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1 A A P P O O S S T T I I L L A A T T E E O O L L O O G G I I A A C C u u r r s s o o d d e e D D i i r r e e i i t t o o F F I I T T 1 1 8 8 1 1 0 0 B B 0 0 5 5 2 2 0 0 1 1 7 7 / / 1 1 Conteúdo CONCEITOS BÁSICOS ................................................................................................................................... 2 A JUSTIÇA DO HOMEM PEQUENO ............................................................................................................. 3 FENÔMENO RELIGIOSO ............................................................................................................................... 4 EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ....................................................................................................................... 4 MITO, SÍMBOLO E RITO............................................................................................................................ 6 FENÔMENO RELIGIOSO: SEITAS E IGREJAS ....................................................................................... 7 RELIGIÃO: CAMINHO PELA HISTÓRIA ................................................................................................... 10 PAPEL SOCIAL DA RELIGIÃO NAS SOCIEDADES TRIBAIS ............................................................ 10 FUNÇÃO SOCIAL DA RELIGIÃO NO FEUDALISMO ......................................................................... 12 A INSTITUIÇÃO RELIGIOSA NA (PÓS)MODERNIDADE ................................................................... 14 RELIGIÃO E CONSUMISMO: .................................................................................................................. 17 MARX E A RELIGIÃO .................................................................................................................................. 19 FREUD E A RELIGIÃO ................................................................................................................................. 20 A DOIS CLIQUES DE DEUS......................................................................................................................... 21 ESTADO E RELIGIÃO: RELAÇÕES PERIGOSAS ..................................................................................... 26 RELIGIÃO E POLÍTICA EM GOIÁS .......................................................................................................... 29 O NOVO RETRATO DA FÉ NO BRASIL .................................................................................................... 34 RAÍZES e INFLUÊNICAS RELIGIOSAS ..................................................................................................... 40 FÉ CEGA, FACA AMOLADA ....................................................................................................................... 41 Profa. Sandra Mª Chaves| [email protected]

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222000111777///111

Conteúdo CONCEITOS BÁSICOS ................................................................................................................................... 2

A JUSTIÇA DO HOMEM PEQUENO ............................................................................................................. 3

FENÔMENO RELIGIOSO ............................................................................................................................... 4

EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ....................................................................................................................... 4

MITO, SÍMBOLO E RITO............................................................................................................................ 6

FENÔMENO RELIGIOSO: SEITAS E IGREJAS ....................................................................................... 7

RELIGIÃO: CAMINHO PELA HISTÓRIA ................................................................................................... 10

PAPEL SOCIAL DA RELIGIÃO NAS SOCIEDADES TRIBAIS ............................................................ 10

FUNÇÃO SOCIAL DA RELIGIÃO NO FEUDALISMO ......................................................................... 12

A INSTITUIÇÃO RELIGIOSA NA (PÓS)MODERNIDADE ................................................................... 14

RELIGIÃO E CONSUMISMO: .................................................................................................................. 17

MARX E A RELIGIÃO .................................................................................................................................. 19

FREUD E A RELIGIÃO ................................................................................................................................. 20

A DOIS CLIQUES DE DEUS ......................................................................................................................... 21

ESTADO E RELIGIÃO: RELAÇÕES PERIGOSAS ..................................................................................... 26

RELIGIÃO E POLÍTICA EM GOIÁS .......................................................................................................... 29

O NOVO RETRATO DA FÉ NO BRASIL .................................................................................................... 34

RAÍZES e INFLUÊNICAS RELIGIOSAS ..................................................................................................... 40

FÉ CEGA, FACA AMOLADA ....................................................................................................................... 41

Profa. Sandra Mª Chaves|

[email protected]

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CONCEITOS BÁSICOS 1. TEOLOGIA

Etimologia/histórico: A palavra é de origem grega (Teo = Deus; Logia = estudo): o estudo de Deus. Os filósofos gregos utilizavam a palavra, mas restrita ao campo de articulação das idéias filosóficas. Pode ser: 1.1. Olhar externo: É uma reflexão sistemática, organizada, metódica, que parte da fé e a ela pretende voltar. Sob esse olhar a Teologia se propõe a estudar toda e qualquer expressão religiosa a partir do olhar do crente, ou seja, não questiona ‘se’ tal fenômeno é possível ou não. Tal questionamento é dispensável. A partir do fenômeno apresentado, a teologia utiliza instrumentos de investigação como a Sociologia, a Psicologia, a Filosofia, a História e a Antropologia da religião. 1.2. Olhar interno: Esse aspecto estuda os textos sagrados e suas inplicações/interpretações. Este estudo é realizado pelo praticante da própria fé professada, ou seja, é o muçulmano estudando a Teologia do Corão, é o judeu estudando a Teologia da Torá, etc. No Cristianismo é a reflexão sobre o ser humano, à luz do projeto de Jesus Cristo, para orientar o crente a viver humanamente neste mundo em direção à plenitude da vida.

2. RELIGIÃO Vem do latim ‘religar’, ‘atar’ o sagrado com o profano. A religião é um sistema qualquer de idéias que envolve fé e cultos. Consiste em crenças e práticas organizadas, formando algum sistema privado ou coletivo, mediante o qual uma pessoa ou um grupo de pessoas são influenciados.

Pode-se encontrar muitas crenças e filosofias diferentes. As diversas religiões do mundo são de fato muito diferentes entre si. Porém ainda assim é possível estabelecer uma característica em comum entre todas elas. É fato que toda religião possui um sistema de crenças no sobrenatural, geralmente envolvendo divindades ou deuses. As religiões costumam também possuir relatos sobre a origem do ‘Universo’, da ‘Terra’ e do ‘Ser Humano’, e o que acontece após a morte. A maior parte crê na vida após a morte.

A religião não é apenas um fenômeno individual, mas também um fenômeno social. Institucionalização da fé.

3. RELIGIOSIDADE A ‘atitude particular’ de uma consciência transformada pela experiência do numinoso. Fé praticada por meio

daquele que acredita. É a crença propriamente dita, vivida no cotidiano. Na forma confessional (em cada denominação religiosa), a experiência não é direta, mas mediada pelo sistema

simbólico de uma determinada religião, que fornece significados coletivos e relativamente fixos para a vivência do numinoso; a mediação pressupõe a crença, ou fé, pois que se dá através do estabelecimento de dogmas. O homem primitivo admite tanto as forças e atividades naturais como as sobrenaturais e procura usar ambas em seu próprio benefício. Mas agarra-se à magia sempre que tem de reconhecer a impotência do seu conhecimento e da sua técnica racional.

SAGRADO PROFANO NO SENTIDO SOCIOLÓGICO

Domínio da magia/religião Domínio da ciência e vivência do cotidiano, da vida civil. Reverência, temor, crença em forças sobrenaturais.

Força da razão, rudimentos da ciência inventando técnicas da caça, pesca, agricultura.

Relação religião e as ciências:

CIÊNCIA RELIGIÃO Nasce da experiência É construída através da tradição É norteada pela razão e corrigida pela observação Imune a ambas vive numa atmosfera de misticismo Está aberta a todos É oculta Assenta na concepção de forças naturais Desponta da idéia de um poder místico e impessoal.

REFERÊNCIAS http://www.alternex.com.br/~pilar/col-celso.htm#Ini01 acesso em: 20 abr 2001. http://pt.wikipedia.org/wiki/Religi%C3%A3o acesso em: 21 maio 2005. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. JUNG, C. G. Psicologia e religião. In Obras completas de C. G. Jung, (Vol. 11i). Petrópolis: Vozes, 1990. MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Lisboa: Ed. 70, 1988. OTTO, Rudolf. O Sagrado. São Bernardo Campo: Imprensa Metodista, 1985.

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A JUSTIÇA DO HOMEM PEQUENO

Publicado: 07/08/2010 por Revista Espaço Acadêmico em colaborador(a) por JOSÉ DE SOUZA MARTINS*

http://espacoacademico.wordpress.com/ acesso em 08ago10

A enraizada prática do suborno entre nós só vem a lume com alguma intensidade na repercussão de episódios graves, como este de agora, ocorrido no Rio de Janeiro, relativo à compra da omissão de dois policiais militares em caso de atropelamento fatal. Não fosse a vítima filho de atriz conhecida, é pouco provável que o caso tivesse a repercussão que vem tendo e menos provável que os policiais envolvidos tivessem sido presos tão prontamente, como foram.

Um dos nossos grandes equívocos, nessa matéria, é o de pensar que a corrupção é apenas um defeito pessoal de caráter e uma exceção. Na verdade, a dificuldade para varrê-la de vez do cenário brasileiro está no fato de que o suborno, a propina e a corrupção em geral são aqui componentes da estrutura da sociedade. São mecanismos e artifícios para torná-la viável para os que consideram os rigores da lei um defeito social e político. Ou que as leis são feitas para relevá-las no difundido comércio do seu descumprimento. O vocabulário que designa os atos de cotidiana corrupção, que facilitam para os inescrupulosos o transcorrer do dia a dia, já é indicativo de como a anomalia está presente na consciência social: “molhar a mão”, “adoçar o bico”, “amaciar o motor”, “dar um jeito”, “esquecer”, “olhar para o outro lado”, “dar um agrado”. Todas elas expressões do entendimento de que a honestidade e a correção, sobretudo do funcionário público, é que são anômalas e injustas porque dificultam o arbítrio e a conveniência pessoais.

É essa consciência a do divórcio entre a sociedade e o Estado, expressão da insegurança social quanto à eficácia do poder público e, sobretudo, quanto ao funcionamento e à distribuição da justiça. É a descrença geral nas instituições que acaba sugerindo a cada um que se antecipe à aplicação da justiça para se inocentar preventivamente. É esse temor que faz do próprio cidadão, como neste caso, o corruptor daquele funcionário público de exceção que é incapaz de conceber-se como cumpridor impessoal da lei.

Os parâmetros pedagógicos dessa modalidade de delinqüência estão em toda a parte. Se os do mensalão podem, e não lhes acontece nada, e seu prestígio até cresce, por que não pode agir do mesmo modo o minúsculo funcionário, policial ou não? Se a lei da Ficha Limpa é diariamente flexibilizada em favor de poderosos de ficha suja, por que não pode o meganha da esquina agir como tribunal de Justiça, recebendo agrados para pré-interpretar a lei e fazê-la mais leve para os que se consideram mais iguais do que os mortais comuns? Se o próprio eleitorado reelege e consagra corruptos e cassados da grande corrupção, que mérito podem ter a honestidade e a correção do homem pequeno que em nome do Estado é o elo entre o poder e o cidadão da rua?

* JOSÉ DE SOUZA MARTINS é Professor Emérito da Universidade de São Paulo. Dentre outros livros, autor de A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto, 2008), Sociologia da Fotografia e da Imagem (Contexto, 2008), A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008), O Cativeiro da Terra (Contexto, 2010). Publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Aliás, A Semana Revista], domingo, 1º de agosto de 2010, p. J3.

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FENÔMENO RELIGIOSO

EXPERIÊNCIA RELIGIOSA O QUE É? COMO SE DÁ?

A experiência religiosa possibilita à pessoa identificar a hierofania (manifestação do

sagrado) e declarar um objeto, um lugar ou um tempo como sagrados. A experiência religiosa é a própria relação da pessoa com o sagrado que ela identifica e/ou reconhece como tal. Segundo Eliade "a essência de qualquer religião é a experiência de uma realidade outra, que se manifesta na consciência do crente antes mesmo de ser incorporada nos ritos e nos mitos, e preservada por um grupo de especialistas". Se aceitarmos esta idéia, necessitamos concluir que, para um evento se tornar experiência religiosa, deve ocorrer a fusão entre a expressão cultural e o sagrado que a ela se acrescenta.

Podemos ver, através de um exemplo, como as pessoas fazem este cruzamento. No caso dos rituais de cura nos meios populares, o/a curandeiro/a conhece uma porção de chás que podem curar muitas doenças. Esta parte seria a cultura. No entanto, as pessoas não a procuram somente para fazer chás, mas também pelos rituais que ele/a realiza. Muitos/as curandeiros/as afirmam ter aprendido seus conhecimentos religiosos diretamente de Deus. Este é o elemento sagrado que, em fusão com a expressão cultural (conhecer os chás), faz com que suas práticas sejam uma experiência religiosa. Neste caso, tanto o/a curandeiro/a como as pessoas que o/a procuram estão realizando experiências religiosas: "A experiência religiosa se define, antes de tudo, como uma relação interior com a realidade transcendente, isto é, a partir da experiência do sagrado vivida interiormente...".

Este outro exemplo, observado em uma comunidade rural do interior do Paraná, ilustra o processo em que se dá o cruzamento entre experiência religiosa e outras expressões culturais. Trata-se do ritual usado para curar queimaduras. As palavras do ritual são as seguintes: "Santa Sofia tinha três filhas: uma fiava, outra cozia e a outra caiu no fogo e se queimou. Santa Sofia perguntou à Virgem Maria com que curaria. Virgem Maria respondeu: cuspa três vezes e reze três ave-marias". Ao pronunciar estas palavras, a benzedeira o faz em tom de oração, utiliza um ramo de chá molhado em água fresca e vai fazendo cruz com este ramo; e, ao terminar cada ave-maria, cospe três vezes sobre a queimadura.

Esta história pode muito bem ter acontecido em qualquer família. A saliva, o ramo de chá e a água são refrescantes e auxiliam na cura da queimadura. Isto pode ser aprendido em qualquer espaço em que a medicina popular seja praticada. No entanto, acrescenta-se o elemento sagrado à história e cria-se um rito. A família passa a ser a de Santa Sofia, a medicina natural passa a ser ensinada pela Virgem Maria. Um procedimento de medicina natural passa a ser um ritual religioso e é imputado ao sagrado a cura do mal.

É muito difícil descrever como se dá a experiência religiosa, uma vez que elementos objetivos e subjetivos se fazem presentes no processo da mesma. Otto a descreve como a relação com o sagrado, como um reconhecimento e apelo a seres superiores e transcendentes, como a experiência de uma realidade outra que se manifesta na consciência do crente. Esta experiência pode ser incorporada nos mitos e ritos e preservada por um grupo de especialistas (igrejas).

Na experiência religiosa vivida, um poder estranho, totalmente diferente, insere-se na vida da pessoa. Diante dela, a atitude da pessoa é primeiro de espanto, depois, de fé. A experiência religiosa não consiste apenas de afirmações racionais e de princípios morais; há no divino um aspecto inefável, percebido pelo sentimento como realidade sagrada, como mistério terrível e fascinante: "eu tenho medo dele e ao mesmo tempo ardo por ele" (Sto. Agostinho). A relação com o sagrado desperta no crente múltiplos sentimentos. Estes sentimentos não são produzidos pela consciência, mas são o efeito subjetivo da presença, no eu, de uma realidade diferente do próprio eu: o numinoso.

Segundo Otto, o numinoso é a absoluta potência e alteridade, o majestas, diante dele o crente se sente pó e cinza; é um mistério escondido, extraordinário, percebido pelo sentimento

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religioso, não pela razão; é um mistério tremendo: desperta sentimentos de temor e tremor, é a ira ou indignação de Javé, é a base para o conceito de justiça divina; é um mistério em que se manifesta uma absoluta energia, vitalidade, paixão; é um mistério fascinante, atrai porque é amor, misericórdia, piedade, conforto. A manifestação do numinoso pode despertar sentimentos de maravilha, estupor, surpresa, descontentamento, faz ficar sem palavras; é inquietante. O numinoso é Augustum, impõe respeito racional.

A experiência religiosa é um encontro com este "numinoso", com o "mysterium tremendum". Quando a alma se põe em contato com este, experiência um sentimento de ser criatura. Sentimento este que é a sombra do sentimento de medo, pelo fato de o "numinoso" ser um objeto que está fora da pessoa e dele emanar uma superioridade esmagadora de poder. O "numinoso" é de tal natureza que cativa e emudece a alma humana que o experimenta.

Na experiência religiosa ocorre o seguinte processo: sentimento de terror, terror que a manifestação do sagrado inspira, terror dos deuses: deus é um deus que castiga, vigia para ver seu procedimento, pune; sentimento de devoção: desencadeia um comportamento moral e de compromisso com o que a divindade espera do crente; adoração: o crente fica em êxtase diante da divindade e, como resposta, coloca-se em relação de amor com todas as criaturas. As pessoas, em suas experiências religiosas, podem se situar em qualquer uma destas fazes.

Muitas pessoas remetem as causas dos seus males, tais como: doenças ou qualquer situação difícil a alguma entidade sagrada. Esta prática faz com que as pessoas se sintam liberadas da necessidade de enfrentar suas próprias fragilidades. Se não são elas as responsáveis pelas calamidades que atingem suas vidas, mas a origem do bem e do mal está no sagrado, também será este sagrado que deverá solucionar seus problemas. O "Espírito mau" pode ser a origem do mal, enquanto o "que é de Deus", o "Espírito bom", pode ser a origem do bem e da solução do mal.

É na experiência do sagrado que se pode encontrar sentido para a vida, com seus males e seus bens. Este fator faz com que as pessoas, ao não querer ou não poder enfrentar suas fragilidades e responsabilizar-se para resolvê-Ias, possam também culpar o sagrado pelos seus fracassos. Isto Ihes permite permanecer de cabeça erguida mesmo nas situações mais difíceis.

Através da experiência religiosa, o sagrado se incorpora nas coisas, nas pessoas ou nas situações, tornando-as também sagradas. Uma vez que coisas, pessoas e situações pertencem ao âmbito do sagrado, ninguém é responsável por elas, pois o sagrado foge ao controle e não se deve interferir em seu curso normal. A partir desta concepção, a experiência religiosa pode legitimar a manutenção de uma situação de opressão (é Deus quem quer assim). Mas pode também legitimar a luta por mudanças sociais (esta situação não está conforme a vontade de Deus, portanto deve ser mudada).

BIBLIOGRAFIA

ELlADE, Mircea. O sagrado e o profano, a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna: entre a secularização e a dessecularização. Trad. Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 1995. OTTO, Rudolf. O sagrado. Trad. Prócoro Velasques Filho. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista & Ciências da Religião, 1985.

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MITO, SÍMBOLO E RITO MITO: ALGO REAL OU PURA INVENÇÃO?

A concepção de sagrado muitas vezes é traduzida através de mitos; e a forma de relações entre a pessoa e o sagrado normalmente é favorecida pelos diferentes ritos.

Segundo Eliade (1972, p.7-23), o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do "princípio". Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma "criação": ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser.

O mito fala apenas do que "realmente" ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos, sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos primórdios.

Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade, ou simplesmente a "sobrenaturalidade" de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado ou do sobrenatural no mundo. E mais, é em razão da intervenção dos Entes Sobrenaturais que o ser humano é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural.

O mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma "história verdadeira", porque sempre se refere a realidades que estão sendo vivenciadas pelas pessoas. O mito cosmogônico é verdadeiro, porque a existência do mundo aí está para comprová-Io; o mito da origem da morte é igualmente verdadeiro, porque é provado pela mortalidade humana, e assim por diante.

Pelo fato de relatar as "gesta" dos Entes Sobrenaturais e a manifestação de seus poderes sagrados, o mito se torna o modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas.

Conhecendo o mito, conhecemos a origem das coisas, chegando-se conseqüentemente a dominá-Ias e a manipulá-Ias à vontade; não se trata de um conhecimento exterior, abstrato, mas de um conhecimento que é vivido ritualmente, seja narrando cerimonialmente o mito, seja efetuando o ritual ao qual ele serve de justificação.

Viver os mitos implica, pois, uma experiência religiosa, pois ela se distingue da experiência ordinária da vida quotidiana. Nessa experiência, deixa-se de existir no mundo de todos os dias e penetra-se num mundo transfigurado, auroral, impregnado dos Entes Sobrenaturais. Os mitos revelam que o mundo, as pessoas e a vida têm uma origem e uma história sobrenaturais, e que essa história é significativa, preciosa e exemplar.

Outra definição interessante de mitos que encontramos é a de Malinowski (1984, p.224-230). Este autor, ao tentar demonstrar a natureza e a função dos mitos nas sociedades primitivas, afirma que o mito é uma narrativa que faz reviver uma realidade primeira, que satisfaz as profundas necessidades religiosas, aspirações morais, as pressões e imperativos de ordem social, e mesmo as exigências práticas.

Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma função indispensável: ele exprime, enaltece e codifica a crença; salvaguarda e impõe os princípios morais; garante a eficácia do ritual e oferece regras práticas para a orientação humana. Mito, portanto, é um ingrediente vital da civilização humana. Longe de ser uma fabulação vã, ele é ao contrário, uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática.

BIBLIOGRAFIA

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. Trad. Joaquim Pereira Neto. S.P.: Paulinas, 1989. ELlADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. S.P.: Martins Fontes, 1992. MALlNOWSKI, Bronislaw Kasper. Argonautas do Pacífico Ocidental. Trad. Anton P. Carr e Ligia Aparecida Cardieri Mendonça. São Paulo: Abril Cultural, 38 ed., 1984. O'DEA, Thomas F. Sociologia da religião. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Pioneira, 1969. OTTO, Rudolf. O sagrado. Trad. Prócoro Velasquez Filho. São Bernardo do Campo, Imprensa Metodista, 1985.

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COMPARAÇÃO ENTRE MITO – SÍMBOLO – RITO

mitos símbolos ritos origem realidade humana

realidade social Há uma realidade humana e social cheias de interrogações, injustiças sofrimentos e

angústias; uma forma de dar sentido a elas é deixá-las em contato ou vinculá-las ao sagrado, assim deixa-se de precisar procurar os ‘porques’. Sendo assim, cria-se uma estória relacionada com a origem, ligada com uma entidade sagrada � mitos. Estes são gerados por um lento e amplo processo cultural e quando gestados são legitimados pelas questões colocadas pela própria cultura (presente com valores, sentidos e questões que a sociedade quer para si, isso a legitima). O mito é uma narração que por si só leva sua mensagem, se precisar dar explicações sobre o conteúdo do mito ou ele não está mais explicitando a realidade da sociedade ou a sociedade perdeu vínculo com ele. Quando se estuda os mitos, existem duas perguntas a serem respondidas: ‘qual a realidade social humana presente?’ e ‘qual o recado/mensagem que ele devolve para a sociedade?’

Símbolo vai in vocar: Rito - o significado do mito - uma imagem - um sentimento - uma realidade humana e social - pode falar por ele mesmo, exemplo: o presépio evoca a história de Jesus

- através da ação, revive o conteúdo do mito; - atualiza, faz acontecer novamente o evento; - e junto com isso a realidade humana (� atualização � eficácia) e dá sentido a esta realidade

FENÔMENO RELIGIOSO: SEITAS E IGREJAS As pessoas, nas diferentes comunidades, elegem um local privilegiado onde o sagrado se

concentra. Pode ser uma pessoa, um lugar, uma árvore, um rio, um objeto ou outro símbolo qualquer que evoque uma experiência religiosa primordial, e onde as pessoas crêem que o sagrado ali permanece. É nesses locais que o sagrado se manifesta, se revela, onde ocorre a hierofania.

A hierofania pode ir desde a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra ou uma árvore, até a hierofania suprema para um cristão, que é a encarnação de Deus em Jesus Cristo. As almas, os deuses e os demônios, isto é, os poderes sobrenaturais na maioria das vezes são concebidos desta forma.

A regulação entre estes seres sobrenaturais e as pessoas humanas é que constitui o domínio da ação religiosa, surgindo então o que denominamos como o fenômeno religioso. A palavra fenômeno vem do grego "tà phainàmenon", significa "aquilo que aparece", "aquilo que se mostra". Portanto, fenômeno religioso significa um sagrado que se mostra, que se revela.

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Ao conjunto de concepções do sagrado, dos mitos que explicitam como se dá a presença do sagrado no mundo e dos rituais criados para favorecer as relações das pessoas com o sagrado é que se denomina "religião" Muitas pessoas: benzedeiras, pajés, curandeiros, pais e mães de santo, pregadores populares, puxadores de rezas etc. acreditam ser eles próprios os objetos da hierofania. A compreensão de que Deus se serve deles para se manifestar Ihes dá a certeza de legitimidade e de exclusividade ao realizar sua missão.

Uma vez entendendo-se como objetos da hierofania, as pessoas passam a desenvolver formas de conduzir outras pessoas a fazer parte de seu sistema de crenças. Para isto, criam uma série de gestos, palavras e objetos sagrados, ou seja, criam ritos que possam favorecer a experiência religiosa das outras pessoas e levá-Ias a alcançar as graças esperadas.

Muitas vezes estas pessoas que se acreditam como objetos da hierofania e criam ritos para favorecer a experiência religiosa de outras pessoas acabam por criar novas religiões. Weber denomina estas pessoas como carismáticas, ou seja, pessoa dotada de carisma. Segundo Weber (1991, 158-167), carisma se refere a qualidade pessoal, considerada extracotidiana, em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, poderes extracotidianos específicos, ou então se a toma como enviada de Deus, como exemplar, portanto, como líder. O reconhecimento de uma pessoa como carismática pode resultar em uma entrega crente e inteiramente pessoal, nascida do entusiasmo ou da miséria e esperança da pessoa que o reconhece como tal.

Weber (1991, 158-167) afirma ainda que, em sua forma genuína, a relação entre a pessoa carismática e seus seguidores é de caráter especificamente extracotidiano. É uma relação estritamente pessoal, ligada à validade carismática de determinadas qualidades pessoais do carismático e à prova destas. Quando esta relação assume o caráter de uma relação permanente, formando uma comunidade de correligionários, é necessária uma modificação substancial: institucionaliza-se o carisma.

A institucionalização do carisma se torna necessária, uma vez que há um interesse ideal e material dos seguidores, em continuar a existência da relação. A continuidade do exercício do carisma exige que este seja colocado sobre fundamentos cotidianos duradouros: organizado juridicamente e economicamente.

Esta necessidade se torna mais nítida quando desaparece a pessoa portadora do carisma e surge a necessidade da sucessão. O resultado da rotinização do carisma pode desembocar em instituições de tipo igrejas. Ou seja, os discípulos do carismático institucionalizam o carisma: criam um corpo doutrinal, práticas cultuais e uma organização sacerdotal, isto é, uma igreja.

A doutrina se distingue do mito por ser mais orgânica, argumentativa e racional, além de estar voltada para a interpretação da realidade. A passagem de mito à doutrina segue vários estágios: coletas dos mitos espalhados num único ciclo, formação de ciclos de mitos homogêneos, consolidação de um verdadeiro e próprio corpo doutrinal: a teologia.

Este discurso racional sobre o divino, a teologia, é guardada em livros sagrados. Os sacerdotes têm a função tanto de compor o discurso racional sobre a divindade como a de guardiões da tradição teológica. Os textos sagrados passam por um processo de interpretação e comentários, a fim de se tornarem mais compreensíveis mesmo nas mudanças de condições históricas.

Este processo de interpretações e comentários dos textos sagrados é realizado por diversas escolas teológicas, às vezes em forte conflito devido à preferência dada a uma ou outra das três questões principais da teologia:

Deus, o mundo e o homem. Este fator muitas vezes gera rupturas e a formação de outras igrejas.

Quanto as formas organizadas de ação na sociedade, as organizações religiosas se compõem em: Igreja, seita e misticismo.

As igrejas se caracterizam mais por uma atitude de tolerância para com as estruturas do mundo que são "conseqüências do pecado", por tentativas de remediá-Ias, sem, contudo, deixar de rejeitá-Ias intimamente. As igrejas tendem à universalidade, isto é, ter a mesma extensão da sociedade; acolhem todas as pessoas e Ihes distribui os meios da graça. Esta função integradora das igrejas exige que estas mantenham um compromisso com as diversas formas de

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comportamento existentes numa dada sociedade e a aceitar os principais elementos presentes na estrutura social existentes. As igrejas caracterizam-se ainda por uma estruturação hierárquica interna.

As seitas apresentam-se como grupos que adotam atitudes de intransigências para com o "mundo", isto é, rejeitam comportamentos e instituições das sociedades às quais pertencem, julgando-os corruptos. Os membros das seitas se propõem à obediência literal dos textos sagrados, desprezando as adaptações aceitas pelas igrejas. Por não aceitarem compromissos com o mundo, chegam a se isolarem da sociedade, permanecendo na expectativa do iminente reino de Deus. Os membros da seita visam à perfeição individual e ao ascetismo. A seita é hostil ou indiferente ao Estado e contrária à ordem eclesiástica.

O Misticismo representa o polo da religiosidade de tipo individual; designa a procura de uma experiência religiosa de tipo íntimo que acontece freqüentemente em grupos bem pequenos, os quais se distanciam abertamente, bem mais que a seita, da tradição religiosa eclesial. O misticismo é a tradição individual do protesto contra a redução da experiência religiosa a formalismos nos ritos, a racionalismos nas doutrinas, a burocracias na organização eclesial.

BIBLIOGRAFIA

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Trad. Sergio Miceli et aI. São Paulo: Perspectiva, 1974. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. Trad. Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Paulinas, 1989. ELlADE, Mircea. O sagrado e o profano, a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna: entre a secularização e a dessecularização. Trad. Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 1995. O'DEA, Thomas F. Sociologia da religião. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Pioneira, 1969. OTTO, Rudolf. O sagrado. Trad. Prócoro Velasques Filho. São Bernardo do Campo, Imprensa Metodista & Ciências da Religião, 1985. WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Barbosa. Brasilia: Universidade de Brasília, 1991.

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RELIGIÃO: CAMINHO PELA HISTÓRIA PAPEL SOCIAL DA RELIGIÃO NAS SOCIEDADES TRIBAIS

Sociedades tribais: organização do trabalho (caça, pesca e coleta). Esta forma de

produção exige um rígido controle do equilíbrio entre a densidade demográfica e a extensão de território disponível para extrair o alimento necessário à sobrevivência.

O principal meio de produção é a florestas, as águas e a terra. Tem como base um sistema de trocas regulado pelas relações de parentesco.

Organização social em famílias ou aldeias e clãs. O clã representa o espaço social, estruturado por um sistema de parentesco, que constitui a entidade social de referência à qual se identificam os indivíduos ou grupos.

É no nível do clã que se situa a instância da autoridade, que gera o uso do principal meio de produção (a terra), que resolve os conflitos importantes e ordena as atividades comuns ao conjunto dos grupos familiares. É no seio dos clãs que se dão os intercâmbios de mulheres.

As extensas famílias que compõem o clã possuem grande autonomia em relação à organização da vida material, de tal forma que se constituem em unidades auto-suficientes tanto no plano da organização da produção como no plano da distribuição do produto social.

As sociedades tribais são os primeiros sistemas em que aparecem as conotações religiosas como explicadoras e legitimadoras das relações sociais. As significações religiosas são de dois tipos: as que se elaboram em torno dos fenômenos da natureza e as ligadas às expressões sociais do grupo.

As representações religiosas elaboradas em torno das relações da pessoa humana com a natureza apresentam uma analogia. As forças da natureza são personificadas nos seres, tornando-os bons ou maus ou até mesmo ambivalentes.

Alguns clãs do sul da índia representavam as forças da natureza sob a forma de uma multidão de espíritos organizados por um chefe e dotados de uma vontade e uma inteligência superiores às das pessoas humanas.

Estes espíritos, ao seu bel-prazer, também eram eventualmente capazes de fazer o mal. Tratava-se sempre de espíritos ambivalentes, que podiam ser bons ou maus. O bem não era o contrário do mal, mas apenas sua ausência.

Desse modo a natureza apresentava-se como uma realidade boa em si mesma, que era perturbada por esses gênios na intenção de fazer o mal, não somente aos humanos, mas também aos animais e vegetais e a tudo aquilo que tem vida.

Por este motivo as pessoas procuravam se proteger de sua maldade, desenvolvendo práticas que visavam agradar ou afastar os perturbadores. Algumas vezes ofereciam alimentos a tais espíritos ou então, os criadores de gado imolavam uma vítima, na esperança de poupar outras.

Quando se tratava de preservar vidas humanas (em casos de doenças) intervinha no ritual um mediador capaz de entender e interpretar os sinais pelos quais a divindade (desta vez era a divindade e não os espíritos) comunicava o tratamento a ser seguido.

As religiões dos povos tribalistas são de caráter animista. Não procuram desvendar a relação entre causa e efeito que está na base da ordem das coisas.

Suas construções simbólicas têm a função de agir simplesmente ao nível dos efeitos. Neste sentido, o animismo corresponde às necessidades de sobrevivência imediata dos indivíduos e dos grupos. Trata-se de uma função de proteção desempenhada pela religião.

A vontade da pessoa humana pode influenciar as forças da natureza por meio de práticas rituais de natureza mágica. O objetivo destas práticas é o de neutralizar as forças adversas agindo direta e eficazmente sobre elas, o que geralmente exige a intervenção de um agente religioso, o feiticeiro, como mediador.

Atribuindo um sentido à natureza, a construção religiosa reduz a contradição que o grupo experimenta em sua vida cotidiana, dotando o próprio grupo de um meio para conjurar os efeitos de fenômenos cujas causas objetivas ele não domina. Assim, a religião preenche a função social de proteção e de reguladora das relações sociais de parentesco.

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As representações religiosas ligadas às expressões sociais do grupo têm como base o totem. O totem é um significante que remete a vários significados: representa o grupo enquanto unidade social; e, sendo o lugar de residência do divino, torna-se o meio através do qual é transmitida a vida cósmica ao grupo e a cada um de seus membros, na medida em que a ele se associam.

Como o totem é um elemento natural (planta ou animal), também constitui o ponto de encontro entre a ordem transcendental e a ordem da natureza: A vida (transcendental) permanece inatingível, e é representada pelo deus sem nome, na Tanzânia, ou pela floresta, pelos pigmeus. Mas encontrava em Cheyon (um totem) uma mediação eficaz, já que este se encontrava na fonte da vida concreta. O medium na transmissão da vida era a árvore totem, pois a divindade nela habitava.

Quando o clã é sedentário, o totem constitui também o lugar em que se articulam o passado e o presente: a presença dos antepassados do clã é simbolizada em torno do totem. É à unidade do clã que é concedido o sentido reproduzido em todas as linhagens pela mediação das práticas religiosas.

O intercâmbio de mulheres, prática necessária à sobrevivência das tribos, criava situações muito complicadas, uma vez que estes intercâmbios envolviam o acesso aos meios de produção ou a divisão destes. A unidade do clã, mesmo com o intercâmbio de mulheres com outros clãs, é indispensável para a sobrevivência do grupo.

É precisamente para superar as contradições criadas por ocasião dos intercâmbios de mulheres que intervém a produção simbólica. Esta construção se dá através do conceito de vida.

No caso dos Kuravas, da índia, a construção simbólica fazia o divino aparecer como catalisador da vida cósmica. Esta vida era transmitida pela mediação de um símbolo, o totem, que era o ponto de encontro entre o cosmos, a ordem social e a natureza.

É o conjunto do clã que recebe a vida; cada grupo familiar ou cada indivíduo só participa desse dom na medida em que pertença a essa totalidade.

Há, portanto, uma inter-relação entre a necessidade de sobrevivência dos clãs e a necessidade de sobrevivência de cada família ou indivíduo. Se um deles perecer, os outros também não sobreviverão.

Pode-se perceber, assim, a incidência do modo de organização social e a predominância do sistema de parentesco sobre a produção simbólica. A organização simbólica, por sua vez, também desempenha a função de acentuar o caráter harmonizador das relações sociais, desenvolvendo nos grupos familiares e nos indivíduos o sentimento de pertença à totalidade do clã.

Ela também expressa valores que correspondem à necessidade de sobrevivência do grupo (fecundidade e solidariedade). O sistema de crenças ao mesmo tempo em que vem criar e reforçar a unidade do grupo, também é reforçado por ela.

BIBLIOGRAFIA

HOUTART, François. Religião e modos de produção pré-capitalistas. Trad. Álvaro Cunha. São Paulo: Paulinas, 1982.

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FUNÇÃO SOCIAL DA RELIGIÃO NO FEUDALISMO O feudalismo é semelhante ao modo de produção tributário. Isto porque é ainda o poder

político que organiza a economia e se apropria de um tributo em espécie e em serviço. Estas taxas são fixadas sobre a produção dos grupos de base.

No entanto, diferencia-se também do sistema tributário. A diferença se dá pelo fato de que a arrecadação do tributo apresenta-se como um direito, uma vez que os meios de produção pertencem às instâncias de poder (rei ou senhor feudal) e não mais às bases produtoras (camponeses).

O senhor é o proprietário do meio de produção (terra). O produtor possui os instrumentos de trabalho e o direito de uso dos meios de produção, mas que deve prestar serviços ao senhor.

As relações trabalhistas não têm mais como centro as aldeias, mas os indivíduos: senhor/camponês. No entanto, as aldeias continuam sendo quem organiza o trabalho, constituindo grupos nos quais se forjam as solidariedades.

O poder político-econômico não é exercido diretamente do rei ou senhor feudal para seus súditos. Existe uma hierarquia de delegação de poderes. O rei ou senhor feudal delega a função de oferecer favores ou punir seus dependentes a uma escala de intermediários. Esta escala vai desde o chefe do grande feudo, passa pelos chefes das federações de vilas, aos chefes de clãs, etc.

No feudalismo existe uma contradição que não encontra sua justificação ao nível da produção material do grupo; ou seja, uma vez que o grupo produz o necessário para sua sobrevivência sem o auxílio do senhor feudal, nada justifica que tenha a obrigação de repassar todo excedente para o dono do feudo.

Nas sociedades feudais, a cobrança do tributo não é justificada pela contrapartida de uma proteção, como nas sociedades tributárias. Assim, é preciso uma poderosa produção ideológica para que os servos o admitam como natural e necessário à sobrevivência da ordem social global.

Para conseguir justificativa para seu funcionamento, a sociedade feudal buscou a religião como um de seus apoios ideológicos. Os dirigentes buscavam a explicação e legitimação de sua própria excelência, enquanto os dominados encontravam razões para aceitar sua condição, na esperança de uma compensação de natureza pós-histórica.

Uma das formas de legitimar religiosamente o sistema feudal foi criar a idéia de panteão de deuses, organizados hierarquicamente. Neste sistema, a divindade principal normalmente tinha o poder de conceder favores ou fornecer castigos a seus fiéis. Este poder da divindade principal coincidia com os poderes que o rei ou o senhor feudal detinham sobre seus subordinados.

No caso de feudalismo Kandyano, do século XVII, no Sri Lanka, houve a formação de um sincretismo entre as religiões budista e hinduísta. O panteão criado neste sincretismo apresentava uma verdadeira pirâmide divina. No ápice da pirâmide estava Buda, considerado como ser sobrenatural, do qual não se podia esperar favores espirituais e materiais; mas abaixo de Buda podia-se encontrar as divindades.

Em primeiro lugar, Sakra, protetor do universo budista (a Sansana), que delega seus poderes a Saman. Este, juntamente com Vichnu, Skandha, Nata e Pattini, fazem parte do Hatara Varan Deiyo (panteão das divindades nacionais), encarregado de defender a fé e proteger o reino. Estes são deuses no sentido convencional do termo: podem conceder favores e punir pecados. Abaixo dessas divindades nacionais, encontram-se as divindades locais, correspondentes aos Patus (grupos de aldeias) ou às aldeias (que são so Bandara Deiyo ou deuses senhores) que protegem as comunidades locais.

No nível mais baixo da escala colocam-se os demônios, os pretas, espíritos maus dos ancestrais pecadores, punidos por causa do seu mau Karma. Eles são as causas de todos os males, considerados como punições não racionais. Entretanto, eles necessitam dos homens para serem resgatados. Essa hierarquia celeste é homóloga à hierarquia existente ao nível sócio-político, pois reproduz a estrutura do poder. As divindades do templo são representadas em uma posição idêntica àquelas que os homens são obrigados a guardar nas cerimônias de juramento aos reis ou aos senhores. O status da divindade corresponde ao seu nível moral, atingido pela acumulação de bens espirituais (seus méritos, adquiridos no curso de cada vida temporal).

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Se a divindade obtém seu status por seus méritos, subentende-se que os reis ou senhores feudais também. Por este motivo, assim como as divindades merecem respeito, consideração e oferendas, também os reis e senhores feudais merecem, pois fizeram o mesmo caminho que a divindade.

Desta forma, o rei ou senhor feudal continua sendo um homem, mas um homem especial, que depende diretamente das divindades protetoras: os reis são vistos como deuses e os deuses são vistos como reis.

Esta escala "moral" inclui não apenas as divindades, mas também o conjunto dos homens. Cada qual ocupa uma posição nesse espaço temporal-espiritual em função de seu Karma em uma vida anterior.

Nos países europeus, a legitimação do sistema feudal se deu via cristianismo. A lógica teológica criada no cristianismo não difere muito da fornecida pelo sincretismo budista e hinduísta. No período feudal europeu foi estabelecido a hierarquia celeste cristã que conhecemos até hoje.

Na hierarquia celeste cristã, acima de todos está o grande Deus, formado por três pessoas distintas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Estas três pessoas compõem uma única divindade que é, ao mesmo tempo, onipresente, onisciente e onipotente (tal como o rei ou o senhor feudal). Esta divindade tem o poder tanto de conceder favores espirituais e materiais como de punir os pecados da humanidade.

Embora não havendo divindades menores na teologia cristã, há no entanto, no âmbito do sagrado, entidades menores (anjos e santos). Estas têm a função de proteger a humanidade e interceder junto à divindade maior, visando obter seus favores ou acalmá-Ia para que não venha a punir seus fiéis.

Além dessas entidades intermediárias, existem outras entidades muito mais próximas das pessoas comuns, com as mesmas funções dos anjos e santos. Estas entidades próximas, por sua vez, também organizam-se de forma hierárquica. São os diferentes representantes da divindade aqui na terra, atuando concretamente na instituição Igreja: Papa, Cardeais, Arcebispos, Bispos, Padres, Religiosos/as (monges, freiras).

Por último, nesta hierarquia, encontram-se os simples mortais, que dependem da hierarquia divina para "ir bem" tanto nesta vida como em um tempo vindouro (pós-morte). Para conseguir estas graças, devem servir a todos os outros que se colocam acima deles na hierarquia divina.

Embora não haja no cristianismo a noção de Karma, há a noção de pecado/castigo. Se estou em uma posição inferior na sociedade é porque cometi (ou alguém de minha família cometeu) algum ato que desagradou a Deus, por isto estou sendo punido.

BIBLIOGRAFIA

HOUTART, François. Religião e modos de produção pré-capitalistas. São Paulo: Paulinas, 1982.

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A INSTITUIÇÃO RELIGIOSA NA (PÓS)MODERNIDADE Escrito por Cláudia Sales de Alcântara[1]

[EXTRATO] [...] III – A MODERNIDADE E A SECULARIZAÇÃO DA SOC IEDADE A religião institucionalizada não conseguiu tornar a sociedade mais justa, livre e igualitária e nem conseguiu responder às questões existenciais da humanidade, fazendo com que o ser humano, insatisfeito com as imposições feitas pela igreja, buscasse encontrar explicações concretas para o que antes era explicado de forma abstrata. O aumento do comércio e, por conseguinte, o surgimento do capitalismo, o descobrimento de novos “mundos”, o aparecimento da imprensa (século XV) e de novas tecnologias, abalaram de vez o sistema feudal. A fragmentada sociedade feudal da Idade Média transforma-se então, em uma sociedade dominada, progressivamente, por instituições políticas centralizadas, com uma economia urbana e mercantil. Estas novas mudanças foram aos poucos modificando a mentalidade teocêntrica da humanidade; a célebre frase de René Descartes, "Cogito, ergo sum" (Penso, logo existo), resume o resultado dessas transformações. O Renascimento (século XIV) e o Iluminismo (século XVIII), a Reforma Protestante (século XVI) e a Revolução Industrial (século XVIII), consolidaram de vez o novo sistema que substituiria o antigo regime feudal: o Capitalismo. No campo do pensamento, o mito e a religião foram aos poucos substituídos pelo mito do progresso científico e tecnológico (positivismo de Comte). A ascensão da burguesia e de sua ideologia (Iluminismo) levou a humanidade a utilizar-se da razão não somente para descobrir o mundo, mas também, para entenderem a si mesmos no contexto da sociedade; surgia uma cultura laica, ou seja, sem a interferência da igreja. O homem agora voltaria a ser a medida de todas as coisas. Estas concepções, contudo, estavam carregadas de esperança, com a responsabilidade de propor novas cosmovisões em substituição as antigas representações religiosas.

A desmistificação dos dogmas pelo racionalismo, proporcionando a possibilidade de uma interpretação pessoal dos textos sagrados, e a necessidade de uma nova moral religiosa que atendesse aos interesses econômicos da burguesia em ascensão (já que a Igreja Católica condenava a usura, a avareza, a cobiça, e defendia a doutrina do "justo preço", o que contrariava o ideal burguês de obtenção do maior lucro possível), possibilitou a chamada Reforma Protestante.

A ética protestante, ao contrário da católica, valorizava a competitividade e a busca do lucro, ajustando-se, portanto, aos ideais burgueses daquele momento histórico em que se desenvolvia o capitalismo, como afirma Max Weber:

"Mas o que era ainda mais importante: a avaliação religiosa do infatigável, constante e sistemático labor vocacional secular, como o mais alto instrumento de ascese, e ao mesmo tempo, como o mais seguro meio de preservação da redenção da fé e do homem, deve ter sido presumivelmente a mais poderosa alavanca da expressão dessa concepção de vida que aqui apontamos como espírito do capitalismo". (WEBER, 1989, p. 123).

Por este motivo, aos poucos, a Igreja Católica Romana precisou rever suas concepções e

adequar-se a essa nova estrutura social, política e econômica com uma nova mentalidade, cada vez mais distante da medieval (Contra Reforma). Estas mudanças caracterizaram-se por um movimento de reafirmação dos princípios da doutrina e da estrutura da Igreja, corrigindo, desde o seio da Igreja, as fontes de descontentamento que alimentavam a Reforma Protestante. As instituições religiosas, contudo, perdem o poder de dar “as cartas” no mundo moderno; já não possuem a hegemonia da cultura, do Estado e das instâncias reguladoras do cotidiano. Nesta nova realidade, não era mais a religião que dava sentido ordenador da realidade social, com suas mediações, mas a própria interdependência de escolha racional centrada no ser humano. Deus estava agora presente na natureza, portanto no próprio homem, que poderia agora descobri-lo através da razão. Para encontrar Deus, bastaria levar uma vida piedosa e virtuosa (moral kantiana); a Igreja torna-se dispensável.

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IV – A INSTITUIÇÃO RELIGIOSA EM MEIO À PÓS-MODERNID ADE Mircea Eliade em seu livro, O sagrado e o Profano, a essência das religiões, afirma que “seja qual for o grau de dessacralização que o mundo tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso” (Mircea Eliade, 2001, p. 27).

A moderna humanidade que passou por um grande processo de dessacralização e secularização, não conseguiu proporcionar um mundo mais justo através da razão. O avanço teológico e a ciência, em vez de proporcionarem a solução de todos os males da sociedade, mostraram-se incapazes de superar as contradições da convivência social. O desenvolvimento do capitalismo “selvagem”, as duas grandes guerras mundiais, a utilização da bomba atômica, os riscos da industrialização para a ecologia, entre outros, mostrou a ineficácia da razão como “salvadora da pátria”, fez-se então necessário um retorno aos antigos referenciais que tinham sido ignorados na modernidade; é neste contexto que nasce o que chamamos de pós-modernismo, como afirma Eduardo Subirats:

“Em torno de todo jargão do Pós-moderno desenvolvem-se atitudes culturais de signo regressivo. Assim se passa com o nacionalismo que se ampara por detrás dos historicismos nostálgicos ou dos diferentes regionalismos; assim, a busca de valores substanciais, de uma ordem ética ou estética transcendente, através da reivindicação do tradicional, do retorno a formas de pensamento religioso e da defesa de uma autonomia de princípios morais também de signo transcendente”. (SUBIRATS, 1991)

As igrejas tinham encastelado Deus a tal ponto que ele se tornou impotente diante das necessidades do mundo. Este período é então caracterizado pelo aumento da insegurança (pois todas as certezas em que estava embasada a sociedade “caíram por terra”), do relativismo de qualquer conhecimento (negação de verdades universais da racionalidade), da globalização e da retomada do interesse pelas concepções religiosas, como uma tentativa de “achar um sentido do mundo acessível à compreensão humana” (Max Weber 1982, p. 625). O retorno da religião (sentimento religioso) neste aspecto pode ser visto como um fenômeno periódico que se utiliza à religião em função de exigências de natureza social, como afirma Franco Crespi:

“De fato, a religião se apresenta como uma forma de mediação especifica, que leva em conta o caráter ilimitado do desejo humano e explica o mundo finito, colocando-o em relação com o horizonte infinito de um além-mundo, que assim se torna parte constitutiva da própria vida terrena”. (CRESPI, 1999, p. 15).

Embora as instituições religiosas, neste momento, continuassem não possuindo poder de regular o universo cultural, social e pessoal, os indivíduos continuaram a viver dimensões do sagrado de formas bem particulares (subjetividade), podendo ser estas dimensões observadas nas atitudes políticas, esportivas e culturais, ganhando assim uma nova dinâmica fora das Igrejas, tornando-se mais presente do que nunca na sociedade contemporânea ( nas Ong’s, manifestações culturais, associações comunitárias, no Greenpeace, nos clubes esportivos, etc.). Esta dimensão do sagrado é fortemente caracterizada por um retorno ao sentimento religioso (mostrado na primeira parte deste artigo), ou seja, um retorno às experiências emocionais, mesmo que o individuo não seja consciente do fato, como podemos observar na colocação de Mircea Eliade:

“Existem, por exemplo, locais privilegiados, qualitativamente diferente dos outros: a paisagem natal ou sítios dos primeiros amores, ou certos lugares na primeira cidade estrangeira visitada na juventude (...) são os “lugares sagrados” do seu universo privado (...)” (Mircea Eliade, 2001, p. 28).

Com o enfraquecimento da religião institucional, já pré-anunciada pelos teólogos da morte de Deus, o ser humano sente-se agora livre para buscar, de forma autônoma, seu próprio universo de significações em um mundo fragmentado (sincretismo). “Assim, o pluralismo religioso torna-se, simultaneamente, fator e resultado da secularização” (PIERUCCI, 1997, p. 115), abrindo caminho para a concorrência entre diversas instituições religiosas que se lançam em uma competitividade, utilizando-se das mesmas operações da economia de mercado capitalista e fazendo com que a religião, que no período medieval moldava o mundo, seja moldada pelo “gosto do freguês”. O que resta na sociedade pós-modernista é a presença simultânea de várias instituições religiosas (cristãs ou não), convivendo entre si, não mais influenciando o todo social, pois os

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seres humanos não se identificam mais com discursos universais, mas atuando de maneira coadjuvante, influindo, ainda que em menor escala, os fundamentos da sociedade.

São nesses momentos de “morte” institucional que a experiência religiosa ganha novos sabores. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como foi dito, a religião continua a existir na pós-modernidade nos ritos, crenças e atividades, grupos e projetos não explicitamente religiosos. As tradições continuam atuando conforme a subjetividade de cada indivíduo. A religião passa a existir na intimidade, produto da construção pessoal subjetiva e autônoma que não necessita prestar contas a uma instituição. É o fim da religião totalizante da sociedade, contudo, não significa o fim da religião na particularidade de cada indivíduo. BIBLIOGRAFIA CRESPI, Franco. A Experiência Religiosa na Pós-Modernidade. Bauru, SP: EDUSC, 1999. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. PIERUCCI, Antônio Flávio. Reencantamento e dessecularização. A propósito do auto-engano em sociologia da religião. In: Novos Estudos Cebrap, n. 49, nov., 1997. SUBIRATS, Eduardo. Da Vanguarda ao Pós-Moderno. 4. ed. São Paulo: Nobel, 1991. WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1989. NOTAS [1] Arquiteta e urbanista, formada pela Universidade Federal do Ceará – UFC, teologa pelo Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos – ICEC/ Fortaleza e mestranda em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.

[10] A secularização de uma sociedade, em seu sentido radical, pode ser entendida como um processo pelo qual a religião deixa de ser a forma de integração da cultura, particularizando-se. Ela faz com que tal sociedade já não esteja mais determinada pela religião, mas restrita a um âmbito particularíssimo do ser humano.

[11] René Descartes (1596 - 1650), também conhecido como Cartesius, foi um filósofo, um físico e matemático francês. Notabilizou-se sobre tudo pelo seu trabalho revolucionário da Filosofia, tendo também sido famoso por ser o inventor do sistema de coordenadas cartesiano, que influenciou o desenvolvimento do Cálculo moderno.

[12] A filosofia positiva de Comte nega que a explicação dos fenômenos naturais, assim como sociais, provenha de um só princípio. A visão positiva dos factos abandona a consideração das causas dos fenômenos (Deus ou natureza) e torna-se pesquisa de suas leis, vistas como relações abstratas e constantes entre fenômenos observáveis.

[13] Isidore Auguste Marie François Xavier Comte (1798 - 1857) foi um filósofo francês e o pai da Sociologia.

[14] Ele foi, juntamente com Karl Marx e Emile Durkheim, um dos modernos fundadores da Sociologia. É conhecido, sobretudo pelo seu trabalho sobre a Sociologia da religião. Escreveu a Ética protestante e o espírito do Capitalismo, nesse seu trabalho ele tinha a intenção de examinar as implicações das orientações religiosas na conduta econômica dos homens, procurando avaliar a contribuição da ética protestante, em especial o calvinismo, na promoção do moderno sistema econômico.

[15] A dessacralização do mundo é uma característica fundamental da Modernidade, já que impulsiona o processo de secularização.

[16] Nos anos 60 surgiu nos Estados Unidos uma formulação teológica conhecida exatamente como “teologia da morte de Deus”. A frase “Deus está morto”, aponta para uma constatação, a saber, a morte de valores absolutos na sociedade.

[17] Sincretismo - Palavra originada do grego; significa sistema que consiste em conciliar os princípios de várias doutrinas ou filosofias. http://www.ftl.org.br/index.php?view=article&catid=35%3Aartigos-online&id=81%3Aa-instituicao-religiosa-na-posmodernidade&option=com_content&Itemid=75#_ftn14 acessado em 16 set 2010

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RELIGIÃO E CONSUMISMO: OS DEUSES NA VITRINE DA PÓS-MODERNIDADE

http://www.eternoretorno.com/2008/10/14/religiao-e-consumismo-os-deuses-nas-vitrines-da-pos-modernidade/ acessado 16 set10

No livro “Mal-estar na pós-modernidade“, Zygmunt Bauman, sociólogo polonês contemporâneo, irá discorrer sobre vários aspectos que marcam o período atual que vivemos, chamado por ele de “pós-modernidade“. Vale lembrar que este termo não é um consenso para designar a contemporaneidade, embora seja o mais usual. Como ponto de partida, Bauman faz uma releitura da clássica obra de Freud, “O mal-estar na civilização“. Freud, analisando o surgimento das primeiras civilizações, irá dizer que o homem trocou um quinhão de liberdade por um quinhão de segurança; já Bauman, olhando para o homem pós-moderno irá dizer que

este trocou um quinhão da segurança por um quinhão de felicidade. “Quinhão” aqui é uma forma de dizer, pois a busca pela felicidade não é quantificável, é uma profusa

característica marcante das pessoas nesse atual momento. Não que antes as pessoas não buscassem a felicidade, mas é que a felicidade inventada pelo modernismo, isto é, uma espécie de panacéia, torna-se peremptoriamente uma necessidade que deve ser buscada a qualquer custo por homens e mulheres pós-modernos. A dinâmica constante desse movimento se dá pelo fato da felicidade não ter um ponto de chegada, pelo contrário, a chegada parece guarnecer o cheiro do horror. Dessarte, o prazer é justamente a incessante e infrutífera busca: a ordem é obter as benesses da felicidade, mas marcada com a eterna – pelo menos no plano terreno – sensação de insatisfação, um dos principais espectros do pós-modernismo.

Consumismo e religião na pós-modernidade

Entre as várias faces da sociedade, analisadas por Bauman, que vêm passando por transformações, tais como a arte, a política, a cultura, entre outras, que perpassam sobretudo as relações humanas, também encontramos a religião. As novas organizações eclesiásticas também passam por reformulações, ou pelo menos a transformação de dogmas em eufemismos. Seus “clientes”, agora, são norteados pela necessidade de felicidade que implica em uma constante busca de “autos” realizações em vários dos aspectos “espirituais”, é possível verificar uma interessante semelhança entre o consumismo e a religião nas análises de Bauman.

Homens e mulheres pós-modernos, marcados pela crise da identidade, não precisam mais das promessas celestiais nem se importam com os castigos do fogo do inferno no mundo do além, estes já estão no plano concreto, tangível pelas capacidades de consumo de cada um. Porém, a busca pela felicidade duelando com as crises de identidade implicam em um rol de produtos de consumo para que os homens possam “curar suas personalidades”, de modo a estarem altamente capazes de beliscar as promessas de encanto que o capital oferece. Bauman nos diz que:

“A pós-modernidade é a era dos especialistas em “identificar problemas”, dos restauradores da

personalidade, dos guias de casamento, dos autores dos livros de “auto-afirmação”: é a era do “surto de aconselhamento”.

Nesse sentido, homens e mulheres pós-modernos não precisam mais de padres, pastores e sacerdotes tradicionais que falam das fraquezas do homem, eles já estão fartos de suas fraquezas e precisam de “auto-afirmação”, e mais do que isso, precisam de uma “receita” breve, rápida, curta e para o agora de como podem resolver seus males e conseguir suas satisfações. (Nesse ponto quero fazer uma nota irresistível: a difusão dos blogs também se deve aos escatológicos títulos que o internauta deve bem conhecer, tais como “Saiba como…”, “Tudo sobre…”, “Os 10 melhores/maiores…”, “Descubra aqui como…”, essas breves notas despontam acenando aos desesperados que buscam consolo na leve virtualidade)

A efígie fluida do homem pós-moderno, isto é, a busca incessante pelo acúmulo de sensações de prazer, que se produz na teia das incertezas onde o paraíso e o inferno se entrelaçam no cotidiano, cria condições para uma procura crescente por “mestres”, “gurus”, “autoridades”, ou “deuses humanos” capazes de “vender” produtos que possam intensificar as sensações de prazer. Isso não implica que as “casas divinas” fechem suas portas, mas em novas diretrizes de adaptação a essa ordem do consumo para que não se tornem obsoletas. As instituições religiosas são, antes de tudo, empresas que se confrontam com as leis – agora humanas – da economia liberal na difícil competição do mercado, competem por almas potenciais que, em troca do “conselho” para se dar bem na trama social, oferecem o que podem no momento.

A religião não desaparece do cenário, pelo contrário, intensifica-se em múltiplas religiões. Multiplicam-se os sabores da experiência com algum plano espiritual que deixa de falar o tempo todo das fraquezas humanas e passa a fomentar um indivíduo capaz de vencer os dissabores sociais. Os discursos da penitência e das autoflagelações estão fora de moda, até o Vaticano tratou de escamotear seus discursos, e já apresenta em seu rol, alusões à juventude e à diversidade de crenças e culturas. Os fiéis exigem líderes capazes de fornecer pequenos – e fáceis – conselhos. Procuram antes de tudo um “guia espiritual” capaz de satisfazer questões que a vida cotidiana vai sufocando. O sujeito

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busca sua sobrevivência em um emprego, mantém uma rotina mais ou menos fixa: acordar, ir ao trabalho, voltar para casa, bater continência a rede Globo e dormir, por vezes um pequeno lazer no fim de semana antes de iniciar a repetição; só sobram então, questões que vão remoendo em angústias e, da mesma forma que se compra um medicamento para cefaléia, homens e mulheres pós-modernos saem em busca de “consumir” especialistas espirituais que tenham a oferecer, não mais um consolo espiritual, mas uma espécie de “produto” espiritual que possibilitará uma visão mais clara e segura para que os frutos da felicidade sejam colhidos em seu melhor momento.

Percebe-se, dentro desse viés de Bauman, uma ordem do consumo norteando as religiões. As religiões perdem aquela autoridade quanto a uma ordem fundamental que mais ou menos direcionavam a vida dos indivíduos como o foi na Idade Média; céu e inferno não deixam de prevalecer enquanto dogmas, mas a necessidade é falar menos dos horrores como forma de manutenção; devem-se exaltar, agora, as qualidades humanas, ou angariar elementos, mesmo que sejam de “outro mundo”, que possibilitem a “performance” espiritual, como se fosse o “essencial” que falta para dar o sentido de completude humana.

Por outro lado, aquelas “experiências máximas” que a religião tradicional prometia, isto é, a oferenda de uma vida eterna paradisíaca além da possibilidade de superação das abjeções da vida terrena, sai de cena dos palcos sagrados e vão desfilar nas alegorias privadas das empresas de todo e qualquer tipo de produto material. A “experiência completa”, o êxtase intenso, é agora deslocado para o plano da mercadoria; um carro zero de luxo é o suficiente para superar qualquer promessa obsoleta de vida eterna. A vida eterna permanece, é claro, nas idiossincrasias de cada um, mas deixa de ser uma questão elementar quanto o é um bem material. Marx já alertava no século XIX sobre a supremacia das mercadorias escravizando a vida dos homens, hoje elas destoam graciosamente definindo as identidades pessoais.

Bauman nos diz que a cultura pós-moderna, ao alcance de todo indivíduo, desde que ele possua a moeda de troca, exige uma vida devotada ao consumismo. Longe de discursar sobre as fraquezas humanas e seus pecados, as mercadorias discursam sobre o aumento das potencialidades humanas em suas múltiplas formas e conteúdos.

Torna-se máxima das vitrines do paraíso na terra, atiçar a fragilidade dos homens e mulheres pós-modernos através de mensagens como “Você pode fazer isso”, “Todo o mundo pode fazê-lo”, “Cabe somente a você decidir”, “Se você deixa de fazê-lo, só tem de botar a culpa em você mesmo”. É fundamental no consumismo afastar qualquer projeção que não seja a ubíqua felicidade felicitando na vida terrena. Os novos profetas, diz Bauman, são aqueles recrutados da aristocracia do consumismo, que conseguiram transformar a vida numa obra de arte da acumulação e intensificação das sensações, dos bens materiais, da riqueza na terra. É desnecessário apresentações desses profetas, temos vários que estão no palco, em geral, com seus livros autobiográficos que mostram a trajetória da miséria à luxúria.

Considerações finais Aparentemente opostas, as intenções religiosas e consumistas se encontram e se abraçam num horizonte onde

os atores em busca da “experiência máxima” estão em constantes aventuras, espirituais e materiais, na eterna busca daquilo que um dia irá preenchê-los em totalidade psicofísica.

Se a religião tradicional oferecia a “experiência máxima” à custa de uma vida de miséria e privação, a versão pós-moderna da religião concilia os dogmas com a ordem liberal do consumo. Seus seguidores, embora não abandonem os dogmas, sabem muito bem que as ofertas de algum paraíso ou de um submundo de trevas já não os convencem mais a ponto de sacrificarem suas felicidades. São aceitáveis os elementos recrutados do mundo supra-sensível, como Deus, Jesus Cristo, santos e outros personagens, desde que eles sirvam para aumentar os potenciais psicológicos e físicos para conseguir acumular mais sensações de prazer oferecidas na vida terrena. Deuses e heróis mágicos perderam seu poder de sedução frente às mercadorias e à “religião do consumo”, estas sim, únicas e eficientes para promoverem a “experiência máxima” do prazer, mesmo que seja momentânea, a ponto do término de abrir uma embalagem, verificar o conteúdo, sentir o perfume do “novo” e se embriagar novamente em busca da próxima oferenda…

Assistir homens e mulheres pós-modernos em busca da felicidade é como assistir um burro correndo atrás de um alimento que vai a sua frente, bamboleando, de acordo com o trotar que afeta o montador que, em sua perniciosa astúcia, vai segurando o pedúnculo. Referências: BAUMAN, Z. O mal-estar na pós-modernidade. São Paulo: Jorge Zahar, 1998. FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). 1ª edição, Rio de Janeiro, Imago, 1974.

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MARX E A RELIGIÃO CRITICA IDEOLÓGICA

(concepção da pessoa humana)

CRITICA POLÍTICA

(relação indivíduo e Estado)

Estado abstrato -

Não existe uma igualdade real

na sociedade o indivíduo tem uma diversidade hierarquizada

⇒ conflito entre si

CRITICA ECONÔMICA

(relação indivíduo –

modo de produção capitalista)

A mercadoria de valor prático foi acrescido de valor simbólico

felicidade

Estado Burguês representante

DEUS

Onipresente

Onipotente

Onisciente

Bom

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Mercadoria produzida

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20

FREUD E A RELIGIÃO

Em O futuro de uma ilusão e O mal-estar na cultura, Freud vai voltar o seu olhar para a religião e para a cultura. Levando em conta que passara a vida ocupado em demolir ilusões, o que pergunta agora é: a que se deve o forte pendor dos homens à ilusão religiosa? Resposta: deve-se à necessidade do pai.

Para o ser humano a vida é mesmo difícil de suportar: a natureza, diz Freud, é cruel, destrói o homem fria e

incansavelmente, e a debilidade do corpo não o ajuda a enfrentá-la. A cultura, através da qual o homem se defende da natureza e dos outros homens, também lhe impõe privações.

Para tornar tolerável o seu desamparo, o homem tenta dar à vida um propósito mais elevado. A partir daí, tudo o

que acontece no mundo passa a ser visto como ‘expressão das intenções de uma inteligência superior’. Este Todo-Poderoso (Pai), embora ‘escreva por linhas tortas’, ordenaria tudo – segundo a visão religiosa – para o melhor. “A própria morte não é uma extinção, não constitui um retorno ao inanimado inorgânico, mas o começo de um novo tipo de existência que se acha no caminho da evolução para algo mais elevado”. Ao final, todo o bem estaria recompensado e todo o mal, punido, se não na realidade pelo menos em existências que iniciariam após a morte. Assim todos os sofrimentos e as agruras da vida estariam destinados a se desfazer.

‘A religião é uma tentativa de obter domínio do mundo perceptível no qual nos situamos, através do mundo dos desejos que desenvolvemos dentro de nós em conseqüência de necessidades biológicas e psicológicas. Mas a religião não pode conseguir isso. Suas doutrinas conservam a marca dos tempos em que surgiram, dos tempos de ignorância da infância da humanidade. Seu consolo não merece fé. A experiência nos ensina que o mundo não é um aposento de criancinhas.’

QUESTÃO - Por que a explicação da origem do universo faz parte de todos os sistemas religiosos? Porque esse deus-criador é chamado de pai, o mesmo pai que, com toda a sua magnificência, aparecia para a criancinha. Freud completa: ‘O homem religioso imagina a criação do universo assim como imagina sua própria origem’. E por isso se ilude. Uma ilusão não é necessariamente um erro. É sim algo que deriva de fantasias de tal modo prementes que o homem despreza a verificação e as relações com a realidade. Por exemplo: sabemos que a Terra tem a forma esférica, resultado de um processo de pensamento baseado na observação, lógica e inferências. Porém, se alguém ainda assim desejar passar pelo mesmo processo, o caminho para adquirir uma convicção pessoal permanece aberto. É isto que não acontece com a religião. Quando indagamos em que ela se funda, as respostas são: devemos acreditar por os antepassados já acreditava; possuímos provas que nos foram transmitidas desde os tempos primitivos; é proibido questionar a autenticidade. É crer ou não crer. E pronto. Aqui entra a fé. Freud sabia que a religião negava muito ao homem, acenando-lhe com satisfações futuras. A pulsão, entretanto, deve alcançar alguma satisfação direta na vida. Funções da Religião:

1. satisfazer a sede de conhecimento do homem; 2. garantir conforto na desventura; 3. estabelecer preceitos, proibições e restrições.

A religião estaria entre as medidas adotadas pelo homem para abolir o mal-estar na cultura. Porém, não é de ilusão que o ser humano deve viver. Ninguém está livre de iludir-se, mas isso é o mesmo que dizer que é de ilusão que se vive. Ao se contrapor às ilusões, que trazem sempre um conjunto de receitas para a felicidade, Freud propõe que cada um possa encontrar a felicidade a seu modo. “Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo”. Os argumentos racionais que Freud propõe não têm o objetivo de domar as pulsões. São apenas para que o homem possa enfrentar ‘a vida hostil’ entregue a seus próprios recursos. Que decida por si mesmo, sem as muletas e os narcóticos da religião. Ao se contrapor às ilusões religiosas, Freud está propondo uma nova concepção ética, baseada no valor que dá ao desejo e na primazia da sexualidade para a vida humana. A posição de Freud é: se o homem não recusasse seus desejos e suas pulsões, recalcando-os, poderia inclusive fazer uma escolha. - Texto com referências tiradas dos livros:

O futuro de uma ilusão. Sigmund Freud. O mal-estar na cultura. Sigmund Freud. ; e Freud e a religião. Sérgio Nazar David. Rio de janeiro: Zahar, 2003.

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A DOIS CLIQUES DE DEUS Sites religiosos cedem espaço a páginas pessoais recheadas de recursos inovadores,

como jogos de perguntas e respostas, templos virtuais, confessionário on-line e pedidos de orações. Revi. Das Religiões ed.15, nov.2004, p.42-47. Ed. Abril

Tanto a fé quanto a rede mundial de computadores podem ser definidas como meios de acessar aquilo que se encontra além do mundo concreto. Mas o campo de interseção entre ambas extrapola os estreitos limites dessa metáfora. Basta uma rápida pesquisa para constatar que religiões de toda espécie, desde as menos influentes até as majoritárias, já assentaram praça na web. Oração da filosofia japonesa Seicho-no-Ie para perdoar o próximo? Aconselhamentos com um pastor via e-mail? Download da Bíblia? Jogos com temas cristãos? Lista de discussão sobre Espiritismo? Pense em qualquer um desses assuntos e tenha a certeza de que o mesmo se encontra logo ali bem ao alcance do teclado do seu computador. Com cerca de 600 milhões de máquinas interligadas no espaço virtual, as opções proliferaram. Só o buscador Yahoo! registra mais de 10 mil sites brasileiros na categoria espiritualidade e religião. No Orkut, existem mais de 5 mil grupos sobre o tema.

FÉ INTERATIVA

Houve época em que algumas correntes entre os evangélicos, hoje exímios na propagação de suas

mensagens pela mídia, condenavam a televisão. Para elas, o aparelho transmitia a “imagem da besta”. Sinal

dos tempos: um dos sites religiosos pioneiros no Brasil, em 1996, pertencia a uma doutrina evangélica, a

Igreja Presbiteriana.

De lá pra cá, uma grande mudança no perfil dos sites ocorreu silenciosamente. No princípio, os

endereços acolhiam representações autorizadas de fés específicas. Exemplos atuais desse tipo são os sites

www.cnbb.org.br, da Igreja Católica, e o www.mormon.org.br, da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos

Últimos Dias. Com o tempo, a relativa popularização dos computadores domésticos e dos programas para

construir sites fez com que uma avalanche de endereços pessoais suplantasse em muito os sites oficiais. Ou

seja, nem toda página autodenominada católica possui a aprovação do Vaticano – embora seu criador

professe o Catolicismo. O mesmo vale para as demais crenças. “A Igreja do Evangelho Quadrangular, da

qual faço parte, não nos tem notado no últimos sete anos e o mesmo vale para muitos de nossos líderes”,

queixa-se Edson de Almeida e Franzen, “webministro” da Igreja Virtual Evangélica

(www.nbz.com.br/igrejavirtual/index/htm, com média de 500 acessos diários).

Atualmente, a oposição das igrejas contemporâneas à Internet é ínfima. Atrativos não faltam. A Web

propicia pregações sob o formato de texto, áudio e imagem. Alcança um grau de interatividade bas-tante

acima dos meios de comunicação de massa que a precederam. O site do Ministério Cristo Vai Voltar

(www.cvvnet.org/cgi-bin/cvvnet, 6 mil visitas por dia em média), por exemplo, oferece versões em inglês e

espanhol de textos sagrados, Bíblia para download, serviços para celular, áudio com o sermão do dia, cartões

virtuais com música, canções gospel, jogos e 653 temas de estudos bíblicos. “Foi o modo que en-contrei de

utilizar meus talentos na área da computação para a glória de Deus”, diz Cleandro Valença Viana, membro

da Igreja Adventista do Sétimo Dia e criador do site. Em outras páginas, a tecnologia tem dado margem a

experiências ainda mais inovadoras, como as descritas nos boxes desta matéria–nenhuma delas reconhecida

oficialmente. Confessionário on-line, templo com personagens animados e velas vir-tualmente acesas

buscam simular,à la Matrix,as relações mantidas em ambientes sacrossantos de verdade.

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Revi. Das Religiões ed.15, nov.2004, p.42-47. Ed. Abril

SEM FRONTEIRAS

Romper barreiras geográficas com a Internet representa uma dádiva para os adeptos cibernéticos.

“Ajudei a coordenar encontros nacionais na época em que telefone e correio eram as únicas formas de

contatar as pessoas”, diz Celso Rodrigues, do Universo Espírita (www.universoespirita.org.br, com média

de 4 mil visitas diárias). “Hoje fazemos reuniões on-line com gente de todo o Brasil. É muito mais fácil.” O

portal da Igreja Evangélica de Confissão Luterana (www.ieclb.org.br), por sua vez, centraliza dados sobre

trabalhos desenvolvidos em 18 sínodos – conjunto de comunidades e paróquias de uma região – para que

sejam lidos em todo o País. “O portal fornece uma amostra das demandas e reforça a união dos grupos de

Norte a Sul”, afirma a assessora Caroline Helena Strussmann.

Giridhari Das, editor do Guia de Hare Krishna na Internet (www.sobresites.com/harekrishna),

acredita que a rede mundial de computadores modifica a crença dos internautas. “Temos arquivados mais de

20 mil e-mails recebidos do início de 2000 até hoje, todos com perguntas profundas e sérias. É um poderoso

recurso para tirar as pessoas daquele tipo de religiosidade herdada, desinteressada.”

A troca de e-mails, as salas de bate-papo, os fóruns de debate, as listas de discussão e o recente

fenômeno Orkut constituem terreno fértil para o louvor. Mas é preciso controlar a empolgação. O alcance da

mídia virtual esbarra na forte desigualdade social brasileira. Segundo pesquisa do Ibope eRatings, que

mensalmente colhe dados da rede, menos de 10% da população brasileira tem acesso à Internet. O preço

elevado de um computador e o alto custo das ligações telefônicas fazem com que as igrejas, templos e afins

continuem sendo os caminhos mais fáceis de acesso à fé. Convém ressaltar ainda que nem toda iniciativa na

Internet é digna de veneração. “Algumas pessoas sabem usá-la de forma extremamente positiva. Mas

existem grupos que aproveitam os fóruns e listas de discussão para promover a intolerância e atacar outras

religiões”, afirma o budista Elton Melo, coordenador do Dharmanet (www.dharmanet.com.br, média de

1.500 visitas por dia).

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JOIO E TRIGO

A proliferação de sites mal-intencionados despertou a atenção de diversas entidades. Em 2002, o

Vaticano publicou um decreto manifestando preocupação com as páginas que instigam o ódio religioso e

étnico. Alguns deles estariam, segundo o documento, orientados contra a Igreja Católica. O sociólogo da

religião Antônio Flávio Pierucci, da USP, discorda. “As religiões transformaram a Internet num jogo de

cartas marcadas. Não existem sites contrários a nenhuma fé específica”, diz ele. “Para quem navega pela

rede, parece até que as Igrejas monitoram o mundo virtual e tiram do ar todos os opositores.”

Embora estimule a colonização da Web como mecanismo de evangelização e catequização, o

Vaticano faz ressalvas às leituras doutrinais excêntricas e práticas devocionais peculiares. As comunidades

de internautas inscritas no Orkut servem de exemplo. São 5.565 na categoria “religiões e crenças”. Um

grande número de internautas interessados em debater a sério o assunto? Não exatamente. Grupos virtuais

dedicados ao Espiritismo (6.560 membros), ao Budismo (1.960 membros) e à Juventude Cristã (1.294

membros) convivem com bobagens como “Era Jesus um X-Men?” (1.610 membros) e “Hakuna Matata”

(1.317 membros).

Aos sites inoportunos soma-se outra polêmica recorrente. Diz respeito à possibilidade de o

computador vir um dia a substituir os encontros coletivos. Sem essa intenção, a grande maioria das páginas

virtuais indica endereços físicos onde o interessado pode abraçar sua doutrina. “Temos elementos em

comum com outros sites cristãos, mas a ênfase está na divulgação da igreja local”, diz William Max da

Silva, administrador do site da Arquidiocese de Belo Horizonte (www.arquidiocese-bh.org.br, média de

1.340 acessos ao dia). Além disso, os sites ajudam quem não dispõe de um terreiro, Igreja ou templo ao seu

alcance e quer entrar em contato com alguma religião. “Várias pessoas me escrevem de lugares onde não

existem grupos Hare Krishna”, afirma o budista Elton.

Para o ministro da Igreja Presbiteriana e doutor em Ciências da Religião pela Universidade

Mackenzie, Carlos Caldas Filho, dificilmente o PC irá roubar os fiéis dos locais de culto. “Talvez em casos

extremos de misantropia ou timidez isso possa ocorrer. Mas, em condições normais, o espaço virtual não

consegue suprir o calor humano do contato pessoal.” O ex-padre Fernando Altemeyer Júnior, teólogo da

PUC de São Paulo, faz coro. “O presencial é condição sine qua non para a prática espiritual e, no caso

cristão, eucarística”, diz ele. “Sem o ‘ao vivo’ não existe religião vivida e celebrada.”

Por Gabriel Falcão

Revi. Das Religiões ed.15, nov.2004, p.42-47. Ed. Abril

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Revi. Das Religiões ed.15, nov.2004, p.42-47. Ed. Abril

TEMPLO ANIMADO NO COMPUTADOR

Você entra e olha ao redor. O lugar está repleto de fiéis. Eles se cumprimentam como velhos

conhecidos e conversam baixinho entre si. O inglês monopoliza os diálogos. Então, duas opções se

apresentam: permanecer isolado ou se enturmar. Você escolhe a segunda e é recebido com amabilidade por

um pequeno grupo. Pede licença e senta-se em um dos bancos. O sermão vai começar. Detalhe importante:

seu corpo físico não se encontra realmente lá. Suas mãos no teclado do computador limitam-se a controlar

um boneco animado em 3 dimensões.

Assim funcionou o primeiro templo cristão on-line, batizado de Church of Fools (ao pé da letra,

“igreja dos tolos”). No ar desde maio, o site inglês de inspiração metodista recebe gente dos mais diversos

credos. “Mais britânico, impossível. É um clara tentativa de reverter o esvaziamento e a descristianização

tão presentes na sociedade inglesa”, opina o teólogo e cientista da religião Carlos Caldas Filho, da

Universidade Mackenzie. Conectar-se ao www.shipoffools.com/church depois de atingida a lotação máxima

significa circular invisível, sem direito a um personagem. Entre as opções de figuras, há jovens, velhos,

homens, mulheres, negros e até um sujeito de suéter verde, bigode e óculos que lembra Ned Flamders – o

vizinho evangélico de desenho Os Simpsons. Os fiéis virtuais conseguem fazer o sinal-da-cruz, ajoelhar-se

em posição de prece, abençoar o próximo, erguer os braços e gritar “Aleluia!”. Quando o pastor inicia o

sermão, suas frases flutuam na tela, de baixo para cima. A certa altura, ele pergunta onde cada um vive. Os

participantes dizem, ou melhor, digitam: Berlim, Barcelona, Sydney, Nova York, Berkeley, Portland,

Estocolmo, São Paulo... É a deixa para o sacerdote pregar que a fé, com uma forcinha da Internet, transpõe

fronteiras. “Pode ser simpático e divertido, mas do ponto de vista teológico não dá para aceitar”, diz o

teólogo Fernando Altemeyer Júnior. “É um game, não um sacramento.”

VELAS VIRTUAIS

Já é possível acender uma vela ou fazer um pedido de oração na igreja sem precisar ir até ela. Os dois

recursos estão no site CatolicaNet, criado pro Silvia Bruno Securato, de 51 anos, que atualmente cursa

doutorado em Ciências da Religião na PUC de São Paulo. Na página Velas Virtuais

(www.catolicanet.com.br/interatividade/velas/index.asp), o visitante só precisa escolher o tamanho e o

formato da vela e enviar um e-mail com a intenção. Para fazer uma solicitação de reza basta entrar no link

Pedido de Orações (www.catolicanet.com.br/interatividade/oracao/index.asp) e enviar pelo correio

eletrônico.

Para que os pedidos não caiam no limbo da grande rede, Silvia se compromete a dar um destino a cada um deles. “Tenho o hábito de copiar os pedidos e enviar via fax para a Fraternidade dos Discípulos de Jesus e as Irmãs Carmelitas, nossos intercessores”, diz ela, que fundou o site em março de 2000. “Depois, coloco-os nas intenções da missa e acendo velas de verdade na igreja.” No último dia 3 de setembro havia 392 velas virtuais acesas e 446 orações solicitadas. A partir das dúvidas e dos pedidos mais freqüentes que aparecem no site, Silvia escreveu os livros da coleção Para Encontrar a Paz, já no quinto volume.

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SHOW DO MILHÃO BÍBLICO

Moisés tinha o poder de transformar a água do Rio Nilo em pedras, sangue, vinho, poeira ou lama?

Quem virou uma estátua de sal? A mulher de Jó? A mulher de Ló? A filha de Ló? Ou a mulher de Jacó? A

primeira pergunta faz parte do Jogo do Cristão, disponível em www.catolicanet.com.br/interatividade/jogo.

A questão sobre a metamorfose de uma mulher em cloreto de sódio vem de Quem quer um Ser um

milionário no Céu? – www.cvvnet.org/cgibin/cvvnet?Portuguese+GAMES+MIH – também conhecido

como Show do Milhão Bíblico. O CatolicaNet, que contém o primeiro jogo, professa o Catolicismo,

enquanto o site Cristo Vai Voltar é evangélico. Ambos utilizam perguntas e respostas para levar os

internautas a se interessar pela Bíblia. Não estão sós. O buscador Google responde com 20.500 ocorrências à

expressão “jogos bíblicos”. O jogo evangélico Quem quer um Ser um milionário no Céu? tem, no mesmo

site, variações intituladas Quadrinhos Bíblicos e Maratona Bíblica. No católico Jogo do Cristão, os fiéis

dispõem de 20 segundos para cada questão. O primeiro colocado no ranking geral acertou 1.060. O jogo é

muito bom e indica a preocupação em apresentar uma face moderna e em sintonia com o nosso tempo, opina

o cientista da religião Carlos Caldas Filho. Em tempo: sangue e a mulher de Ló são as respostas corretas.

UM SITE PARA CONFISSÕES

A iniciativa partiu da Premier Christian Radio, emissora de Londres cuja audiência gira em torno de

20 mil ouvintes. O cibernauta digita o endereço www.theconfessor.co.uk e vê surgir diante de si aquilo que

Peter Kerridge, diretor da rádio, define como um “confessionário on-line”. Trata-se de uma janela na qual se

contempla o desenho menos imaginativo possível para uma proposta dessa natureza: nuvens brancas num

céu azul. Em seguida, o usuário passeia por 12 telas que contêm citações da Bíblia. A combinação dos textos

varia a cada acesso, mas todos abordam o ato de declarar seus pecados ao Senhor. Ao chegar à sétima tela,

digitam-se as próprias faltas ou utiliza-se a confissão-padrão – o Salmo 51, que clama: “Cria em mim, ó

Deus, coração puro, e renova dentro em mim um espírito inabalável”.

Após fazer a confissão, o fiel internauta só não pode esperar a reposta de um sacerdote. Na verdade,

não há ninguém do outro lado. É inútil esperar por penitência ou absolvições via e-mail. Segundo Kerridge,

o simulacro de confessor não envia nem armazena informações. A expiação dos pecados simplesmente se

desmancha no espaço virtual. Para a psicóloga Dagmar Silva Pinto de Castro, da Universidade Metodista de

São Paulo, tal brincadeira pode até ajudar as pessoas. “O ato de expor seus problemas quase sempre exerce

uma função terapêutica”, diz ela. “Mas se a confissão on-line atende ou não às necessidades espirituais de

alguém é outra questão”.

Revista das Religiões ed.15, nov.2004, p.42-47. Ed. Abril

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8 de Fevereiro de 2010 - 0h15

ESTADO E RELIGIÃO: RELAÇÕES PERIGOSAS Carlos Pompe *

No último dia 26, uma comissão parlamentar francesa recomendou o banimento da burca e do nicab, duas vestes muçulmanas que ocultam o rosto ou o corpo das mulheres, nos serviços governamentais franceses

(edifícios e transporte). Caso as mulheres mantenham o rosto coberto, não poderão ser atendidas. (foto: Francesas mulçumanas trajando nicab) Mesmo direitista, o presidente Nicolas Sarkozy considerou: "A burca não é bem-vinda em território francês", pois torna as muçulmanas "prisioneiras por detrás de uma grade de tecido". Desde 2004, uma outra lei proíbe o uso nas escolas públicas de quaisquer símbolos religiosos – burcas, nicabs, solidéus ou crucifixos. A comissão parlamentar foi resultado de uma iniciativa do membro do Partido Comunista e prefeito Andre Gerin, de

Venissieux, um subúrbio de Lyon. Em sua região vivem muitos muçulmanos do Norte da África. No final de junho, ele deu início a uma moção, assinada por 57 outros legisladores, pedindo a instauração dessa comissão. Justificou: "É hora de assumir uma posição a respeito dessa questão que envolve milhares de cidadãos que estão preocupados ao ver mulheres totalmente cobertas com véu, aprisionadas". Ainda em janeiro deste ano, em terras brasileiras, quando se discutiu o banimento de símbolos religiosos das repartições públicas, o secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Dimas Lara Barbosa, indignou-se: "Daqui a pouco vamos ter que demolir a estátua do Cristo Redentor, no morro do Corcovado, que ultrapassou a questão religiosa e virou símbolo de uma cidade. Impedir a presença desses símbolos é uma intolerância muito grande. É desconhecer o espírito cristão e religioso da tradição brasileira. Direitos humanos é ter liberdade religiosa." Indignou-se e deixou-nos, a nós que defendemos a separação entre o Estado e as crenças, indignados. Uma coisa é garantir que as repartições públicas não favoreçam nenhuma seita – católica, islâmica, judaica, umbandista etc. Outra, que nos leva a desconfiar da boa-fé do dirigente da CNBB, é confundir isso com a negação dos direitos humanos ou da liberdade religiosa. Na verdade, o papista obra em causa própria: o que prevalece nas repartições públicas brasileiras é a simbologia cristã e, ao defender a “liberdade religiosa”, o que ele pretende mesmo é manter crucifixos nas sedes dos Três Poderes, nos hospitais, escolas públicas, penitenciárias etc. Uma agressão aos que professam outras (ou nenhuma) crenças e aos que analisam a natureza e a sociedade com os pressupostos materialistas. Muito se fala dos erros cometidos pelos Estados – mesmo os burgueses (a atual recomendação francesa vem sendo acusada de agressão ao direito da mulher ser submissa aos preconceitos religiosos e ao domínio de seus maridos machistas) – no tratamento da questão religiosa. Mas poucos analisam as atrocidades que os Estados perpetram em nome da religião ou do acobertamento que os poderes públicos dão a criminosos, quando estes integram alguma instituição religiosa. É de notar-se, por exemplo, como no Brasil os pedófilos que trajam batina, em vez da punição pelo crime que comentem, no mais das vezes são simplesmente transferidos pela sua instituição de uma região para outra, escapando dos tribunais.

* Jornalista e curioso do mundo. http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=2902&id_coluna=2

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ALGO DE NOVO NA RELIGIÃO? O novo diretor da Administração Estatal para os Assuntos Religiosos da China, Wang Zuoan, anunciou, dia 14 de janeiro: “O Partido Comunista Chinês (PCC) começou a encarar a religião numa perspectiva mais positiva”.

Disse que o país aprendeu com os erros da antiga União Soviética e dos países que formavam o Pacto de Varsóvia. Não disse, ou o Global Times (jornal do grupo Diário do Povo, órgão oficial do PCC), que divulgou sua entrevista, não informou quais foram esses erros e nem o que mudou na religião para que seja encarada mais positivamente. Segundo Wang Zuoan, “a influência da cultura ocidental na China, incluindo o cristianismo, aumentou muito” e “é normal que a religião se desenvolva durante o

processo de modernização”. A religião com mais adeptos naquele país é o budismo, seguida do islamismo (juntas, 60 milhões de seguidores) e do cristianismo (cerca de 20 milhões, dos quais dois terços protestantes). As informações que nos chegaram são muito resumidas. O tratamento dado à religião pelos governos que se propunham a construção do socialismo foi diferenciado e muito variado ao longo dos anos. A política dos soviéticos para o setor não era a mesma dos albaneses, que não coincidia com a dos cubanos, com a dos vietnamitas ou com a dos coreanos (a informação do Global Times não faz referências a Cuba, Vietnã ou Coreia do Norte). O dirigente chinês considera normal o desenvolvimento da religião “durante o processo de modernização”. Não é esse o pensamento esposado pelos marxistas. Para Marx, Engels, Lenin e seus seguidores materialistas dialéticos, a religião é uma forma histórica de consciência social que vai se tornando desnecessária conforme evoluem os conhecimentos científicos e progride a civilização. Na sociedade dividida em classes antagônicas, a religião é, no geral, utilizada como instrumento da classe opressora para a defesa da mansidão das massas diante das injustiças sociais e de remetimento da solução de seus problemas, sociais ou naturais (como um terremoto), para forças sobre-humanas. A existência de setores progressistas organizados nas religiões institucionais e a atuação progressista e, mesmo, revolucionária de alguns religiosos são impotentes para mudar as características essenciais da religião. Do ponto de vista filosófico (Wang Zuoan é formado em filosofia), continuam válidas estas palavras leninistas do Materialismo e empiriocriticismo: “Se existe uma verdade objetiva (como pensam os materialistas), se as ciências da natureza, refletindo o mundo exterior na ‘experiência’ humana, são as únicas capazes de nos dar a verdade objetiva, qualquer fideísmo é absolutamente refutado. Mas, se não há verdade objetiva, se a verdade (incluindo a verdade científica) é apenas uma forma organizadora da experiência humana, reconhece-se deste modo a premissa fundamental do clericalismo, abre-se-lhe a porta, arranja-se lugar para as ‘formas organizadoras’ da experiência religiosa”. Os dirigentes chineses encontraram alguma mudança significativa na relação da religião com a política? Pelas notícias que a nós chegam, o dalai-lama continua, financiado pelo governo estadunidense, querendo retomar o poder no Tibete e tirar a região da influência chinesa. Líderes religiosos islâmicos incentivam atos assassinos de seus seguidores mais fanáticos. Sionistas mantêm a crença de ser um povo eleito, autorizado por Javé a cometer as maiores atrocidades contra palestinos e demais góis. Seguidores do papa Bento XVI são proibidos de recorrer ao aborto, usar contraceptivos (inclusive os protetores de doenças sexualmente transmissíveis, como a camisinha), e de realizar pesquisas com células-tronco, dentre outras desumanidades. Mal Wang Zuoan anunciou sua visão da religião com uma “perspectiva mais positiva”, ocorreram, no dia 16, enfrentamentos entre cristãos e mulçumanos na cidade nigeriana de Khos, resultando na morte de quase 30 pessoas e 300 feridos. Os confrontos seriam o resultado da revolta de cristãos devido à construção de uma mesquita no bairro de Nassarawa Gwom. Parece que as palavras de Lucrécio, escritas no livro Da Natureza, ainda antes de Cristo e de Maomé, continuam válidas: “Tão grandes males a religião persuadiu o homem a cometer”. Em Vitória da contrarrevolução em Viena, Karl Marx pontuou ser tarefa dos comunistas “extrair as lições corretas das lutas passadas, expô-las perante o povo, em primeiro lugar perante os operários, e levá-las na devida consideração nas lutas que estão por vir”. Seguido estas orientações o dirigente chinês talvez nos elucidasse sobre quais as transformações positivas que as religiões experimentaram recentemente, o que nos levaria a uma reavaliação da abordagem marxista do tema. Mas creio que isso ele não fará. Nem com reza brava. http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=2861&id_coluna=2

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Manifesto de Cristãos e cristãs evangélicos/as e católicos/as em favor da vida e da Vida em Abundância! (antes eleição Dilma)

Somos homens e mulheres, ministros, ministras, agentes de pastoral, teólogos/as, padres, pastores e pastoras, intelectuais e militantes sociais, membros de diferentes Igrejas cristãs, movidos/as pela fidelidade à verdade, vimos a público declarar: 1. Nestes dias, circulam pela internet, pela imprensa e dentro de algumas de nossas igrejas, manifestações de líderes cristãos que, em nome da fé, pedem ao povo que não vote em Dilma Rousseff sob o pretexto de que ela seria favorável ao aborto, ao casamento gay e a outras medidas tidas como “contrárias à moral”. A própria candidata negou a veracidade destas afirmações e, ao contrário, se reuniu com lideranças das Igrejas em um diálogo positivo e aberto. Apesar disso, estes boatos e mentiras continuam sendo espalhados. Diante destas posturas autoritárias e mentirosas, disfarçadas sob o uso da boa moral e da fé, nos sentimos obrigados a atualizar a palavra de Jesus, afirmando, agora, diante de todo o Brasil: “se nos calarmos, até as pedras gritarão!” (Lc 19, 40). 2. Não aceitamos que se use da fé para condenar alguma candidatura. Por isso, fazemos esta declaração como cristãos, ligando nossa fé à vida concreta, a partir de uma análise social e política da realidade e não apenas por motivos religiosos ou doutrinais. Em nome do nosso compromisso com o povo brasileiro, declaramos publicamente o nosso voto em Dilma Rousseff e as razões que nos levam a tomar esta atitude: 3. Consideramos que, para o projeto de um Brasil justo e igualitário, a eleição de Dilma para presidente da República representará um passo maior do que a eventualidade de uma vitória do Serra, que, segundo nossa análise, nos levaria a recuar em várias conquistas populares e efetivos ganhos sócio-culturais e econômicos que se destacam na melhoria de vida da população brasileira. 4. Consideramos que o direito à Vida seja a mais profunda e bela das manifestações das pessoas que acreditam em Deus, pois somos à sua Imagem e Semelhança. Portanto, defender a vida é oferecer condições de saúde, educação, moradia, terra, trabalho, lazer, cultura e dignidade para todas as pessoas, particularmente as que mais precisam. Por isso, um governo justo oferece sua opção preferencial às pessoas empobrecidas, injustiçadas, perseguidas e caluniadas, conforme a proclamação de Jesus na montanha (Cf. Mt 5, 1- 12). 5. Acreditamos que o projeto divino para este mundo foi anunciado através das palavras e ações de Jesus Cristo. Este projeto não se esgota em nenhum regime de governo e não se reduz apenas a uma melhor organização social e política da sociedade. Entretanto, quando oramos “venha o teu reino”, cremos que ele virá, não apenas de forma espiritualista e restrito aos corações, mas, principalmente na transformação das estruturas sociais e políticas deste mundo. 6. Sabemos que as grandes transformações da sociedade se darão principalmente através das conquistas sociais, políticas e ecológicas, feitas pelo povo organizado e não apenas pelo beneplácito de um governante mais aberto/a ou mais sensível ao povo. Temos críticas a alguns aspectos e algumas políticas do governo atual que Dilma promete continuar. Motivo do voto alternativo de muitos companheiros e companheiras Entretanto, por experiência, constatamos: não é a mesma coisa ter no governo uma pessoa que respeite os movimentos populares e dialogue com os segmentos mais pobres da sociedade, ou ter alguém que, diante de uma manifestação popular, mande a polícia reprimir. Neste sentido, tanto no governo federal, como nos estados, as gestões tucanas têm se caracterizado sempre pela arrogância do seu apego às políticas neoliberais e pela insensibilidade para com as grandes questões sociais do povo mais empobrecido. 7. Sabemos de pessoas que se dizem religiosas, e que cometem atrocidades contra crianças, por isso, ter um candidato religioso não é necessariamente parâmetro para se ter um governante justo, por isso, não nos interessa se tal candidato/a é religioso ou não. Como Jesus, cremos que o importante não é tanto dizer “Senhor, Senhor”, mas realizar a vontade de Deus, ou seja, o projeto divino. Esperamos que Dilma continue a feliz política externa do presidente Lula, principalmente no projeto da nossa fundamental integração com os países irmãos da América Latina e na solidariedade aos países africanos, com os quais o Brasil tem uma grande dívida moral e uma longa história em comum. A integração com os movimentos populares emergentes em vários países do continente nos levará a caminharmos para novos e decisivos passos de justiça, igualdade social e cuidado com a natureza, em todas as suas dimensões. Entendemos que um país com sustentabilidade e desenvolvimento humano – como Marina Silva defende – só pode ser construído resgatando já a enorme dívida social com o seu povo mais empobrecido. No momento atual, Dilma Rousseff representa este projeto que, mesmo com obstáculos, foi iniciado nos oito anos de mandato do presidente Lula. É isto que está em jogo neste segundo turno das eleições de 2010. SIGNATÁRIOS (169 assinaturas)

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RELIGIÃO E POLÍTICA EM GOIÁS Elisa Signates Cintra de Freitas

Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás e participante do NER/UFG (Núcleo de estudos de

religião) RESUMO Trata esse trabalho da atividade política de deputados estaduais que se identificaram como evangélicos na Assembleia Legislativa do estado de Goiás: Fábio Sousa (PSDB), Lincoln Tejota (PSD) e Luís Carlos do Carmo (PMDB). Nesses casos, a observação feita foi a se a prática política desses deputados que se assumiram publicamente como religiosos foi uma prática religiosa ou uma prática laica, ou seja, sem ligação com religião ou dogmas religiosos. Palavras-chave: religião, política, Goiás e Assembleia Legislativa do estado de Goiás.

ABSTRACT This work is about a political activity of state representatives who identify themselves as evangelicals on Assembleia Legislativa do estado de Goiás: Fábio Sousa (PSDB), Lincoln Tejota (PSD) and Luís Carlos do Carmo (PMDB). In these cases, an observation was if the politics pratices was religious or secular, without relation with religion or religious dogmas. Key-words: religion, politics, Goiás, Assemleia Legisltaiva do estado de Goiás.

INTRODUÇÃO

Esse artigo trata da relação entre religião e política. Parte-se do pressuposto de que religião e

política podem se intercalar e que não seria democrático se essa relação não fosse permitida. Dessa forma,

percebeu-se que o fato de existirem atores políticos evangélicos na política goiana se trata de uma

questão de representação, mais do que laicidade, separação específica entre instituições religiosas e

Estado. Apesar disso, é importante tratar da laicidade para direcionar a discussão sobre a opinião dos

atores políticos evangélicos em casas legislativas brasileiras, no caso específico, na Assembleia

Legislativa do estado de Goiás para considerar até que ponto esses atores atrapalham os preceitos de

tolerância e liberdade religiosa que compõem na laicidade.

Dessa forma, esse artigo se dividira em três partes: uma primeira parte tratando da discussão

teórica sobre política e religião, secularização e laicidade. Em seguida, será apresentada a parte prática

da pesquisa, o estudo feito com os três atores políticos que se identificaram como religiosos na

Assembleia Legislativa do estado de Goiás no período de 2011 a 2014. E, por fim, as considerações finais

com breves conclusões sobre a análise da atividade política desses atores no período referido.

Assim, discutir-se-á a relação entre religião e política, baseando principalmente em Casanova

(2006) e Mouffe (2006), e depois de laicidade, focando nos princípios de tolerância e liberdade religiosa

destacados em Martinez e Raymundo (2010) no tópico a seguir.

RELIGIÃO E POLÍTICA PODEM SE RELACIONAR?

Sobre a relação entre religião e política ou religião e espaço público Casanova (2006) não percebeu

esse fenômeno como presente e comum em sociedades democráticas, assim como não o percebeu em

sociedades cujo regime político é autoritário. O autor foi além na discussão e afirmou não haver

motivos para que a religião seja separada da esfera pública. Pelo contrário, fazer constitucionalmente

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essa separação é contra o regime democrático em si.

Além disso, percebeu um aumento na relevância pública da religião em países democráticos.

Nesse sentido, defendeu que o livre exercício da religião abre caminhos para o livre exercício de direitos

civis e direitos políticos de cidadãos religiosos. Segundo o autor, esse exercício de direitos infringe na

vitalidade da sociedade civil democrática e faz com que cidadãos religiosos se vinculem ao meio político

de forma democrática. Vinculação esta que Casanova (2006) afirmou ser crescente já que a separação

entre religião e política não é uma condição de democracia e que as questões sociais da modernidade

trazem assuntos que provocam valores religiosos, tais como valores relacionados à vida (aborto, por

exemplo) e valores da própria moral cristã (defesa da família tradicional em contraposição ao casamento

homoafetivo, por exemplo). Essa ideia vai de encontro a Berger (2000), que afirmou que os indivíduos

exigem respostas que a ciência não oferece. Respostas de sentido da vida que a religião ainda é,

segundo Berger (2000), a única capaz de suprir.

Ainda sobre o debate em relação à presença forte das religiões no mundo moderno, Zepeda

(2010) reafirmou o processo de secularização na sociedade ocidental moderna. Por secularização o autor

definiu como sendo o “conjunto de mudanças pelo qual a religião perde sua relevância social, ideológica

e institucional” (ZEPEDA, 2010, p. 129) e afirmou que a caracterização da religiosidade latente hoje

no mundo ocidental só reafirma esse ponto, já que as experiências religiosas têm caráter individual e

subjetivo. Dessa forma, a modernidade demonstra uma rejeição ao controle institucional de práticas e

crenças religiosas.

Segundo o autor, essa religiosidade latente nos indivíduos não significa uma volta à tradição,

em que a religião ocupava a centralidade da vida social. Trata-se de uma das complexidades do

conceito de secularização, uma consequência da globalização, a qual permite que as religiões sejam

desterritorializadas e moldadas de acordo com as preferências individuais mais do que seguidas em uma

lógica de doutrinas. Concordando que as instituições do mundo moderno são secularizadas e que o

alto nível de religiosidade dos indivíduos não desfaz o processo de secularização, Mariano (2003)

ainda complementou a ideia ao afirmar que a globalização também tem como consequência um

pluralismo religioso e uma alta concorrência entre os religiosos em busca de fiéis. Nesse sentido, tanto

Zepeda (2010) quanto Mariano (2003) concordam que a presença de grupos religiosos na política

institucional é mais uma consequência das complexidades da secularização acarretada pela globalização.

Zepeda (2010) então constatou que não se trata de uma ressacralização da sociedade, ou seja, não

se trata de uma volta às tradições, volta à religião como aspecto central da vida social, volta esta que

negaria a secularização. Trata-se de um processo de dessecularização, em que as instituições ainda se

mantêm livre do controle religioso, enquanto as crenças herdadas das doutrinas da tradição se mesclam

com os novos movimentos religiosos criando uma situação “inédita, pois nem se trata de um simples

retorno religioso do passado,

tampouco de uma dissolução da secularização” (ZEPEDA, 2010, p. 136).

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Casanova (2004) partilhou dessa ideia ao afirmar que a presença de religiosos na esfera

pública, ou, uma desprivatização da religião, termo que o próprio autor usou, deve-se aos desafios que a

globalização oferece à sociedade. Dessa forma, entram na esfera pública para

(...) participar das mesmas lutas face a estabelecer e definir as fronteiras modernas entre a esfera pública e privada, entre legalidade e moralidade; entre família, sociedade civil, economia e Estado, entre nações, Estados e civilizações em um sistema global emergente1 (CASANOVA, 2004, p.76).

Sobre a relação entre religião e política na modernidade secularizada, Burity (2001) apostou em

um deslocamento das fronteiras das duas esferas devido ao pluralismo na sociedade moderna. O

autor afirmou haver uma reabertura dos espaços públicos às organizações religiosas a partir de três

movimentos principais: a redefinição da fronteira entre religião e política, a qual dissolveu o sentido do

político e do religioso; a difusão de uma lógica pluralista devido à democracia e uma inserção desse

contexto em uma lógica pós-moderna e pós-secular.

O autor partiu do princípio de que a relação da religião e política é histórica. Dessa forma, ela

nunca deixou de acontecer e que atualmente a relação entre religião e política na opinião de Burity

(2001), se dá em um contexto diferente, em um contexto de pluralismo em que não há apenas uma religião

de massa e sim uma pluralidade de religiões em concorrência. Além disso, de acordo com o autor a

religião não é mais o único espaço de produção simbólica no domínio social.

Nesse contexto, a redefinição das fronteiras entre o político e religioso se dá devido à expansão

do campo de atuação da política, invadindo o campo privado e consequenteme nte abarcando também o

religioso. A democracia pluralista dando abertura aos movime ntos sociais acarretou em um

deslocamento da vida pública, da legislação formal na vida privada (Lei Maria da Penha, por exemplo).

Além disso, devido à concorrência e as novas demandas e conflitos, consequências deste deslocamento,

surgiram demandas de espaços de novas representações, incluindo então, a representação religiosa

em palanques políticos. Sendo assim, “o que é público ou privado, propriamente político ou

propriamente religioso, já não pode ser definido de forma categórica e estável” (BURITY, 2001, p. 34).

Mouffe (2006) faz uma diferenciação entre Igreja e Estado, público e privado e religião e

política. Semelhante à visão de Joanildo Burity (2006), o autor não concorda que a religião deva ficar no

âmbito privado e assim como Casanova (2006), afirmou ser da própria condição democrática a presença de

grupos religiosos na esfera pública. Porém, a separação entre Igreja e Estado é necessária e condição da

democracia liberal, já que vivemos em uma sociedade plural, que parte do pressuposto de que a diferença

impera e que é de direito de todas as diferenças se manifestarem e de ter espaços de representação. E que

é condição da própria democracia oferecer espaços para que os diferentes grupos possam discordar, a

fim de formar uma identidade coletiva em torno de posições claramente diferenciadas.

Ou seja, Mouffe (2006) partiu do pressuposto de que as diferenças existem e a democracia

1 “sino para participar in lãs mismas luchas de cara a definir y sentar las fronteras modernas entre las esferas privada y pública, entre legalidad

e moralidad, entre família, sociedad civil, economia y estado, entre naciones, estados y civilizaciones em el sistema global emergente.”

(CASANOVA, 2004, p. 76, tradução minha).

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teria que dar condições às opiniões até mesmo às mais apaixonadas de se expressarem no meio

público para que haja posições definidas em torno de questões claramente abertas. O pluralismo

agonístico que Mouffe (2006) defendeu trata exatamente disso, de se ter um sistema de democracia que

permita que essas discussões aconteçam e que se tenham posicionamentos claros, para que identidades

coletivas se formem a fim de escolherem entre posições definidas. E os grupos religiosos, que muitas

vezes se posicionam de forma apaixonada possuem, mesmo assim, o direito de se expressarem em

espaços públicos.

Apesar de existir grande presença da religião em esferas públicas e, segundo Casanova

(2006) e Mouffe (2006), essa possibilidade de acesso de religiosos à esfera política ser uma condição da

própria democracia, é também condição da democracia a tolerância e a liberdade religiosa. O próprio

Mouffe (2006) analisou a importância da separação entre Igreja e Estado como condição da própria

democracia para que os espaços de conflitos de diferentes representações existissem. Sobre a separação

específica entre Igreja e Estado então será usado o termo laicidade no presente trabalho, pois laicidade

tem como princípio a tolerância e liberdade religiosa, termos que o conceito de secularização não abarcou,

sendo um conceito voltado mais à racionalização das esferas sociais e deslocamento da religião da lógica

centra l de cada esfera. E esses princípios são de extrema importância para tratar do tema em que se

propôs como objetivo central desse artigo, que é analisar a atividade política de políticos religiosos na

política institucional em Goiás.

POLÍTICOS RELIGOSOS EM GOIÁS

Nesse sentido, tem-se como objeto a presença de políticos evangélicos na Assembleia Legislativa

do estado de Goiás no período de 2011 a 2014. São eles: Fábio Sousa (PSDB), Luís Carlos do Carmo

(PMDB) e Lincoln Tejota (PSD). Como atividade política, foram analisados seus projetos de leis

durante o período referido, totalizando 85 projetos ao todo dos três deputados com a intenção de perceber

se os resultados das atividades práticas desses atores foram baseados em dogmas religiosos (o que é

indiscutíve l e inegociável) ou eram pautas seculares, ou seja, não tendo relação com instituições

religiosas ou dogmas. Além disso, foi realizada uma entrevista qualitativa com cada um deles, no

intuito de perceber como a moral religiosa deve ser trazida para a pratica política.

Dos 85 projetos de lei analisados, verificou-se que apenas quatro deles tiveram ligação com

algum assunto religioso, seja diretamente para denominações religiosas, igrejas, ou com temas

relacionados a dogmas religiosos. Foram eles: A marcha para Jesus, instituída no calendário goiano e a

nomeação de instituição pública da Associação Quadrangular de apoio à criança e adolescente (Fábio

Sousa - PSDB); a nomeação como instituição pública da AME-SEVA – Associação Mantenedora de

Empreendimento de Serviço Ecumênico, Voluntário Altruísta de Goiânia e Região (Lincoln Tejota –

PSD) e o projeto de lei que dispõe sobre a cobrança de ICMS nas contas de serviços públicos estaduais às

igrejas e templos de qualquer culto localizados no estado de Goiás (Luís Carlos do Carmo – PMDB).

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Em relação a moral religiosa trazida para a prática política desses atores religiosos goianos,

pode-se perceber que essa moral foi considerada trazida como moral geral a ser seguida, como

conduta de vida a ser seguida não somente na atividade política do dia-a-dia, mas como comportamento a

ser levado a todos os setores da vida deles.

CONSIDERAÇOES FINAIS

Assim, considerou-se então que a pauta predominante nos projetos de lei dos atores políticos

evangélicos pesquisados foi uma pauta secular, ou seja, a maioria dos projetos de lei não apresenta

ligação com dogmas religiosos ou instituições religiosas. Considerou- se também, que os projetos

considerados religiosos foram apresentados com respeito à liberdade religiosa e à tolerância, já que foram

projetos não apenas voltados às denominações religiosas dos próprios deputados, mas projetos voltados à

denominações cristãs de forma geral.

Apesar disso, pode-se constatar que as religiões de matriz africana não foram abarcadas em

nenhum dos projetos de lei, podendo então, considerar que a liberdade religiosa e a tolerância foi

parcialmente respeitada, já que os projetos não abrangem as outras religiões.

Assim como a defesa dos então deputados sobre a moral religiosa a ser seguida não apenas no

dia-a-dia na Assembleia, mas também na vida. Esses valores não abarcam os valores de outras religiões

ou religiosidades, considerando apenas a visão cristã do mundo.

Ainda assim, por fim, considera-se que esses atores políticos religiosos não apresentam grandes

ameaças ao estado democrático e laico no sentido aqui analisado. Porém, são atores que não se envolvem

com temas polêmicos ligados à direitos humanos de minor ia s laicas (como os movimentos feministas e

movimentos LGBTTs), como se percebe na atuação da Frente Parlamentar Evangélica atuante no

Congresso Nacional atualmente. Dessa forma, pergunta-se se a isenção desses atores a temas ligados

a direitos humanos seria uma preservação de sua imagem política religiosa?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo : Ed. Paulinas, 1985. ________________. A dessecularização do mundo: uma visão global. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro. V. 21, n. 1, p. 09-24, 2001. _______________, LUCKMAN, Thomas. Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentido. A orientação do homem moderno. Ed. Vozes. Petrópolis, 2004. BURITY, Joanildo A. Religião e Política na Fronteira: desinstitucionalização e deslocamento numa relação historicamente polêmica. Revista de Estudos da Religião. nº 4, p 27-45. 2001. ___________________. Religião, voto e instituições políticas: notas sobre os evangélicos nas eleições de 2002. In: Os Votos de Deus. Evangélicos, política e eleições. BURITY, Joanildo A., MACHADO, Maria Das Dores C. (Orgs.). Recife : Fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana, 2006. CASANOVA, José. Religiones públicas em um mundo global. Iglesia Viva, nº218, abril-junio, 2-73 – 2-86, 2004. __________________.Rethingking secularization: a global comparative perspective. The Hedgehog review, Spring&Summer, p. 7-22, 2006 MARIANO, Ricardo. Laicidade à brasileira. Católicos, pentecostais e laicos em disputa na esfera pública. Civitas v 11 n 2. Porto Alegre. pp. 238-258. 2011. ___________________. Efeitos da secularização do Estado, do pluralismo e do mercado religiosos sobre as igrejas pentecostais. Civitas. Porto Alegre, v. 3, nº 1, p 111 – 125, jun 2003. MARTÍNEZ. Daniel Gutiérrez. RAYMUNDO. Marcia Mocellin. Considerações sobre a laicidade e a diversidade e suas conexões com a bioética. Revista Brasileira de Bioética 6 (1-4), pp. 53-68. 2010. MOUFFE, Chantal. Religião, democracia liberal e cidadania. In: Os Votos de Deus. Evangélicos, política e eleições. BURITY, Joanildo A., MACHADO, Maria Das Dores C. (Orgs.). Recife : Fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana, 2006. ZEPEDA, José de Jesus Legorreta. Secularização ou ressacralização? O debate sociológico contemporâneo sobre a teoria da secularização. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v 25, nº 73, p. 129 – 141, 2010.

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REVISTA ISTO É| N° Edição: 2180 | 19.Ago.11 - 21:00 | Atualizado em 22.Ago.11 - 19:48 http://www.istoe.com.br/reportagens/152980_O+NOVO+RETRATO+DA+FE+NO+BRASIL acessado em 22 ago 11

OO NNOOVVOO RREETTRRAATTOO DDAA FFÉÉ NNOO BBRRAASSIILL Pesquisas indicam o aumento da migração religiosa entre os brasileiros, o surgimento dos evangélicos

não praticantes e o crescimento dos adeptos ao islã Rodrigo Cardoso

Conheça em vídeo a história de Silvio Garcia, que era pastor da igreja evangélica e hoje é pai de santo :

Acaba de nascer no País uma nova categoria religiosa, a dos evangélicos não praticantes. São os fiéis que creem, mas não pertencem a nenhuma denominação. O surgimento dela já era aguardado, uma vez que os católicos, ainda maioria, perdem espaço a cada ano para o conglomerado formado por protestantes históricos, pentecostais e neopentecostais. Sendo assim, é cada vez maior o número de brasileiros que nascem em berço evangélico – e, como muitos católicos, não praticam sua fé. Dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelaram, na semana passada, que evangélicos de origem que não mantêm vínculos com a crença saltaram, em seis anos, de insignificantes 0,7% para 2,9%. Em

números absolutos, são quatro milhões de brasileiros a mais nessa condição. Essa é uma das constatações que estatísticos e pesquisadores estão produzindo recentemente, às quais ISTOÉ teve acesso, formando um novo panorama religioso no País.

Isso só é possível porque o universo espiritual está tomado por gente que constrói a sua fé sem seguir a cartilha de uma denominação. Se outrora o padre ou o pastor produziam sentido à vida das pessoas de muitas comunidades, atualmente celebridades, empresários e esportistas, só para citar três exemplos, dividem esse espaço com essas lideranças. Assim, muitas vezes, os fiéis interpretam a sua trajetória e o mundo que os cerca de uma maneira pessoal, sem se valer da orientação religiosa. Esse fenômeno, conhecido como secularização, revelou o enfraquecimento da transmissão das tradições, implicou a proliferação de igrejas e fez nascer a migração religiosa, uma prática presente até mesmo entre os que se dizem sem religião (ateus, agnósticos e os que creem em algo, mas não participam de nenhum grupo religioso). É muito provável, portanto, que os evangélicos pesquisados pelo IBGE que se disseram desvinculados da sua instituição estejam, como muitos brasileiros, experimentando outras crenças. É cada vez maior a circulação de um fiel por diferentes denominações – ao mesmo tempo que decresce a lealdade a uma única instituição religiosa. Em 2006, um levantamento feito pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris) e organizado pela especialista em sociologia da religião Sílvia Fernandes, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), verificou que cerca de um quarto dos 2.870 entrevistados já havia trocado de crença. Outro estudo, do ano passado, produzido pela professora Sandra Duarte de Souza, de ciências sociais e religião da Universidade Metodista de São Paulo

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(Umesp), para seu trabalho de pós-doutorado na Universidade de Campinas (Unicamp), revelou que 53% das pessoas (o universo pesquisado foi de 433 evangélicos) já haviam participado de outros grupos religiosos.

ALÁ Nogueira, muçulmano há um ano: no Rio, os convertidos saltaram de 15% da comunidade para 85% em 12 anos

“Os indivíduos estão numa fase de experimentação do religioso, seja ele institucionalizado ou não, e, nesse sentido, o desafio das igrejas estabelecidas é maior porque a pessoa pode escolher uma religião hoje e outra amanhã”, afirma Sílvia, da UFRRJ. “Os vínculos são mais frouxos, o que exige das instituições maior oferta de sentido para o fiel aderir a elas e permanecer. É tempo de mobilidade religiosa e pouca permanência.” Transitar por diferentes crenças é algo que já ocorre há

algum tempo. A intensificação dessa prática, porém, tem produzido novos retratos. Denominadores comuns do mapa da circulação da fé pregam que católicos se tornam evangélicos ou espíritas, assim como pentecostais e neopentecostais recebem fiéis de religiões afro-brasileiras e do protestantismo histórico. Estudos recentes revelam também que o caminho contrário a essas peregrinações já é uma realidade.

Em sua dissertação de mestrado sobre as motivações de gênero para o trânsito de pentecostais para igrejas metodistas, defendida na Umesp, a psicóloga Patrícia Cristina da Silva Souza Alves verificou, depois de entrevistar 193 protestantes históricos, que 16,5% eram oriundos de igrejas pentecostais. Essa proporção era de 0,6% (27 vezes menor) em 1998, como consta no artigo “Trânsito religioso no Brasil”, produzido pelos pesquisadores Paula Montero e Ronaldo de Almeida, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Para Patrícia, o momento econômico do Brasil, que registra baixos índices de desemprego e ascensão socioeconômica da população, reduz a necessidade da bênção material, um dos principais chamarizes de uma parcela do pentecostalismo. “Por outro lado, desperta o olhar para valores inerentes ao cristianismo, como a ética e a moral cristã, bastante difundidas entre os protestantes históricos”, afirma.

Em busca desses valores, o serralheiro paraibano Marcos Aurélio Barbosa, 37 anos, passou a frequentar a Igreja Metodista há um ano e meio. Segundo ele, nela o culto é ofertado a Deus e não aos fiéis, como acontecia na pentecostal Assembleia de Deus, a instituição da qual Barbosa foi devoto por 16 anos, sendo sete como presbítero. O serralheiro cumpria à risca os rígidos usos e costumes impostos pela denominação. “Eu não vestia bermuda nem dormia sem camisa, não tinha tevê em casa, não bebia vinho, não ia ao cinema nem à praia porque era pecado”, conta. Com o tempo, o paraibano passou a questionar essas proibições e acabou migrando. “Na Metodista encontrei um Deus que perdoa, não um justiceiro.”

AMÉM

É cada vez mais comum ex-pentecostais, como o atual metodista Barbosa, que foi pastor da Assembleia de Deus (acima), aderirem às protestantes

históricas

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A teóloga Lídia Maria de Lima irá defender até o final do ano uma dissertação de mestrado sobre o trânsito de evangélicos para religiões afro-brasileiras. A pesquisadora já entrevistou 60 umbandistas e candomblecistas e verificou que 35% deles eram evangélicos antes de entrar para os cultos afros. Preterir as denominações cristãs por religiões de origem africana é outro tipo de migração até então pouco comum. Não é, porém, uma movimentação tão traumática, uma vez que o currículo religioso dos ex-evangélicos convertidos à umbanda ou ao candomblé revela, quase sempre, passagens por grupos de matriz africana em algum momento de suas vidas. Pai de santo há dois anos, o contador Silvio Garcia, 52 anos, tem a ficha religiosa marcada por cinco denominações distintas – e a umbanda é uma delas. Foi aos 14 anos, frequentando reuniões na casa de uma vizinha, que Garcia, batizado na Igreja Católica, aprendeu as magias da umbanda. Nessa época, também era assíduo frequentador de centros espíritas. Aos 30, ele passou a cursar uma faculdade de teologia cristã e, com o diploma a tiracolo,

tornou-se presbítero de uma igreja protestante. Um ano depois, migrou para uma pentecostal, onde pastoreou fiéis por seis anos. “Mas essas igrejas comercializam a figura de Cristo e eu não me sentia feliz com a minha fé”, diz. A teóloga Lídia sugere que os sistemas simbólicos das religiões evangélica e afro-brasileira têm favorecido a circulação de fiéis da primeira para a segunda. “Há uma singularidade de ritos, como o fenômeno do transe. Um dos entrevistados me disse que muito do que presenciava na Igreja Universal (do Reino de Deus) ele encontrou na umbanda”, diz. Em suas pesquisas, fiéis do sexo feminino foram as que mais cometeram infidelidade religiosa (67%). Os motivos que levam homens e mulheres a migrar de religião (leia quadro à pág. 60) foram investigados pela professora Sandra, da Umesp. Em outubro, suas conclusões serão

publicadas em “Filosofia do Gênero em Face da Teologia: Espelho do Passado e do Presente em Perspectiva do Amanhã” (Editora Champanhat).

SALVAÇÃO

Homens pensam em si quando buscam uma nova crença:

Higuti, pastor da Bola de Neve, queria se livrar das drogas

Uma diferença básica entre os sexos é que as mulheres mudam de religião em busca de graça para quem está a sua volta (a cura para filhos e maridos doentes ou a recuperação do

casamento, por exemplo). Já os homens são motivados por problemas de fundo individual. Assim ocorreu com o empresário paulista Roberto Higuti, 45 anos, que se tornou evangélico para afastar o consumo e o tráfico de drogas de sua vida. Católico na infância, budista e adepto da Igreja Messiânica e da Seicho-No-Ie na adolescência, Higuti saiu de casa aos 15 anos e se tornou um fiel seguidor do mundo do crime. Sua relação com as drogas foi pontuada por internação em hospital psiquiátrico, prisão e duas tentativas de suicídio. Certo dia, cansado da falta de perspectivas, viu uma marca de cruz na parede, ajoelhou-se e disse: “Jesus, se tu existes mesmo, me tira dessa vida maldita.” Há cinco anos, o empresário é pastor da neopentecostal Igreja Bola de Neve, onde ministra dois cultos por semana. “Quero, agora, ganhar almas para o Senhor”, diz. Antes de se fixar na Bola de Neve, Higuti experimentou outras quatro denominações evangélicas. Mobilidades intraevangélicas como as dele ocorrem com aproximadamente 40% dos adeptos de igrejas pentecostais e neopentecostais, segundo a especialista em sociologia da religião Sílvia, da UFRRJ. Os neopentecostais, porém, possuem uma particularidade. Seus fiéis trocam de igreja como quem descarta uma roupa velha: porque ela não serve mais. São a homogeneização da oferta religiosa e a maior visibilidade de

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algumas denominações que produzem esse efeito. “Esse grupo, antigamente, era o tal receptor universal de fiéis, para onde iam todas as religiões. Hoje, a singularidade dele é o fato de receber membros de outras neopentecostais”, diz Sandra, da Umesp. “Quanto mais acirrada a concorrência, maior a migração.” A exposição na mídia, fundamentalmente na tevê, é a principal estratégia dos neopentecostais para roubar adeptos da concorrente direta. E cada vez mais as pessoas estabelecem uma relação utilitária com a religião. De acordo com a pesquisadora Sandra, se não há o retorno (material, na maioria das vezes), o fiel procura outra prestadora de serviço religioso. Estima-se, por exemplo, que 70% dos atuais adeptos da Igreja Mundial – uma dissidente da Universal – tenham migrado para lá vindos da denominação de Edir Macedo. “Entre os neopentecostais não se busca mais um líder religioso, mas um mago que resolva tudo num estalar de dedos”, diz Sandra. “Essa magia faz sucesso, mas tem vida curta, uma vez que o fiel se afasta, caso não encontre logo o que quer.”

SEM LAÇOS

Lucina não segue nenhum credo, mas quando quer alcançar uma graça procura algum serviço religioso: 30% fazem o mesmo anualmente

Cansada de pular de uma crença para outra, a artesã paulista Lucina Alves, 57 anos, não sente mais necessidade de pertencer a uma igreja. Há oito anos, ela diz ser do grupo dos sem-religião. No entanto, recorre a ritos de fé, principalmente católicos, espíritas e da Seicho-No-Ie, sempre que sente vontade de zelar pelo bem-estar de alguém. “Há um mês, fui até uma benzedeira ligada ao espiritismo para ajudar meu filho que passava por problemas conjugais”, diz. Dados do artigo “Trânsito religioso no Brasil” revelaram que 30,7% das pessoas que se encontram na categoria dos sem-religião frequentam algum serviço religioso anualmente e 20,3% fazem o mesmo mais de uma vez por mês. “Já participei de reuniões evangélicas de orações em casa de familiares”, conta Lucina.

A artesã não cultua santos, crê em Deus, Jesus Cristo e acende vela para anjos. No campo das ciências da religião, manifestações espirituais como as dela são recentes e vêm sendo tema de novos estudos. A migração de brasileiros para o islã é outro fenômeno que cresce no País. O número de convertidos na comunidade muçulmana do Rio de Janeiro, por exemplo, saltou de 15% em 1997 para 85% em 2009. Ex-umbandista que hoje atende por Ahmad Abdul-Haqq, o policial militar paulista Mario Alves da Silva Filho tem um inventário religioso de dar inveja.

Batizado no catolicismo, aos 9 anos estreou na umbanda em uma gira de caboclo e baianos. Um ano depois, juntando moedas que ganhava dos pais, comprou seu primeiro livro, sobre bruxaria. Aos 14, passou a frequentar a Federação Espírita paulista, onde fez cursos para trabalhar com incorporações e psicografia. Aos 17 anos, trabalhou em ordens esotéricas ao mesmo tempo que dava expediente na umbanda. O policial, mestrando em sociologia da religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), decidiu se converter ao islã quando fazia um retiro de padres jesuítas. Em uma noite, sonhou com um árabe que o indicava o islã como resposta para suas dúvidas. Aos 29 anos, ele entrou em uma mesquita e disse que queria ser muçulmano. Saiu dela batizado e, desde então, faz cinco orações e repete frases do “Alcorão” diariamente. “Descobri que sou uma criatura de Deus e voltarei ao seio do Criador.”

MECA

Migração atípica: o policial Filho, de currículo religioso extenso, trocou a umbanda pelo islã

Faz dez anos que o número de convertidos ao islã no País aumentou. E não são os atentados às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, que marcam esse novo fluxo, mas a novela “O Clone”, da Globo. Foi ela que “introduziu no imaginário cultural brasileiro imagens bastante positivas dos muçulmanos

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como pessoas alegres e devotadas à família”, como defende Paulo Hilu da Rocha Pinto em “Islã: Religião e Civilização – Uma Abordagem Antropológica” (Editora Santuário), de 2010. “De lá para cá, a conversão de brasileiros cresceu 25%. Em Salvador, 70% da comunidade é de convertidos”, diz a antropóloga Francirosy Ferreira, pesquisadora de comunidades muçulmanas da Universidade de São Paulo (USP), de Ribeirão Preto. Assistente financeiro, o paulista Luan Nogueira, 23 anos, tornou-se muçulmano há um ano. Por indicação de um amigo, passou a pesquisar o islã e descobriu que o discurso estigmatizado criado após o 11 de setembro, que relacionava a religião à intolerância e à violência, não era verdadeiro. “Encontrei na mesquita e no “Alcorão” a ética da boa conduta”, diz. “Me sinto mais próximo de Deus no islã.” Para o professor Frank Usarski, do Centro de Estudo de Religiões Alternativas de Origem Oriental, da PUC-SP, o atrativo do islã é o fato de não ter perdido, diferentemente de outras religiões, a competência da interpretação completa da vida. “Ele oferece um guarda-chuva de referências para esferas como economia e ciência”, diz Usarski.

ORIXÁS Ex-liderança evangélica, Garcia largou os cultos cristãos (abaixo) para se tornar pai de santo

Segundo o escritor Pinto, que também é professor de antropologia da religião na Universidade Federal Fluminense, o islã permite aos adeptos uma inserção e compreensão sobre questões atuais, como, por exemplo, a Palestina, a Guerra do Iraque e segurança internacional, para as quais outros sistemas religiosos talvez não deem respostas. “Se a adoção do cristianismo em contextos não europeus do século XIX pôde ser definida com uma conversão à modernidade, a entrada de brasileiros no islã pode ser vista como uma conversão à globalização”, escreve ele, em seu livro. É cada vez mais comum, no País, fiéis rezando com a cartilha da autonomia religiosa. Esse chega para lá na fé institucionalizada tem conferido características mutantes na relação do brasileiro com o sagrado, defende a professora Sandra, de ciências sociais e religião da Umesp. “Deus é constituído de multiplicidade simbólica, é híbrido, pouco ortodoxo, redesenhado a lápis, cujos contornos podem ser apagados e refeitos de acordo com a novidade da próxima experiência.” Agora é o fiel quem quer empunhar a escrita de sua própria fé.

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40

RAÍZES e INFLUÊNICAS RELIGIOSAS Edward Pimenta Jr. - Super Interessante n. 181-out 2002, p. 22-23.

Religiões Panteístas Mais antigas do mundo e a primeira etapa da evolução do pensamento

religioso (antes de 4000 a.C.). Sem base escrita. Deus está no sol, lua, vento,

forças da natureza. Animismo, xamanismo e totemismo: rituais ao ar

livre e culto aos antepassados.

Politeísmos Deuses criadores e

destruidores.

Religiões Orientais Revelação dos seres

iluminados, reencarnação e evolução por esforço ∆.

Religião Grega Deuses com

atributos humanos

Religião Egípcia Deuses com

atributos humanos

Hinduísmo Baseado no livro

do Vedas, abrange variações

monoteístas e politeístas.

Shintoísmo Antepassados como deuses

tutelares. 700 a.C.

Neopanteístas Resgatam símbolos e

mitos de diversas religiões (monista).

Mais comum a partir do séc. XVIII

Espiritismo Reencarnação e

evolução espiritual. Allan Kardec 1857.

Budismo Siddartha Gautama (600 a.C.). Vidas

passadas e presentes interligadas

Seicho-No-Ie Criada em 1930,

promove curas e graças. Bom e ruim depende da

atitude mental

Rosa Cruz Fraternidade mística, mais

divulgada a partir de 1909

Monoteísmos Último milênio a.C. com livros sagrados,

códigos de leis e verdades absolutas.

Judaísmo Povo escolhido por Deus. A Torá e o

Talmude são livros sagrados.

Cristianismo Crêem na existência de um Deus criador e no caráter divino da revelação de Jesus.

(54)

Hare Krishna Desdobramento do hinduísmo (1966). Baseado na devoção a

Vishnu e Krishna. Com mantras � fim da ansiedade e desenv. cs e do amor a Deus.

Umbanda Início do séc. XX, é

sincrético (Candomblé, catolicismo, espiritismo

e ameríndios).

Candomblé Origem africana no

Brasil (1700). O Orixá incorpora no pai ou mãe de santo. Cada entidade

com suas cantigas/danças

Sincretismos Afros As tribos africanas no Brasil

se separaram e tradições religiosas se misturaram. Xangô, Tambor de Mina.

Pentecostais Surgem nos EUA, séc. XX. Poder

de cura do Espírito Santo (Cristã do Brasil, Assembléia de Deus,

Evangelhos Quadrangular, O Brasil para Cristo, Deus é Amor...).

Protestantismo Rompe com a hierarquia de Roma (1517). Luteranos, calvinistas e anglicanos:

salvação pela graça de Deus, mediante a fé.

Presbiteriana Surgiu na Europa (1546),

inspiração calvinista. Influenciou na formação dos

EUA.

Catolicismo Do núcleo fundado

por Pedro, posterior/e dividido em

arquidioceses, dioceses, províncias eclesiásticas (150)

Igreja Ortodoxa Rompe com cristãos de Roma (1054), fiel

à mensagem primitiva. Valoriza a liturgia e preceitos

morais

Islamismo Maomé o último dos

profetas. (622). O Alcorão versa sobre

vida familiar, política e jurídica.

Influências: Judaica/Cristã.

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FÉ CEGA, FACA AMOLADA Ódio gera ódio e escolhe seus alvos a esmo.

Contra o radicalismo dos crimes cometidos em nome da religião, a única arma deve ser um exercício radical de tolerância.

Por André Santoro. Revistas das Religiões, ed. 15, nov.2004, p.30-35.

INTOLERÂNCIA EM NOME DA PAZ

Na manhã do dia 20 de março de 1995, membros de uma seita japonesa espalharam o venenoso gás sarin dentro de vagões

superlotados do metrô de Tóquio. O ataque matou 12 pessoas, intoxicou milhares de passageiros e foi atribuído ao movimento de

cunho terrorista Aun Shinrikyo (A Verdade Suprema). O líder da seita, Shoko Asahara, apresentava-se como um messias e

prometia uma batalha do fim dos tempos que lhe proporcionaria o domínio do Japão e do mundo.

Além da matança indiscriminada, o que mais assustou foi o fato de a seita basear-se em princípios de várias doutrinas que

pregam a paz e a tolerância, como o Budismo japonês, o Budismo tibetano e o Hinduísmo. “O fato de o Japão ter dado as costas à

sua espiritualidade tradicional e ter adotado uma mentalidade francamente materialista, para não dizer hostil à religião, ajudou a

tornar a juventude japonesa extremamente vulnerável a esse tipo de movimento”, afirma o reverendo Ricardo Mário Gonçalves,

do Instituto Budista de Estudos Missionários, em São Paulo.

Na linha budista japonesa, os movimentos de retorno aos fundamentos da doutrina surgiram no século 19 – assim como

no Protestantismo norte-americano – como reação ao processo de modernização pelo qual passava a sociedade japonesa. “Existe

fundamentalismo no Budismo, como em todas as grandes religiões”, afirma o reverendo Ricardo. E suas principais características,

de acordo com ele, são a simplificação extrema da doutrina para a solução de problemas materiais imediatos, o uso de técnicas

agressivas de propaganda para massificar a religião e a adoção de posições políticas conservadoras, desencorajando atitudes

críticas frente aos problemas sociais.

ORIGENS DO TERROR ISLÂMICO

Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, os muçulmanos passaram a ser vistos com desconfiança pelo mundo ocidental. O

simples fato de ostentar um nome árabe tirou o sossego de muitos viajantes que desejavam entrar em países cristãos,

especialmente nos Estado Unidos. Muito já se falou sobre as passagens belicosas do Corão. “Matai os idólatras, onde quer que os

acheis; capturai-os, acossai-os e espreitai-os”, diz um trecho do livro sagrado do Islamismo. Por outro lado, várias passagens

pregam a alternativa da paz e do diálogo. Matar um inocente, com base nessa visão, seria o equivalente a matar a humanidade.

Mas, afinal, o Islã pode ser usado como justificativa para atos de terror? O historiador Bernard Lewis oferece uma possível

resposta a esta questão. A violência promovida atualmente por alguns grupos islâmicos, de acordo com o pesquisador, seria a

reedição de atos sangrentos praticados por uma seita de radicais surgida no Irã no século 10. A luta dos “Assassinos”, como eram

chamados, tinha como objetivo final a restauração da unidade do Islã, que havia sido abalada pela morte do profeta Muhammad.

Como muitos terroristas de hoje, eles também eram treinados para matar e morrer, na esperança de alcançar o Paraíso e todas as

suas benesses.

Apesar do valor histórico de sua pesquisa, o próprio Bernard Lewis faz uma advertência: os Assassinos tinham

características fundamentalistas e foram, talvez, o primeiro grande movimento de intolerância dentro do Islã. “Mas eles não

inventaram o assassinato, apenas emprestaram dele o nome. O homicídio, tal como é, é tão antigo quanto a raça humana”, afirma

o escritor em seu livro Os Assassinos: Os Primórdios do Terrorismo no Islã.

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Fanático, de acordo com o dicionário Aurélio, é aquele que: “1) se considera inspirado por uma divindade, pelo espírito

divino; iluminado; 2) tem zelo religioso cego, excessivo; intolerante; 3) adere cegamente a uma doutrina, a um partido; é

partidários exaltado; faccioso; 4) tem dedicação, admiração ou amor exaltado a alguém ou algo; entusiasmo, apaixonado”. No

português, a palavra geralmente é usada em tom negativo. Mas a raiz latina do vocábulo esconde um sentido mais amplo, que vem

do latim fanaticus, uma variação de fanum, que significa templo ou lugar consagrado. “O fanaticus era aquele que freqüentava o

fanum”, diz José Rodrigues Seabra Filho, especialista em Letras Clássicas da Universidade de São Paulo.

A etimologia joga um facho de luz sobre a palavra que é pronunciada à exaustão em nossos dias. Fanático não é só o

homem-bomba que, por algum motivo obscuro, abre mão da própria vida par ceifar outras tantas. Nem apenas o terrorista que, na

esperança de alcançar o Paraíso, joga um avião contra um prédio. De acordo com o psicanalista Raymundo de Lima, professor da

Universidade Estadual de Maringá, no Paraná, o fanático – não apenas o religioso – pode ser detectado com base em alguns

sintomas, como a certeza de ser portador de uma verdade inquestionável, a tentativa de imposição tirânica desta mesma verdade,

cuja importância ultrapassaria o instinto de preservação da própria vida, e isolamento do grupo.

Qualquer semelhança com uma crença que extrapola os limites da fé e descamba para a fúria cega contra o próximo não é

mera coincidência. As religiões, aliás, sempre estiveram associadas a algum grau de fanatismo, por um motivo simples: elas só se

mantêm graças à partilha dos mesmos valores por uma determinada comunidade. É claro que os métodos de persuasão variam

bastante, o que significa dizer que nem todos os religiosos são fanáticos, no sentido pejorativo da palavra. “Mas a sensação da

certeza proporcionada pelas religiões abre espaço para a violência, mesmo que seja em nome da paz”, afirma o filósofo Luiz

Felipe Ponde, da PUC de São Paulo.

MEDO DO NOVO

A violência é um elemento que não pode ser dissociado da natureza humana. Quando o homem começou a manifestar

suas crenças em sistemas mais ou menos organizados, essa agressividade visceral passou a ser aliviada por uma válvula de escape:

o ritual do sacrifício. A teoria acima, elaborada pelo antropólogo francês René Girard, é uma explicação possível para os atos de

crueldade promovidos por alguns indivíduos que se dizem iluminados. Os sacrifícios, que podem resultar no derramamento de

sangue de um animal ou de uma multidão de pessoas inocentes, aplacariam a ira divina e fariam girar a roda da fé.

O pensador justifica sua visão de que a violência, longe de ser um simples efeito colateral, pode ser uma necessidade

interna das religiões. E busca as possíveis origens desse instinto de destruição no Antigo Testamento. “Talvez seja este, entre

outros, o significado da história de Caim e Abel. Caim cultiva a terra e oferece a Deus os frutos de sua colheita. Abel é um pastor

e sacrifica os primogênitos de seu rebanho. Um dos irmãos mata o outro – justamente o que não dispõe deste artifício contra a

violência”, escreveu Girard em seu livro A Violência e O Sagrado.

Em geral, a prática religiosa é permeada por atitudes positivas: o exercício da caridade, a pregação do diálogo e do

respeito ao outro, a valorização da ética, a celebração da partilha, entre outras. No entanto, todo credo baseia-se em algum tipo de

restrição ideológica. “Um dos pilares da construção religiosa é a crença coletiva em certos valores”, diz o pesquisador César

Vinícius Ornelas, da PUC de São Paulo, que prepara uma tese de doutorado sobre fundamentalismo religioso. O pensamento, ao

extremo, é mais ou menos assim: se eu creio na verdade e este é o caminho correto, o outro – que não segue minha doutrina – só

pode estar errado.

É claro que, mesmo com a adesão do grupo a princípios comuns, a fé pode andar longe das atitudes radicais. “A

religiosidade pressupõe uma experiência existencial e a busca de um sentido ético para a vida. Mas o sagrado e o profano são os

dois lados necessários da vida. Quando tudo se concentra no templo, há o risco do fanatismo”, afirma o rabino Alexandre Leone,

da Congregação Israelita Paulista.

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VOLTA ÀS RAÍZES

A tentativa de compreender o mundo exclusivamente através do prisma da religião pode desencadear um processo de limitação das liberdades individuais. E costuma surgir como resposta a alguma ameaça externa. Em meados do século 19, alguns seguidores do Protestantismo norte-americano passaram a se sentir ameaçados pelo impulso de mudança que tomava conta da sociedade. Em oposição aos protestante mais liberais, eles começaram a defender uma interpretação literal da Bíblia – ou, na visão da época, um retorno aos fundamentos do Cristianismo. Em 1915, um grupo de professores de Teologia da universidade de Princeton publicou uma coleção intitulada Fundamentals: A Testimony of the Truth (Fundamentos: Um Testemunho da Verdade, inédito no Brasil). A partir de então, os seguidores desse novo Protestantismo passaram a se denominar fundamentalistas. O termo que hoje rotula grupos extremistas islâmicos e seguidores de seitas apocalípticas, entre outros, nasceu como uma reação à modernização. “Não só modernização tecnológica, mas modernização dos espíritos, do liberalismo, da liberdade das opiniões, contrastando fundamentalmente com a seguridade que a fé cristã oferecia”, escreveu o teólogo Leonardo Boff em seu livro Fundamentalismo: a Globalização e o Futuro da Humanidade. Ser fundamentalista de acordo com Boff, “é assumir a letra das doutrinas e normas sem cuidar de seu espírito e de sua inserção no processo sempre cambiante da História, que obriga a contínuas interpretações a atualizações, exatamente para manter sua verdade essencial”. O próprio fundamentalismo religioso pode ser interpretado de forma positiva, desde que deixemos de lado as conseqüências mais sangrentas da interpretação inflexível dos mandamentos religiosos. “Quanto mais vamos aos fundamentos do Cristianismo, do Judaísmo e do Islamismo, mais encontramos a dimensão libertária, o cuidado para com os pobres, o respeito para com todas as pessoas e a veneração para com a natureza”, afirma Leonardo Boff. Encarada desta forma, a busca pelas raízes das religiões pode ter uma causa nobre e humanista. Nem todo comportamento fundamentalista, portanto, é baseado em mecanismos de intolerância e intransigência. Um exemplo seria a Teologia da Libertação, que retoma as bases do Cristianismo para promover atitudes humanistas e democráticas. Apesar de representar uma interpretação rígida de alguma doutrina, o fundamentalismo não dever ser confundido com ortodoxia. “Cada religião baseia-se em um cerne dogmático de crenças. Às vezes, existe uma autoridade, como a do papa ou da Congregação Romana, que determina que interpretações desviam-se desse dogma e, portanto, da ortodoxia”, escreveu o filósofo Jürgen Habermas no livro Filosofia em Tempo de Terror. O ortodoxo defende a preservação da doutrina, mas não é, necessariamente, fechado ao diálogo. E, acima de tudo, goza de boa reputação entre seus pares, algo que não costuma acontecer com grupos fanáticos. “A maioria dos seguidores do Islamismo, Cristianismo, Judaísmo, Budismo, Sikhismo e Hinduísmo considera que os fundamentalistas são uma minoria irresponsável”, afirma o historiador Robert Scott Appleby em The Ambivalency of the Sacred (A Ambivalência do Sagrado, sem tradução para o português).

Muito antes dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, seguidores de diferentes religiões já experimentaram algum tipo de fundamentalismo. “Ele não se limita aos grandes monoteísmos. Ocorre também entre budistas, hinduístas e até confucionistas quando rejeitam muitas da conquistas da cultura liberal, lutam e matam em nome da religião e se empenham em inserir o sagrado no campo da política e da causa nacional”, escreveu a teóloga e ex-freira católica Karen Armstrong na obra Em nome de Deus.

Apesar de ter surgido oficialmente no século 19, a busca pelos fundamentos religiosos é um fenômeno que ganhou força nas últimas duas décadas, especialmente após a queda do Muro de Berlim. Os discursos ideológicos, que se apoiavam num mundo polarizado entre duas grandes forças políticas, perderam terreno para as justificativas religiosas. Hoje, matar em nome de um regime de governo tornou-se tão menos contuntende – e freqüente – quanto cometer crimes usando a fé como pretexto.

PERSPECTIVAS Todos os dias somos bombardeados com notícias sobre novos atentados em tradicionais zonas de conflito. Repetindo o

eterno ciclo de violências que se arrasta desde as cruzadas, quando cristãos e muçulmanos digladiavam-se, facções religiosas pregam o ódio mútuo – muitas vezes com a ajuda dos meios de coerção de seus próprios Estados – como forma de defender seus dogmas. Em Israel, grupos judaicos fundamentalistas pleiteiam um Estado regido pelas leis da Tora em vez de um sistema de governo laico. Segundo o rabino Alexandre Leone, por conta do apego desses grupos às próprias crenças, eles abominam qualquer tipo de manifestação religiosa não judaica. A mesma lógica – de defesa dos fundamentos de sua fé – permeia os ataques de fiéis evangélicos a cultos afros no Brasil. O argumento é de que esses fiéis se sentiriam ameaçados pelos rituais praticados no Candomblé e na Umbanda, que, na visão deles, estariam associados a obras do demônio e iriam contra a vontade de Deus.

Talvez ainda sejamos obrigados a conviver com a rotina diária da religião a serviço do ódio – ou vice-versa – durante um bom tempo. Há saída para o ciclo de intolerância dentro do qual a humanidade se encontra há vários milênios, mas o caminho não é dos mais fáceis. “Ao terrorismo devemos responder com ações de justiça social em nível mundial, com relações mais equânimes, com formas de inclusão e de diálogo com todas as culturas”, afirma Leonardo Boff. Utópico? Talvez. “A pergunta que fica, dentre muitas outras, é se é possível resgatar o passado sem aniquilar o futuro. Podemos lidar com a tradição sem violentar o presente?”, afirma César Ornelas. Cabe a nós encontrar as respostas. Sem demora.