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1 Professor: Leandro Couto APOSTILA DE SOCIOLOGIA AULA 1 CAPÍTULO 3 VIVER EM SOCIEDADE 1 O Papel da socialização Os seres humanos necessitam de seus semelhantes para sobreviver, comunicar-se, criar símbolos e formas de expressão cultural, perpetuar a espécie e se realizar plenamente como indivíduos. É na vida em grupo que as pessoas se tornam realmente humanas. A sociabilidade, capacidade natural da espécie humana para viver em sociedade, desenvolve-se pelo processo de socialização. Por meio da socialização a criança se integra pouco a pouco ao grupo em que nasceu, assimilando o conjunto de hábitos, regras e costumes característicos de seu grupo. Nas palavra s dos sociólogos Brigitte Berger e Peter Berger, a socialização “é o processo pelo qual o indivíduo aprende a ser membro da sociedade”. A pessoa se socializa quando participa da vida em sociedade, assimila suas normas, valores e costumes e passa a se comportar segundo esses valores, normas e costumes. “O foco central do processo de socialização afirmam os sociólogos Talcott Parsons e R. Bales está na interiorização da cultura da sociedade na qual a criança nasce”. Ou seja, a socialização é um processo pelo qual o mundo social, com seus significados, hábitos de vida e valores, penetra na mente da criança e passa a fazer parte de seu mundo interior. Isso significa que a socialização varia de sociedade para sociedade, ou mesmo de um grupo social para outro dentro da mesma sociedade. Pois certos valores, símbolos e significados sociais, interiorizados por uma criança fazem parte apenas da cultura do grupo ao qual ela pertence, ou da sociedade em que ela vive. O costume pelo qual as mulheres usam um véu para cobrir o rosto em lugares públicos, por exemplo, é uma das características de certas sociedades de maioria muçulmana do Oriente Médio. Em contraste com ele, saias curtas e decotes acentuados fazem parte dos hábitos das sociedades ocidentais. Essas diferenças entre os valores e costumes entre dois tipos de sociedade fazem parte da diversidade humana e devem ser consideradas como características a serem analisadas, sem que sobre elas se queira estabelecer juízos de valor. Ou seja, não se trata de julgar se certos costumes são bons ou maus, mas de interpretá-los sociologicamente como parte de culturas diferentes. 2 Contatos sociais: onde começa a interação Ao dar uma aula, o professor entra em contato com seus alunos. O cliente e o vendedor de uma loja estabelecem contato na hora da venda de uma mercadoria. Duas pessoas conversando também participam de um contato social. A convivência humana pressupõe uma grande variedade de tipos de contatos sociais. Você mesmo pode se relacionar de diversas formas, a começar pela maneira como adquiriu esse material ou pelos contatos sociais que manteve para chegar até a atual etapa de sua educação formal. O contato social está na origem da vida em sociedade. É o primeiro passo para que ocorra qualquer associação humana. Por meio dele, as pessoas estabelecem relações sociais, criando laços de identidade, formas de atuação e comportamento que são a base da constituição dos grupos sociais e da sociedade. Para alguns autores, como os sociólogos norte-americanos Park e Burgess, “o contato pode ser considerado o estágio inicial da interação social, preparatório para estágios posteriores”. Já outros

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Professor: Leandro Couto

APOSTILA DE SOCIOLOGIA – AULA 1

CAPÍTULO 3 – VIVER EM SOCIEDADE

1 – O Papel da socialização

Os seres humanos necessitam de seus semelhantes para sobreviver, comunicar-se, criar símbolos e formas de expressão cultural, perpetuar a espécie e se realizar plenamente como indivíduos. É na vida em grupo que as pessoas se tornam realmente humanas.

A sociabilidade, capacidade natural da espécie humana para viver em sociedade, desenvolve-se pelo processo de socialização. Por meio da socialização a criança se integra pouco a pouco ao grupo em que nasceu, assimilando o conjunto de hábitos, regras e costumes característicos de seu grupo. Nas palavra s dos sociólogos Brigitte Berger e Peter Berger, a socialização “é o processo pelo qual o indivíduo aprende a ser membro da sociedade”.

A pessoa se socializa quando participa da vida em sociedade, assimila suas normas, valores e costumes e passa a se comportar segundo esses valores, normas e costumes. “O foco central do processo de socialização – afirmam os sociólogos Talcott Parsons e R. Bales – está na interiorização da cultura da sociedade na qual a criança nasce”. Ou seja, a socialização é um processo pelo qual o mundo social, com seus significados, hábitos de vida e valores, penetra na mente da criança e passa a fazer parte de seu mundo interior.

Isso significa que a socialização varia de sociedade para sociedade, ou mesmo de um grupo social para outro dentro da mesma sociedade. Pois certos valores, símbolos e significados sociais, interiorizados por uma criança fazem parte apenas da cultura do grupo ao qual ela pertence, ou da sociedade em que ela vive. O costume pelo qual as mulheres usam um véu para cobrir o rosto em lugares públicos, por exemplo, é uma das características de certas sociedades de maioria muçulmana do Oriente Médio. Em contraste com ele, saias curtas e decotes acentuados fazem parte dos hábitos das sociedades ocidentais.

Essas diferenças entre os valores e costumes entre dois tipos de sociedade fazem parte da diversidade humana e devem ser consideradas como características a serem analisadas, sem que sobre elas se queira estabelecer juízos de valor. Ou seja, não se trata de julgar se certos costumes são bons ou maus, mas de interpretá-los sociologicamente como parte de culturas diferentes.

2 – Contatos sociais: onde começa a interação

Ao dar uma aula, o professor entra em contato com seus alunos. O cliente e o vendedor de uma loja estabelecem contato na hora da venda de uma mercadoria. Duas pessoas conversando também participam de um contato social. A convivência humana pressupõe uma grande variedade de tipos de contatos sociais. Você mesmo pode se relacionar de diversas formas, a começar pela maneira como adquiriu esse material ou pelos contatos sociais que manteve para chegar até a atual etapa de sua educação formal.

O contato social está na origem da vida em sociedade. É o primeiro passo para que ocorra qualquer associação humana. Por meio dele, as pessoas estabelecem relações sociais, criando laços de identidade, formas de atuação e comportamento que são a base da constituição dos grupos sociais e da sociedade.

Para alguns autores, como os sociólogos norte-americanos Park e Burgess, “o contato pode ser considerado o estágio inicial da interação social, preparatório para estágios posteriores”. Já outros

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pensadores, mais próximos da definição de ação social formulada por Max Weber, afirmam que contato social é o encontro de pessoas que se relacionam umas com as outras em termos de atitudes e valores.

Os contatos sociais podem ser primários ou secundários.

Contatos sociais primários: São os contatos pessoais, diretos, e que têm uma forte base emocional, pois as pessoas envolvidas compartilham sua experiências individuais. São exemplos de contatos sociais primários: os familiares (entre pais e filhos, entre irmãos, entre marido e mulher); os de vizinhança; as relações sociais na escola, no clube, etc As primeiras experiências do indivíduo se fazem com base em contatos sociais primários.

Contatos sociais secundários: São os contatos impessoais, calculados, formais. Dois exemplos: o contato do passageiro com o cobrador do ônibus para pagar a passagem; o contato do cliente com o caixa do banco para descontar um cheque. São também considerados secundários os contatos impessoais mantidos por meio de carta, telefone, telegrama, e-mail, etc.

O Lavrador e o empresário - É importante destacar que as pessoas que têm a vida baseada mais em contatos primários desenvolvem personalidades diferentes daquelas que têm uma vida com predomínio de contatos secundários.

A personalidade de um lavrador, por exemplo, é bem diversa da de um empresário urbano. O lavrador vive em geral num mundo comunitário, onde quase todas as pessoas se conhecem e executam as mesmas atividades. Mantém relações familiares e de vizinhança muito fortes e em sua comunidade há um padrão de comportamento bastante uniforme. Não há mudanças sociais significativas no decorrer de sua vida e ele viverá, provavelmente, da mesma forma que seus pais.

Já o empresário estabelece um número mais amplo e complexo de contatos sociais com seus empregados, seus clientes, sua família, seus vizinhos, com outros empresários, etc. A maior parte desses contatos é impessoal, formal e momentânea.

O mundo do lavrador é estável, pouco se modifica com o tempo. Em contrapartida, o universo do empresário está em permanente mudança, sempre com novos desafios. Com a industrialização e a consequente urbanização, diminuíram os grupos de contatos primários, pois na cidade predominam os contatos secundários.

Nos grandes centros urbanos, as relações humanas tendem a ser mais fragmentadas, dinâmicas e impessoais, caracterizadas por um forte individualismo, pois a proximidade física não significa necessariamente proximidade afetiva. Essa falta de afetividade reforça o individualismo e estimula os conflitos. Um exemplo disso são as brigas frequentes no trânsito, muitas delas com desfecho violento.

A ausência de contatos sociais caracteriza o isolamento social. As comunidade amish no Estados Unidos, por exemplo, vivem em situação de relativo isolamento social em relação à sociedade norte-americana. Trata-se, nesse caso, de um autoisolamento, pois os amish rejeitam os valores da sociedade industrial.

Alguns sociólogos definem o isolamento social como um corte total ou parcial dos contatos e da comunicação com os outros. Ele pode envolver um indivíduo, um grupo, ou uma sociedade inteira em relação a outras sociedades. Em qualquer caso, existem mecanismos que reforçam esse isolamento. Entre eles, estão atitudes de ordem social e atitudes de ordem individual.

As atitudes de ordem social podem envolver diferenças culturais, como as de costumes e hábitos de vida, entre dois grupos, ou a impossibilidade de comunicação em razão das diferenças de língua. Outra causa de isolamento podem ser vários preconceitos (racial, religioso, de sexo, etc.). Um exemplo extremo de preconceito é o antissemitismo, contra os judeus. Tal atitude foi especialmente violenta durante a Idade Média e assumiu

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proporções de genocídio entre 1933 e 1945 na Alemanha nazista, onde cerca de 6 milhões de judeus foram exterminados em campos de concentração.

A África do Sul é outro exemplo de país onde, por várias décadas, imperou uma legislação que isolava os negros do convívio social com os brancos: o apartheid. “Palavra que quer dizer separação”. Durante esse período, a minoria branca impôs à maioria negra uma série de restrições, que iam desde a proibição de casamentos inter-raciais até o isolamento dos negros em guetos demarcados e a atribuição a eles dos trabalhos mais penosos.

Em ambos os exemplos, o isolamento social foi imposto a um grupo como resultado da intolerância e do mito da superioridade racial. Outras circunstâncias, entretanto, podem gerar novas formas de isolamento social. As desigualdades sociais, por exemplo, quando muito acentuadas, tendem a criar um verdadeiro apartheid social, separando ricos de pobres e criando grupos de indigentes despossuídos de bens materiais e privados de seus direitos mais elementares. Este é o caso dos sem-teto no Brasil.

Uma atitude de ordem individual que reforça o isolamento social de uma pessoa é a timidez. Segundo o sociólogo Karl Mannheim, a timidez, o preconceito e a desconfiança podem levar o indivíduo a um isolamento semelhante ao dos deficientes físicos, muitas vezes segregados dentro de seu próprio grupo primário. Isso porque o tímido tem dificuldade de se comunicar com o outro, de estabelecer laços de convivência e afinidade, o que, de certo modo, o deixa à margem da sociedade.

Convívio social e mudanças – As formas de convívio social são muito diversificadas, pois cada cultura, cada sociedade, tem suas regras particulares de convivência humana. Por outro lado, as condições de convivência podem se modificar sob o impacto das transformações sociais. A situação da mulher, por exemplo, mudou radicalmente ao longo das últimas décadas, tanto no Brasil quanto em outras partes do mundo.

4 – Sem comunicação não há sociedade

O principal meio de comunicação do ser humano é a linguagem. Por meio dela, os indivíduos atribuem significado aos sons articulados que emitem. Graças à linguagem, podemos transmitir pensamentos e sentimentos aos nossos semelhantes, assim como nossas experiências e descobertas às gerações futuras, fazendo com que os conhecimentos adquiridos não se percam.

Além da linguagem falada, o ser humano desenvolveu outras formas de comunicação ao longo da História. Um grande avança ocorreu com o surgimento da escrita, na Mesopotâmia, por volta de 4.000 a.C. Na China, as primeiras tentativas de escrita datam de 7.000 a.C. Já na América, a escrita foi inventada pelos olmecas (no México atual), por volta de 900 a.C. A invenção dos tipos móveis de impressão por Gutenberg, no século XV, foi outro passo importante (formas de impressão também foram inventadas na China vários séculos antes). Nos séculos XIX e XX assistimos à criação do telégrafo, do telefone, do rádio, do cinema, da televisão, do telex, da comunicação por satélite, do celular e da internet (outras formas certamente virão).

Atualmente, fatos, ideias, sentimentos, atitudes e opiniões são transmitidos instantaneamente para milhões de pessoas na maior parte do planeta, graças a esses meios de comunicação. Por essa razão, já no fim dos anos 1960 o especialista em comunicação Marshall McLuhan (1911-1980) afirmava que o mundo contemporâneo é uma autêntica “aldeia global”, pois os meios de comunicação de massa moldam hoje as ideias e opiniões de grupos cada vez maiores de indivíduos.

5 – Da interação à interatividade

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Na sala de aula, professor e alunos estão em contato social, estabelecendo formas de comunicação entre eles e também entre aluno e aluno. Ao interagirem com o professor, os alunos modificam seu comportamento, também o professor se modifica. Sua explicação da matéria é diferente de uma turma para outra, pois pode precisar se deter num ponto que para uma classe mostra-se mais difícil do que para outra; pode mesmo mudar de opinião após uma discussão em classe. Portanto, o professor influencia os alunos e é influenciado por eles. Dizemos, então, que existe entre professor e alunos uma interação social.

O aspecto mais importante da interação social é que ela modifica o comportamento dos indivíduos envolvidos, como resultado do contato e da comunicação que se estabelecem entre eles. Desse modo, o simples contato físico não é suficiente para que haja interação social. Por exemplo, se alguém se senta ao lado de outra pessoa num ônibus mas não conversa com ela, não há interação social.

Os contatos sociais e a interação constituem condições indispensáveis à associação humana. Os indivíduos se socializam por meio dos contatos e da interação social.

A interação social pode ocorrer entra uma pessoa e outra, entre uma pessoa e um grupo ou entre um grupo e outro.

A interação social supõe, assim, a existência de reciprocidade nas ações entre indivíduos, entretanto, com o desenvolvimento dos meios de comunicação, novos tipos de contato social vêm se afirmando. Para explicá-los teoricamente, foi criado o conceito de interatividade.

Entende-se por interatividade a troca simultânea de informações e o acesso imediato a qualquer parte do mundo; ela traduz, particularmente, uma qualidade técnica das chamadas “máquinas inteligentes”.

Em seu livro Cibercultura (1997), Pierre Lévy se refere a diferentes tipos de interatividade, que vão da mensagem linear à mensagem participativa. A mensagem linear se dá por intermédio de meios de comunicação como a imprensa, o rádio, a TV, o cinema e até as conferências eletrônicas.

A mensagem participativa, por sua vez, é aquela que utiliza dispositivos como os videogames com um só participante, ou que envolve a comunicação em mundos virtuais, por meio de redes de computadores, onde ocorre a troca de informações contínuas. O que caracteriza a interatividade é a possibilidade de transformar, ao mesmo tempo, os envolvidos na comunicação em emissores e receptores, produtores e consumidores de mensagens.

CAPÍTULO 4 – COMO FUNCIONA A SOCIEDADE

1 – As relações sociais

Alguns estudiosos definem relação social como a forma assumida pela interação social em cada situação concreta. Assim, um professor tem um tipo de relação social com seus alunos, a relação pedagógica. Duas pessoas em uma operação de compra e venda estabelecem outro tipo de relação social, a relação comercial. As relações sociais podem ainda ser políticas, religiosas, culturais, familiares, etc.

Da mesma forma que a interação social, a relação social tem por base um comportamento recíproco entre duas ou mais pessoas. Nos termos de Max Weber, essa reciprocidade é dotada de um sentido comum às pessoas envolvidas. Segundo essa definição, as relações de autoridade-obediência, por exemplo,

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são relações sociais, pois envolvem pessoas que exercem a autoridade e pessoas que obedecem, pois aceitam a autoridade reivindicada pelas primeiras, ou se submetem a ela, às vezes a contragosto.

Em uma perspectiva diferentes, Karl Marx considerava que as relações sociais eram decorrentes das relações de produção, ou seja, das relações desenvolvidas no processo produtivo, material, da sociedade. Um exemplo típico dessas relações seria as que existem entre o dono de uma fábrica e seus empregados, ou ainda entre o dono de terra e seus arrendatários (pessoas que alugam um lote dessa terra e pagam uma quantia regular ao proprietário por esse arrendamento, ou aluguel).

Para Marx, contudo, as relações sociais não se restringem ao processo de produção. Este último constitui a base em que elas se apóiam, mas as relações sociais são mais amplas. Elas estão também na sala de aula, nos laços familiares, nos vínculos entre as instituições e entre estas e as pessoas, nos laços de amizade e assim por diante. Dessa forma, pode-se dizer, com Thomas Bottomore, como vimos na abertura do capítulo, que “a sociedade é uma rede de relações entre indivíduos, entre grupos sociais e entre instituições”, ou seja, uma rede de relações sociais.

A relação social em Max Weber - Por “relação” social deve-se entender uma conduta de várias pessoas – referida reciprocamente conforme seu conteúdo significativo, orientando-se por essa reciprocidade [conteúdo significativo é o sentido, ou significado, atribuído pelas pessoas à sua ação. Na relação social existe reciprocidade, ou seja, cada parte envolvida atribui um sentido, ou significado, à ação da outra].

Um mínimo de reciprocidade nas ações é, portanto, uma característica conceitual da relação social. O conteúdo pode ser o mais diverso: conflito, inimizade, amor sexual, amizade, piedade, troca no mercado, “ruptura” de um pacto, “concorrência” econômica, erótica ou de outro tipo, etc. O conceito, pois, nada diz sobre se entre os agentes existe “solidariedade” ou exatamente o contrário. [...]

Não afirmamos de modo algum que num caso concreto os participantes da ação mutuamente referida ponham o mesmo sentido nessa ação, ou que adotem a atitude da outra parte. O que em um é “amizade”, “amor”, “piedade”, “fidelidade contratual”, pode encontrar-se no outro com atitudes completamente diferentes. [Entretanto, mesmo nesses casos, existe reciprocidade em relação ao sentido atribuído à ação pelos agentes], na medida em que o agente pressupõe uma determinada atitude de seu parceiro diante dele e nessa expectativa orienta sua conduta, o que poderá ter consequências para o desenrolar da ação e para a configuração da relação.

Adaptado de: WEBER, Max. Ação social e relação social. In: FORACCHI, Marialice e MARTINS, José de Souza (orgs.). Sociologia e sociedade. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1977. P. 142.3.

2- Processos sociais

Os alunos de uma escola resolvem fazer uma limpeza geral no salão de festas para o baile de formatura. Organizam-se, um ajuda o outro e logo o trabalho está acabado. Esse resultado foi possível porque houve cooperação. A cooperação é um tipo de processo social.

A palavra processo vem do latim procedere, que significa avançar, progredir. Designa a contínua mudança de alguma coisa numa certa direção. Seu significado, portanto, contém as ideias de tempo e de movimento, de pequenas alterações em um fenômeno, de evolução, de mudanças moleculares que podem levar a transformações mais profundas.

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Processo social indica, assim, interação social, movimento, evolução, mudança nas relações sociais e na sociedade. Os processos sociais são as diversas maneiras pelas quais indivíduos e grupos atuam uns com os outros, a forma pela qual os indivíduos se relacionam e estabelecem relações sociais no transcorrer do tempo.

Qualquer mudança proveniente dos contatos sociais e da interação social entre os membros de uma sociedade constitui, portanto, um processo social.

Processo associativos e dissociativos- No grupo social ou na sociedade como um todo, indivíduos e grupos se reúnem e se separam, associam-se e dissociam-se. Dessa forma, os processos sociais podem ser associativos ou dissociativos.

Os processos associativos estabelecem formas de cooperação, convivência e consenso no grupo. Geram, portanto, laços de solidariedade. Já os dissociativos estão relacionados a formas de divergência, oposição e conflito, que podem se manifestar de modos diferentes. São responsáveis, assim, por tensões no interior da sociedade.

Os principais processos sociais associativos são a cooperação, a acomodação e a assimilação.

Os principais processos sociais dissociativos são a competição e o conflito.

A seguir, vamos estudar os processos associativos e os processos dissociativos. Você vai perceber que não seguimos a ordem apresentada no esquema anterior. Isso se deve, em parte, à necessidade de se priorizarem certos processos, seja para facilitar o entendimento de outro, seja porque a partir dele podem surgir novos processos.

Cooperação- A cooperação é a forma de interação social na qual diferentes pessoas, grupos ou comunidades trabalham juntas para um mesmo fim.

São exemplos de cooperação: a reunião de vizinhos para limpar a rua, ou de pessoas para fazer uma festa; mutirões de moradores para construir conjuntos habitacionais, sociedades cooperativas, etc.

A cooperação pode ser direta ou indireta.

Cooperação direta- Compreende as ações que as pessoas realizam juntas, como é o caso do mutirão. Mutirões são atividades que reúnem diversas pessoas em um esforço comum para alcançar determinado objetivo. Nos bairros populares da periferia das grandes cidades no Brasil, por exemplo, não é raro que pessoas ligadas por laços de amizade trabalhem juntas nos fins de semana para construir a casa de uma delas. Quando a casa está pronta, as mesmas pessoas passam a cooperar na construção da casa de outra família integrante do grupo.

Cooperação indireta- É aquela em que as pessoas, mesmo realizando trabalhos diferentes, necessitam indiretamente umas das outras, por não serem autossuficientes. Tomemos o exemplo de uma médico e de um lavrador: o médico não pode viver sem o alimento produzido pelo lavrador, e este necessita de cuidados médicos quando fica doente. Existe, assim, entre eles, uma relação de complementariedade.

Uma das diferenças entre a cooperação direta e indireta está no fato de, no primeiro caso, se desenvolverem relações de solidariedade e apoio mútuo entre as pessoas envolvidas. Isso não ocorre quando a cooperação é indireta, pois nesse caso as pessoas envolvidas não estão ligadas por um esforço coletivo destinado a conquistar um objetivo comum.

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Competição- Segundo o cientista social H. Friedsam, competição é uma forma de interação que envolve luta ou disputa por bens limitados ou escassos. Essa interação é regulada por normas, pode ser direta ou indireta, pessoal ou impessoal, e tende a excluir o uso da força e da violência. Os bens em jogo, acrescenta P. Fairchild, “ podem ser objetos físicos ou materiais, assuntos de estima pessoal, dignidade ou recompensa não-material. A essência da competição é um choque tal de interesses que o atendimento de um indivíduo ou entidade impede o atendimento de outro indivíduo ou entidade” (FRIEDSAM, H e FAIRCHILD, P. in: Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1987. P. 218-9).

Em outras palavras, a competição é uma disputa entre indivíduos, grupos ou sociedades por bens que não chegam para todos (bens escassos). A competição pode levar indivíduos a agir uns contra os outros em busca de uma situação melhor. Ela nasce dos mais variados desejos humanos, como ocupar uma posição social mais elevada, ter maior importância no grupo social, conquistar riqueza e poder, vencer um torneio esportivo, ser o primeiro da classe, passar no vestibular, vencer um concurso, etc.

Ora, nem todos podem obter os melhores lugares as esferas sociais, pois os postos mais importantes são em número muito menor do que seus pretendentes, isto é, são escassos – da mesma forma que o número de vagas no vestibular é pequeno em comparação com o número de candidatos em disputa. Assim, os que pretendem alcançar esses postos ou vagas entram em competição com os demais concorrentes. Nessa disputa, as atenções de cada competidor estão voltadas para a recompensa e não para os outros concorrentes.

É importante também observar que a competição “tende a excluir o uso da força”, nas palavras de Friedsam. Isso porque ela constitui um tipo de interação regulada por normas, por leis, ou meso pelos costumes. Quanto a competição viola essas normas, transforma-se em conflito.

Há sociedades que estimulam mais a competição do que outras. Entre as tribos indígenas do Brasil, por exemplo, as relações são tão acentuadamente competitivas como na sociedade capitalista. Esta última estimula os indivíduos a competirem em todas as suas atividades – na escola, no trabalho e até no lazer -, exacerbando o individualismo em prejuízo da competição.

Conflito – Quando a competição assume características de elevada tensão social, sobrevém o conflito.

Diariamente, lemos e ouvimos no noticiário dos jornais, do rádio e da televisão relatos de conflito em diversas partes do mundo: combates na Colômbia, entre tropas do governo e guerrilheiros narcotraficantes; ocupações de fazendas pelo Movimento dos Trabalhados Rurais Sem-Terra (MST) no interior do Brasil, às vezes seguidas (ou precedidas) de assassinatos de líderes sindicais a mando de grandes fazendeiros; conflitos entre israelenses e palestinos no Oriente Médio, choques armados entre soldados norte-americanos e rebeldes muçulmanos no Iraque.

O conflito social é um tipo de interação que se desenrola no tempo e provoca mudanças na sociedade, tal como a competição.Trata-se, portanto, de um processo social. Em contraste com a competição, ele consiste em uma luta por bens, valores ou recursos escassos, na qual o objetivo dos contendores é neutralizar ou aniquilar seus oponentes. Dessa forma, ao contrário da competição, o conflito envolve, em maior ou menor escala, o emprego da violência.

Uma Luta por direitos- Consideremos, por exemplo, as lutas dos negros norte-americanos por direitos civis. Elas tiveram início antes mesmo do fim da escravidão de africanos e afrodescendentes nos Estados unidos. Como se sabe, a abolição da escravatura nesse país só ocorreu em 1863, em meio a um conflito social de grandes proporções conhecido como Guerra de Secessão (1861-1865). As partes em luta nesse conflito eram a União, apoiada pelos estados do Norte e sob a liderança do presidente Abraham Lincoln (1861-1865), e os estados do Sul. Lincoln queria abolir a escravidão. Os estados do Sul queriam conservá-la.

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A Guerra de Secessão terminou com o triunfo da união, ou seja, do exército fiel ao presidente Lincoln. A escravidão foi abolida, mas os negros continuaram a sofrer todo tipo de discriminação e preconceito. Por exemplo, nos estados do Sul, crianças negras não podiam freqüentar escolas destinadas a brancos. Nos lugares públicos havia banheiros separados para negros e para brancos. Nos ônibus, os afrodescendentes só podiam se sentar nos bancos de trás. Além disso, era comum o linchamento de negros por pessoas brancas, que não eram punidas pelo crime.

O hábito de inchar negros simplesmente pelo fato de serem negros foi disseminado por uma organização terrorista chamada Ku Klux Klan. Criada logo após a Guerra de Secessão, essa organização secreta, cujos integrantes atacavam negros indiscriminadamente, existiu até o começo dos anos 1960.

Por essa época, os negros norte-americanos começaram a se mobilizar contra a segregação e a discriminação que os atingiam. Depois de violentos choques com a polícia durante os anos de 1960, eles conseguiram ver reconhecidos os seus direitos civis. Passados mais de trinta anos,embora certas formas de racismo ainda persistam nos Estados Unidos, o negro integrou-se, pelo menos em parte, à sociedade norte-americana. Esse é um exemplo de processo social envolvendo conflitos que levou a mudanças importantes na sociedade.

Assim, diversos afrodescendentes ocupam hoje posição de destaque, até mesmo no governo estadunidense. O que antes era impensável. É o caso, por exemplo, de Condoleeza Rice, secretária de Estado do governo George W. Bush (2001-2008).

Já no Brasil, o preconceito contra os negros nunca foi tão ostensivo quanto nos Estados Unidos. Além disso, sempre foram comuns aqui as uniões interétnicas- a miscigenação da população brasileira é um fato que não se pode negar (ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos). Por essa razão, há quem afirme que no Brasil temos uma “democracia racial”.

Apesar de a legislação brasileira proibir quaisquer manifestações de preconceito e discriminação étnica, as desigualdades sociais entre brancos e negros ainda estão longe de terem sido superadas. Elas indicam também alguma forma de racismo.

Competição e conflito- Comparando a competição e o conflito, podemos destacar as seguintes características: a competição pode tomar a forma de luta pela existência, como a que se estabelece entre indivíduos para a obtenção de alimento ou emprego, por exemplo;

- o conflito pode tomar a forma de rivalidade, disputa, revolta, revolução, litígio ou guerra. O conflito é bem evidente na luta entre patrões e empregados em determinadas situações (greves, por exemplo), nas disputas pela posse da terra entre latifundiários e trabalhadores rurais sem-terra, ou ainda na guerra entre nações;

- a competição pode ser consciente ou inconsciente; o conflito é sempre consciente, ou seja, os adversários sabem que estão em oposição;

- a competição é impessoal; o conflito é Pessoal e, portanto, emocional;

- o conflito pode implicar violência ou ameaça de violência; já a competição não envolve violência;

- enquanto a competição é contínua, o conflito pode durar permanentemente com o mesmo nível de tensão;

- no conflito, o primeiro impulso dos oponentes é tentar neutralizar ou destruir o adversário.

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Pessoas ou grupos em conflito podem canalizar sua tensão tanto para a guerra como para a criminalidade, ou ainda reduzi-la a um processo de acomodação. Nem todos os conflitos, contudo, se resolvem pela violência. Muitos deles comportam negociações e acordos entre as partes. Esse é o caso, por exemplo, das greves de trabalhadores, uma forma de pressão para obter conquistas, como melhores salários, menos horas de trabalho,etc. Muitas dessas paralisações são solucionadas por meio de acordos ou concessões mútuas entre patrões e empregados.

Terrorismo- O conflito pode levar ainda a outra forma extrema de violência: o terrorismo, resultado de situações extremas de opressão ou exclusão de grupos sociais, políticos, étnicos, nacionais ou religiosos. Essas situações estimulam o surgimento do extremismo político ou religioso (neste caso,chamado de fundamentalismo). Enquanto todas as formas de conflito, inclusive as guerras, levam a uma solução, seja pelos processos de acomodação, seja pela assimilação, o mesmo não ocorre com o terrorismo. Incapaz de impor-se pela ação política ou pela força de ideias, ele procura destruir o adversário sem medir as conseqüências.

Durante certo tempo, cientistas sociais consideraram o terrorismo uma características de sociedades retrógradas. Alguns chegaram a supor que o processo de modernização das sociedades viria, cedo ou tarde, pôr um fim aos atentados, mesmo que em um ou outro lugar pudessem ocorrer atos isolados.

Os acontecimentos mais recentes, contudo, não comprovam essa teoria. O sacrifício de pessoas em nome de uma causa entra, dessa maneira, na era da globalização. O atentado de 11 de setembro de 2001- quando foram destruídas as torres gêmeas do World Trade Center de Nova York, nos Estados Unidos- mostra que nenhum país está imune a esse perigo. Ele pode atingir igualmente militares e civis; pode ocorrer na Nigéria, na Arábia Saudita, na Inglaterra, na Espanha, nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar do mundo.

Hoje, o terrorismo encontra adeptos entre pessoas e grupos que se sentem excluídos num mundo que está se globalizando rapidamente. Alguns deles temem perder suas culturas e tradições religiosas, como ocorre com os fundamentalistas muçulmanos. Outros se desesperam porque estão impedidos de ter sua própria pátria- ou seja, seus Estados nacionais e soberanos. Este é o caso dos palestinos no Oriente Médio. Em sua ação devastadora, provocam uma reação igualmente perversa: o terrorismo de Estado.

Acomodação- Nem todo conflito termina com a extinção do oponente derrotado. Em alguns casos, este pode aceitar as condições impostas pelo vencedor para fugir à ameaça de destruição. Ocorre, assim, um processo de acomodação, pois o vencido acata as condições do vencedor e adota uma posição de subordinação.

A escravização dos povos vencidos, comum na Antiguidade, é um caso típico de acomodação. Quando alguém cumpre uma lei ou segue um costume com os quais não concorda, só para evitar sanções ou divergências, também se enquadra num processo de acomodação.

Da mesma forma imigrantes que chegam a outro país são levados a passar por processos de acomodação: deixam de lado sua língua e seus costumes, adotam modos de vida do povo que os acolheu e adaptam-se às condições da nova vida. Procuram assim se prevenir contra possíveis conflitos e viver em equilíbrio com o meio social que os cerca.

Desse modo, a acomodação é o processo social pelo qual o indivíduo ou o grupo se ajusta a uma situação de conflito, sem que ocorram transformações internas. Trata-se, portanto, de uma solução superficial do conflito, pois este continua latente, isto é, pode voltar a se manifestar. Isso acontece porque nos processos de acomodação continuam prevalecendo os mesmos sentimentos, valores e atitudes internas que separam os grupos. As mudanças são apenas exteriores e manifestam-se somente enquanto comportamento social.

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Os escravos, por exemplo, nunca aceitaram a situação de servidão que lhes era imposta. Apenas se acomodavam à dominação, mas sempre que podiam se rebelavam. Revoltas de escravos ocorreram em diversas épocas da História. A mais famosa delas foi a rebelião de Espártaco, gladiador que liderou cerca de 120 mil escravos contra a República romana entre 73 e 71 a.C. Nesse caso, a acomodação se transforma em conflito social, que pode assumir (ou não) grandes proporções. Em Roma, a rebelião liderada por Espártaco durou três anos e ficou conhecida como Guerra dos Escravos.

No Brasil, uma das formas de resistência contra a escravidão foi a fuga seguida da formação de quilombos- aldeamentos fortificados, nos quais os ex-escravos passavam a viver da caça, da pesca, do artesanato e da agricultura. O maior e mais duradouro desses aldeamentos foi o quilombo de Palmares, situado na capitania de Pernambuco. Palmares, que chegou a reunir cerca de 20 mil pessoas no interior de suas paliçadas e muralhas, funcionava como uma pequeno Estado governado por seu próprio rei e resistiu a inúmeros ataques de forças portuguesas e holandesas entre 1600 e 1694, quando só então foi destruído.

Também no caso dos imigrantes, verifica-se entre eles a tendência a preservar certos traços fundamentais de sua própria cultura e a formar redes de ajuda mútua que os mantém agrupados em comunidades no interior do país onde passa a viver.

A acomodação é, assim, o ajustamento de indivíduos ou grupos apenas nos aspectos externos de seu comportamento. Ela atenua ou previne o conflito. Mas este só desaparece com a assimilação.

Assimilação- A assimilação é a solução definitiva e mais ou menos pacífica do conflito social. Trata-se de um processo de ajustamento pelo qual os indivíduos ou grupos antagônicos tornam-se semelhantes. Difere da acomodação porque implica transformações internas nos indivíduos ou grupos, sendo estas geralmente inconscientes e involuntárias. Tais modificações internas envolvem mudanças na maneira de pensar, de sentir e de agir.

A assimilação se dá por mecanismos de imitação, exigindo um certo tempo para se completar. É um processo longo e complexo.

Um exemplo de assimilação é o do imigrante que se integra totalmente à sociedade que o acolhe. Ele, que a princípio se acomodou por conveniência ao novo país, vai aos poucos deixando-se envolver pelos costumes, símbolos, tradições e língua do povo desse país. Não se trata, porém, de um processo que atinja todos os imigrantes, mas somente uma parte deles.

No Brasil,ocorreram casos de assimilação entre os alemães em Santa Catarina e os italianos em São Paulo. No início, esses imigrantes falavam sua própria língua e conservavam seus valores e costumes. Ao preservar essas características, cada grupo se constituía em uma espécie de corpo estranho na sociedade brasileira.

Apenas quando as características marcantes da cultura de origem se atenuaram ou se desfizeram- sendo substituídas pelos hábitos e costumes locais- os imigrantes puderam ser assimilados pela nova sociedade. Aos poucos, eles se desfizeram de sua identidade cultural e passaram a observar os sentimentos e valores da nova cultura, tornando-se parte integrante da sociedade adotada.

Concluindo, o aspecto importante da assimilação é que ela implica uma transformação do sentimento de identidade. O processo de assimilação atinge áreas profundas e extensas da personalidade, determinando novas formas de pensar, sentir e agir.

CAPÍTULO 05- ORGANIZAÇÃO SOCIAL E CIDADANIA

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1- Viver em comunidade

Se pudesse escolher, onde você gostaria de viver: em uma aldeia de índios, em uma comunidade de pescadores à beira-mar, em uma vila distante encravada nas montanhas, ou em uma grande cidade, como Porto Alegre, São Paulo, Paris, Nova York, Buenos Aires, Fortaleza, Rio de Janeiro?

A vida nas grandes cidades tem, sem dúvida, muitas vantagens. Mas, de vez em quando, muitos de seus habitantes se cansam do ritmo vertiginoso que as caracteriza, da poluição, do excesso de trabalho, da falta de tempo para pensar em si mesmos, da violência urbana,do trânsito caótico, da solidão, da ausência de solidariedade entre as pessoas, etc. Em momentos como esses, algumas dessas pessoas sonham com a volta ao campo, a uma vida simples e calma, marcada pela afetividade e por relações de solidariedade entre os habitantes da comunidade.

Durante os anos de 1960, setores da juventude dos Estados Unidos se recusavam a viver na sociedade industrial capitalista. Insatisfeitos com o consumismo desenfreado e a vida nas grandes cidades, muitos desses jovens- conhecidos como hippies- se transferiram para o campo, onde fundaram comunidades baseadas no princípio “paz e amor”. Havia nessa opção uma espécie de nostalgia das antigas comunidades camponesas, que eram representadas na imaginação dos jovens hippies como a solução ideal para os problemas vividos na sociedade industrial.

A maior parte dessas comunidades teve vida breve e muitos dos jovens hippies que abandonaram as cidades acabaram se reintegrando à sociedade industrial capitalista. Entretanto, a experiência mostra bem algumas das diferenças que separam os conceitos de sociedade e de comunidade.

Como identificar uma comunidade?

Independentemente das variações entre elas, as comunidades têm algumas características em comum que servem para identificá-las como um tipo específico de organização social:

nitidez- são os limites territoriais da comunidade, ou seja, onde ela começa e onde termina do ponto de vista espacial-geográfico;

pequenez- a comunidade é uma unidade de pequenas dimensões, limitando-se quase sempre a uma aldeia ou conjunto de aldeias;

homogeneidade- as atividades desenvolvidas por pessoas do mesmo sexo e faixa de idade, assim como suas expectativas, são muito parecidas entre si; o modo de vida de uma geração é semelhante ao da precedente;

relações pessoais (contatos primários)- em uma comunidade, as pessoas se relacionam por meio de vínculos pessoais, diretos e geralmente de caráter afetivo ou emocional. Predominam, portanto, os contatos primários sobre os secundários.

Um novo tipo de “comunidade”?

Recentemente, os meios de comunicação passaram a utilizar o conceito de comunidade de forma distanciada de seu significado original. Como vimos nos capítulos anteriores, assiste-se hoje nas grandes cidades de todo o mundo à formação de tribos urbanas, como os punks, os surfistas, os rappers, as gangues de periferia.São microgrupos geralmente ligados por interesses momentâneos.

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Ao lado deles surgem também grupos formados pelo contato virtual proporcionado por redes de computadores como a internet.A esses grupos tem-se aplicado- de uma forma talvez pouco apropriada- a expressão comunidades virtuais.

Nessas novas “comunidades” ocorre a inversão do processo de formação dos laços de afinidade social. Nas relações sociais tradicionais, quando conhecemos uma pessoa pela primeira vez, o encontro se dá, fisicamente, no “mundo real”. A partir desse contato inicial, e à medida que vamos aprofundando o conhecimento, trocamos informações, identificamos pontos de vista comuns, criamos laços de afinidade.

Nas comunidades virtuais, cuja comunicação é eletrônica, ocorre um processo inverso. As primeiras interações são realizadas a partir de interesses comuns, previamente determinados. O encontro pessoal poderá se realizar no futuro, mas ele não é fundamental para o funcionamento da interatividade. Isso se torna evidente nos grupos de conversação da internet, quando pessoas entram em contato para discutir futebol, filosofia, música e outros temas, sem nunca se terem visto ou pretenderem se encontrar.

As tribos eletrônicas, que se formam no ciberespaço, são expoente da era tecnológica, que está promovendo a união entre a informática e as novas formas de sociabilidade pós-modernas. A cibercultura é um fenômeno recente, em expansão contínua e, como tal, sem regras ou limites ainda definidos, funcionando basicamente a partir de uma comunicação espontânea sem que se saiba quem é e onde está o outro. A presença física deixa de ser, assim, uma das precondições para a realização do contato.

A comunidade em crise

Com o avanço da industrialização e da urbanização, as comunidades tradicionais foram perdendo seu poder de integração. À medida que isso acontecia, elas ainda se mantinham unidas, mais por uma necessidade imposta socialmente- quando não por coerção- do que por aquilo que seus integrantes tinham em comum. Muitos comportamentos foram mentidos, ainda que perdessem suas funções.

É o que acontece com a família, que para muitos está em franca decadência. Trata-se, até certo ponto, de um equívoco. É verdade que um número substancial de casamentos tem terminado em divórcio, principalmente nos centros urbanos. Mas a instituição familiar passou por crises também em épocas anteriores.

Temos exemplos disso em obras de literatura do século XIX, que retratam famílias internamente desfeitas, mas que permaneciam unidas para manter a aparência imposta pela sociedade, apenas para representar um papel social. Apegar-se à família era uma necessidade vital; ser repudiado por ela, uma catástrofe.

Atualmente, a ligação familiar é, de forma crescente, uma associação voluntária, afetiva e de respeito mútuo, sobre a qual pesa cada vez menos a imposição social. Antes, um dos sustentáculos da família burguesa era a submissão da mulher ao marido, que não raras vezes mantinha uma amante. Hoje, como resultado dos movimentos feministas e da conquista de direitos pelas mulheres, a base da sustentação da família passou a ser a igualdade dos cônjuges perante a lei.

Entretanto, a mobilidade geográfica e ocupacional tende a retirar as pessoas do lugar e da classe social a que pertencem, ou da cultura em que nasceram, da qual faziam parte seus pais, irmãos e outros familiares. Atua, assim, no sentido de desagregar a unidade familiar.

2 – Viver em sociedade

Como vimos, os sociólogos costumam fazer distinção entre sociedade e comunidade. Em sentido amplo, a expressão sociedade refere-se à totalidade das relações sociais entre os seres humanos. Assim, pode se falar

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genericamente em “sociedades” indígenas ou camponesas. A rigor, porém, do ponto de vista sociológico, sociedade seria uma associação humana caracterizada por relações baseadas em convenções, em vínculos impessoais e não em laços afetivos.

Os conceitos de comunidade e de sociedade

Para Ferdinand Tõnnies, a comunidade (Gemeinschaft, em alemão) é definida pelo ato de “viver junto, de modo íntimo, privado e exclusivo”, como na família, nos grupos de parentesco, na vizinhança e na aldeia camponesa. Já a sociedade (Gesellschaft) é caracterizada por ele como “vida pública”, como uma associação na qual se ingressa consciente e deliberadamente.

Nas comunidades, os indivíduos estão envolvidos como pessoas completas, que podem satisfazer todos os seus objetivos na vida em grupo. Nas sociedades, os indivíduos também se encontram envolvidos entre si; mas a busca da realização de certos fins comuns é específica e parcial.

Uma comunidade é unida por um acordo de sentimentos ou emoções entre pessoas, ao passo que a sociedade é unida por um acordo racional de interesses, ou seja, por regras e convenções racionalmente estabelecidas.

Tônnies elaborou seu conceito de comunidade a partir da observação das sociedades camponesas europeias pré-modernas. Essas sociedades comunitárias estavam unidas por uma densa rede de relações pessoais baseadas em laços de parentesco e no contato social direto. As normas de convivência não eram escritas e, por meio delas, os indivíduos estavam ligados numa teia de completa interdependência, que envolvia todos os aspectos da vida social: a família, o trabalho, a religião, as atividades de lazer, etc.

Assim, a comunidade é um tipo de agrupamento humano no qual se observa um elevado grau de intimidade e coesão entre seus membros. Nela predominam os contatos sociais primários e a família tem um papel especial.

A sociedade, em contrapartida, é formada por um conjunto de leis e regulamentos racionalmente elaborados. É o que ocorre, por exemplo, nas grandes sociedades urbanas industriais. Ali, as relações sociais tendem a ser formalizadas e impessoais; os indivíduos não mais dependem diretamente uns dos outros para seu sustento e estão muito menos comprometidos moralmente entre si.

Portanto, a expressão sociedade designa agrupamentos humanos que se caracterizam pelo predomínio de contatos sociais secundários e impessoais, próprios da sociedade industrial, em que há uma complexa divisão do trabalho e o Estado é sustentado por forte aparato burocrático.

A sociedade moderna

Ao nos referirmos às comunidades camponesas que serviram de fonte de observação para Ferdinand Tõnnies, utilizamos a expressão sociedade comunitária. Em oposição a ela, alguns sociólogos utilizam o conceito de sociedade societária para designar as sociedades modernas. Outros, contudo, preferem manter as designações tradicionais de comunidade e sociedade.

As grandes metrópoles contemporâneas são uma expressão da sociedade societária. Esta se caracteriza pela acentuada divisão do trabalho e pela proliferação de papéis sociais. Nela os indivíduos precisam enquadrar-se numa complexa estrutura social, na qual ocupam determinado status e desempenham papéis diferentes, frequentemente sem ligação entre si.

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As relações sociais nas sociedades societárias tendem a ser transitórias, superficiais e impessoais. Os indivíduos associam-se uns aos outros com base em propósitos limitados. São relações essencialmente instrumentais, como a existente entre patrão e empregado, estabelecida por meio de um contrato de trabalho. A vida perde a coesão unitária que mantinha estável a antiga comunidade. O trabalho fica distanciado da família e do lazer. A religião tende a confinar-se a determinadas ocasiões e lugares, em vez de fazer parte do convívio cotidiano das pessoas. Nessa estrutura social, a família deixa de ser o centro de união do grupo.

Na sociedade societária, os interesses comuns muitas vezes entram em conflito, e perde-se em grande parte a força da tradição. A relativa uniformidade de pensamento da comunidade é substituída por uma enorme variedade de interesses e ideias divergentes. São relativamente poucas as crenças, os valores e padrões de comportamento universalmente aceitos.

Os mores (costumes) são enfraquecidos e a lei forma emerge para regular o comportamento e governar o intercâmbio social. No lugar da firme coesão social, característica da sociedade comunitária, na sociedade societária a integração é frouxa e o grau de consenso tende a diminuir. Isso pode provocar uma frequencia maior de situações de conflito.

Entretanto, o predomínio da tradição e o respeito aos costumes característicos das sociedades comunitárias não implicam necessariamente uma qualidade de vida melhor e mais feliz.

Sob o impacto da globalização

A distinção entre comunidade (ou sociedade comunitária) e sociedade societária proporciona instrumentos para interpretação da sociedade contemporânea, assim como para estabelecer uma projeção de suas tendências.

Com o avanço da industrialização, as sociedades comunitárias tenderam a se transformar mais ou menos rapidamente em sociedades societárias. Com a globalização, esse processo, iniciado com a Revolução Industrial do século XVIII, ganhou uma intensidade jamais sonhada anteriormente.

Algumas de suas manifestações são o crescimento explosivo das cidades, o declínio da importância da família, a internacionalização da economia, o surgimento de redes virtuais de comunicação interligando computadores de todo o planeta, a ampliação do poder da burocracia, o estímulo ao individualismo e à competitividade, o enfraquecimento das tradições e a diminuição do papel da religião na vida cotidiana. (Uma das reações a essa diminuição é o crescimento de certas Igrejas, como as evangélicas, nas quais os crentes desenvolvem aspectos importantes da vida comunitárias).

Tais mudanças conduzem, de um lado, ao conflito, à instabilidade, à ansiedade e às tensões psicológicas; de outro, à liberação dos sistemas de controle e de coerção, e a novas oportunidades para o desenvolvimento humano.

Solidão e autoisolamento na grande cidade

Embora as definições de Tõnnies sejam um instrumento indispensável para a compreensão dos dois tipos de organização social, a Sociologia contemporânea atualizou os conceitos de comunidade e sociedade, de acordo com as novas relações sociais que vêm se estabelecendo entre os indivíduos. Um exemplo de um novo tipo de vida, que se baseia em relações sociais acentuadamente indiretas, são os chamados singles (pessoas que preferem viver sozinhas).

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A tendência para o autoisolamento vem se verificando principalmente nas grandes cidades: é cada vez maior o número de pessoas quem moram sozinhas. O tabu de que estar só é sinal de abandono ou de incompetência afetiva vem sendo superado por uma nova forma de olhar a questão. Hoje, morar sozinho é acima de tudo uma opção de vida, que tem suas vantagens e desvantagens.

No Brasil, há cerca de 4 milhões de pessoas que vivem sozinhas em seus domicílios. Trata-se de uma tendência mundial. Nos Estados Unidos há 26 milhões de adultos que moram sozinhos por opção. Na Alemanha são 13 milhões. Estima-se que eles serão 25% da população do pais em 10 anos. Na França, o percentual de lares onde vive uma só pessoa aumentou 21,4% em oito anos, enquanto na Inglaterra esse aumento foi de 37,5% em dez anos.

Um fenômeno urbano

Por que tantas pessoas optam por uma vida solitária? São várias as explicações, algumas demográficas, outras econômicas; há também as razões particulares.

A primeira constatação é óbvia: as pessoas se casam menos e com mais idade. Portanto, o número de solteiros é cada vez maior no país. O grupo dos descasados também contribui para fazer crescer o número dos que vivem sozinhos. Cerca de 150 mil pessoas se divorciam anualmente no Brasil. Como os casais tendem a ter menos filhos do que antigamente, é comum que, na separação, cada um arrume seu próprio canto. Além disso, o aumento da expectativa de vida do brasileiro faz com que o número de idosos também aumente.

Alguns sociólogos têm se dedicado a pesquisar os singles. O sociólogo alemão Stefan Hradil, por exemplo, afirma que eles são os “sismógrafos” do nosso tempo. “Os singles colocam em relevo a relação extremamente instável entre o indivíduo e a coletividade que é própria das sociedades contemporâneas em geral e da Alemanha, em particular”.

De fato, os singles são mais numerosos nas grandes metrópoles do que no campo (onde os estímulos para uma vida comunitária e solidária são mais fortes): um terço deles vive em cidades com mais de 1 milhão de habitantes. Ao mesmo tempo, sua formação educacional está acima da média: são geralmente bem-sucedidos na carreira profissional, ganham bem e moram, de modo geral, em casas confortáveis.

3 – Que herança deixaremos?

Como será a sociedade do futuro? Em que bases se apoiaram o consenso e a estabilidade na sociedade pós-industrial, urbana e globalizada? Será necessário, para resolver nossos problemas econômicos e sociais, retomar os valores tradicionais e os modos mais antigos de organização? Serão as formas sociais alternativas (como a dos singles) apropriadas a uma sociedade complexa como a nossa, com valores muitas vezes conflitantes, como os da liberdade individual em contraste com os interesses coletivos e a preservação do meio ambiente? Será possível conciliar, de alguma forma, os diferentes, e muitas vezes antagônicos, estilos de vida que se estabelecem no centro e nos bairros das grandes metrópoles e em suas periferias?

Embora as metrópoles contribuam para o surgimento de novos estilos de vida, as mudanças parecem não ter afetado ainda significativamente todos os habitantes dos grandes centros urbanos: mesmo em cidades como Nova York e São Paulo podem-se encontrar relações intensas de vizinhança, nas quais os indivíduos estabelecem contatos sociais diretos, com ações de solidariedade.

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Isso se dá com frequência nos bairros pobres da periferia, onde o código moral se baseia, em geral, na ajuda mútua. Em muitos dos bairros pobres, mesmo numa sociedade societária, preservam-se certos valores das antigas comunidades. Nesses lugares, a vida gira em torno da família, do local de moradia, das relações de vizinhança. O vizinho, muitas vezes, passa a ser quase um membro da família, um companheiro nas horas de dificuldade.

Entretanto, a velocidade com que estão se dando as mudanças na sociedade societária traz novos desafios às grandes metrópoles: um exemplo disso é o assustado aumento da criminalidade e as dificuldades para combatê-la.

Nesse processo, embora continue forte em alguns lugares da periferia, a solidariedade entre as pessoas perde sua força nas grandes cidades; antigas instituições sociais sofrem duros em sua credibilidade e legitimidade. Tudo favorece o comportamento individualista que se manifesta inclusive no desenvolvimento de estratégias de autodefesa pessoal ou na tendência à “fazer justiça pelas próprias mãos”. Mesmo algumas relações de vizinhança, nas quais persistem manifestações de vida comunitária, poderão não sobreviver ao individualismo crescente, que tende a ser universalizar.

Com seu estímulo ao consumo e à competição desenfreada, a economia capitalista, dinâmica e tecnologicamente inovadora, colabora para reforçar a cultura do individualismo e o isolamento; favorece a formação de uma sociedade egocêntrica, com uma frágil conexão entre seus membros na qual as pessoas buscam satisfazer apenas suas ambições, necessidades e impulsos. Numa sociedade desse tipo, a satisfação individual é colocada acima de qualquer obrigação comunitária.

Igualmente preocupante são as consequências ecológicas desse afrouxamento dos laços de solidariedade e da primazia atribuída ao consumo. Em uma sociedade construída com base na competição sem limites e no individualismo exacerbado, as pessoas tendem a pensar apenas em si mesmas e em seu bem-estar, pouco se importando com o que pode acontecer no futuro com as relações sociais e o equilíbrio ecológico. Nesse caso, a pergunta que devemos nos fazer é: que herança deixaremos para nossos filhos?

4 – Direitos humanos e cidadania

Algumas características da sociedade contemporânea, como vimos, atuam no sentido de desagregar valores cultivados não só nas antigas comunidades, mas também na própria sociedade societária até meados do século XX. Entre esses valores estão a solidariedade, a vida familiar, a igualdade de oportunidades, a participação política, etc.

Entretanto, no interior da própria sociedade societária moderna existem forças que se opõem fortemente a essas tendências desagregadoras. Isso acontece porque as sociedades pós-industriais são geralmente sociedades democráticas.

O regime democrático se caracteriza pela liberdade, pelo respeito aos direitos humanos, pelo “império da lei” (todos são iguais perante a lei, ninguém está acima dela), pela pluralidade de partidos políticos, pelo voto livre e universal e pela alternância no poder. Nessas condições, ele favorece a participação política e estimula a associação de pessoas em torno de interesses comuns, como sindicatos, organizações estudantis, associações de bairro, movimentos reivindicatórios, etc. Ambas as tendências, por sua vez, favorecem o estreitamento dos laços entre os participantes, a solidariedade e a agregação de interesses.

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Um dos fundamentos do regime democrático é o conceito de cidadania. Segundo o sociólogo Herbert de Souza (Betinho), “cidadão é um indivíduo que tem consciência de seus direitos e deveres e participa ativamente de todas as questões da sociedade. Tudo o que acontece no mundo acontece comigo. Então eu preciso participar das decisões que interferem na minha vida. Um cidadão com um sentimento ético forte e consciente a cidadania não deixa passar nada, não abre mão desse poder de participação(...).

A idéia da cidadania ativa é ser alguém que cobra, propõe e pressiona o tempo todo. O cidadão precisa ter consciência de seu poder”. (In: SANTOS, JR., Belisário et all. Cidadania, verso e reverso. São Paulo: Secretaria da Justiça e da Cidadania, 1998. P.11).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos

A cidadania está diretamente vinculada aos direitos humanos, uma longa e penosa conquista da humanidade que teve seu reconhecimento formal com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU). Na época- marcada pela vitória das nacos democráticas contra o nazismo e o fascismo durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945)-, ela abria a perspectiva de um novo mundo, em que haveria paz, liberdade e prosperidade: uma esperança que acabou não se realizando.

Leia a seguir os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos e procure compará-los com a realidade da cidadania, tal como ela vem sendo praticada no mundo em geral e no Brasil, em particular:

- Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.

- Ninguém será arbitrariamente preso, detido, ou exilado.

- Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa.

- Todo ser humano tem direito à alimentação, vestuário, habitação e cuidados médicos.

- Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

- Todo ser humano tem direito ao trabalho e à livre escolha de emprego. Toda pessoa tem direito à segurança social. Toda pessoa tem direito a tomar parte no governo de seu país.

- Todo ser humano tem direito a uma ordem social em que seus direitos e liberdades possam ser plenamente realizados.

- Todo indivíduo tem o direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei.

- Todo ser humano tem o direito à instrução.

SOUZA, Ari Herculano. Os direitos humanos. São Paulo: Editora do Brasil, 1989. p.-23-6.

A evolução do conceito de cidadania

No começo da Idade Moderna, o conceito de cidadania estava associado ao burguês, não ao conjunto da sociedade. A começar pela etimologia da palavra, havia uma separação entre o homem urbano e o homem rural, uma vez que o termo cidadão referia-se somente aos habitantes da cidade. A noção de cidadania, porém, é anterior à Idade Moderna e teve suas origens na Grécia e Roma antigas.

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A Grécia Antiga era composta por cidades-Estado autônomas, póleis, em grego. Em algumas delas vigorava a democracia direta, regime político no qual os cidadãos, chamados de politai, participavam das decisões do governo da cidade por meio de assembléias. Entretanto, nem as mulheres, nem os escravos, nem os estrangeiros eram considerados cidadãos.

Roma, por sua vez, foi em suas origens uma cidade-Estado. Inicialmente, sua forma de governo era a monarquia, mas em 509 a.C. foi deposto seu último rei por uma elite de senadores que estabeleceu a República. Sob esse regime, Roma começou a se expandir, conquistando territórios de outros povos até se transformar em um grande império. Durante esse período, vigorou um sistema de assembléias, das quais estavam excluídas as mulheres e os escravos. Entretanto, embora todos os romanos livres do sexo masculino fossem considerados cidadãos, o poder era de fato controlado pelo Senado, composto por uma minoria de grandes proprietários rurais. Em 27 a.C., com a instauração do Império Romano, a República chegou ao fim.

Com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, desapareceu o conceito de cidadania na Europa. Na Idade Média, não havia cidadãos. Havia apenas vassalos dos senhores feudais e súditos do rei.

No século XVIII, a Independência dos Estados Unidos (1776) e a Revolução Francesa (1789) colocaram o conceito de cidadania em um lugar central na vida política. A partir de então, ele ampliou-se e aprofundou-se cada vez mais, até agregar todos os indivíduos das sociedades democráticas modernas.

Como termo político, cidadania significa exercício de direitos, compromisso ativo, participação política, responsabilidade. Significa participar da vida na comunidade, na sociedade, no país. Sem cidadania não pode haver aquele compromisso responsável que garante o respeito aos direitos humanos e democráticos e que, em última análise, mantém unido o organismo político. Ela poderá ser o agente mediador dos grandes conflitos que afligem hoje a humanidade. Os graves problemas políticos, raciais, étnicos, de desemprego e de exclusão social somente poderão ser superados com o pleno exercício da cidadania.

Os Direitos das Crianças

Dois anos depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1950 a Assembleia Geral da ONU aprovou os Direitos das Crianças. O documento era uma tentativa de criar uma rede de proteção às crianças na situação do pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando muitas delas perderam seus pais.

1- Direito à igualdade, sem distinção de raça, religião ou nacionalidade.

2- Direito a proteção especial para seu desenvolvimento físico, mental e social.

3-Direito a um nome e a uma nacionalidade.

4- Direito à alimentação, moradia e assistência médica adequadas para a criança e a mãe.

5- Direito à educação e a cuidados especiais para a criança física ou mentalmente deficiente.

6- Direito ao amor e à compreensão por parte dos pais e da sociedade.

7- Direito à educação gratuita e ao lazer.

8- Direito a ser socorrida em primeiro lugar, em caso de catástrofe.

9- Direito a ser protegida contra o abandono e a exploração no trabalho.

10- direito a crescer dentro de um espírito de solidariedade, compreensão, amizade e justiça entre os povos.

SOUZA, Ari Herculano. Os direitos humanos. São Paulo: Editora do Brasil, 1989. p.-23-6.

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Igualdade e equidade

“Cidadania”- afirma o jornalista e escritor Gilberto Dimenstein- “é o direito de se ter uma idéia e poder expressá-la. É poder votar em quem quiser sem constrangimento. É processar um médico que cometa um erro. É devolver um produto estragado e receber o dinheiro de volta. É o direito de ser negro sem ser discriminado, de praticar uma religião sem ser perseguido.

Há detalhes que parecem insignificantes, mas que revelam estágios de cidadania: respeitar o sinal vermelho no trânsito, mão jogar papel na rua, não destruir telefones públicos. Por trás desse comportamento, está respeito à coisa pública”. (DIMENSTEIN, Gilberto. Cidadão de papel. 5.e. São Paulo: Ática, 1994. p.20).

Na base do conceito de cidadania estão as noções de liberdade e de igualdade. O princípio da igualdade de todos perante a lei é uma conquista da Revolução Francesa (1789), com a qual- na periodização dos historiadores- teve início a Era Contemporânea. Esse princípio foi acompanhado do reconhecimento dos direitos humanos e do exercício dos direitos e deveres da cidadania.

Recentemente, alguns pensadores acrescentaram o conceito de equidade aos fundamentos da democracia. Embora no âmbito do Direito os dois termos sejam tratados como sinônimos- equidade igual a igualdade-, para a Sociologia e a Ciência Política existem algumas diferenças entre eles. A noção de igualdade estabelece que todos são iguais perante a lei. Entretanto, as sociedades democráticas capitalistas são caracterizadas por desigualdades sociais e econômicas que acabam interferindo também na igualdade jurídica.

Por exemplo, no Brasil existe igualdade jurídica garantida pela Constituição. Entretanto, na prática a justiça tende a favorecer as pessoas mais ricas em prejuízo das mais pobres. Além disso, o princípio da “igualdade e oportunidades” também é negado desde o nascimento. Ao nascerem, as pessoas dos grupos de baixa renda têm pela frente problemas que os filhos das famílias abastadas não têm. Assim, seu desenvolvimento é retardado em relação a estes e, no momento em que devem enfrentar a competição no mercado de trabalho, elas já partem de uma posição desvantajosa.

Da mesma forma, apenas algumas parcelas da sociedade brasileira alcançaram os direitos de cidadania em sua plenitude, como os de usufruir dos serviços públicos de água encanada e tratada, rede de esgotos,luz elétrica, boa educação, salários dignos, assistência médica,emprego, etc.

Para corrigir essas distorções, cientistas sociais vêm propondo políticas públicas destinadas a:

- Promover a equidade, ou seja, a igualdade entre desiguais, por meio de medidas corretivas no âmbito da educação, da saúde pública, da moradia, do emprego, do meio ambiente saudável e de outros benefícios sociais- uma expressão disso são as cotas de emprego para deficientes físicos em certas empresas, o que poderia parecer um “privilégio”, mas que na verdade tende a estabelecer uma relação mais equilibrada entre portadores de deficiência e pessoas em perfeitas condições físicas e mentais;

- combater todas as formas de preconceito e discriminação,seja por motivo de raça, sexo, religião,cultura, condição econômica, aparência ou condição física.

Assim, o conceito de equidade engloba o de igualdade, mas vai além dele. Uma política voltada para a equidade não se contenta com a igualdade formal, jurídica, pois considera que as pessoas são desiguais, seja por razões físicas e biológicas, seja por razões sociais. Nessas circunstâncias, procura estabelecer o equilíbrio por intermédio de medidas compensatórias que reduzam as desigualdades existentes.

Ética e política

Além de promovera igualdade entre desiguais, a política da equidade deve propiciar uma forma ética de lidar com a esfera pública (ou seja, o conjunto de órgãos públicos, ligados ao Estado) e a esfera privada(que envolve a vida particular das pessoas. A distinção entre público e privado é um dos valores

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mais importantes da democracia. Para preservá-la, os governantes devem tomar medidas de interesse geral que beneficiem a comunidade. Além de ilegal, é antiético e ilegítimo legislar em causa própria, praticar abuso de poder ou utilizar recursos públicos para favorecer interesses particulares.

Como vimos, o exercício da cidadania – entendida como estatuto dos cidadãos em pleno gozo de seus direitos e como participação política- é uma das forças que impedem ou dificultam o esmagamento dos valores democráticos nas sociedades pós-industriais. Entretanto, a própria cidadania se vê hoje ameaçada pelo crescimento das desigualdades sociais, especialmente nos países pobre emergentes.

A única forma de reverter essa ameaça e preservar a cidadania consiste em ampliar a área de participação política, estendendo-a a setores cada vez mais amplos da população. Dito de outra maneira: consiste em fortalecer a sociedade civil.

Público e privado

Em toda sociedade democrática existem duas esferas de vida que articulam as relações políticas e sociais. Uma delas é a esfera pública, na qual se localizam o Estado com seus três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e outras instituições políticas. A outra á a esfera privada, lugar das atividades econômicas, dos interesses particulares, das empresas, do mercado, da vida familiar, da vida religiosa e das relações sociais.

Entre essas duas esferas estão a opinião pública e a sociedade civil. Esta última é formada pelas organizações privadas sem fins lucrativos que se estabelecem fora do mercado de trabalho e do governo, mas que têm importante presença na vida política.

Exemplos de organizações que participam da sociedade civil em nosso país são a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Conferência nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), as diferentes igrejas organizadas, os sindicatos, as Organizações Não-Governamentais (ONGs), a União Nacional dos Estudantes (UNE), etc.

Atualmente, as Organizações Não-Governamentais compõem, no interior da sociedade civil, o núcleo do que se poderia chamar de terceira esfera, situada entre o Estado (esfera pública) e a sociedade (esfera privada). Essa terceira esfera não pertence ao Estado, mas atua em áreas que geralmente deveriam ser atendidas pelas autoridades constituídas.

De fato, as ONGs mobilizam e estimulam comportamentos solidários, dedicando-se a questões como ecologia, paz e alfabetização, entre outras. Dessa forma, elas desenvolvem ações de solidariedade que se contrapõem ao individualismo crescente e à incapacidade do Estado de prestar serviços essenciais à população.

Cidadania: a separação entre o homem e o cidadão

Entre os séculos XI e XV, no período final da Idade Média na Europa, um grupo social começo a se destacar de forma especial. Era um grupo urbano, isto é, que vivia nas cidades, dedicado principalmente ao comércio. Por essa época, as cidades europeias eram chamadas burgos e seus habitantes, de burgueses.

Com o crescimento do comércio, os mercadores se tornaram cada vez mais ricos e a palavra burguês passou a ser aplicada apenas a eles. Surgia assim a burguesia, classe social dinâmica e empreendedora, que se tornaria mais tarde um dos protagonistas da Revolução Industrial, iniciada em meados do século XVIII. O texto que você vai ler agora analisa a ligação entre a burguesia e o moderno conceito de cidadão.

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A concepção teórica dos direitos humanos e de cidadania começou a ser elaborada no século XVII por uma corrente filosófica denominada Iluminismo.

O significado original do conceito de cidadania estava associado ao burguês, e não a todo o povo. A começar pelo fato de que a própria etimologia impôs uma separação entre o homem urbano e o homem rural, uma vez que a palavra cidadão refere-se somente aos habitantes da cidade. Por uma perfeita analogia, o novo termo veio substituir os termos burguês e burgo.

Não foi uma analogia casual, mas intencionalmente elaborada. Desde que a palavra burguês deixou de ser um termo neutro, adquirindo uma nítida conotação de classe social, como designativo de um segmento da sociedade, sua validade como designação genérica do ser humano idealizado pelo Iluminismo perdeu-se.

Com a palavra cidadão, a burguesia construiu um patrimônio ideológico que lhe deu poder, e aos outros, a ilusão de serem iguais. Na definição a seguir, a preeminência do urbano, do burguês sobre os demais, aparece claramente: “Ser cidadão significa ser sujeito de direitos e deveres. Cidadão é, pois, aquele que está capacitado a participar da vida da cidade, literalmente, e, extensivamente, da vida da sociedade” (Dermeval Saviani, educador).

Como conseqüência das mudanças na economia e na sociedade, a atribuição de direito e deveres também sofreria alterações, beneficiando algumas categorias mais do que outras.

A partir de então, de maneira geral, o homem do povo, colocado numa escala social inferior, dificilmente participaria integralmente do processo produtivo.

A divisão técnica do trabalho, levada a extremos com o desenvolvimento de novas tecnologias industriais, iri tornar mais aguda a diferença entre os homens na divisão social.

Já que cada trabalhador participa apenas de uma pequena fase do processo, fazendo uso de esforço físico ou de habilidade manual, enquanto a maior parte do seu ser é inibida, alienada, por não ser necessária na execução de tarefas específicas e repetitivas, nada mais natural do que ele participe, proporcionalmente, de uma parcela muito pequena da renda e de outros direitos referentes a essa produção.

Só uma parcela da sociedade alcançou, na prática, os direitos de cidadania em sua plenitude, segundo a conceituação da cultura burguesa. A igualdade de todos perante a lei não elimina as desigualdades de muitos, em relação à liberdade de expressão, ao direito de votar e ser votado, aos direitos sociais, tais como a educação, e aos direitos econômicos, como os de produzir e de vender.

Os direitos de cidadania no Brasil

No caso brasileiro, o processo de avanços e recuos, de progressos na conquista e expansão dos direitos de cidadania pode ser explicado em grande parte pela permanência de estruturas econômicas e sociais que datam do tempo colonial. Por não terem sido totalmente abolidas nem renovadas, servem de obstáculo ao desenvolvimento de relações mais justas, mais livres e mais igualitárias entre os grupos de indivíduos.

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Devido a essa herança histórica, estabelecem-se distinções, discriminações e preconceitos, não só em relação às condições materiais, mas também no plano cultural, por diferenças de origem social, de raça, de cor, de sexo e de idade.

O princípio legal de que todos são iguais perante a lei não elimina as concretas desigualdades sociais, pois a divisão da sociedade em classes se reproduz na vivência da cidadania. Há cidadãos detentores de amplos privilégios e há os que são privados até mesmo dos mais elementares recursos de subsistência.

Um exemplo concreto, vivo e sempre atual da permanência de velhas estruturas de poder é visto nas relações de trabalho da estrutura agrária, que são mais atrasadas do que as do meio urbano. As desigualdades sociais formam uma hierarquia, criando cidadãos de várias categorias. O trabalhador rural, em geral, é “inferior” ao trabalhador urbano em todos os aspectos das condições de vida, inclusive nos direitos trabalhistas e previdenciários.

Os valores da cidadania que hoje se consideram desrespeitados e até mesmo ameaçados possuem, em geral, raízes muito profundas na formação histórica da sociedade brasileira. Estão nessa condição, especialmente, as questões do índio, do negro, da mulher e dos pobre em geral, dos trabalhadores sem qualificação profissional.[...]

O caso da população indígena

Embora a Constituição contemple a população indígena com um leque de direitos, seu cumprimento, infelizmente, está muito longe da realidade do poder público e da população branca. Destacamos, para ilustrar, o artigo 231: “ São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

O caso do índio começou com achegada dos colonizadores portugueses, que rompeu com seu hábitos ancestrais de sobrevivência, baseados na caça, na coleta e na pesca, e com seus costumes e crenças religiosas.

O confronto direto entre o europeu dominador e o índio perseguido transferiu-se do plano físico para o terreno religioso e cultural. A Igreja atuou na domesticação dos silvícolas, combatendo suas crenças e costumes para obter sua incorporação ao trabalho.

Fruto desse choque cultural entre a civilização indígena e a européia, e como parte dos mecanismos de dominação, ficou definitivamente gravada a noção de que o índio é “indolente”, “imprestável”, incapaz de se integrar à cultura do branco.

A população indígena atual é estimada em cerca de 200 mil pessoas, espalhadas em pequenas tribos por todo o território nacional [segundo dados da Fundação Nacional do Índio, FUNAI, em 2006 essa população havia crescido para 450 mil indígenas]. A maioria vive na região amazônica em graus diversos de aculturação e desperta interesse e curiosidade nacional e internacional, porque ainda conserva muitos traços de sua vida ancestral, às vezes com grandes extensões de terras demarcadas.

Mesmo essas tribos são agredidas fisicamente- suas terras são invadidas; os rios poluídos; e o ouro e outros metais, saqueados- e, principalmente, são envolvidas na produção e no tráfico de drogas e no contrabando nas fronteiras com outros países sul-americanos[...]

Mais grave é a situação das pequenas comunidade que vivem nas regiões densamente povoadas do Sul, Sudeste e em todo o litoral brasileiro. Precariamente integradas com a população branca e sem recursos naturais em florestas, rios, terras, etc., essas pequenas comunidades, em geral, vivem marginalizadas e numa miséria extrema.

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Os negros e o preconceito

Os quilombos marcaram a história e a sociedade brasileira como a expressão mais alta da resistência dos negros contra a escravidão; foi a mais importante, sem dúvida, embora não a única. [...]

De muitas outras formas os escravos africanos negros e mestiços resistiram ao cativeiro: rebeliões, fugas, assassinatos, suicídios. Além disso, a participação de grande número deles em guerras, revoluções e movimentos sociais de toda espécie sempre esteve relacionada com a luta pela conquista de alguns direitos humanos fundamentais.

Em tópicos anteriores, propusemos a distinção entre os direitos fundamentais do ser humano e os valores sociais da cidadania. A população negra, até a abolição da escravatura oficial [no Brasil, em 1888], era considerada “mercadoria” e discutia-se seu direito a existir como seres humanos.

Desde então, a conquista de alguns direitos de cidadania conforme os conceitos que hoje defendemos tem-se caracterizado como uma luta contra as diferentes formas de dominação e de exploração. Todas as diferenças que separam os cidadãos foram usadas contra a população “de cor”: a discriminação declarada, o preconceito velado, a marginalização econômica e social.

Essas atitudes discriminatórias diminuem as condições de cidadania,produzindo resultados concretos na forma de desemprego,trabalhos mais penosos e degradantes, salários mais baixos e menores oportunidades de ascensão social.

Se expurgamos a questão do índio e a do negro de todas as mistificações ideológicas, de veleidades liberais e românticas e dos sonhos dos ecologistas, o que teremos como atitude fundamental da sociedade? A julgar pela realidade das ações praticadas, destoantes dos discursos e promessas, o que sobra é:

Uma política de confinamento dos índios, a pretexto de preservar seus hábitos, seus costumes e sua cultura. Sem lhes permitir a possibilidade de integração na sociedade, também não lhes garante a sobrevivência nas respectivas reservas.

Uma política oficial de democracia racial, que condena o racismo e apregoa a igualdade, mas submete os negros à discriminação “cordial”, velada, negando-lhes, por exemplo, oportunidades iguais de formação escolar, de ascensão profissional e, consequentemente, de participação em níveis mais altos de cidadania.

Os estigmas da pobreza

Com relação aos pobres em geral, de qualquer raça, cor, sexo ou idade, existe um consenso de que se implantou o apartheid social [apartheid significa separação; veja o capítulo3]. São milhões de criaturas sem as condições mais elementares de vida.

As propriedades agrárias, por exemplo, estão intensamente concentradas: mais de 80% das terras, cerca de 400milhões de hectares, estão em mãos de apenas um milhão de proprietários, aproximadamente. A pequena propriedade não tem condições de sobreviver às instabilidades das políticas agrícolas e às crises da economia. Os trabalhadores rurais são cada vez mais diaristas- bóias-frias, sem nenhum tipo de vínculo empregatício-, com empregos sazonais,temporários, no corte da cana-de-açúcar, na colheita de algodão, de café e outros.[...]

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Grandes contingentes migratórios de trabalhadores flagelados pelas secas e pelo subdesenvolvimento do Nordeste, ou desempregados pela mecanização agrícola, chegam às regiões metropolitanas em busca de trabalho, mas, desinformados da situação existente, se defrontam com multidões de desempregados.

Com freqüência, surgem denúncias de trabalho semiescravo em fazendas onde os trabalhadores não recebem remuneração ou tornam-se cativos em razão de suas dívidas e são impedidos de deixar o local. Esses fatos são mais comuns na Amazônia, embora ocorram em outras regiões, inclusive na rica região do estado de São Paulo, onde foram registrados casos desse tipo.

Fontes:

MARTINEZ, Paulo. Direitos de cidadania. São Paulo: Scipione, 1996. p.14, 16-20,52-8 MARTINS, Carlos Benedito. O que é sociologia. São Paulo: Brasiliense, 2005. OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à Sociologia. São Paulo: Editora Ática, 2001.