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Notas de Aulas – Ética Política e Sociedade Profª. Noemi Cardozo de Oliveira Silva
2010/02
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Por que é certo ou errado agir de uma maneira ou de outra? (por medo de ser punido, por pensar no outro ou por fundamentos religiosos) Problemas: • É possível que o MAL se apresente sobre a forma de BEM? • O BEM e o MAL dependem da perspectiva de cada um? • Vale a pena fazer o MAL visando um BEM maior? • Deve‐se julgar as intenções e os atos? Até que medida isso é válido?
Certo e Errado1
“Imagine que você trabalha numa biblioteca, verificando os livros que as pessoas levam ao sair, e um amigo lhe pede que o deixe levar as escondidas uma obra de referência muito difícil de encontrar, que ele deseja ter para si”. (p.63) Você não concordaria com seu amigo: ‐ por medo de ser repreendido e sofrer alguma punição; ‐ pela sua vontade de que o livro continue na biblioteca; ‐ por achar que é “injusto com os outros usuários da biblioteca” (p.64); ‐ por acreditar que é “uma traição aos seus patrões, que lhe pagam justamente para impedir esse tipo de coisa” (p.64); ‐ por acreditar que seria um ato errado, porque Deus proíbe este tipo de ação. Você não concordaria com seu amigo por medo de ser punido por Deus, ou porque você obedece aos seus mandamentos por amor a ele e por respeito ao amor que ele sente por você; “a idéia de que uma coisa é errada depende do impacto que ela tem não apenas sobre aqueles que a praticam, mas também sobre outras pessoas” (p. 64) Há um único certo e errado? “se o fato de algo ser errado deveria ser uma razão para não fazê‐lo e suas razões para fazer as coisas dependem de seus motivos, e os motivos das pessoas podem variar muito, parece então que não haverá um único certo e errado para todo o mundo”. (p.74) Certo e errado são relativos a uma época, lugar ou contexto social específicos? “Muitas coisas que você provavelmente considera erradas foram aceitas como moralmente corretas por grandes grupos de pessoas no passado: escravidão, servidão, sacrifício humano, segregação racial, negação de liberdade política e religiosa, sistemas de castas hereditárias”. (p.76)
1 Adaptado de: NAGEL, Thomas. “Certo e errado” In: Uma breve introdução à filosofia. Trad. Silvana Vieira. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
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INTRODUÇÃO À MORAL
A verdadeira moral zomba da moral. (Pascal)
AXIOLOGIA: A DISCIPLINA DOS VALORES O que é valor? Quais suas características básicas? Quais são os tipos de valores que existem? O que é hierarquia de valores? Há um valor mais elevado/importante? Qual a origem dos valores? A partir de onde nós os apreendemos? Um dos temas que mais tem gerado discussão na sociedade, seja antiga ou moderna, é a axiologia, a disciplina filosófica que estuda os valores. A palavra axiologia é formada por dois termos gregos: axia que significa valor e logos que significa estudo. Vivemos cercados por um mundo de coisas. Estas coisas possuem um caráter próprio, peculiar, que nos faz
assumir diante delas uma posição de preferência. Isto porque elas se nos apresentam como feias, bonitas,
profanas, sagradas etc., mas nunca indiferentes.
Segundo a Axiologia, através da não‐indiferença perante as coisas existentes que se ergue o valor. Portanto
o valor se caracteriza pela não‐indiferença entre o sujeito que aprecia e o ser que se apresenta como objeto
de apreciação. Ser indiferente é não sentir, não perceber, não tomar conhecimento de algo conhecido. O
valor, ou essa não indiferença do sujeito perante as coisas, pode ser positivo ou negativo. Ou melhor, tem
que ser positivo ou negativo. O ponto neutro do valor, isto é, a indiferença, seria a própria negação do valor.
Qualquer valor tem que se situar num ou noutro pólo, pois jamais um valor é positivo e negativo ao mesmo
tempo. Esta característica dos valores recebe o nome de polaridade. Em conseqüência da polaridade, ou bi‐
polaridade, não há um valor que seja único, pois ao valor opõe‐se o contravalor, isto é, ao bem contrapõe‐se
o mal, ao melhor contrapõe‐se o pior. A parte objetiva do valor, aquilo que no objeto o faz ser desejável ou
indesejável, sempre o coloca num pólo, de acordo com a necessidade do sujeito. É óbvio que o que para um
sujeito pode ser um valor para o outro poderá ser um contravalor. Os juízos de valor são muito subjetivos,
pessoais e singulares dependendo de uma série de fatores, como: necessidade ou contingência do meio,
emoções e sentimentos, formação familiar e cultural (ver quadrinhos), entre outros. Ao se falar de valores é
necessário também fazer uma classificação ou divisão dos diversos tipos de valores que existem numa
sociedade. Max Scheller (1874‐1928) propõe a seguinte classificação de tipos de valores. éticos: valores do
bem moral (caridade, justiça, honestidade,...); estéticos: valores ligados ao belo, ligados à expressão, à
aparência (artes, música,..); hedônicos: valores ligados ao prazer, à satisfação, ao agradável; vitais: valores
essenciais para a vida e sobrevivência: saúde, alimento, ...; úteis: valores que servem como meio para
obtermos a satisfação das necessidades; religiosos: valores que satisfazem as necessidade espirituais do ser
humano; Outras divisões ou tipos de valores podem ser aqui referidos como: materiais, culturais,
econômicos, profissionais,... Os valores, de forma geral, são transmitidos ou integrados aos indivíduos por
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diversas formas: pela família, igreja, escola, mídia, amigos, profissões, instituições políticas, pela cultura e
sociedade e pelas próprias experiências de vida do sujeito.
1. Os valores
Diante de pessoas e coisas, estamos constantemente fazendo juízos de valor. Esta caneta é ruim, pois falha
muito. Esta moça é atraente. Este vaso pode não ser bonito, mas foi presente de alguém que estimo
bastante, por isso, cuidado para não quebrá‐lo! Gosto tanto de dia chuvoso, quando não preciso sair de
casa!
Acho que João agiu mal não ajudando você. Isso significa que fazemos juízos de realidade, dizendo que esta
caneta, esta moça, este vaso existem, mas também emitimos juízos de valor quando o mesmo conteúdo
mobiliza nossa atração ou repulsa. Nos exemplos, referimo‐nos, entre outros, a valores que encarnam a
utilidade, a beleza, a bondade.
Mas o que são valores? Embora a preocupação com os valores seja tão antiga como a humanidade, só no
século XIX surge uma disciplina específica, a teoria dos valores ou axiologia (do grego axios, "valor"). A
axiologia não se ocupa dos seres, mas das relações que se estabelecem entre os seres e o sujeito que os
aprecia.
Diante dos seres (sejam eles coisas inertes, ou seres vivos, ou idéias etc.) somos mobilizados pela
afetividade, somos afetados de alguma forma por ëlës, porque nos atraem ou provocam nossa repulsa.
Portanto, algo possui valor quando não permite que permaneçamos indiferentes. É nesse sentido que García
Morente diz: "Os valores não são, mas valem.”
Uma coisa é valor e outra coisa é ser. Quando dizemos de algo que vale, não dizemos nada do seu ser, mas
dizemos que não é indiferente. A não indiferença constitui esta variedade ontológica que contrapõe o valor
ao ser. A não‐indiferença é a essência do valer"'.
Os valores são, num primeiro momento, herdados por nós.
O mundo cultural é um sistema de significados já estabelecidos por outros, de tal modo que aprendemos
desde cedo como nos comportar à mesa, na rua, diante de estranhos, como, quando e quanto falar em
determinadas circunstâncias; como andar, correr, brincar; como cobrir o corpo e quando desnudá‐lo; qual o
padrão de beleza; que direitos e de‐
O mundo cultural é um sistema de significados já estabelecidos por outros, de tal modo que aprendemos
desde cedo como nos comportar à mesa, na rua, diante de estranhos, como, quando e quanto falar em
determina‐ das circunstâncias; como andar, correr, brincar; como cobrir o corpo e quando desnudá‐lo; qual
o padrão de beleza; que direitos e deveres temos. Conforme atendemos ou transgredimos os padrões, os
comportamentos são avaliados como bons ou maus.
A partir da valoração, as pessoas nos recriminam por não termos seguido as formas da boa educação ao não
ter cedido lugar à pessoa mais velha; ou nos elogiam por sabermos escolher as cores mais bonitas para a
decoração de um ambiente; ou nos admoestam por termos faltado com a verdade. Nós próprios nos
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alegramos ou nos arrependemos ou até sentimos remorsos dependendo da ação praticada. Isso quer dizer
que o resultado de nossos atos está sujeito à sanção, ou seja. ao elogio ou à reprimenda, à recompensa ou à
punição, nas mais diversas intensidades, desde "aquele" olhar da mãe, a crítica de um amigo, a indignação
ou até a coerção física (isto é, a repressão pelo uso da força).
(Quino, Toda Mafalda, São Paulo, Martins Fontes, 1991.)
Embora haja diversos tipos de valores (econômicos, vitais, lógicos, éticos, estéticos, religiosos), consideramos
neste capítulo apenas os valores éticos ou morais.
ARANHA, Maria Lúcia de. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 2008.
Mesmo não consistindo um tema contemporâneo, evidenciamos, principalmente nestas últimas décadas, uma retomada da discussão sobre a moral e os valores. Um dos motivos que poderíamos elencar para o despertar dessa discussão encontra‐se na situação de crise da base moral que orienta o agir dos indivíduos. Posicionar‐se com relação à temática da moral e dos valores demanda tomar conhecimento de uma rede de fatores que interagem na constituição desse problema.
Segundo Charlot (2007, p. 203) é necessário entender o que está acontecendo com os valores numa sociedade em que mudaram o trabalho, a família, as relações entre gerações e entre sexos, etc. Autores como Cortella e La Taille (2005) afirmam que a sociedade atravessa uma crise de valores ou, ainda, que os próprios valores estariam passando por uma crise. “Crise de valores” traria a idéia de que os valores morais estariam “doentes” e, logo, correndo perigo de extinção. “Valores em crise”, por sua vez, é uma expressão que expõe o fato de que os valores morais não desapareceram, mas estão mudando de interpretação.
Logo, “crise de valores” remeteria à presença ou ausência de legitimação da moral, enquanto “valores em crise” nos fariam pensar num processo de transformação dos referidos valores, mas não à sua ausência ou progressivo desaparecimento.
Quando nos referimos aos valores, os entendemos como um “[...] conjunto de normas, princípios ou padrões sociais aceitos ou mantidos por indivíduos, classes, sociedades” (FERREIRA, 1986, p.1751), que são construídos e orientam o agir dos indivíduos. Cada um dos indivíduos constrói seu próprio sistema de valores, que se integra a sua identidade e influencia sua conduta. Analisar essa rede de elementos que subjaz a temática dos valores não é algo fácil, transitamos por um campo de conceitos, de representações, movediço e arenoso.
“A preocupação com os valores do comportamento humano, com as finalidades e os motivos de suas ações constitui, muito sumariamente, o campo da Ética. Portanto, nela está implícito o conceito de melhor conduta. E por melhor conduta podemos entender duas coisas distintas que, no entanto, se comunicam. Ou bem se define a ética como ideal, como finalidade a ser alcançada, ou a entendemos como adequação entre a natureza humana e a necessidade da sobrevivência.” (MIRANDA, 2004:11, 12)
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O que significa melhor conduta? Segundo o autor pode ter duas significações: Um ideal, ou seja, a construção e preservação dos bens e das virtudes, da inteligência e dos prazeres, do modo mais apropriado possível. Deste modo, se pensarmos a “melhor conduta” como um ideal, ela deverá ser buscada pela razão. Podemos então dizer que a razão deve conduzir a ação que nos leve a uma melhor conduta. A “melhor conduta” pode indicar também um sentimento de preservação da vida e, além disso, sempre que possível afastar a dor. Esta é uma visão pragmatista, que nos leva a aceitação utilitarista dos valores de conduta pessoal. Em virtude do fato do homem viver em sociedade e não isoladamente, as regras de convivência e a adoção de comportamentos comuns são imprescindíveis. É por causa do reconhecimento do “outro” que posso adotar duas posturas ou reconhecer no “outro”um meu igual, quando utilizo a razão, ou reconhecer este “outro” como alguém que pode me causar algum mal ou dano e neste caso percebo”este alguém”pelo sentimento. Nos dois casos estabeleço uma existência ético – social. Podemos perceber então, que as nossas preocupações ultrapassam a esfera do indivíduo particular, se espalham pelas esferas sociais, econômicas, políticas, das artes, da educação, elevando‐se inclusive às comunidades supranacionais. Portanto, é imprescindível que nos preocupemos com a “boa ação”, seja ela vista como investigação teórica, como um ordenamento jurídico, como um conjunto de princípios de ordem privada ou como um reflexo da consciência pessoal e criação simbólica. Na verdade, a conservação da vida, a justiça social, o desenvolvimento econômico sustentável, as tolerâncias religiosas e políticas, as expressões da livre cultura dependem e fundamentam‐se em princípios éticos e em condutas morais. O entendimento das conseqüências das realizações ou não, das ações éticas nos levam a observar como no transcorrer da história do homem as questões de convivência entre as diversas culturas, coletividades e sociedades, foram resolvidas. A atribuição ou reconhecimento de algo como valor significa eleger esse algo como fator determinante ou orientador das escolhas, ações e decisões. O agir humano é de natureza valorativa. Essa valoração pode ser subjetiva (pessoal) ou objetiva (fundada em razões). São valores: o bem, a felicidade, a virtude, o prazer. Juízo = Ato mental por meio do qual formamos uma opinião sobre algo (Locke) Juízos de fato - são juízos descritivos ('é’, ser) Juízos de valor - são juízos prescritivos ('deve’, dever-ser) 2. A moral
Os conceitos de moral e ética, embora sejam diferentes, são com freqüência usados como sinônimos. Aliás, a etimologia dos ter‐ mos é semelhante: moral vem do latim mos, moris, que significa "maneira de se comportar regulada pelo uso", daí "costume", e de moralis, morale, adjetivo referente ao que é "relativo aos costumes". Ética vem do grego ethos, que tem o mesmo significado de "costume". Em sentido bem amplo, a moral é o conjunto das regras de conduta admitidas em de terminada época ou por um grupo de homens. Nesse sentido, o homem moral é aquele que age bem ou mal na medida em que acata ou transgride as regras do grupo. A ética ou filosofia moral é a parte da filosofia que se ocupa com a reflexão a respeito das noções e princípios que fundamentam a vida moral. Essa reflexão pode seguir as mais diversas direções, dependendo da
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concepção de homem que se toma como ponto de partida. Então, à pergunta "O que é o bem e o mal?", respondemos diferentemente, caso o fundamento da moral esteja na ordem cósmica, na vontade de Deus ou em nenhuma ordem exterior à própria consciência humana. Podemos perguntar ainda: Há uma hierarquia de valores? Se houver, o bem supremo é a felicidade? É o prazer? É a utilidade? Por outro lado, é possível questionar: Os
valores são essências? Têm conteúdo determinado, universal, válido em todos os tempos e lugares? Ou, ao
contrário, são relativos: "verdade aquém, erro além dos Pireneus", como dizia Pascal? Ou, ainda, haveria
possibilidade de superação das duas posições contraditórias do universalismo e do relativismo?
As respostas a essas e outras questões nos darão as diversas concepções de vida moral elaboradas pelos filósofos através dos tempos. 3. O ato moral ‐ Estrutura do ato moral A instauração do mundo moral exige do homem a consciência crítica, que chamamos de consciência moral. Trata‐se do conjunto de exigências e das prescrições que reconhecemos como válidas para orientar a nossa escolha; é a consciência que discerne o valor moral dos nossos atos. O ato moral é portanto constituído de dois aspectos: o normativo e o fatual. O normativo são as normas ou regras de ação e os imperativos que enunciam o "dever ser". O fatual são os atos humanos enquanto se realizam efetivamente. Pertencem ao âmbito do normativo regras como: "Cumpra a sua obrigação de estudar"; "Não minta": "Não mate". O campo do fatual é a efetivação ou não da norma na experiência vivida. Os dois pólos são distintos, mas inseparáveis. A norma só tem sentido se orientada para a prática, e o fatual só adquire contorno moral quando se refere à norma. O ato efetivo será moral ou imoral conforme esteja de acordo ou não com a norma estabelecida. Por exemplo, diante da norma "Não minta", o ato de mentir será considera‐ do imoral. Convém lembrar aqui a discussão estabelecida anteriormente a respeito do social e do pessoal na moral. Nesse caso estamos considerando que o ato só pode ser moral ou imoral se o indivíduo introjetou a norma e a tornou sua, livre e conscientemente. Considera‐se amoral o ato realizado à margem de qualquer consideração a respeito das normas. Trata‐se da redução ao fatual, negando o normativo. O homem "sem princípios" quer pautar sua conduta a partir de situações do presente e ao sabor das decisões momentâneas, sem nenhuma referência a valores. É a negação da moral. Convém distinguira postura amoral da não‐moral, quando usamos outros critérios de avaliação que não são os da moral. Por exemplo, quando é feita a avaliação estética de um livro, a postura do crítico é não‐moral; isso não significa que ele próprio não tenha princípios morais nem que a própria obra não possa ser imoral, mas o que está sendo observado é o valor da obra como arte. As discussões a respeito do que é ou não é uma obra pornográfica se encontram muitas vezes prejudica‐ das devido à intromissão da moral em campos onde não foi chamada, o que muitas vezes tem justificado indevidamente a ação da censura. 4. A Ética Ao abordar a ética como elemento de um estudo percebe‐se que muito se escreve sobre a temática, porém muitas também são as dúvidas de sua relação com a moral. Conceitualmente ética é a parte da filosofia que se ocupa como o valor do comportamento humano. Investiga o sentido que o homem imprime à sua conduta para ser verdadeiramente feliz (COTRIM, 1992).
Ética é o estudo dos valores, da relação entre o bem e o mal. Epistemologicamente, Melo (2002) afirma que a palavra ética vinda do latim ethos, expressa um significado de caráter, como sendo o lugar onde se situam os valores morais de uma pessoa. Esses valores dariam o balizamento do agir. A ética seria a moral em movimento, em realização.
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Apesar das discórdias doutrinárias, a maioria dos autores considera a ética como a ciência da moral, a ética tem a função de explicar, esclarecer e investigar uma determinada realidade para que, desta, possa se fixar os padrões de conduta a esta correspondente. O estudo da ética se defronta com problemas de variação de costumes.O que é moral na Etiópia não é moral no Brasil, por exemplo, a bigamia: Para os mulçumanos é honroso ter mais de uma esposa. Já os países católicos pregam a monogamia – casamento único. 5. Moral e ética andam de mãos dadas e se confundem. No centro da ética aparece o dever, ou obrigação moral, conduta correta. A teoria não deve ser confundida com seu objeto: o mundo moral. A Ética não é a moral e não pode ser reduzida a um conjunto de normas e prescrições; sua função é explicar a moral efetiva e, dessa forma, pode influir na própria moral.
A Moral (mos, moris, costume) é um conjunto de normas livre e conscientemente adotadas que visam a
organizar as relações das pessoas na sociedade, tendo em vista o bem e o mal; conjunto de costumes e
valores de uma sociedade, com caráter normativo (regras do comportamento das pessoas no grupo). A
Ética (ethos, Costume) é a parte da Filosofia que se preocupa com a reflexão a respeito das noções e
princípios que fundamentam a vida moral (ARANHA, 1993).
A Ética é a teoria que explica um tipo de comportamento dos homens, o moral, em sua totalidade,
diversidade e variedade. O que nela se afirme deve valer para qualquer sociedade. É isso que assegura o
seu caráter teórico e evita sua redução a uma disciplina normativa. O valor da Ética está naquilo que
explica e não no fato de prescrever a ação em situações concretas (SANCHEZ VÁZQUEZ, 1996).
6. O início da ética no ocidente
6.1 Ascensão e queda da filosofia grega Uma pergunta que irá ocorrer a qualquer um que estude a história da filosofia grega será porque ela atinge seu esplendor teórico justamente no momento de sua decadência material. Sócrates, Platão e Aristóteles vivem justamente no momento que a sociedade grega em geral, e a ateniense em particular, vive seu ponto mais baixo cuja culminação será a unificação e dominação dos helenos pelos macedônios de Filipe e Alexandre. De uma forma geral eles vivem o momento de maior desagregação interna, de dominação da política pelos demagogos, pela decadência dos velhos modos de vida, da superação da riqueza intelectual pela material. Ainda assim refletem sobre as mais altas virtudes humanas e vêem a felicidade justamente na bondade, conceito que unifica as três noções de ética, ainda que divergindo sobre o significado da eudaimonia – a felicidade derivada da harmonia entre os componentes da alma. Há um aspecto necessário a ser compreendido nesta noção dos três filósofos serem o canto do cisne da filosofia grega. Seus antecessores e adversários não são conhecidos a não ser por fragmentos, em geral recolhidos e comentados por seus detratores, assim não há como asseverar que Sócrates e seus dois discípulos sejam tão superiores aos que os antecederam. A filosofia que antecede aos sofistas é marcada por uma compreensão da identidade entre ser humano e ser cidadão tão profunda que a hipótese de uma dissociação entre o bem individual e o bem comum sequer é formulada, é entendida como dado da realidade e premissa básica de qualquer reflexão sobre o ser humano.
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Da noção de um "Império da Lei" e não de reis, deuses e sacerdotes deriva a maior parte da originalidade do pensamento grego, ainda que raramente seja motivo da apreensão dos filósofos. O que se busca então é no máximo mecanismos que possam aprimorar as leis, avaliar entre as possíveis alternativas qual seria a mais racional – portanto melhor – para a consecução deste Império da Lei. As primeiras reflexões de natureza ética que surgem neste período, especialmente Pitágoras, não visam senão ao esforço de avaliar como poderiam ser julgadas as alternativas postas de forma perfeitamente racional. Mas o dinamismo da sociedade grega acaba trazendo em si um novo mundo que iria aos poucos se infiltrar no antigo, voltar contra si mesmos os princípios tanto da democracia quanto da filosofia. Este processo começa com os conflitos da crescente camada de comerciantes enriquecidos contra as velhas aristocracias – cuja base do poder era de um lado a tradição e de outro a propriedade fundiária – e termina com a ascensão dos tiranos – magnatas que se postulam defensores das camadas mais pobres da população. Ao canalizar para a cidade vultoso volume de recursos, o imperialismo garante um esplendor em todas as artes. É o período dos grandes monumentos, do supremo desenvolvimento da escultura, da mais ampla extensão da democracia que chega à sofisticação de pagar uma contribuição a todos os cidadãos que compareçam às Assembléias, como absoluta garantia do direito a todos a participar das decisões da cidade. É também o momento no qual os sábios de todo o mundo helênico – da Ásia Menor à Calábria, então chamada de Magna Grécia – convergem à Atenas na busca tanto de um ambiente de efervescência cultural como de patronos, os mecenas. Mas este crescimento tem um preço amargo a ser pago. O crescimento das desigualdades sociais gera crescentes conflitos, a extensão da democracia estimula o florescimento e domínio da demagogia, o necessidade de justificação do Imperialismo rompe com as velhas noções de Império da lei e igualdade dos homens. Por fim gera a reação dos dominados, liderados pela oligarquica cidade de Esparta que leva ao fim da Liga de Delos e a restauração – ainda que temporária – da oligarquia ateniense. O fruto filosófico deste período atribulado são os sofistas, geralmente acusados de seus adversários de destacar o conhecimento de sua base moral, ensinando que qualquer discussão poderia ser vencida desde que utilizados os meios corretos. Ainda que esta visão possa ser mero exagero dos seus comentadores – e é a partir deles que os conhecemos – há uma certa lógica entre a evolução econômica e política dos gregos e a atribuição de "valor instrumental" ao velho conhecimento grego de natureza especulativa. Independente das críticas aos sofistas serem tendenciosas ou honestas, há nelas um componente novo, inusitado, crítico: o relativismo moral. Da velha identidade entre a felicidade individual e o bem comum da sociedade grega se chegará, através dos sofistas, a uma situação na qual tanto o primeiro como o segundo tornam‐se relativos, não universais ou divinamente inspirados. O pensamento sofista não deixa de ser um ataque à hipocrisia ateniense no qual os velhos valores não são mais evocados senão como uma justificativa da dominação de Atenas sobre outros Estados, dos ricos demagogos sobre os velhos idéia da democracia, da escravidão e da plutocracia na qual a sociedade grega havia se transformado. A noção de "o homem é a medida de todas as coisas", de Protágoras é sobretudo uma contestação da própria essência da legitimidade do Estado grego, firmada já não mais numa profunda consciência do Império da Lei, mas simplesmente em um amontoado de convenções sociais habilmente manipuladas pelos ricos. O cerne desta estrutura de legitimação é trazida à luz por Trasimaco, para qual a justiça e outros conceitos derivados da lei não eram senão ferramentas para que os fortes submetesse e dominassem os fracos. Conceitos deste tipo iam contra todos valores da sociedade grega, transformavam o velho respeito ao "Império da lei" em mera hipocrisia, o velho sentimento de missão e superioridade gregos em vaga
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justificativa da escravidão. Eram, portanto, noções perigosas demais para não serem respondidas, ainda que a resposta não pudesse deixar de se tornar ela própria um tapa no rosto da hipocrisia dominante. É nesse contexto de decadência e crise moral que os esforços intelectuais de Sócrates, Platão e Aristóteles devem ser entendidos. Quando se enxerga a questão por este prisma, o fato de Sócrates ter "inventado" a Ética revela não o surgimento de uma nova ordem, mas antes a necessidade de se refletir, sistematizar e defender conceitos que antes eram dados como automáticos, em especial quanto à essência da ética, ou seja, as relações entre o bem comum e a felicidade individual. 7.Defina seus termos ‐ Sócrates e a crença que basta saber o que é a bondade para ser bom O pressuposto básico da Ética de Sócrates – que basta saber o que é bondade para que se seja bom ‐ pode parecer ingênuo no mundo de hoje, no qual já está profundamente gravado na nossa mente que só algum grau de coerção é capaz de evitar que o homem seja mau. Na sua época era uma noção perfeitamente coerente com o pensamento – ainda que não com a prática – da sociedade grega. Antes dele não teria havido uma reflexão organizada sobre a ética e o "homem moral" a não ser o relativismo dos sofistas, neste sentido é inegável que ele é o "Pai da Ética. Contudo é preciso ponderar que desde períodos mais antigos havia uma identidade perfeita entre o bem comum e o bem individual tão arraigada na mente grega que talvez tal reflexão não fosse necessária ou sequer capaz de ser concebida. Só a dissociação de ambas na decadência grega é que teriam, pela primeira vez, postulado a necessidade de alguma teoria que explicasse esta dualidade. Ao contrário da posição de Will Durant, portanto, só a decadência dos gregos, a dissolução entre uma teoria que concebia a identidade entre o homem e o cidadão e uma prática na qual os valores morais significam pouco – cujo resultado é a hipocrisia denunciada pelos sofistas – é que tornaria Sócrates necessário. É com os sofistas que Sócrates dialoga, em um esforço para refutar seu relativismo moral cuja validação, sabe ele, significaria o fim do "espírito grego". O grande mérito de Sócrates é enfrentar de forma virulenta a hipocrisia da sociedade ateniense cuja resposta aos sofistas era apenas a reafirmação insincera dos velhos valores. Sócrates defende a identidade entre os interesses individuais e os comunitários como único caminho para a felicidade, o que implica na valorização da bondade, da moderação dos apetites, na busca do conhecimento. Como se explicaria, então, a dissociação real de ambos, se ao homem, como afirma Sócrates, basta saber o que é bom para que ele seja bom? Os sofistas responderam a esta questão considerando que a Ética era mera convenção social, Sócrates os refuta, afirmando que a aparente dissociação se dá justamente porque os homens não sabem o que realmente é a bondade. Esta noção perdida em meio à vaidade e a hipocrisia dominante cegaria o homem que ao invés de lutar por objetivos reais confunde‐se na névoa das convenções sociais. Já se sente aqui o embrião da noção que Platão consolidará e generalizará na sua Alegoria da Caverna. Assim ao mesmo tempo Sócrates busca uma volta às velhas tradições da Cidadania, mas para isto precisa voltar‐se contra estas próprias tradições. Ele aceita os princípios gerais definidos por aquelas tradições, mas apenas como um conceito, uma categoria a ser investigada pela mente humana, rejeitando tanto a forma pela qual estes valores são apreendidos como o conteúdo usualmente atribuído a eles. Assim ele ao mesmo tempo se contrapõe aos sofistas e aos tradicionalistas, aos primeiros por negarem uma realidade objetiva e universal aos valores éticos, aos segundos por não serem capazes de compreender a essência destes valores. Ele próprio pensa na Ética não como uma especulação abstrata, mas como uma força transformadora, capaz de trazer a felicidade a ambos, Sociedade e Indivíduo – aliás a única forma de se obter esta felicidade. À questão sobre o que é a Justiça – para dar um exemplo prático desta dupla oposição de Sócrates – os sofistas dizem que ela é a convenção estabelecida pelo mais forte para dominar o mais fraco, os
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tradicionalistas a entendem como o conjunto das instituições eu definem o "Império da Lei". Sócrates diz que ambos estão certos e errados ao mesmo tempo. Os sofistas não estão errados porque a descrição deles corresponde ao estado de coisas na época, os tradicionalistas também não estão errados porque o princípio que teoricamente rege aquelas instituições seriam aqueles elevados valores da cidadania. Mas ambos estão errados, porque a deterioração da justiça não significa que não exista objetivamente uma Justiça e que esta não seja uma meta a ser alcançada – ao contrário do que pensam os sofistas – e porque o que as pessoas entendem como justiça não é justiça de fato, apenas uma visão distorcida daquele conceito – ao contrário do que dizem os tradicionalistas. O problema ético, para Sócrates, é sobretudo uma questão de definição de termos. Como chegar a estes valores absolutos que guiariam o homem? Sócrates não dá uma resposta absoluta, antes propõe um método para se chegar a resposta, demolindo as visões correntes, mostrando quão ilusórias eram as certezas, abalando as convicções arraigadas através de questionamentos implacáveis. Sócrates é um perguntador, disposto a arrancar as pessoas da vã certeza vaidosa na qual se encontram para fazê‐las mergulhar mais profundamente em suas consciências em busca de respostas. A elas ele não oferece nenhuma resposta, apenas a esperança que ao fim haverá respostas definitivas, mas que estas não podem ser compreendidas sem provocar uma mudança do próprio homem. A mais profunda garantia da sua ética é justamente este potencial auto‐reconstrutivo da verdade quando vista sem os véus das aparências e vaidades, um conhecimento capaz de por si só, tornar o homem mais sábio e melhor. A própria ausência de respostas em Sócrates é certamente parte deste método, ele teme que se der respostas aquela verdade acabará se cristalizando com o tempo e se transformando ela própria em mera convenção. O caminho teria de ser trilhado por cada um, enquanto indivíduo e ao mestre não caberia indicar o caminho, apenas advertir contra os atalhos perigosos. Mas seus discípulos Platão e Aristóteles nem sempre serão capazes de compreender esta lição maior de seu mestre. Cada um deles irá interpretar a reflexão sobre os homens, a Moral e a Ética que Sócrates teve o mérito de trazer à baila como objeto de estudo segundo seus ideais de uma Cidade moralmente perfeita na qual houvesse uma harmonia entre os diversos interesses individuais e coletivos. E ambos dão respostas diametralmente opostas... “Sócrates, filósofo grego (469 a.C‐ 399 a.C.), introduz a ética no Ocidente ao questionar tanto o indivíduo quanto à sociedade no que diz respeito às ações praticadas. Este questionamento expunha a dificuldade no discernimento entre o que é escolha individual e pessoal e aquilo que era estipulado pela sociedade como regra de conduta para todos”. (FERREIRA, 2006:34) O filósofo demonstrou que a consciência moral precisa ser formada e para tanto se tornava necessário o questionamento sobre a validade dos valores morais postos pela sociedade, cuja aceitação só pode ser adequada quando o indivíduo entender o seu significado. “Isto significa dizer que o indivíduo precisa ser formado, precisa ser educado para escolher ações virtuosas baseadas nos valores da sociedade.” (FERREIRA, 2006:34) Sócrates afirma a autonomia da razão e esta autonomia traz uma conseqüência imediata: se a nossa razão tem o poder para encontrar em si mesma suas próprias regras e normas, terá o mesmo poder para nos dar as regras e as normas de conduta, e, também, para a educação de nosso caráter para a virtude. A autonomia moral ou ética é a conseqüência necessária da autonomia intelectual da razão. Ambas manifestam o “conhece‐te a ti mesmo”. Isto quer dizer que, ao examinarmos esta máxima socrática percebemos que ela possui três elementos que caracterizava o conhecimento sobre o homem. Não se entende este conhecer como um conhecimento psicológico, mas, antes de tudo, este conhecer é uma forma válida e universal. Sócrates levanta‐se contra os sofistas, para quem não existe nem verdade e nem erro, e, ainda, as normas porque são humanas, são transitórias.
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Sócrates, nos debates contra os sofistas, reagia contra as idéias apregoadas por eles de que a verdade era relativa e que a moral era uma convenção. Entendia o filósofo que as verdades, frutos de reflexões profundas, tinham que ser universalmente válidas. Deste modo a máxima socrática “conhece‐te a ti mesmo” possui alguns elementos: ‐ é um conhecimento universalmente válido; ‐ é, antes de tudo, conhecimento moral; ‐ é um conhecimento prático (práxis) – Deve‐se conhecer para agir corretamente. A ética socrática é racionalista e por isso está ligada a uma concepção de bem que é entendida como a felicidade da alma, e, do bom, como tudo aquilo que seja útil para que se alcance a felicidade. Afinal, segundo a concepção grega, o homem nasceu para ser feliz e realizar‐se virtuosamente dentro da polis. A virtude (areté) é entendida como o conhecimento, por isso, o papel da razão e, além disso, se a virtude é fruto de ato racional, ela pode ser transmitida ou ensinada. Isto significa dizer que para a filosofia socrática, bondade, conhecimento e felicidade se entrelaçam estreitamente. O homem age retamente quando conhece o bem e, conhecendo‐o, não pode deixar de praticá‐lo; por outro lado, aspirando ao bem, sente‐se dono de si mesmo e, por conseguinte, é feliz.
Resumindo: Sócrates ‐ ética racionalista:
a) uma concepção do bem (como felicidade da alma) e do bom (como o útil para a felicidade); b) a tese da virtude (areté) — capacidade radical e última do homem — como conhecimento, e do
vício como ignorância (quem age mal é porque ignora o bem; por conseguinte, ninguém faz o mal voluntariamente)
c) a tese, de origem sofista, segundo a qual a virtude pode ser transmitida ou ensinada. d) bondade, conhecimento e felicidade se entrelaçam estreitamente. O homem age retamente
quando conhece o bem e, conhecendo‐o, não pode deixar de praticá‐lo; por outro lado, aspirando ao bem, sente‐se dono de si mesmo e, por conseguinte, é feliz.
8. A sociedade perfeita ‐ Platão e a necessidade de construir a "Cidade Perfeita" guiada pela ética A resposta de Platão à necessidade de se resgatar o velho sentido da Ética, da Justiça e da Moral, perdidos durante o período de crescimento e enriquecimento de Atenas, contaminados pela hipocrisia, é a "volta a uma sociedade mais simples". Mas não uma volta ao passado real, antes a um passado imaginário situado em algum lugar no futuro no qual os velhos valores – renovados a partir das indagações e críticas de Sócrates – possam orientar uma sociedade estável que tende à perfeição. Assim à dissociação entre o mundo real e os valores éticos Platão contrapõe a necessidade de uma reconstrução da sociedade segundo estes valores, por mais radical que ela possa parecer. O eixo da ampla reforma sugerida por Platão para construir a sociedade perfeita é a substituição da plutocracia que reinava na Atenas Imperial dos mercadores por uma "timocracia do espírito" na qual os governantes seriam os melhores dentre os homens de seu tempo em termos de conhecimento e sabedoria. Mas as implicações da utopia platônica não param por aí. É necessário limitar ao mínimo a propriedade, tornar‐se vegetariano – como proposto por Pitágoras – e até extinguir as unidades familiares de forma a garantir que todos se sintam irmãos de fato porque criados pelo Estado, não por famílias. Ele não se propõe a eliminar os mercadores e agricultores, mas limitar‐lhes a ação e, sobretudo, privar‐lhes por completo do
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poder político. A eles não seria imposta a dura disciplina da posse em comum das mulheres, das dietas e exercícios rigorosos, mas exige‐se obediência à lei dura e às ordens dos Guardiães, a elite dirigente concebida por Platão Sobre estes Guardiães pesa tal grau de regras e responsabilidades que a escolha deixa de ser um privilégio para tornar‐se um sacrifício, só concebível para aqueles que conseguem realmente compreender que a eudaimonia exige perfeita identidade entre o bem comum e a satisfação pessoal. Insatisfeito com os rumos da democracia, Platão concebe um sistema de governo no qual a educação universal – rígida e valorizada – serve tanto como elemento selecionador de quais elementos entrarão na classe dos Guardiães, como elemento da formação destes guardiães. Esta noção em certa medida vem das inúmeras ocasiões nas quais Sócrates deplorou a pouca preparação intelectual dos dirigentes, clamando que era incompreensível que para as tarefas mais triviais se exigisse preparação, mas que aos governantes bastava serem capazes de conduzir pela demagogia ou pela compra de votos à massa dos atenienses. Platão sabe que a disciplina extrema que prega a seus guardiães – paradoxalmente tão próxima dos grandes adversários dos atenienses, os espartanos – não pode ser estendida a toda a sociedade, mas a considera essencial à existência de um princípio ético de fato que guie o conjunto da sociedade. No pensamento de Platão, portanto, o reencontro da ética e da realidade se dá através de uma grande reforma social, política e econômica que torne a cidade mais simples, mais desligada dos valores materiais, mais igualitária. A preservação desta nova cidade só poderia ser feita se o poder fosse centralizado neste estrato dominante dos guardiães para os quais a simplicidade e a privação – bem como a educação – deveriam ser ainda mais rígidos. Também a ética de Platão é racionalista, mas ela se relaciona intimamente com a sua filosofia política, porque para ele, a polis é o terreno próprio da vida moral. Tanto a sua formulação ética, como política dependem de sua concepção metafísica (mundo sensível e mundo inteligível) e de sua doutrina da alma (princípio que move o homem e se divide em três partes: razão, vontade ou ânimo e apetite). A razão que contempla e quer racionalmente é a parte superior. Pela razão o homem, a alma do homem se eleva ao Mundo das Idéias. Sua finalidade é libertar‐se da matéria para contemplar a idéia de Bem. Para alcançar a purificação é preciso praticar várias virtudes, que correspondem a cada uma das partes da alma e consistem no seu funcionamento perfeito. Deste modo, a virtude da razão é a prudência, da vontade é a fortaleza e do apetite é a temperança. A harmonia entre as diversas partes constitui a quarta virtude, ou justiça. Como o indivíduo por si só não pode se aproximar da perfeição, torna‐se necessário o Estado ou Comunidade Política. O homem é bom enquanto bom cidadão. A “idéia”de homem se realiza somente na Comunidade. A ética desemboca necessariamente na política.
Resumindo: A ética de Platão depende:
a) da sua concepção metafísica (dualismo do mundo sensível e do mundo das idéias permanentes, eternas, perfeitas e imutáveis, que constituem a verdadeira realidade e têm como cume a Idéia do Bem, divindade, artífice ou demiurgo do mundo);
b) da sua doutrina da alma (princípio que anima ou move o homem e consta de três partes: razão, vontade ou ânimo, e apetite; a razão que contempla e quer racionalmente é a parte superior, e o apetite, relacionado com as necessidades corporais, é a inferior).
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Como o indivíduo por si só não pode aproximar‐se da perfeição, torna‐se necessário o Estado ou Comunidade política.
O homem é bom enquanto bom cidadão. A Idéia do homem se realiza somente na comunidade. A ética desemboca necessariamente na política.
9. O caminho do meio ‐ Aristóteles e a moderação das paixões como caminho da felicidade Enquanto Platão sonha com uma sociedade ideal na qual não praticar o bem torna‐se uma impossibilidade tal a extensão das instituições que eliminam a vida privada, Aristóteles propõe o que, de certa forma, pode ser compreendido como um caminho contrário. Para ele a Lei deve ser capaz de compreender as limitações do ser humano, aproveitar‐se das suas paixões e instintos, e produzir instituições que promovam o bem e reprimam o mal. Assim se para Platão a Lei deve moldar o real, para Aristóteles o real deve moldar a Lei, única forma de seu cumprimento ser possível a todos. A exposição destes conceitos na Ética de Aristóteles parece estar diretamente dirigida contra a Utopia platônica que, na visão de Aristóteles, está condenada ao fracasso porque não respeita os impulsos do homem, seus apetites e paixões. Mas esta visão não pode ser entendida como uma ausência de princípios éticos fortes ou a abstenção de promover o Bem – que Aristóteles entende também como uma aspiração do ser humano capaz de conciliar o interesse individual e o comunitário. Pelo contrário, ele propõe um controle estrito sobre as paixões, com a diferença que ele deriva delas tanto as virtudes quanto os vícios, ao contrário de seus mestres predecessores. A essência da virtude seria, então, a moderação entre os extremos de cada paixão, a Regra Dourada do caminho do meio entre a indulgência absoluta e a privação absoluta. Assim a verdadeira definição de coragem estaria entre a covardia e a bravata itimorata, a amizade entre a subserviência e a insolência. É evidente o vínculo com os múltiplos questionamentos de Sócrates sobre as essências dos valores morais, bem como com a noção das Idéias Gerais de Platão. Mas se há uma continuidade há igualmente uma ruptura nesta nova noção. A mais significativa dela é a existência de uma resposta objetiva àquilo que Sócrates recusou‐se a responder e Platão respondeu de forma abstrata e filosófica. Aristóteles está preocupado em termos de Ética – como no restante da sua filosofia – em encontrar regras claras que possam ser conhecidas, rotuladas, catalogadas. Ele também não está preocupado em uma utopia mirabolante, mas em construir uma sociedade com os homens que estão disponíveis, não com super‐homens idealizados, assim tenta construir uma visão de ética que seja capaz de atender à maioria. A despeito disto traça uma visão aristocrática da sociedade na qual os méritos de forma alguma equivalem e no qual os homens estão classificados segundo níveis bastante objetivos – do ponto de vista dele – que faz com que alguns sejam senhores e outros escravos. A justificativa deste sistema que racionaliza a escravidão e imagina um continuum do mineral ao homem – cujo tipo mais elevado seria o filósofo – seria o pressuposto de que todos os seres foram criados com uma finalidade em um projeto bem definido de universo ao qual os teólogos cristãos medievais designarão de Summus Boni – O Bem Supremo. A atribuição do homem, para ele, seria o pensamento racional, característica que o distinguiria do animal. Assim se tem um homem ideal que é puro pensamento especulativo e racional e portanto se concretiza no filósofo. Os gregos, dentre todos os povos, teriam mais consciência desta importância da racionalidade e portanto se justifica a escravidão dos bárbaros cujo nível está mais próximo dos animais irracionais.
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Só através da concretização desta "finalidade racional", crê Aristóteles, o homem poderia atingir a Eudaimonia, a felicidade da harmonia interior. Há nesta consideração uma ruptura radical com os predecessores já que para o macedônio a finalidade da Ética já não será mais o Bem por si mesmo, mas o Bem enquanto elemento que leva à Felicidade, objetivo principal do homem. Aristóteles distingue entre dois tipos de Bem, entre o que é Instrumental e o que é Intrínseco. Os primeiros são bons porque levam à Bondade, enquanto os segundos são bons por si mesmos. Assim o conhecimento também é dividido entre o conhecimento prático e teórico, o primeiro sendo o conhecimento de como agir corretamente e o segundo o conhecimento do que é bom por si mesmo. Para Aristóteles (384 a.C./ 322 a.C), o homem deve, com o seu esforço, realizar aquilo que é em potência, para se realizar como ser humano. A felicidade (eudaimonia) é o fim (telos) do homem enquanto tal. Esta só é atingida pela razão. A vida não e realiza senão mediante certos hábitos (formas de agir), que são as virtudes. Elas são conseguidas pelo exercício, pois o homem é parte racional e, portanto, possui virtudes intelectuais e parte irracional, e, portanto, precisa de virtudes práticas ou éticas para dobrar as paixões e os apetites canalizando‐os racionalmente. A virtude é o meio termo entre dois extremos (um excesso e um defeito). Por exemplo, a temeridade é um excesso de coragem, em contrapartida, a covardia é falta de coragem. A falta de medida (hýbris) é a origem do vício. O que é a virtude? A medida entre os extremos, a moderação entre os dois extremos, o justo meio, nem excesso, nem falta. A ética é a ciência da moderação, ou, como diz Aristóteles da phronesis (prudência). A virtude é um hábito adquirido, ou uma disposição permanente, um estado ou qualidade da alma. A tarefa da ética é a de nos orientar para a aquisição desse hábito. Isto quer dizer, o exercício da vontade sob a orientação da razão para deliberar e escolher ações que permitam satisfazer o apetite e o desejo sem cair num dos extremos. O apetite e os desejos são paixões (páthos), isto é, passividade, submissão aos objetos exteriores. A virtude é ação, atividade da vontade que delibera e escolhe, segundo a orientação da razão que determina os fins racionais de uma escolha com vistas ao bem do indivíduo, isto é, sua felicidade. “Sendo. Pois, de duas espécies a virtude, intelectual e moral, a primeira, por via de regra, gera‐se e cresce graças ao ensino – por isso requer experiências e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito, donde ter‐se formado o seu nome (éthikê) por uma modificação da palavra éthos (hábito). Por tudo isso evidencia‐se também que nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza (...) Não é, pois, por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se geram em nós. Diga‐se antes, que somos adaptados por natureza a recebê‐las, e nos tornamos perfeitos pelo hábito.” (ARISTÓTELES,1973:27) “Vimos então que, par o grego, o homem só não fará ações morais por ignorância, pois, se a razão comandar as suas ações, ela saberá propiciar ao homem o deliberar, o escolher, refreando e submetendo as paixões e os impulsos.” (FERREIRA, 2006:36). Para Aristóteles, o fim do homem é a felicidade, a que é necessária à virtude, e a esta é necessária a razão. A característica fundamental da moral aristotélica é, portanto, o racionalismo, visto ser a virtude ação consciente segundo a razão.
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Se a virtude é uma atividade segundo a razão, mais precisamente é ela um hábito, um costume moral, adquire‐se mediante a ação, a prática, o exercício e, uma vez adquirida, estabiliza‐se, mecaniza‐se; torna‐se quase uma segunda natureza e, logo, torna‐se de fácil execução ‐ como o vício
Resumindo: O fim último do homem é a felicidade (eudaimonia).
se realiza mediante a aquisição de certos modos constantes de agir (ou hábitos) que são as virtudes. Estas não são atitudes inatas, mas modos de ser que se adquirem ou conquistam pelo exercício e, já
que o homem é ao mesmo tempo racional e irracional.
Classes de virtudes
intelectuais ou dianoéticas (que operam na parte racional do homem, isto é, na razão) práticas ou éticas (que operam naquilo que há nele de irracional, ou seja, nas suas paixões e
apetites, canalizando‐os racionalmente).
A comunidade social e política é o meio necessário da moral
O homem é, por natureza, um animal político. a vida moral é uma condição ou meio para uma vida verdadeiramente humana: a vida teórica na
qual consiste a felicidade. acessível a uma minoria ou elite a maior parte da população mantém‐se excluída não só da vida teórica, mas da vida política. a vida moral é exclusiva de uma elite que pode realizá‐la, o homem bom (o sábio) deve ser um bom
cidadão.
Bibliografia ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo:Abril Cultural, 1973. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2003. GOSDSCHMIDT,Victor. Os diálogos de Platão: estrutura e método dialético; tradução Dion Davi Macedo.São Paulo: Loyola, 2002. DURANT, Will – A História da Filosofia, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1996. Encyclopedia Britannica, on‐line: www.britannica.com . 18/11/99. MIRANDA, Danilo S. de (org.). Ética e Cultura. São Paulo: Perspectiva: SESC São Paulo, 2004. PLATÃO. Mênon; texto estabelecido e anotado por John Burnet; tradução de Maura Iglesias, Rio de janeiro; Ed. PUC‐Rio; Loyola, 2001.
II ‐ O CRISTIANISMO O processo de decadência e ruína do mundo grego, através das invasões dos grandes impérios (macedônico, romano) e sua posterior queda, desloca o eixo da visão moral grega. A moral já não se define mais em relação a polis, mas ao universo; porque o mundo se ampliou, as fronteiras foram alargadas e como resultado da premissa da ética, tanto epicurista quanto estóica,
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passa a ser a física, porque o homem é um ser do mundo e nele deve cumprir o seu destino. Sábio é aquele que compreende que o mundo é regido pela necessidade e ausência de liberdade e age de acordo com a razão, com a consciência de seu destino e de sua função no universo de modo imperturbável. Neste contexto aparece uma nova corrente de idéias, o cristianismo que propõe um outro modo de pensar as relações humanas denominadas éticas.” (FERREIRA, 2006: 38) O cristianismo, assim como os judeus, não tenta buscar a Deus pela razão como faziam os gregos. Sabemos que os gregos eram racionalistas e todo o sistema religioso era estruturado sobre a atuação dos deuses nas cidades, numa relação social e política, enquanto quem os judeus estribados na idéia se povo escolhido por Deus, estabelecia um monoteísmo espiritual aliado ao pensamento de que este Deus criador e mantenedor do universo estava disposto a resgatar o homem de sua desobediência às leis divinas. O cristianismo nasce, portanto, baseado em algumas concepções judaicas e se espalha rapidamente pelo mundo conhecido. Uma dessas idéias diz respeito à crença na existência de um só Deus (monoteísta) eterno, criador, todo‐poderoso, senhor de todas as coisas. Criou o mundo do nada; pelo poder de Sua palavra, criou todos os seres e fez o homem à Sua imagem e semelhança. Criado para ser imortal e eterno posto como senhor das outras criaturas, o casal (Adão e Eva) desobedece às leis divinas e como sanção objetiva lhes é retirada a imortalidade, a abundância dos frutos e a tranqüilidade da existência. Todos são castigados: o homem, a mulher e a terra. Dentre as várias perdas, o homem e a mulher perdem a amizade com Deus e carreiam para si a conseqüência disto: dor, sofrimento, fome, enquanto a terra, boa e produtiva, passa a produzir abrolhos e espinhos. (Gênesis 3: 14‐ 24) Entretanto, se Deus é o Senhor, na visão judaica, assumida pelo cristianismo, Ele é também Pai e por causa deste zelo de Pai, castiga para corrigir, mas providencia meios para que os filhos voltem a ter comunhão com Ele. Para tanto enviará o Salvador (o Messias, o Cristo), que tratará de reestruturar a harmonia entre Deus e os homens. Para o cristianismo, então, Deus enviou o Seu próprio filho para servir de resgate e salvação para todos os homens: sacrifício de morte na cruz para resgatar. Por isso, não é o nascimento de Cristo, Sua vida e Seus atos que são fundamentais para o cristianismo, mas a Sua morte e ressurreição. Isto equivale a dizer que não há como se falar em cristianismo sem a crença que Cristo morreu e ressuscitou. Sem a “presença humana” de Cristo, a religião “cristianismo” não se sustenta. A Ética Cristã “ O cristianismo mudou o sentido da ética porque surgiu como uma religião de interioridade, de individualidade, e por isso as ações dos indivíduos (que para os gregos só poderiam se completar na polis) são vistas como uma relação pessoal e individual com Deus. Isto determinou uma alteração no entendimento do que era a virtude e n os modos das ações dos indivíduos” (FERREIRA, 2006:38).Se para os gregos (racionalistas) a razão deveria guiar a vontade dos indivíduos para que as ações fossem julgadas boas, justas e verdadeiras, para o cristianismo as ações só poderiam ser consideradas boas, justas e verdadeiras se estivessem de acordo com a vontade de Deus. O apóstolo Paulo expressa muito bem qual é a origem da lei e porque o homem, marcado pelo pecado original, herdado de Adão e Eva ( eles representam a humanidade toda) possui uma tendência para o mal. Admite que o homem sozinho não tem condição (é fraco) para realizar as
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ações morais; ele precisa de um guia para ser um ser moral. Entretanto, este guia não será de modo algum a sua vontade racional, pois ela está comprometida, danificada pelo pecado. O homem só será moral se seguir, pela fé, a vontade de Deus revelada aos homens, no Velho Testamento pelos profetas e no Novo Testamento, por Jesus Cristo. Assim diz o apóstolo Paulo: “Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço. Mas, se eu faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, e sim o pecado que habita em mim” (Romanos 7:19‐20). Com este novo olhar sobre o homem, como um sujeito, frágil que precisa de auxílio para ser um sujeito moral, o cristianismo introduz a noção do dever Ou seja, o cristianismo propõe que, embora tenhamos uma vontade livre, mas fraca, ainda assim temos condições de sermos morais se seguirmos a vontade de Deus. O sujeito moral e ético será aquele que cumprir inquestionavelmente as leis de Deus que aparecem nos Dez Mandamentos e nas verdades reveladas pelos profetas e por Cristo. A partir desta visão do homem, a noção de virtude também se altera. Se para o grego, virtuoso era aquele que guiado pela vontade racional se realizava na polis com os outros cidadãos, e, portanto, a prudência, a escolha racional denotava virtude, para o cristianismo as virtudes se manifestam como meios de obediência aos preceitos incontestáveis de Deus. Elas nos auxiliam a manter um bom relacionamento com Deus. São elas: a fé, a esperança e a caridade. Estas três virtudes serão os esteios para que todas as outras se manifestem. O apóstolo Paulo, na Carta aos Gálatas, capítulo 5, versículos de 16 a 26, explica a necessidade da obediência às leis de Deus e com ela o aparecimento das ações morais efetivas: “Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Gálatas 5:22) Ao lado da noção do dever, o cristianismo advoga também, como condição para a realização de atos morais, a idéia de intenção. Se para os gregos, a ação virtuosa era aquela que envolvia uma escolha racional, que conseguia controlar as paixões, através de atos visíveis para todos, para o cristianismo, por ser uma religião e interioridade, os atos poderão ou não ser morais, dependendo da intenção. Deste modo, se externamente não praticar um determinado ato considerado injusto, desleal, imoral, mas se no íntimo eu o desejar praticar, estarei pecando contra a vontade de Deus. Isto decorre do fato de que para o cristianismo, Deus conhece o íntimo de cada um dos homens, e, portanto a obediência às leis de Deus não se refere apenas às ações externas, mas também aquelas que são interiores, aquelas que estão em nosso coração. Por isso não são apenas pelas ações que os homens pecam, mas também pelos pensamentos e palavras. No livro dos Salmos temos um exemplo desta concepção de que Deus conhece o íntimo dos homens e que nada, absolutamente nada Lhe escapa: “Senhor, tu me sondas E me conheces. Sabes quando me assento E quando me levanto; De longe penetras os meus pensamentos
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Esquadrinhas o meu andar e o meu deitar E conheces todos os meus caminhos “(Salmo 139:1 a 3) “Sonda‐me, ó Deus, e conhece o meu coração, Prova‐me e conhece os meus pensamentos, Vê se há em mim algum caminho mau E guia‐me pelo caminho eterno.” (Salmo 139: 23 e 24) Para os cristãos da idade média: o ideal ético é o da vida espiritual, de amor e fraternidade (Santo Agostinho). Para Korte (1999), a ética sempre esteve vinculada, de uma forma ou de outra, a religiosidade. Muitos são os textos bíblicos que reportam à conduta ética e moral; uma destas passagens, relatadas no Sermão da Montanha, encontrado nos capítulos 5 e 6 do Evangelho segundo Mateus, de tão explícita a temática torna‐se recomendável a sua leitura para os estudos vinculados à ética, uma vez que o texto é abrangente e contém as idéias de moral que conduziram à formação cultural de quase toda a civilização ocidental:
Bem‐aventurados os podres de espírito, porque deles é o reino dos céus; Bem‐aventurados os que choram, porque eles serão consolados; Bem‐aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra; Bem‐aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos; Bem‐aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia; Bem‐aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus; Bem‐aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus; Bem‐aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus; Bem‐aventurados sois vós quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo disserem todo o mal contra vós por minha causa. Exultai e alegrai‐vos, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram os profetas que foram antes de vós. (MATEUS, 5, 3‐12).
A Ética Religiosa
verdades reveladas a respeito de Deus, das relações do homem como o seu criador e do modo de vida prático que o homem deve seguir para obter a salvação no outro mundo.
Deus é concebido como um ser pessoal, bom, onisciente e todo‐poderoso. O homem tem seu fim último em Deus, que é o seu bem mais alto e o seu valor supremo.
Deus exige a sua obediência e a sujeição a seus mandamentos, que têm o caráter de imperativos supremos.
o que o homem é e o que deve fazer definem‐se essencialmente não em relação com uma comunidade humana (como a polis) ou com o universo inteiro, e sim, em relação a Deus. todo o seu comportamento — incluindo a moral — deve orientar‐se para ele como objetivo supremo. A essência da felicidade (a beatitude) é a contemplação de Deus; o amor humano fica subordinado ao divino; a ordem sobrenatural tem a primazia sobre a ordem natural humana.
virtudes
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virtudes fundamentais — a prudência, a fortaleza, a temperança e a justiça, que são as virtudes morais em sentido próprio. regulam as relações entre os homens, são virtudes em escala humana
virtudes supremas ou teologais (fé, esperança e caridade). regulam as relações entre o homem e Deus e são virtudes em escala divina.
elevar o homem de uma ordem terrestre para uma ordem sobrenatural, na qual possa viver uma vida plena, feliz e verdadeira, sem as imperfeições, as desigualdades e injustiças terrenas.
Todos os homens, sem distinção — escravos e livres, cultos e ignorantes —, são iguais diante de Deus e são chamados a alcançar a perfeição e a justiça num mundo sobrenatural.
A Ética Cristã Filosófica
O cristianismo não é uma filosofia, mas uma religião (isto é, antes de tudo, uma fé e um dogma).
faz‐se filosofia na Idade Média para esclarecer e justificar, lançando mão da razão, o domínio das verdades reveladas ou para abordar questões que derivam das (ou surgem em relação com as) questões teológicas.
a filosofia é serva da teologia. A ética é limitada pela sua índole religiosa e dogmática.
Santo Agostinho (354‐430)
elevação ascética até Deus, que culmina no êxtase místico ou felicidade, que não pode ser alcançada neste mundo.
sublinha o valor da experiência pessoal, da interioridade, da vontade e do amor. Santo Tomás de Aquino (1226‐1274).
Deus é o bem objetivo ou fim supremo, cuja posse causa gozo ou felicidade, que é um bem subjetivo.
a contemplação, o conhecimento (como visão de Deus) é o meio mais adequado para alcançar o fim último.
Na sua doutrina político‐social, atém‐se à tese do homem como ser social ou político, e, ao referir‐se às diversas formas de governo, inclina‐se para uma monarquia moderada, ainda que considere que todo o poder derive de Deus e o poder supremo caiba à Igreja.
BIBLIOGRAFIA BÍBLIA de Estudos de Genebra. São Paulo: Editora Cultura Cristã e Sociedade bíblica Do Brasil, 1999. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo; Ática, 1995. GAARDER, Jostein et all. O livro das Religiões. São Paulo: Cia das Letras, 2000. LARA, T. Adão. A Filosofia nos Tempos e Contratempos da Cristandade Ocidental. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.