivo/subjetivo. Embora hajainstrumentos cada vez mais precisos de medição do tempo - o Que provaria a sua"materlalidade" -, a elaboração de múltiplas experiências em torno do tempotranscende oualouer mensuração físlca."

Nessa direção, se Quisermos denominar a experiência cultural do tempo de"perspectiva subjetiva", pretendemos, apresentar neste artigo algumas elucubraçõessobre os tempos "subjetivos" envolvidos no processo de escrita da nação, maisespecíflcamente, acerca dos diferentes regimes de temporalidades inscritos naconstrução da identidade nacional.

A escrita da história está calcada em duas instâncias tidas como imprescindíveispara a elaboração dos conhecimentos Que se pretendem científlcos: o tempo e oespaço. A idéia de tempo e de espaço como domínios apriórlcos, geométricos eabsolutos do conhecimento nos remete a Kant, para Quem nenhum conhecimentopode se estender para além do limite espacíotemporal dos fenômenos, ou seja, paraalém do espaço e do tempo, Que são, para o filósofo, as condições de toda aexperiência possível, condição Que, de resto, está vinculada à idéia newtoniana de umespaço e tempo absolutos. s

Se tomarmos algumas idéias sobre a nação moderna, estas estão ancoradas ernnoções do tipo raça, cultura, território e língua, as Quaisse constituem em baluartes doiser nacional, Quando convergem para uma perspectiva de homogeneidade, mesmo Queseja na pluralídade (muitos como um). Além disso, a imersão da nação no tempo - como

2 BERGSON, Henri. Introdução à metafisica. In: OS PENSADORES. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 31.3 BACHELARD, Gaston. Dialética da duração. São Paulo: Ática, 1988. p. 6.4 Ver, por exemplo, a edição n. S da revista Sdentific American Brasil, de outubro de 2002, a Qual abordaos diferentes enfooues em torno da Questão do tempo e da temporalidade.S PIETIRE, Bernard. filosofia e dênda do tempo. Bauru: Edusc, 1997. p. 13.

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a marca de um começo, de um desenvolvimento e de um te/os -, bem como suadelimitação física no espaço (territorlalldade). é tida como condição sine ous non parao estabelecimento de uma ontologia, de uma comum-unidade nacional na identidade.As experiências disjuntivas, desestabílízadoras e heterogêneas da escrita da nação sãorelegadas a um plano secundário, onde a alterídade flca circunscrita à identidade.

No entanto, as múltiplas experiências de tempo Que envolvem a retórica danação desafiam sua circunscrição ao nível de uma temporalidade homogênea esimetricamente constituída.

Homi Bhabha, um dos grandes pensadores contemporâneos, sugere Que há anecessidade de um outro tempo de escrita, "Que seja capaz de inscrever as interseçõesambivalentes e ouiasrnátlcas do tempo e lugar Que constituem a problemáticaexperiência 'moderna' da nação ocidental"."

O autor tem em vista a construção não exatamente de um tempo, mas de umentre-tempo Que se configura num espaço Iiminar de um tempo duplo: o pedagógico eo performativo. Segundo Bhabha, o pedagógico funda sua autoridade narrativa emuma tradição do povo através de uma sucessão de momentos históricos Querepresenta uma eternidade produzida por auto-geração, enouanto Que o performativointroduz a temporalidade do entre-lugar, uma espécie de contra-narrativa da naçãoQue continuamente evoca e rasura suas fronteiras totalizadoras e desestabiliza osigniflcado do povo como homogêneo". Trata-se de uma dupla temporalidade: umavoltada para um tempo de escrita da essência, da identidade - o pedagógico -; e aoutra, para a instabilidade, a incompletude e a dlsjunção. na Qual se estabelecemespaços de negociação identiflcatórios - o performativo.

Ao comentar os tempos de escrita da nação postulados por Bhabha, ohistoriador argentino Elías Palti aflrma Que a visão do autor hindu pressupõeo reconhecimento de Que o discurso nacionalistg não esgota em si seu momentogenealógico - o tempo homogêneo da narração -, mas Que este também contém umelemento de construção - o performativo - Que lhe é inerente. Segundo Palti, aindainterpretando o texto de Bhabha, para reprimir essa tensão, a narração nacionalistadeve projetar uma ilusão de homogeneidade, a idéia de uma nacionalidade Que precedesua constituição efetiva - o momento genealóglco."

6 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998. p, 20 I.7 BHABHA, op. cit., p. 209-21 I.

8 *PALTI, Elías José. The nation as a problem. Histoty and TheOly. v. 40, n. 3, p. 343, Oct. 2001.

Os textos marcados com asterisco foram retirados do Portal Capes, através da Internet, na páginaWWW.periodicos.capes.gov.br. Como as referências de revista em língua inglesa usualmente não colocam olocal da publicação, negligenciamos esta informação devido ao fato de os textos estarem assim dispostos naInternet. As referências - mesmo as de páginas - obedeceram à publicação original, posto Que o Portal,juntamente com um software especial, disponibiliza a impressão dos textos conforme sua publicação narevista. Não colocamos a data em Que o texto foi extraído da Internet poroue os artigos Que estão no Portalsão permanentes. Ademais, optamos por manter somente a data original da publicação.

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Para adentrarmos ainda mais na Iiminaridade das temporalidades da narrativa danação, é interessante pensar a heterogeneidade e a instabilidade na pluralidade dediferentes temporalidades no interior do pedagógico - a performatividade do pedagógico.

O tempo pedagógico, eternizado pela autogeração, tem um componente míticoQue lhe é intrínseco: o fornecimento de histórias sígnlflcatívas", de arquétipos Quepossam servir como exemplos para fins de civismo. Na escrita da nação, o momentopedagógico é marcado por, pelo menos, ouatro subtemporalidades distintas: o tempo dacontinuidade (a perenidade do passado). o tempo lítúrgíco (de reprodutibilidade dopassado enquanto rito), o tempo da ruptura (a disjunção entre o profano e o sagrado e ademarcação do não-ser e do ser nacional) e o tempo linear (de realização plena da nação).

Vejamos, como um exemplo situado empiricamente, o caso do mito depacificidade do brasileiro, talvez uma das idéias mais propaladas acerca da identidadebrasileira até hoje. É freqüente ouvirmos Que o povo brasileiro é amigo da paz, cheiode bonomia, cordial. avesso à guerra e hostilidades ete. Segundo Ruth Gauer, o mitode pacífkldade do brasileiro teve sua gênese entre os primeiros indivíduos Queparticiparam do processo de construção da primeira constituição brasileira, ou seja, naAssembléia Constituinte de 1823. Segue Gauer ao descrever o evento:

o tempo do evento, início de novembro de 1823. O local. cidade do Rio de janeiro,capital do Império, dependênciasda AssembléiaConstituinte. A cena, vigflia, insônia,pesadelo e medo. Principaisatores do evento, deputados constituintes, muitos delesformados em Colrnbra, um número signiflcativode pessoasQuelotavamas galeriasdaAssembléia,ministros, conselheirosde Estadoe o Imperador. A cena, o trabalho dosdeputados constituintes para a elaboração da primeira constituição, a ameaça dofechamentoda Assembléiapelo Imperador e a ameaçaQue a populaçãopresentenasgaleriasrepresentava,paraalgunsparlamentares,Queviam nasínouíetações dos popularesQueacompanhavamos trabalhosda Assembléiaum perigo iminente. Eramtambémvistospor alguns deputados como a plebe Que cercava e observava as atividades dosconstituintes, "verdadeiros" representantesda Nação. Foi nesse cenário de ameaçae medo e com a ínouletação da polis, Que o Imperador utilizou as forças militarespara fechar a primeira AssembléiaConstituinte brasileira,em novembro de 1823. Emmeio a essaviolência, por mais paradoxalQuepossaparecer, é Quese criou o mito dopovo pacífico.10

A pacificidade como a alma da nação brasileira é emblemática do pedagógicona escrita acerca da nação. Pedagógico poroue é o momento de criação de umarquétipo - de povo pacífico - num tempo (fabuloso) do começo, onde o "grandetempo" suplanta o tempo profano da irreversibilidade para cristalizar o momento de

9 ELlADE. Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1988. p. 9.10 GAUER. Ruth. A construção do Estsdo-nsçio no Brasil. a contribuição dos egressos de Coimbra.Curitiba: Iuruá, 200 I. p. 256.

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. ~ do mito no Qual se estabelece a ruptura entre o não-ser - a violência - e o sercnaçao .acificidade do brasileiro -, ou, nas palavras de Benjamin. um ambiente carregado- a p . t I' A d 11de tensões sociais Q!.Iese cns a izam em uma mona a.

O rito como forma de reprodutibilidade do mito é um modo de presentificaçãodo passado cristalizado - a eternidade produzida por auto-geração, como diz Bhabha.

Pensamoscom Gauer, Quando afirma:

Buscarexplicaro cerne da almada nação,como se essativesseumasubstancialidade, ade povo pacífico.generosoe cordial, é buscar a razão primeira, o passado,como umarealidadefixae contínua, legitimadorade uma aderênciatemporal estruturante.'?

Ainda segundo a autora, a historiografia brasileira tem, ao longo dos séculosXIX e XX, procurado explicar a substancialidade nacional. "reatualizando o mito.

metáfora de uma identidade imaginada". 13

Até aQui, a ênfase foi direcionada para um tempo pedagógico Que poderíamosdenominar precariamente de tempo da tradição. Há ainda. no pedagógico, um fortecomponente linear, moderno, Que envolve um alargamento do tempo para o futuro, talcomo o horizonte de expectativas sugerido por Koselleck'". o Qual, aparentemente,está dissociado do modelo tradicional. Levinger e Lytle chamam a essa concepção Queenvolve no pedagógico o tempo mítico e o tempo linear, de "estrutura tríadica da

retórica nacionalista". 15

Os autores norte-americanos procuram delimitar as estruturas temporais daretórica nacionalista, na Qual a tríade é estabelecida a partir de imagens acerca de umpassadoglorioso, harmônico, onde o ser nacional é pleno, um presente degradado, noQualse verificam os agentes da destruição da comunidade e, por fim, a mobilização emtorno de um futuro utópico", em Que se reconstituuo ideal nacional, uma espécie deretomada do estatuto ontológíco inicial. Para os autores, é comum encontrar em Quasetodas as retóricas nacionalistas essa tríade passado glorioso-presente degradado-futuroutópico. Neste sentido, mais do Que haver uma operação disjuntiva entre tradição emodernidade em relação ao tempo, há uma continuidade Que coloca o pensamento

',' BENJAMIN. Walter. Teses sobre a filosofia da história. In: WALTER BENJAMIN: sociologia. São Paulo:Atica, 1985. p. 162. Pensamos a mônada enquanto substância cristalizada. indivisível. Segundo Guerreiro.a mônada no pensamento de Benjamin possui esse aspecto de cristalização. mas simultaneamente elacarrega potencialmente uma configuração saturada de tensões. Ver: GUERREIRO, Antonio. O acento acudodo presente. Lisboa: Cotovia. 2000. Ver capítulo: "A época e as suas fantasmagorias".

12 GAUER. op. dt., p. 256.13 Idem.14 KOSELLECK. Reinhart. Futuro pasado: para una semántica de los tiempos históricos. Barcelona:

Paidós. 1993.IS * LEVINGER. Matthew: LYTLE, Paula. Myth and mobilisation: the triadic structure of the nationalist

rhetoric. Nations and Nationalism, v. 7, n. 2, p. 186, 200 I.16 LEVINGER; LYTLE, op. cit., p. 186.

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mítico e o pensamento "moderno" no mesmo plano discursivo de elaboração da nação.A idéia do mito como forma de evasão do tempo, nesse caso, não se sustenta, pois éo próprio mito Que serve para a reconstituíção da nação num futuro utópico(otimista) 17. Novamente citando o caso brasileiro, é recorrente a idéia de algunsintelectuais se arvorarem de uma certa supremacia conferida ao Brasil num determinadoalargamento de tempo futuro, cujo te/os é a paz perene entre nações, onde o Brasilsupostamente figuraria como o promotor da paz entre elas.

A heterogeneidade e a promiscuidade de temporalidades no interior do pedagógicosão, certamente, disjuntivas e, pelo menos num nível latente, desestabilizadoras de umaescrita homogênea da nação. Elas não têm o mesmo efeito desconstrutivo daquilo QueBhabha chama de tempo performativo, não obstante o seu aspecto performático.

Se a assimetria e a instabilidade latente do pedagógico já são um indício doperformativo, esse, por sua vez, é o tempo de desconstrução das identidades, dosessencialismos e das ontologias da nação, uma representação da diferença Que não é oreflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos, "inscritos na lápide fixa datradição"!", Evidentemente Que a experiência histórica migrante de Bhabha, um indianoQue estudou na Inglaterra e se radicou nos Estados Unidos, tem um elo profundo comessa abertura em relação à escrita da nação. Escrita Que se situa não somente noentre-lugar da enunciação, mas também nos recortes empíricos a partir dos ouaís osprocessos identificatórios podem ser construídos.

Se a idéia de essência, de pertencimento a uma determinada cultura QUe adiferencia das demais através de uma diversidade cultural envolve uma cristalização decaráter mítlco. Bhabha sugere Que a escrita da nação pode ser feita na diferençacultural. Não se trata somente de um jogo de diferenciação entre diversidade ediferença, mas sim de inscrição de uma temporalidade cuja costura se opera nopresente disjuntivo, sem oualouer linearidade ou reprodutibilidade subjacente à suaperformatividade na diferença cultural, como ocorre nos casos em Que há esse fio decontinuidade - tanto o tempo auto-geratívo Quanto o tempo progressista". SegueBhabha novamente:

17 A idéia do mito como forma de evasão do tempo pode ser conferida em REIS, José Carlos. Tempo,história e evasão. São Paulo: Papirus. 1994. Não entramos na discussão do próprio caráter mítico da idéiade progresso, na sua absolutízação de um tempo final sacralízado. O mito como forma de perpetuar umaconsciência do além. do transcendente, sobre-humano, se coaduna muito bem com as idéias em torno doprogresso. Ver: ElIADE. op. cit.. p. I 19.18 BHABHA, op. dt., p. 20.19 Como coloca Simmel. "ao afirmar Que existe progresso na história. se supõe um laço. em certo sentidosubterrâneo. entre os períodos caracterizados por sua relação positiva com o ideal; e no fundo dessaconexão de períodos deve existir uma força subjacente a todos os efeitos e manifestações havidas. Quepermite Que o mecanismo do acontecer em geral transcorra adiante. apesar de todos os desvios. sobretudoem direção para esse ideal". Ver: SIMMEL. Georg. Problemas de filosofía de Ia historia. Buenos Aires: Nova.1950. p. 171.

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A diversidade cultural é também a representação de uma retórica radical daseparação de culturas totallzadas Que existem intocadas pela intertextualidade deseus locais históricos. protegidas na utopia de uma memória mítica de uma identidade

coletiva única2o•

Nessa intertextualidade dos locais históricos, Bhabha direciona a suaconstrução de um espaço de negociação das identificações, sem a "racionalidaderedentora da superação dialética ou da transcendência", de modo a constituir umpensamento contrapolar Que transita no cruzamento do espaço e do tempo. produzindo"figuras complexas de diferença e identidade. passado e presente. interior e exterior.inclusão e exclusão?".

Se Quisermos exemplificar empiricamente a intertextualidade da Qual falaBhabha. há exemplos citados pelo autor em QUe o hibridismo cultural pós-colonial e atemporalidade performativa se manifesta mais explicitamente, não somente no casohindu-britânico, mas também dos argelinos na França, dos turcos na Alemanha e dosmexicanos nos Estados Unidos. Como pensar numa escrita homogênea da naçãodiante de fronteiras tão híbridas e liminares como estas?

Acrescente-se ainda Que não é somente nesse hibridismo pós-colonial Que astemporalidades disjuntivas e liminares se manifestam. Se esses casos são aradícallzação do performativo. não se deve pensar Que aoueles países cuja construçãodas identidades nacionais esteve distante de uma experiência colonial promíscua sejamos baluartes da "pureza nacional" - lembremos da performatividade do pedagógico.São as próprias aporias da identidade Que estão em jogo no pensamento de Bhabha. oouestlonamento de idéias totalizantes do tipo "o povo brasileiro é cordial e solidário"."os alemães são lacônicos". "os norte-americanos são individualistas" ete. Como diz. .

Dlehl, "a identidade é uma espécie de metadiscurso sobre experiências históricas dedifícil apreensão ernpfríco-histórlca'vv'

Em suma, esses foram alguns prolegômenos em torno da Questão daselaborações temporais da escrita da nação. Quisemos chamar a atenção. sobretudo.para um desprendimento espaciotemporal de sua escrita, bem como. num sentido maisamplo, para os limites e a precariedade das lógicas binárias e das concepçõesontologizantes da história. Não tivemos a pretensão de afirmar Que as concepçõestradicionais Que envolvem a idéia de nação estejam ausentes nas retóricasnacionalistas. As visões Que concebem a nação através de uma identidade apriórica"objetiva", "pré-política". ainda estão muito presentes nas diferentes formaçõesdiscursivas envoltas no processo de invenção das identidades. mesmo Que não se

20 BHJI.B: IA, op. cit., p. 63.

21 Idem. ibidem. p. 19 e 52.22 DIEHl. Astor. Cultura historiocráfic;f. memória. identidade e representação. Bauru: EDUSC. 2002.

p. 128.

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reconheçam como partes integrantes dessa mesma retórica. É importante reconhecer,porém, Que esses tipos de generalizações em torno do ser da nação implicama redução do complexo ao simples, da outridade à identidade, dos "muitos"a "um", enfim, a projeção de uma homogeneidade Que apreende somente o mesmono outro e se afasta do outro de nós mesmos na opacidade de um tempo de narrativahomogêneo e vazío."

23 BENJAMIN. op. cit., p. 166.

24 Biblos. Rio Grande. 15: 17-24.2003.