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APRESENT AÇÃO D e um lado, o Brasil que deu certo. Aquele que consome e é regido pela lei de mercado. Este é o Brasil das Alphaville, das BMW, das finas massas italianas e da água mineral francesa Perrier. De outro, o país dos miseráveis, sem acesso às proteínas mínimas necessárias à sobrevivência, ao mercado de trabalho, à educação, à saúde, à habitação e à terra. Este é o Brasil das chacinas do Carandiru (111 mortos), da Candelária (7 mortos), de Vigário Geral (21 mortos), de Corumbiara (9 mortos) e de Eldorado dos Carajás (19 mortos). São dois Brasis distintos e o primeiro deles faz de conta que o outro não existe. Pior, o presidente da República não assume suas responsabilidades. Age como se a culpa fosse da sociedade como um todo e não do seu governo ou de governos anteriores. A Revista Adusp, baseada em uma pauta proposta para a revista BRASIS, publicação da Andes que está em fase de estudo de viabilidade econômica, e com a colaboração da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, procurou levantar os principais rankings que identificam claramente a vala que separa esses dois países. Não é nossa proposta publicar índices inéditos ou apontar soluções definitivas. Procuramos, sim, agrupar dados que são apresentados isoladamente em simpósios, congressos e pela própria imprensa. Talvez o contraste desses Brasis explique a atitude de um soldado do exército que, no final do ano passado, assaltou um banco em Porto Alegre e, preso em seguida no interior de um ônibus, confessou-se envergonhado de duas coisas: do próprio assalto que acabara de cometer e do salário de R$ 160,00. Para complementar esta análise, publicamos artigo inédito do prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro (PT) – também pautado originalmente para a revista BRASIS e uma entrevista com o economista e sociólogo da USP Francisco de Oliveira. Ele fala do fracasso do governo Fernando Henrique Cardoso em diminuir as desigualdades sociais desses dois países. Na visão do professor Chico de Oliveira, como é conhecido, as regras estabelecidas pelo governo FHC tendem a aumentar e acentuar ainda mais esse distanciamento. O depoimento do professor Jorge Beloqui, também publicado nesta edição, reafirma a existência do fosso entre o Brasil de uma minoria abastada e o Brasil da maioria dos cidadãos comuns. Infectado com o vírus da Aids, o professor Beloqui não consegue o remédio 3TC –o que há de mais avançado no combate a essa doença, neste momento– porque o Ministério da Saúde não o distribui, a reitoria da USP se nega a pagar o tratamento, e o salário dele, diante dos outros gastos existentes, é insuficiente. Não bastasse essa realidade, o Congresso Nacional acaba de aprovar a Lei de Patentes, que abre uma imensa avenida para que as multinacionais do setor farmacêutico invadam e dominem o conhecimento na área de seres vivos. Enquanto inúmeros países se negam a patentear a vida, o Brasil se curva diante dos interesses do governo norte-americano. Esse assunto é tratado em artigo do professor José Walter Bautista Vidal.

APRESENTAÇÃO D - adusp.org.br · FLORESTAN NÃO TEVE MEDO DA LIBERDADE! Maria Nilde Mascellan 49 SOBRE HÓSTIAS, CÓPULAS, BISPOS E DIVORCIADOS ... 400 mil crianças morrem de fome

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APRESENTAÇÃO

De um lado, o Brasil que deu certo. Aquele que consome e é regido

pela lei de mercado. Este é o Brasil das Alphaville, das BMW, das finas massas italianas e da água mineral francesa Perrier.

De outro, o país dos miseráveis, sem acesso às proteínas mínimasnecessárias à sobrevivência, ao mercado de trabalho, à educação, à saúde,

à habitação e à terra. Este é o Brasil das chacinas do Carandiru (111 mortos), da Candelária (7 mortos), de Vigário Geral (21 mortos),

de Corumbiara (9 mortos) e de Eldorado dos Carajás (19 mortos). São dois Brasis distintos e o primeiro deles faz de conta que o outro não existe.

Pior, o presidente da República não assume suas responsabilidades. Age como se a culpa fosse da sociedade como um todo e não do seu governo ou de governos anteriores. A Revista Adusp, baseada em uma pauta proposta

para a revista BRASIS, publicação da Andes que está em fase de estudo de viabilidade econômica, e com a colaboração

da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,procurou levantar os principais rankings que identificam claramente a vala que separa esses dois países. Não é nossa proposta publicar índices inéditos

ou apontar soluções definitivas. Procuramos, sim, agrupar dados que são apresentados isoladamente em simpósios, congressos

e pela própria imprensa. Talvez o contraste desses Brasis explique a atitude de um soldado do exército que, no final do ano passado, assaltou um banco

em Porto Alegre e, preso em seguida no interior de um ônibus, confessou-se envergonhado de duas coisas: do próprio assalto

que acabara de cometer e do salário de R$ 160,00. Para complementar esta análise, publicamos artigo inédito do prefeito de Porto Alegre,

Tarso Genro (PT) – também pautado originalmente para a revista BRASIS – e uma entrevista com o economista e sociólogo da USP Francisco de Oliveira.

Ele fala do fracasso do governo Fernando Henrique Cardoso em diminuir as desigualdades sociais desses dois países.

Na visão do professor Chico de Oliveira, como é conhecido, as regrasestabelecidas pelo governo FHC tendem a aumentar e acentuar ainda mais

esse distanciamento. O depoimento do professor Jorge Beloqui, também publicado nesta edição, reafirma a existência do fosso entre

o Brasil de uma minoria abastada e o Brasil da maioria dos cidadãos comuns.Infectado com o vírus da Aids, o professor Beloqui não consegue o remédio 3TC

–o que há de mais avançado no combate a essa doença, neste momento– porque o Ministério da Saúde não o distribui, a reitoria da USP se nega a pagar o tratamento, e o salário dele, diante dos outros gastos existentes, é insuficiente.

Não bastasse essa realidade, o Congresso Nacional acaba de aprovar a Lei de Patentes, que abre uma imensa avenida para que as multinacionais do

setor farmacêutico invadam e dominem o conhecimento na área de seres vivos.Enquanto inúmeros países se negam a patentear a vida, o Brasil

se curva diante dos interesses do governo norte-americano. Esse assunto é tratado em artigo do professor José Walter Bautista Vidal.

DIRETORIAMarco A. Brinati, Osvaldo Coggiola, Jair Borin, Heloísa D. Borsari, Valéria De Marco,

Primavera Borelli, José Nivaldo Garcia, Antonio César Fagundes,José Marcelino Rezende Pinto, Ozíride Manzolli Neto.

Comissão EditorialAdilson O. Citelli, Bernardo Kucinski, Fernando Leite Perrone,

Francisco Gorgônio da Nóbrega, Jair Borin, Khaled Goubar, Lígia M. Marcondes Machado, Nelson Achcar, Nilza Nunes da Silva,

Norberto Luiz Guarinello e Zilda M. Gricoli Iokoi.

Editor: Marcos Luiz Cripa vdEditoração eletrônica: Luís Ricardo Câmara e Maria Cristina Waligora

Capa: Doriana Madeira (Dmag)Fotos da capa: Abril Imagens

Ilustrações: Osvaldo Pavaneli e MaringoniProjeto Gráfico: Dmag - Artes Gráficas

Revisão: Francisco José Mendonça CoutoSecretaria: Alexandra Moretti Carillo e Rogério Yamamoto

Distribuição: Marcelo Chaves e Walter dos AnjosFotolitos: Bandeirante

Gráfica: PoolprintTiragem: 5.000 exemplares

Adusp - S. Sind.Av. Prof. Luciano Gualberto, trav. J, 374

Cidade Universitária - São Paulo - SPCEP 05508-900

Telefones: (011) 813-5573/818-4465/818-4466Fax: (011) 814-1715

A RReevviissttaa Adusp é uma publicação da Associação dos Docentes da Universidade de SãoPaulo - S. Sind., destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem,necessariamente, o pensamento da diretoria da entidade e são de responsabilidade dosautores. Contribuições serão aceitas desde que os textos inéditos sejam entregues emdisquete e tenham no mínimo dez mil e no máximo vinte mil caracteres. Os artigos serãoavaliados pela Comissão Editorial, que decidirá sobre seu aproveitamento.

Reforma do ensino de 1º e 2º Graus

“Quero parabenizar os editores da Revista Adusp que, através das publicações deste veículo,

têm mostrado profissionalismo e competência. Os temas sempre atuais e polêmicos abordados

em matérias e entrevistas vêm propiciar a discussão e conseqüente crescimento cultural e político

de seus leitores. Em relação específica à matéria ‘Os Sinos Dobram pela Escola Pública’, publi-

cada na edição nº 5, janeiro deste ano, que critica o processo de reorganização escolar, quero ex-

pressar minha opinião de que a mudança física da rede escolar visa a melhor qualidade educa-

cional, que até então estava visivelmente afetada por falta de ações técnicas e de boa vontade,

como demonstraram a secretaria da Educação, Rose Neubauer e o governo do Estado ao pro-

mover e assumir tal medida”.

Renato AmaryLíder do PSDB na Assembléia Legislativa de São Paulo

Carta

Expediente

ÍÍNNDDIICCEE6

BBRRAASSIILL,, CCAAMMPPEEÃÃOO DDEE DDEESSIIGGUUAALLDDAADDEEReportagem de Ayrton Kanitz (RS), José Luiz Frare (SP) e Lígia Coelho (RJ)

Texto final de Hamilton de Souza

11EESSTTAADDOO

OOPPUULLÊÊNNCCIIAA EE DDOOMMIINNAAÇÇÃÃOO NNAA TTEERRCCEEIIRRAA OONNDDAATarso Genro

13EENNTTRREEVVIISSTTAAChico de Oliveira

19TTEERR HHIIVV NNAA UUSSPP

OOUU OO UUSSOO DDOO HHÍÍFFEENN NNAA LLÍÍNNGGUUAA PPOORRTTUUGGUUEESSAAJorge A. Beloqui

23CCOOTTAASS PPAARRAA NNEEGGRROOSS NNAA UUNNIIVVEERRSSIIDDAADDEE

Mauro Göpfert Cetrone

30MMOONNOOPPÓÓLLIIOO DDAASS PPAATTEENNTTEESS

J.W.Bautista Vidal

39AAVVAALLIIAARR PPAARRAA CCRREESSCCEERR

Glaci T. Zancan

41DDEENNGGUUEE

EEMM DDEEBBAATTEE OO RREESSSSUURRGGIIMMEENNTTOO DDAA QQUUEESSTTÃÃOODDAA EERRRRAADDIICCAAÇÇÃÃOO DDOO MMOOSSQQUUIITTOO TTRRAANNSSMMIISSSSOORR

Delsio Natal

46FFLLOORREESSTTAANN NNÃÃOO TTEEVVEE MMEEDDOO DDAA LLIIBBEERRDDAADDEE!!

Maria Nilde Mascellan

49SSOOBBRREE HHÓÓSSTTIIAASS,, CCÓÓPPUULLAASS,, BBIISSPPOOSS EE DDIIVVOORRCCIIAADDOOSS

León Ferrari

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Maio 1996 RReevviissttaa Adusp

BRASIL, CAMPEÃO DE DESIGUALDADE

Em várias oportunidades ao longo da sua história o Brasil perdeu a oportunidade de construir um desenvolvimento integral do povo e do país. Essa dissociação cavou abismos,

gerou contrastes e produziu disparidades internas e externas. O Brasil econômico anda longe do Brasil social. Num dos extremos, ostenta o 1º lugar mundial na produção de açúcar, café, frutas,

laranja e mandioca e o 2º lugar em rebanho bovino. No outro extremo, 400 mil crianças morrem de fome anualmente e 22 milhões de brasileiros –9% da população urbana

e 34% da rural– vivem abaixo da linha da pobreza absoluta. A convivência desses opostos, positivos e negativos, é que faz do Brasil um campeão da desigualdade.

Reportagem de Ayrton Kanitz (RS), José Luiz Frare (SP) e Lígia Coelho (RJ)Texto final de Hamilton de Souza

Jogado na disputadíssimacorrida da globalização,o Brasil tem sido obriga-do a reconhecer, de for-ma cada vez mais acinto-sa, que esconde em suas

entranhas contradições estruturaisainda intocáveis. Os “dois brasis”e a “belíndia” de tempos atráscontinuam convivendo impune-mente mesmo nestes tempos de“modernidade” neoliberal. Os in-dicadores nacionais e internacio-nais atestam as disparidades, mos-tram o fosso e, o mais grave, reve-lam caminhos opostos que teimamem não se encontrar.

O Brasil já foi a oitava e agora éa nona economia mundial. Assimmesmo os mais ufanistas adoramlembrar que o país anda em boacompanhia e senta à mesa com aspotências do Primeiro Mundo.Mas o Brasil é, também, o campeãomundial em concentração de renda.Segundo relatório de 1995 do Ban-co Mundial, os 10% mais ricos dapopulação abocanham 51,3% doPIB. “Em nenhum outro país domundo os ricos se apropriam de umpercentual do PIB tão alto como osbrasileiros”, diz Otaviano Helene,professor do Instituto de Física daUsp e ex-presidente da Adusp.

É a pura verdade. Os 40% maispobres no Brasil ficam com ape-nas 7% do PIB, o índice mais bai-xo de todos os 145 países incluídosno relatório do Unicef sobre a Si-tuação Mundial da Infância(1995). E os 20% mais ricos ficamcom 68% da renda nacional, amais alta taxa de concentração domundo. Com esse desempenho, opaís é enviado de volta ao TerceiroMundo e obrigado a andar natriste companhia de Guiné-Bissau,Guatemala e Panamá.

Para se ter uma ideía mais pre-cisa do que representa essa dispa-ridade entre ricos e pobres basta

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Maio 1996RReevviissttaa Adusp

fazer uma comparação com o Mé-xico, país que não se notabilizaexatamente pela justiça social enem pela lisura política e adminis-trativa. Companheiro do Brasil nacorrida da globalização e metidonuma crise econômica desde o fi-nal de 1994, o México ainda conse-gue ser mais justo na distribuiçãoda riqueza: lá, os 20% mais pobresda população ficam com o dobroda renda em relação à mesma ca-mada brasileira (veja quadro).

Lógica

Segundo o professor OtavianoHelene, a lógica da concentraçãoda riqueza no Brasil é tão cruelque acaricia os ricos e esmaga ospobres tanto em períodos de ex-pansão quanto de retração econô-mica. “Não adianta crescer ou di-minuir a economia”, diz ele, poisexistem “mecanismos econômicosmuito fortes que definem quais se-tores vão ganhar ou perder; todavez que há uma expansão econô-mica, os setores mais privilegiados

conseguem se apropriar mais docrescimento e o setor mais atrasa-do não se beneficiará; e toda vezque há uma retração na economiaquem paga por ela são os segmen-tos mais pobres, com diminuiçãode salários, demissões etc.”.

O mais assustador, no entanto,é verificar que essa lógica cruelparece resistir aos regimes políti-cos e à coloração partidária dosgovernos. Nos anos 70, no auge do“milagre brasileiro”, em plena di-tadura militar, o todo-poderosoministro Delfim Netto justificava apolítica de concentração com afórmula culinária, dizendo que erapreciso fazer o bolo crescer paradepois distribuir. Agora, em plenademocracia política, o Plano Real,concebido para estabilizar a eco-nomia, também deu sua contribui-ção para aumentar as distânciasentre ricos e pobres. De acordocom o próprio IPEA, órgão vincu-lado ao Ministério do Planejamen-to, de setembro de 1994 a setem-bro de 1995, 17% do pessoal em-pregado passou da economia for-

mal para o mercado informal, au-mentando o desamparo social, otrabalho precário e a instabilidade.

O aumento do desemprego e acontenção dos salários, de um lado,e o subsídio oficial a setores e gru-pos econômicos, de outro, têm sidoos mais eficientes alimentadoresdas desigualdades. Para o professorEmir Sader, do Departamento deSociologia da USP e da UERJ, “oBrasil detém os melhores e os pio-res indicadores sócio-econômicosdo Terceiro Mundo e, justamentepor isso, é o campeão em desigual-dades, pela polarização entre rique-za e pobreza”. Embora tal afirma-ção possa parecer um paradoxo,ele explica que os setores da econo-mia que mais cresceram nos últi-mos anos foram o da exportação, ode consumo de luxo e o bancário-fi-nanceiro, que não favorecem a dis-tribuição de renda e, ao contrário,são concentradores de riqueza.

Emir Sader afirma que “são jus-tamente os índices positivos queexplicam os negativos”, e cita, co-mo exemplo, o bom desempenhodo Brasil na exportação desde asoja até automóveis, mas, cujo re-sultado, não gera riqueza para opovo. O consumo de luxo idem,pois realimenta apenas o mercadojá existente. Da mesma forma, osetor bancário-financeiro não criariqueza, não produz e “até há al-gum tempo ainda gerava emprego,mas agora nem isso mais, porque odesemprego nesse setor vem cres-cendo muito”. Mesmo sabendodisso tudo, o atual governo insisteem desviar bilhões de reais dos co-fres públicos para “salvar” institui-ções financeiras fraudadas pelosseus próprios proprietários.

Miséria

Se de um lado o Brasil ostenta,orgulhosamente, os primeiros lu-gares em indicadores econômicos(veja quadro), de outro, o paísdesponta, vergonhosamente, nocampeonato das mazelas sociaisque o modelo concentrador pro-porciona. Segundo o relatório doUnicef, o Brasil tem 9% de sua po-pulação urbana e 34% da popula-ção rural vivendo abaixo do nívelde pobreza absoluta. Ou seja, cer-ca de 22 milhões de brasileiros nãotêm condições de manter uma die-ta mínima nutricionalmente ade-quada. Em linguagem clara e dire-ta: estão passando fome.

Outro dado que ilustra as con-tradições do país, a corrosiva con-centração e o fosso que separa osricos dos pobres está presente nascomparações salariais. No merca-do interno, a política salarial não

apenas provoca o achatamento ge-neralizado como também esmagamais drasticamente a base da pirâ-mide. Pesquisa divulgada pela re-vista Exame, em dezembro passa-do, revelou que em 115 empresasde São Paulo, Rio de Janeiro e suldo país, no espaço de seis meses, osalário médio de um executivo pu-lou de 32 vezes o salário médio deum operário para 47 vezes mais.Por essas e outras é que desde adécada de 50 o trabalho vem redu-zindo sua participação na rendanacional e hoje está na casa dos25%; os outros 75% cabem à re-muneração do capital.

Transportados para o cenáriointernacional, os salários brasilei-ros batem novamente nos extre-mos dos indicadores. Com relaçãoao mínimo não é preciso andarmuito: basta verificar que o saláriobrasileiro, em torno dos 100 dóla-res, é o menor pago entre os par-ceiros do Brasil no Mercosul (Ar-gentina, Paraguai e Uruguai). Naoutra ponta, segundo pesquisa daconsultoria internacional TowersPerrin (publicada na Gazeta Mer-

cantil de 15/01/96), os salários dosexecutivos brasileiros são os maisaltos do mundo (294 mil dólarespor ano), numa amostra realizadaem 22 países economicamente for-tes, incluindo Estados Unidos,Alemanha, Japão e França.

Todo mundo está cansado desaber que o desenvolvimento deum país está diretamente relacio-nado com o seu investimento emeducação. Nessa área, mais umavez, o Brasil figura no ranking in-ternacional entre os países commaior número de analfabetos. Emnúmeros absolutos, segundo aUNESCO, o Brasil é o 7º colocadono mundo, com 19 milhões deanalfabetos (veja quadro). O maisgrave, no entanto, é que o país tem– ainda hoje – 4 milhões de crian-ças entre 7 e 14 anos fora da esco-la, sem perspectivas de que ve-nham a ter alguma escolaridadeaté a idade adulta.

Futuro

Além disso, paradoxalmente, acada censo o IBGE registra uma

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Maio 1996 RReevviissttaa Adusp

Vice-campeão mundial da Aids

Segundo dados do Ministério daSaúde, em 1995 o Brasil já estavaem segundo lugar no ranking mun-dial de casos registrados de Aids,com 71.111 doentes, e perdendoapenas para os Estados Unidos, quetinha 441.528 casos registrados. Osdados brasileiros, no entanto, sãoconsiderados subestimados por vá-rias entidades, que apontam falhas eatrasos nos registros da doença enas notificações de mortes. A médi-ca infectologista Maria Eugênia Le-mos Fernandes, da Associação Saú-de da Família, disse que as entida-des de saúde pública estimam quehaja hoje no Brasil 700 mil pessoassoropositivas e que entre 120 mil e130 mil tornam-se portadoras do ví-rus da Aids a cada ano.

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Maio 1996RReevviissttaa Adusp

queda no índice de analfabetismono Brasil, ao mesmo tempo emque cresce o número absoluto deanalfabetos. Em 1920, por exem-plo, 64,9% da população era anal-fabeta, ou 11,4 milhões de pessoas.Em 1950, o analfabetismo caiu pa-ra 50,5% da população e o númerode analfabetos subiu para 15,2 mi-lhões. E, em 1980, havia 25,5% deanalfabetos, ou 18,7 milhões.

Segundo estudos do Unicef,em 1995, comparando o desempe-nho de cada país no ensino com onível de desenvolvimento econô-mico, o Brasil apresentou o quar-to pior resultado da América Lati-na, com 29 pontos negativos, aci-ma somente do Haiti (-40), Gua-temala (-34) e República Domini-cana (-34). Já em 1992, o Brasilfoi incluído pela primeira vez emuma olimpíada internacional deCiências e Matemática, para alu-nos de 7ª série, conduzida por ins-tituições norte-americanas. Parti-ciparam 20 países de todos oscontinentes e o Brasil acabou clas-sificado em penúltimo lugar, àfrente apenas de Moçambique.

No Brasil, a situação econômicainterfere negativamente na escola-ridade e na qualidade do ensino.Segundo o professor Otaviano He-lene, “sobretudo na universidadeparticular, quando há crise econô-mica cai o índice de matrícula, en-quanto nos países onde a escola épública, como na Argentina, quan-do há desemprego o aluno que nãotem trabalho acaba ficando maistempo na universidade”. Dados daUNESCO mostram que quase 50%das crianças matriculadas na 1ª sé-rie do 1º grau abandonam a escolaantes do final do ano ou são repro-vadas. Muitas delas deixam a esco-la para trabalhar e complementar arenda familiar. Por isso, de cada100 crianças matriculadas na 1ª sé-rie apenas 56 atingem a 5ª série;somente 39 chegam ao 2º grau e 12à universidade.

Com base nessa situação, es-pecialistas brasileiros reunidosnum seminário em São Paulo, em1993, avaliaram que no atual rit-mo de escolarização apenas noano 2100 o Brasil terá 95% deuma geração com o 1º grau com-

pleto; e somente no ano 3080 cer-ca de 90% dos brasileiros terãoconcluído o 2º grau — índicesque os países desenvolvidos já al-cançaram há tempos.

O Brasil econômico continuaandando longe do Brasil social. Opaís ostenta, por exemplo, segundoa FAO, o oitavo lugar mundial naprodução de cereais, ficando atrásda China, EUA, Índia, Rússia,França, Indonésia e Canadá. Masobtém, ao mesmo tempo, o 87ºpior índice de mortalidade infantil,numa lista de 132 países. Com 57mortes no primeiro ano de vida,entre cada mil crianças nascidas vi-vas, o país só ganha, em toda aAmérica Latina, da Bolívia (73) edo Peru (63); e perde para paísescomo Nicarágua (51), Guatemala(46), El Salvador (45), Honduras(41), República Dominicana (40)e, distanciado, de seus parceiros doMercosul.

Campeão de mortes no trânsito

Embora os números sobre mor-tes em acidentes de trânsito apre-sentem diferenças nos registros devários órgãos no Brasil, entre eles oGeipot, ABNT e Denatran, em to-dos o país aparece disparado comoo grande campeão mundial. Deacordo com o Denatran (Departa-mento Nacional de Trânsito), em1992 morreram em acidentes 21.387pessoas, enquanto no Japão foram11.451; na Alemanha, 11.300; naFrança, 9.617 e, na Itália, 7.400. To-dos esses países, entretanto, man-têm frotas superiores à brasileira,que era, em 92, de 20,9 milhões deveículos. O Japão tinha 64,6 milhõesde veículos; a Alemanha, 47,4; aFrança, 28,8 e a Itália, 34,7 milhõesde veículos.

Fome

De acordo com a FAO e outrasinstituições internacionais, o Brasilocupa o 1º lugar mundial na pro-dução de açúcar, café, frutas, la-ranja e mandioca; é o 2º na produ-ção de feijão, soja, banana e cacaue em rebanho bovino; é o 3º naprodução de milho; é o 4º na pro-dução de carne e na criação de ga-linhas; é o 5º em rebanhos suíno eeqüino. Ou seja, a fartura da agri-cultura e da pecuária brasileiras éde dar inveja em qualquer país doplaneta. No entanto, segundo da-dos da Fundação Abrinq pelos Di-reitos das Crianças, 400 mil crian-ças morrem de fome por ano noBrasil. E a reversão desse quadro émais dramática quando se sabeque mais de 53% da população in-fanto-juvenil vivem em famílias cu-

ja renda mensal per capita não ul-trapassa meio salário mínimo.

Enfrentar as disparidades, redu-zir o fosso e acabar com as desigul-dades são desafios antigos da vidanacional. Para o professor EduardoGiannetti Fonseca, da Faculdadede Economia da USP, “os proble-mas mais graves do Brasil são a au-sência de uma boa base educacio-nal, o descontrole demográfico, afalta de acordo sobre as regras dojogo econômico e Estado excessiva-mente intrusivo, que não respeita aliberdade e as regras do mercado”.Ele acha que, “para se tornar umagrande nação, o Brasil precisa re-solver duas coisas básicas: a pobre-za em massa e a inflação crônica;tiradas essas duas pragas, o paístem condições de florescer enquan-to cultura e mostrar que nem tudona vida é valor econômico”.

O professor Emir Sader respon-sabiliza diretamente o modelo eco-nômico concentrador pelas maio-res contradições do país. Segundoele, o Plano Real “estabilizou amoeda, mas foi uma estabilizaçãopuramente monetária, porque exis-te muita entrada de dólares, já queo Brasil tem a taxa de juros maisalta do mundo e isso atrai capitalespeculativo, mas não cria rique-za”. Além disso, acrescenta: “OEstado brasileiro é deficitário, é omaior devedor da economia e pagadívidas com a taxa de juros mais al-ta do mundo. Quando FernandoHenrique Cardoso assumiu, a dívi-da interna do Brasil era de 45 bi-lhões de reais e hoje é de 103 bi-lhões. Em 95, o governo gastou 25bilhões de reais entre dívida inter-na e externa, mas com saúde eeducação gastou apenas 8 bilhões”.

Todos os indicadores provam,com seus números (relativos e ab-solutos), que o distaciamento entreo caminho econômico e o caminhosocial cria mesmo contradições detoda ordem, alimenta disparidadese polarizações e torna evidenteuma sociedade desigual. Na lutapor tecnologia e produtividade,fundamentais na corrida interna-cional de mercados, o Brasil im-pressiona por sua voracidade emobter o certificado de qualificaçãoISO 9000, que atesta a boa quali-dade na produção de bens e servi-ços. Ao mesmo tempo, o país pro-voca arrepios em todo o mundocom o trágico exemplo de Caruaru,onde matou mais de 40 pessoasnuma simples e corriqueira sessãode hemodiálise. Na convivênciadessas realidades é fácil descobrirquem leva a pior. RRA

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Maio 1996 RReevviissttaa Adusp

Ao lado da segregação e da exclusãosocial, impulsionadas pelos liberaisconvertidos em neoliberais e pelos ex-social-democratas (que passaram adefender o fim de políticas distributi-vas através da regulação do Estado),

prepara-se uma “terceira onda” de desigualdade, cujograu de desumanidade ainda não pode ser avaliadoem toda a sua extensão.

Trata-se da exclusão de grande parte da cidadaniado próprio mundo prático, face ao desconhecimentopor milhões de uma nova linguagem: a dos computa-dores. O monopólio das comunicações - sua possesem controle público e a seletividade interessada dassuas informações - aumentará o controle político ecultural, já em curso, pela ideologia do mercado emescala planetária.

Num mundo cada vez mais miserável e com ri-queza cada vez mais concentrada, a cultura po-

lítica gerada pelos monopólios não se cansa de baterem três teclas, sem permitir de fato qualquer argumen-to contrário: o mercado é o novo Deus que torna o Es-tado supérfluo; tudo que é público e estatal é velho eatrasado; esquerda é sinônimo de oposição à moderni-zação e à modernidade. Nos últimos dez anos as novasgerações sofreram uma brutal lavagem cerebral, parase tornarem elas mesmas peças da engrenagem mer-

cantil - sem es-tímulo paracogitar deum projetode humani-dade, queresgatasse adignidadeda utopia.

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Maio 1996RReevviissttaa Adusp

ESTADOOPULÊNCIA E DOMINAÇÃO NA TERCEIRA ONDA

Tarso Genro

Os que não concordam com o ideário neoliberal –privilégios jamais tiveram condições de demonstrar àpopulação que não existe e jamais existirá mercadodesregulado. Ou seja, ou este é regulado através denormas do Estado, ou é regulado através de uma ou-tra força normativa, a dos fatos, isto é, é regulado pe-los mais fortes, que detêm a informação ou o mono-pólio de vastos setores da economia, ou ambos.

Jamais se levou em consideração que o Estado queaí está tem corporações e privilégios que assegurarama desigualdade social geral precisamente porque sem-pre esteve a serviço dos privilegiados que existem nasociedade. Jamais este Estado teve controle público,ou seja, ele sempre esteve impermeável à sociedade,protegido por barreiras burocráticas totalmente hostisao cidadão comum.

Quando, porém, muitos formadores de opiniãoafirmam que a esquerda se opõe ao que é moderno,estes porta-vozes do neoliberalismo aproveitam bem,de uma parte, a divisão imperante hoje em nossomeio; e, de outra, ressaltam a ausência de uma pro-posta contemporânea da esquerda para a reforma doEstado. Uma proposta capaz de fundir as experiênciasdemocráticas e revolucionárias realizadas a partir doIluminismo com as grandes transformações científico-tecnológicas que se operaram nos últimos 25 anos.

As experiências de gestão do Estado Moderno, asduas grandes experiências da esquerda moderna, o bol-chevismo e a social-democracia - tanto quanto o fascis-mo e a democracia republicana típica - partiram da se-paração formal e real do Estado e da sociedade civil.

As relações entre essas duas esferas - a privada e apública - sempre foram relações de tutela. O objetoda tutela evidentemente variava segundo o programae a ideologia das forças políticas que ocupavam o Es-tado, com maior ou menor “taxa” de democracia polí-tica e de respeito aos direitos humanos. Mas a rígidaseparação entre o Estado, com sua burocracia, e o ci-dadão, com seus direitos e demandas, imperou rigida-mente na forma estatal que emergiu da RevoluçãoFrancesa e das demais revoluções populares.

O projeto neoliberal usa precisamente esta oposi-ção e separação real para trabalhar o senso comum eseduzi-lo para sustentar um certo tipo de reforma, es-peculando com o fato de que a necessidade de refor-ma é sentida por todos. Todos se sentem separados

e/ou hostilizados por esse Estado impotente para pro-teger e eficaz para cobrar e punir.

A reforma do neoliberalismo, porém, é a redução,o enfraquecimento, a vingança, pois, contra o mons-tro inerte, que me torna cada vez mais segregado edesigual! Aí está a força da idéia neoliberal e o redu-to da nossa fraqueza neste período de crise estruturaldo Estado Moderno!

Tenho defendido que a posição da esquerda de-veria ser de vanguardear a reforma do Estado atra-vés de propostas que deixassem evidente que o pro-jeto neoliberal se opõe à cidadania e que apontas-sem de forma emblemática para a extinção da sepa-ração entre o Estado e a sociedade, já que a existên-cia desta separação afirma privilégios e reproduzcorporações.

Isso pode se materializar através de mecanismosde controle externo (da administração e do judiciário,por exemplo), mas principalmente através da criaçãoinstitucional de um novo conceito de espaço público:nele, o Estado abdicaria da sua potestade e se subme-teria à cidadania; e os cidadãos, necessariamente, dei-xariam de lado seus interesses privados para decidi-rem sobre o interesse público.

Já existem exemplos moleculares dessa combina-ção da representação política, com a emergência deforos originários da democracia direta (comissões doSUS, Conselhos Tutelares, Conselhos Populares quecontrolam o orçamento), o que demonstra uma reaçãoespontânea em curso, promovida pelos movimentossociais. Logo, é possível uma proposta nova, já coloca-da diretamente pelas relações sociais, que se oponhaao Estado que “transcende a sociedade como Deustranscende o mundo”, como diria o velho Kelsen.

A defesa do Estado que aí está nos comprometecom a concepção de um Estado ineficiente para res-ponder às demandas das classes populares. Perante aterceira revolução científico-tecnológica - cujos meiosde controle emergentes da informática e das teleco-municações são exponenciais - devemos ter claro queou a sociedade ocupa o Estado e o reconstrói ou, do-tado desses superpoderes, monopólios e Estado vãosolidificar a ditadura do fascismo informatizado, cujoDeus será um mercado sem leis.

Tarso Genro é prefeito de Porto Alegre (PT).

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Entrev is ta

Chico de Oliveirapor Marcos Cripa

FHC FAZ GOVERNO CONSERVADOR E DESASTROSO

Um dos primeiros intelectuais a aderir às propostas do Partido dos Trabalhadores e amigo de Fernando Henrique Cardoso à época em que o atual presidente do Brasil freqüentava

o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o economista e sociólogo da USP Francisco de Oliveira já foi acusado de jogar na ponta direita do partido e de se confundir com o PSDB. Um ano e meio após a posse de Fernando Henrique, ele tece severas críticas

ao “ex-amigo” e compara o governo FHC ao dos militares. “Ele não está matando ninguém do ponto de vista físico, mas a discussão, o dissenso, aqueles que divergem. Está matando

mentalmente este país. Isto é um crime tão miserável quanto a morte física”, afirma Chico de Oliveira.

Fotos: Ronaldo Entler

Adusp - Qual a análise do governoFernando Henrique nesse ano e meiode governo?

Chico de Oliveira - É sempre difícilfazer uma análise do governo Fernan-do Henrique já que fui colega dele du-rante doze anos no Cebrap, de 70 a 82,quando ele passou a militar na políti-ca. Nossas relações são muito tênues edevo dizer que, hoje, elas ainda exis-tem. Eu, no entanto, não me conside-ro mais entre aqueles que são amigosdo presidente. Há mais de um ano es-crevi um artigo para a Revista do Ce-brap tentando prever o que o governoFernando Henrique poderia significar.A minha previsão, não no sentido queas cartomantes fazem, mas com o au-xílio da ciência social, era de que seriaum governo desastroso para o país.Desastroso porque o plano em que ogoverno se baseava era um desastre.Na verdade o Plano Real reduziu astaxas de inflação, mas mesmo assim éum desastre, já que se baseia pura esimplesmente no fato de que o Brasilabdicou de ter uma moeda nacional.Isto significa que, quando o Estadonacional abdica de ter uma moeda, oque desaparece é o Estado nacional.Isso explica boa parte das dificuldadesque o governo FHC enfrenta.

Adusp - Quais dificuldades?Chico de Oliveira - Ele não conse-

gue fazer uma política social porquenão tem mais controle sobre sua moe-da. Tem que estar sempre referendan-do sua moeda na moeda externa. Issoexplica as dificuldades de ter uma po-lítica industrial autônoma. Isso explicaas dificuldades de o governo ter umapolítica de distribuição de renda. En-fim, o governo Fernando Henrique,que parece um sucesso do ponto devista de ter baixado a inflação, é umestrondoso fracasso do ponto de vistade ter uma política autônoma para opaís, do ponto de vista de ter uma ou-

sada política social de reformas. É umgoverno conservador e desastroso. Éum governo que tirou a esperança,que se apóia no mito da estabilidade,e toda estabilidade é, por definição,conservadora. Estamos vendo o estra-go que isso está produzindo. Aindahoje (08/04) um jornalista da Folha deS. Paulo chamava a atenção para duascoisas que são sintomáticas. De um la-do, Leonardo Pareja (líder de uma re-belião em Goiás) é louvado como he-rói por um desembargador do Estadoe, de outro lado, o ministro Adib Jate-ne, que cuida da Saúde, tenta invadiros programas de televisão para con-vencer a população e os políticos de

que necessita de recursos para a saú-de. Esse é o estado do Estado brasilei-ro. Falido, sem capacidade de imple-mentar nenhuma política e presa fácilde grupos econômicos, do assalto aoEstado e do assalto de bandidos pés-de-chinelo. Do pé-de-chinelo ao ban-dido do Sivam, o Estado brasileiro éuma presa fácil, inerte e sem capacida-de de reagir. E mais, alardeia essapompa e essa glória do Plano Real.

Adusp - No período mais culmi-nante da polarização entre Lula e Fer-nando Henrique, durante a eleição de94, uma parcela significativa da socie-dade apoiava o sociólogo em detri-mento do metalúrgico. Acredita-seque essa parcela da sociedade espera-va muito mais do governo FHC. Por

que isso não está acontecendo?Chico de Oliveira - Sociólogo na

presidência não significa, necessaria-mente, nada melhor. Quando a pessoavai à presidência ou entra na políticaela passa a guiar-se pelas regras da po-lítica. O que acontece com o sociólogoFernando Henrique na presidência,surpreendentemente, é que, comoafirma, num artigo, a professora daUnicamp Maria Silva de CarvalhoFranco, não há em Weber, o autor co-mumente citado para livrar responsa-bilidade do político, cisão entre a éticadas responsabilidades e a ética dasconvicções. O político, diz-se, é aqueleque tem a ética da responsabilidade.Ele tem apenas que ser responsávelpela escolha que faz, enquanto o cien-tista tem a ética da convicção. Você émovido pela convicção. Ora, MariaSilva demonstra, lamentavelmentecom uma linguagem meio hermética,que não há essa cisão em Weber. Por-tanto, todo político, mesmo aqueleque assume responsabilidades, estáobrigado por uma ética da convicção apreservar aquilo que deve ser feito pa-ra o bem público. Portanto, o sociólo-go Fernando Henrique não podianunca ter abdicado dos princípios queo guiavam enquanto sociólogo.

Adusp - Por que ele abdicou dessacondição?

Chico de Oliveira - Por razõesque não são as da política em abstra-to, são as da política em concreto,pelas alianças que fez, por ter passa-do a fazer parte dos grupos oligár-quicos mais reacionários da políticabrasileira. Essa é a razão. Quandocolocamos na disputa presidencialum sociólogo e um metalúrgico, fize-mos isso nos termos mais tradicionaisda discriminação de classe que o bra-sileiro faz. Servindo-nos da espéciede fundo atávico que temos dentrode nós, introjetado por séculos de es-

O governo FHC, que parece um sucesso do ponto de vista de ter

baixado a inflação, é um estrondoso fracasso do ponto de vista de ter uma política autônoma para o país, de ter umaousada política social

de reformas.

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cravismo de que o pobre não prestaporque é pobre, e do culto, da louva-ção àquele que domina, quando nãoera nada disso. O que estava em jogoeram dois projetos diferentes. Fer-nando Henrique não foi eleito por-que tenha carisma popular; foi eleitoporque tinha o Plano Real. Este deuum alívio momentâneo, reduziu a in-flação e elegeu Fernando Henrique.Duvido que sem o plano ele tivessesido eleito.

Adusp - Diante dos acordos fir-mados com Antônio Carlos Maga-lhães e Paulo Maluf, é possível dizerque Fernando Henrique é refém daantiga Arena?

Chico de Oliveira - Não, esse en-tendimento beneficia o presidente. Es-se entendimento o absolve das respon-sabilidades. Na verdade, ele é o líderdessa poderosa coalizão. O líder não éo Maluf, não é o Antônio Carlos Ma-galhães, ou o PFL. O líder chama-seFernando Henrique Cardoso. É elequem move essa coalizão; é ele quemdá as diretrizes. Se você reparar, nãohá nenhum ministério importante en-tregue nem ao PFL, nem ao Maluf,nem a um outro partido. Todos os mi-nistérios importantes são do PSDB. Asdiretrizes, a exemplo da privatização,que podem ser caracterizadas de neoli-berais, saem do PSDB e não do PFL.Achar que Fernando Henrique é refémé um benefício que se faz a ele. Eu di-ria o contrário, o PFL é que é refém dosenhor Fernando Henrique. Na verda-de, ao aliar-se com esses personagens,esse tipo de força política, ele reiteranos bolsões mais miseráveis do Brasil aliderança fisiologista mais tacanha deum lado e o populismo mais miserávelde outro. Há uma modernização con-servadora, termo que um outro emi-nente cientista político criou, há muitotempo atrás. E ele faz parte dessa mo-dernização conservadora.

Adusp - Quando se deu o rompi-mento e “o príncipe dos sociólogos”,como FHC era conhecido, passou aassumir essa liderança conservadora?

Chico de Oliveira - Não saberia lo-calizá-lo precisamente. Agora, a ruptu-ra entre o sociólogo e o político se dáquando ele entra na política, quandoele percebe que, na política brasileira,para lograr os postos e as funções, ouseja as ambições que os políticos têm,manter-se com as posições, propósitose orientações que ele tinha enquantosociólogo não levaria a lugar algum.Em outras palavras, um sociólogo mar-xista não entra na política para ter êxi-to e o Fernando Henrique queria ter

êxito. Então, ele vai se desfazendo desuas convicções, de seus princípios, desuas orientações enquanto sociólogo ena política vira outra coisa.

Adusp - Como o senhor analisa anegociata implementada pelo governopara aprovar a reforma da previdên-cia e barrar a CPI dos bancos?

Chico de Oliveira - Essa negociatafaz parte da forma tradicional de sefazer política no Brasil. É uma coisaperversa porque se lança nos meiosmais tradicionais, mais fisiológicos pa-ra fazer uma reforma que não é refor-ma; para uma reforma que, na verda-de, lança ainda mais incertezas numgrupo de trabalhadores. Basta ver que50% dos trabalhadores brasileiros jánão têem nenhuma cobertura social e

com essa reforma da previdência vaiser pior ainda. Reforma é uma coisaque no léxico antigo tinha um sentidoprogressista. Ao usurpar o léxico dareforma para a direita, comete-se umausurpação revoltante. Isso não é refor-ma coisa nenhuma, é uma contra-re-forma. É inacreditável que alguém fa-ça uma reforma desse tipo. A reformado Estado é conduzida como se o Es-tado fosse uma empresa. Pega-se umsenhor que tem êxito na administraçãodo grupo Pão de Açúcar e o transfor-ma em ministro de Estado para fazer areforma do Estado brasileiro, como seo Estado fosse uma empresa. Oras,uma das coisas que mais se ensina emciências sociais, em política, em socio-logia, é exatamente que o Estado nãoé empresa. Exatamente que entre Es-tado e sociedade existe uma atençãorica, com contradições, e que é preci-so preservar essa atenção. No momen-to em que o Estado vira empresa, dei-xa de haver a necessidade de existir oEstado. Acontece que a necessidade,ou a realidade, é mais forte que asutopias perversas desses senhores etodas as vezes ela vai cobrar os seusdireitos. Aí aparecem os roubos doNacional, do Econômico etc.

Adusp - Para onde, então, vai o Bra-sil se o plano econômico é recessivo e asreformas não levarão a lugar algum?

Chico de Oliveira - Vamos voltar aser uma sociedade de arquipélagos,cheia de ilhotas de ricos extravagantes,de empresas bem-sucedidas, mas semintegração. A economia brasileira hámuito tempo foi concebida como umconjunto de arquipélagos. Cada umase ligava a uma determinada demandaexterna. O açúcar ficou no exterior,depois os metais nobres como o ouro,depois as peles, o cacau e também ocafé. Então, a economia brasileira des-crita pelos grandes historiadores erauma economia de arquipélagos. A in-

Uma das coisas que mais se ensina em ciências sociais,

em política, em sociologia, é exatamente que o

Estado não é empresa (...)No momento em que o

Estado vira empresa, deixade haver a necessidade de

existir o Estado.

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dustrialização criou uma economia na-cional integrada, onde a força de tra-balho do Nordeste migrava para SãoPaulo e a indústria de São Paulo criavamercado nacional. Evidentemente quecom desníveis, com miséria em algunslugares, mas progresso em outros.Agora, vamos ter ilhas de novo. Ilhasde excelência, como eles gostam de di-zer. Vamos ter a Renault no Paraná,por exemplo. Os marginais que a lite-ratura sociológica achou que haviamsido integrados na sociedade, de algu-ma maneira, vão voltar a reaparecer. OEstado vai ficar cada vez mais impo-tente para lidar com a sua própria ter-ritorialidade, para controlar a violênciaprivada. Está aí o exemplo de que jáfalei, do Leonardo Pareja, que liderauma rebelião e sai pelas ruas como he-rói, sendo aplaudido. O resultado des-te governo vai ser pior ainda do que oque estamos vivendo atualmente.

Adusp - As palavras-chave do go-verno FHC são desestatizar e enxugaro Estado. Como é que o senhor avaliaesta questão?

Chico de Oliveira - Isso é uma bo-bagem. O Brasil sempre pega caronaatrasado nas coisas que acontecem nomundo. Isso quer dizer que as econo-mias mais desenvolvidas não conse-guem dar resposta à questão social,que hoje é gravíssima, mas não tem es-sa adoração pelo neoliberalismo que oBrasil tem; essa coisa servil, essa coisaboba que nós vemos nos nossos minis-tros diariamente. Eles continuam comas mentes colonialistas. Não há possi-bilidade nenhuma no capitalismo con-temporâneo de haver uma economiasem Estado. Isso é uma quimera, e co-mo quimera é perversa. Vê-se, nomundo, que os Estados que renuncia-ram a utilizar instrumentos estataispara regular o mercado se saíram mui-to mal. De modo que isso é uma boba-gem, uma besteira. Não tem história

econômica que sustente isso de jeitonenhum. A Alemanha, que é um gran-de país, modelo para muitas coisas, éo típico caso de país que entra na in-dustrialização tardiamente e entra porforça de uma poderosa ação estatal. Éum caso clássico, estudado pela histó-ria econômica. O Japão é outro caso.Os tigres asiáticos são todos desse dia-pasão, o próprio Brasil é. Como é que,de repente, essa gente que estuda issoentra nessa?

Adusp - Por que entra?Chico de Oliveira - Entra por inte-

resse de classe, e não é preciso umasociologia muito elaborada para expli-

car. Eles perderam a solidariedadecom o assalariado, com os pobres, porinteresse de classe. Se nós olharmos,todos eles já estão do outro lado hámuito tempo. Não há nenhum gover-no tão classista quanto o que está sen-do o de Fernando Henrique. Todossão constituídos por grandes empresá-rios ou por grandes executivos. Isso,como Marx dizia há 150 anos, muda acabeça das pessoas. É simples, parecebanal, vulgar, mas é assim mesmo.

Adusp É a manutenção do statusquo da elite brasileira?

Chico de Oliveira - É isso mesmo.A miséria não os afeta. Eles já viajamde helicóptero. Nem o estado das es-tradas afeta mais a eles. Você achaque o estado das estradas afeta al-

guém que vem a São Paulo em aviãopresidencial e depois segue para Ibiú-na de helicóptero? É como a Catarinada Rússia, que mandava pintar os bar-racos de verde, vermelho, azul.

Adusp - Mas essa fantasia um diavai ter que ter fim. Nesse momento,para a população, o melhor caminho éo da mobilização?

Chico de Oliveira - Essa é a grandequestão. Quando a população se mobi-liza, se organiza, dá um basta nisso tu-do. Mas veja que esse governo é pro-fundamente hostil a todo grupo que seorganiza. Esse, talvez, seja um de seuspiores defeitos. A destituição de direi-tos que esse governo patrocina é umdos aspectos mais estúpidos, mais per-versos, seguindo a linha do Collor.

Adusp - Dá para o senhor citar al-guns casos?

Chico de Oliveira - Na greve dospetroleiros o senhor Fernando Henri-que usou o argumento de que era pre-ciso fazer respeitar as decisões do Tri-bunal Superior do Trabalho. Agora,vetou uma lei que o Congresso fezanistiando os petroleiros para que assedes dos seus sindicatos não sejampenhoradas. O argumento é de que as-sim ele prestigia a Justiça. Ocorre queele não agiu assim quando vetou a leique mandava cassar o senhor Hum-berto Lucena. Trata-se de destruir aorganização dos trabalhadores. Esse éo objetivo dele. E ele sabe que a socie-dade está desorganizada. Com a socie-dade desorganizada é possível fazerprogramas como a Comunidade Soli-dária, onde se distribuem saquinhosde leite em pó e tudo o que não prestapara dizer que estão matando a fome.

Adusp - O presidente sempre apa-rece na televisão dizendo que quemestá contra o governo dele está contrao Brasil, contra a estabilização. Isso

Esse governo éprofundamente hostil a todo

grupo que se organiza. Talvez, seja um de seus

piores defeitos. A destituiçãode direitos que esse governo

patrocina é um dos aspectos mais estúpidos,mais perversos, seguindo

a linha do Collor.

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demonstra um traço de autoritarismoaté então desconhecido da personali-dade dele, o senhor concorda?

Chico de Oliveira - Plenamente. Issoé uma das coisas que têm me surpreen-dido em relação ao sociólogo que eu co-nheci. Essa arrogância, essa prepotêncianão era um dado da personalidade deleque eu conhecesse. Isso para mim é no-vo, surpreendente e decepcionante.

Adusp - Ele não admite oposição,não admite organização para debateras grandes questões nacionais.

Chico de Oliveira - A mesma coisaque os militares diziam.

Adusp - O senhor está associandoo autoritarismo de Fernando Henri-que ao dos militares que governaramo país recentemente?

Chico de Oliveira - As pessoas eramtorturadas, expulsas do país, levadas àmorte porque não concordavam com oque os militares pensavam do país. Nolimite, o senhor Fernando Henrique es-tá fazendo a mesma coisa. Ele não estámatando do ponto de vista físico, masestá matando a discussão, o dissenso,aqueles que divergem. Está matandomentalmente este país. Isto é um crimetão miserável quanto a morte física.

Adusp - Aparentemente a mídia jáse deu conta disso. A Folha de S. Paulovem atribuindo o adjetivo fisiológico aogoverno dele e até o Jornal Nacional, emeditorial, insinua leves críticas ao presi-dente. É possível que, para a mídia,aquele charme inicial de se ver um inte-lectual na presidência tenha acabado?

Chico de Oliveira - Está acabando,inegavelmente, porque as pessoas per-ceberam que ele faz política como ou-tro qualquer. Aquele charme de umsociólogo que dá resposta para tudo e,numa entrevista, fala três línguas, estáacabando. Os jornalistas, que são fa-cilmente encantáveis, estão perceben-do que aquilo tudo que ele faz é jogode cena, como qualquer político faz.Não sei se isso corresponde a umapassagem para uma discreta oposiçãoou se é apenas constatação mesmo.Por outro lado, penso que os jornaisse deram conta de que é melhor tratá-lo igual aos outros do que destacá-locomo diferente. No momento em quea imprensa o tratava como um políticonão tradicional, acabava por imunizá-lo de qualquer ataque que ela viesse afazer. Agora, talvez seja promissora-mente um começo de oposição discre-ta ao governo Fernando Henrique. Di-go discreta porque não será nunca

oposição. Não imagino o Es-tado de S. Paulo ou a Folha deS. Paulo fazendo oposição,muito menos do ponto de vis-ta partidário. Além do que,eles não correrão o risco de,pela segunda vez, ajudar aderrubar um presidente dessetipo. Toda a burguesia estámuito atenta a isso, e é por is-so que o Fernando Henriquese livrou do Sivam e da CPIdos bancos. Portanto, pen-sam: "Vamos tolerar o Fer-nando Henrique já reduzido àsuas devidas proporções, tra-tando-o como um político

qualquer". Não passarão à oposiçãoporque não têm motivos, ele não atin-giu os interesses de nenhum jornal.Por mais que a Folha pense que tem orabo preso com o leitor, ela tem, comoo Gianotti disse, o rabo preso com ocapital. E o Estadão ainda mais.

Adusp - Até porque são empresasque visam o lucro e não apenas a difu-são de informações.

Chico de Oliveira - Claro, eles di-fundem informação porque é umamercadoria. Agora, mesmo que sejauma oposição discreta, acho isso pro-missor em relação àquela adoração edeslumbramento dos primeiros me-ses de governo.

Adusp - Quando é que esse gover-no vai parar de viver de fantasias, depurpurina, com as intermináveis via-gens ao exterior, e cair na realidadebrasileira, que precisa de soluções pa-ra graves problemas sociais, comosaúde, educação e tantos outros?

Chico de Oliveira - Isso só vaiocorrer realmente quando a sociedadese organizar. E é por isso que boa par-te do trabalho perverso da mídia é de-sacreditar as organizações. É por issoque a estratégia de Collor, assim como

No limite, Fernando Henrique está fazendo a mesma coisa que

os militares. Ele não está matandoninguém do ponto de vista físico, mas está matando a discussão,

o dissenso, aqueles que divergem. Está matando mentalmente este país.

Isto é um crime tão miserável quanto a morte física.

a de Fernando Henrique, era desacre-ditar as organizações. A jogada deFernando Henrique com o Vicentinhoera desacreditar a CUT. E conseguiu.Não conseguindo jogar a CUT contrao PT, o governo logrou descaracteri-zar o Vicentinho. Ele entrou nessa debobo alegre e sai descaracterizado co-mo liderança séria. O trabalho do go-verno é dinamitar tudo o que a socie-dade civil organizada puder construir.O governo não está preocupado com oequilíbrio entre os partidos que oapóiam e a oposição. Nunca estevepreocupado com essa questão.

Adusp - Mas isso não é reflexo dailha da fantasia vivida pelo governo?

Chico de Oliveira - Não, isso é re-flexo geral da vitória ideológica do ca-pitalismo. Essa ilha da fantasia a quevocê se refere é geral. Todo mundo vi-ve a fantasia de que nós estamos noplano de ida para o Primeiro Mundo ede que a história do miserável é umaderrota pessoal e não a nossa derrota.Isso está difundido na sociedade, e épor isso que a luta da oposição estácada vez mais difícil.

Adusp - O presidente não demons-tra interesse em restabelecer o equilí-brio da oposição.

Chico de Oliveira - Ele se preocu-pa em fazer algumas jogadas florenti-nas, do tipo que Tancredo Neves fa-zia, para demonstrar aos adversários,que ele é daqueles políticos que en-costam a espada e torcem. Os exem-plos são a nomeação do Weffort parao Ministério da Cultura, como se oWeffort tivesse alguma importânciadentro do PT, e depois a nomeaçãoda Irma Passoni para uma assessoriano Ministério das Comunicações. Issonão desmoralizou o Partido dos Tra-balhadores em nada. Quem saiu des-moralizado foi o Weffort e a IrmaPassoni. Ela não conseguirá mais ne-

nhum voto, a exemplo de outros queabandonaram o barco. Portanto, Fer-nando Henrique está preocupado emtentar desmoralizar a oposição.

Adusp - Isso explica a apatia quese encontra o Partido dos Trabalha-dores, neste momento?

Chico de Oliveira - Vejo que o PTestá muito abandonado, não há dúvi-da. Mas é preciso levar em considera-ção que não se perdem duas oportu-nidades, como as de 89 e 94, sem umalto custo. O fato de que a oportuni-dade esteve muito próxima reflete-sepsicologicamente de forma muito da-nosa; as pessoas começam a acharque não vale mais a pena. Esse com-portamento pode ser notado na dire-ção, nos militantes e nos própriossimpatizantes. Agora, há hoje uma di-nâmica social conservadora, e issotorna a atuação de qualquer partidode oposição extremamente difícil. Nacampanha presidencial de 94 o PTacertou no atacado, dizendo que oplano era recessivo, e é mesmo, e er-rou no varejo, porque a curto prazoisso não era perceptível. Fica difícilatacar algo que as pessoas acham queestão ganhando. Lutar contra essaambiência social conservadora é umatarefa extremamente complicada, e opartido ficou desarvorado com isso.Por outro lado, toda mensagem doPT é de difícil aceitação porque é dereforma, e toda reforma mexe com aspessoas e com os interesses. O parti-do também não está revelando muitotalento em mostrar como a saúde, aeducação ou o transporte estão sendodegradados. Não consegue passar tu-do isso para o simbólico. As pessoasprecisam transportar a realidade dosapato furado para a cabeça. E isso oPT não está conseguindo junto à so-ciedade. Mesmo assim acho que aatual conjuntura está mais uma vezpara o Partido dos Trabalhadores.

Adusp - Como a conjuntura podeestar para o PT, se ele está sem açãoconcreta?

Chico de Oliveira - Está para oPT, agora pode ser que o partido nãoesteja para ela. Se se olhar objetiva-mente, todas as coisas em que a críti-ca do PT é forte estão ocorrendo. Ca-so a Luiza Erundina não caia na bes-teira de federalizar a campanha emSão Paulo, poderá passar na cara doMaluf tudo que ele não fez, podemostrar tudo que se deteriorou no go-verno dele. Agora, se ela federalizar elevar a discussão para o Plano Real,está frita. É nesse sentido que digoque a conjuntura está, novamente, pa-ra o Partido dos Trabalhadores.

Adusp - Em 94, em artigo publicadona Folha de S. Paulo o senhor afirmavaque o PSDB representava uma parcelamoderna e progressista do Brasil e queo partido, ao estilo republicano, pode-ria administrar com seriedade. Apósesse período de Fernando Henrique napresidência e as experiências do PSDBem vários governos estaduais, gostariade saber se o senhor mantém essa fra-se ou faz reparos?

Chico de Oliveira - Faço reparosim. Quando escrevi aquele artigo, oPSDB se armava como uma alternativarepublicana, já que não era um partidosocialista nem social-democrata, comoo nome diz. Mais parecia, portanto, umpartido republicano no estilo francês;um partido laico e sério no trato da coi-sa pública. Atualmente eu não reafir-maria isso. Ao fazer precocemente aaliança que fez, sem antes ter a oportu-nidade de maturar essas característicasiniciais, acho que ele corrompeu-se nosentido político do termo e no sentidomoral também. Quer dizer, as caracte-rísticas de laicidade perderam-se no go-verno Fernando Henrique e, portanto,o partido deixou de ter característicaprogressista e republicana. RRA

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Depoimento

TER HIV NA USPOU O USO DO HÍFEN NA LÍNGUA PORTUGUESA

Fotos: Ronaldo Entler

Portador do vírus HIV, o professor Jorge Beloqui, do Instituto de Matemática da USP, teve o seu pedido de fornecimento de remédios negado pela reitoria. Um deles,

que entrou no mercado norte-americano em novembro do ano passado, custa US$ 300 e não é distribuído gratuitamente pelo Ministério da Saúde. Um segundo

remédio, o Saquinavir, custa US$ 540. A alegação da reitoria da USP é de que não dispõe, no momento, de recursos e nem de condições para fornecer medicação

de manutenção de enfermidades crônicas. Os professores da Matemática encaminharam abaixo-assinado ao reitor Fava de Moraes reiterando o pedido, mas novamente

a resposta foi negativa. Diante da postura da reitoria da USP; a Adusp e o professor Beloqui lançaram, dia 23 de abril, a campanha “HIVIDA - Aids na USP - Em Defesa das Condições

de Vida e Trabalho dos Portadores do HIV”. Esta campanha pretende debater propostas que possam ser implantadas pela USP no atendimento dos portadores do vírus.

Faz uns anos que sei que tenho o HIV. To-mei AZT durante quatro anos e depoisddI por dez meses. Em dezembro de1995 fiz um exame de CD4. Soube do re-sultado em janeiro: 340 CD4/mm3. Con-tagem normal: maior do que 1000. Se vo-

cê tiver HIV e menos de 500, talvez deva tomar al-gum remédio como AZT, ddI, ddC, etc. A contagemanterior era 390; logo, o remédio já não estava maisdando o resultado esperado.

Quando voltei de férias, meu médico – eu gostodele; desde que comecei a me tratar do HIV, é o ter-ceiro – me recomendou voltar ao AZT em combina-ção com o Epivir, também conhecido como 3TC ouLamivudine. Eu sabia que o 3TC não era fornecidogratuitamente pelo Ministério da Saúde, como os ou-tros dois. O Hospital do Servidor não fornece estesremédios tampouco. Perguntei como obter.

— Pode-se importar dos EUA. Foi liberado pelaFDA em novembro do ano passado. Deve custar uns300 US$/mês. E se prepare porque daqui a pouco vo-cê pode ter de tomar o Saquinavir, a US$ 600/mês,disse o médico.

Decidi, então, solicitar, por carta, ao reitor, que aUiversidade de São Paulo me pagasse este remédio,e os que viessem no futuro. Explico, agora, o porquede ter tomado esta medida. Conheço várias empre-sas que têm plano de saúde para seus funcio-nários e programas de pagamento de remé-dios, exames etc. Banco do Brasil, Banespa,Souza Cruz, Fundação Cesp, Credicard, Pe-trobrás, Xerox do Brasil, Vale do Rio Doce,entre outras.

Mandei a carta pelas vias formais: pedi aomeu chefe de departamento para encaminhá-la. Ele, por sua vez, encaminhou para o dire-tor do Instituto e este para o reitor. Pensei:estou revelando meu status de HIV positivono Instituto de Matemática e Estatística(IME) para algumas pessoas, e para todas aspessoas que lerem esta correspondência.Qual é o problema? A discriminação à qualvocê se expõe pode vir a ser aparente ou si-lenciosa. Mas isso não importa, preciso queme paguem esse remédio porque com meusalário não dá.

Solicito ao meu chefe que pergunte se tem algumatendimento para pessoas com HIV na USP. Quemsabe na Coseas, no Hospital Universitário (HU)? Eleaverigua. No HU, dizem para ir ao Emílio Ribas, oque significa que no hospital da universidade nãoexiste atendimento, uma vez que o Emílio Ribas nadatem a ver com a USP. A Coseas, por sua vez, não seocupa mais de saúde.

Em 22 de janeiro deste ano, escrevo ao reitor. Co-meço a aguardar a resposta.

Enquanto isso, processo emocionalmente a mu-dança de medicamento: é um cartucho que se quei-mou, estou precisando de um remédio aprovado trêsmeses antes.

— Poxa, Jorge, penso comigo, você está usandomedicamentos da fronteira do conhecimento; quandoeste falhar, esperemos que você não tenha atravessa-do a fronteira.

Há algo de luto nesta mudança; preciso sempre deum tempinho mental antes de começar uma nova tera-pia. Lembro do primeiro AZT (o primeiro AZT agente nunca esquece, escreveu o Herbert Daniel). En-tretanto, continuo fazendo minha ginástica, e me pre-parando para o começo do semestre.

Decido: vou esperar até o início das aulas para fa-lar com meus colegas do IME sobre meu pedido. Fuipara o Rio de Janeiro e desfilei no Carnaval. A minha

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escola caiu do primeiro para o segundo grupo. Pressá-gio? Antes da viagem falo com os companheiros daAdusp: seria possível que eles falassem com a Reito-ria para saber se tem novidade?

Comecei as aulas; liguei para o gabinete do reitor:“Na próxima semana haverá uma resposta”, dizem dooutro lado da linha.

No dia 1º de março vejo no meu escaninho a res-posta da Reitoria em envelope aberto. Um mês euma semana para responder ao pedido de um medi-camento.

Enquanto isso, uma amiga de uma ONG – militoem ONGs/AIDS desde agosto de 1989 – me liga e diz:

— Jorge, tenho duas doses de Epivir para você.— Obrigado, Paula, vou pegar o medicamento.A resposta da Reitoria vem no sentido oposto: não

dispõe de recursos. No futuro vai analisar a comple-mentaridade do SISUSP ao IAMSPE etc. Não é comela. Diferente dessas empresas que citei.

— Trabalhei 15 anos para a instituição errada?,penso. O que significa “comunidade universitária”neste contexto?

As aulas começam; tenho uma turma de 86 alunos.No semestre passado tinha uma de 75 e outra de 85.Como se vê, meu estado clínico é excelente!

Falo com meus colegas do IME. Inicialmenteapenas com alguns. Parece que sou meio brutal.

Chego e digo:— Luís, tenho HIV, pre-

ciso de um remédio chama-do 3TC. O Ministério deSaúde paga o AZT masnão este outro. Pedi para aReitoria. Ela negou. Achoque o IME tem que fazeralguma coisa.

Choque inicial dos meuscolegas; mas eles agüentamo tranco e dizem: “Vamosapresentar isto para o Con-selho do Departamento”. OConselho se manifesta porunanimidade no sentido deque: “...a Universidade pro-videncie rapidamente a es-trutura necessária para to-

dos os estágios de tratamento dos portadores deHIV”. Em particular “...o imediato fornecimento domedicamento ao professor...”

Há a iniciativa de um abaixo-assinado e a seguirafixo a correspondência com a Reitoria no mural daAdusp. As reações continuam: há choros, abraços,“conte comigo”, “o que precisar”, dificuldade até emme abordar para me dizer todas estas coisas. Recla-mação: “Como você não me contou antes?” Eu tam-bém tenho dificuldade: me emociono, é muito senti-mento de uma vez.

Mas aqui se nota que trabalhei por 15 anos noIME. Um conceito de comunidade universitária di-ferente: com solidariedade. Obrigado, colegas! Vo-cês são ótimos!

Aí fico sabendo que teve um funcionário do IMEque morreu de AIDS faz dois anos. Como eu nãosoube? Muitos sabiam que eu participava do traba-lho com as ONGs/AIDS. Poderia tê-lo ajudado emalguma coisa. Foi o medo da discriminação, inutili-dade de pedir auxílio à USP? A clandestinidade e adiscriminação aceleram o curso da doença. Mas paraque contar na USP se eles não vão fazer nada?

Vários funcionários e professores da USP têmHIV ou AIDS. Se tratam fora da USP. Outros mor-reram, como o Jacques no meu Instituto. E sei deoutros em outras unidades. Quantos alunos, funcio-nários e professores devem morrer para que a USPtome alguma providência? “The answer, my friend,is blowing in the wind...”

Em 3 de março começo a tomar o AZT+3TC.Pergunto a Paula:

— Não vou pagar nada por isto?— Não, Jorge. Estou dando isto para você porque

meu amigo não vai usar, diz ela.— Mas alguma coisa devo pagar, nem que seja

US$ 100.— Já que você quer saber, ele não precisa mais.

Foi desta para melhor, conta minha amiga.— Então, tá.Vou no HU, para me certificar das coisas lá. Falo

com o clínico que tenho HIV e preciso de 3TC. “O HUnão fornece medicamentos”, afirma o clínico. Entãoquero fazer o exame CD4, digo. “A gente não faz esseexame. Damos guia para retirar medicamento na Se-cretaria da Saúde”, diz o médico. Poxa, penso, eles não

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dão medicamentonem fazem exame.Devem tratar pelopoder da mente.

Escrevo para odiretor do HospitalUniversitário: “Vo-cês querem se livrardos pacientes comHIV. Não fazemexame nem dão me-dicamentos. Obvia-mente o pacientevai preferir ir nohospital que dá osmedicamentos ouno que faz exames para poupar uma viagem. E nahora que ficar doente, nem se fala, a viagem se tor-na um esforço muito grande. Sugiro formar umConselho de Usuários constituído pela Adusp, Sin-tusp, DCE e associações dos moradores dos bairrospróximos. Afinal, estes são os destinatários dos ser-viços, os consumidores.”

A resposta vem rápido. Este é o seu mérito. Falaque AIDS precisa de atendimento especializadoetc., e que lá não existe esse atendimento. Respon-do que AIDS é a primeira causa mortis em São Pau-lo na faixa de 25 a 44 anos (dados do SEADE). Me-rece assistência em qualquer hospital. Sempre o ar-gumento da especialização. Na verdade, quandonão quer atender, quando quer mandar para “outrolugar”, quando quer excluir. Se for necessário,aprenda! Pra quê estar numa universidade? Qual éo seu conceito de comunidade universitária?

Leio na Folha de S. Paulo, num domingo, que osimigrantes brasileiros ilegais com HIV/AIDS nos Es-tados Unidos têm um tratamento muito bom: medica-ção, hospital etc. Só não podem sair do país porque,então, não podem voltar. Mas a saúde é garantida.Penso: imigrante brasileiro ilegal com HIV/AIDS nosEUA tem melhor atendimento do que o que é ofere-cido a um professor da USP pela USP.

O abaixo-assinado circula entre os professoresdo IME. Assinam uns 80%. Outros dizem que nãovão assinar porque deveria se pedir por todas asdoenças crônicas e não só por algumas. Sugiro que

mandem cartas àReitoria neste sen-tido; talvez tenhampensado em algumacoisa ainda melhorpara fazer, porquenão fazer nada édeixar tudo comoestá. A conferir:nem todos preci-sam seguir os mes-mos caminhos.

Entretanto, todoo mundo já sabeque tenho HIV. Oambiente matemá-

tico do Brasil também. Devo me apressar a escreverpara alguns amigos pelo correio eletrônico para quesaibam diretamente de mim e não por terceiros. Sãomensagens duras e cruas, mas é assim mesmo. Fi-cam esperando notícias para tomar alguma atitude.Mas uns dias depois começam a circular abaixo-assi-nados no Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Obriga-do, queridos!

Alguns dizem: “Nós admiramos a sua atitude co-rajosa e a sua luta política”. Não é tão corajosa. É aúnica coisa que tinha a fazer. Primeiro fui pelas viasinstitucionais. Não deu certo. O que sobrava: a clan-destinidade? Ela mata. Tendo HIV e menos de 500CD4; tem de se tratar. Só sobrou falar para os meuscolegas. Se eu tivesse conseguido a medicação, nãoteria falado publicamente que tenho HIV; talveznão agora. Tenho medo da discriminação e não te-nho pasta de herói nem de mártir. É claro que háuma luta política, que eu apóio. Sem meu depoi-mento, se a luta se desenvolvesse em abstrato – “Fa-çamos uma campanha para que as pessoas comHIV/AIDS da USP tenham um bom atendimen-to” –, seria mais difícil. Esta é minha contribuiçãopara essa luta. O resto é de toda a comunidade uni-versitária – inclusive eu.

Sou ateu; tive uma educação católica. Lembreido vídeo de uma ONG, a ISER, chamado: “Estiveenfermo e fostes ver-me” (Mateus). Soa igual a:“Estive enfermo e fostes verme”. Taí, o uso do hífenna língua portuguesa. RRA

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Os imigrantes brasileiros ilegais com

HIV/AIDS nos Estados Unidos têm um

tratamento muito bom: medicação, hospital

etc. Só não podem sair do país porque,

então, não podem voltar. Mas a saúde é

garantida. Penso: imigrante brasileiro

ilegal com HIV/AIDS nos EUA tem

melhor atendimento do que o que é

oferecido a um professor da USP pela USP.

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COTAS PARA NEGROS NA UNIVERSIDADE

Mauro Göpfert Cetrone

Odebate recentesobre a implanta-ção de cotas paranegros na USPtem nos dado aoportunidade de

constatar que nossos compatriotasbrancos e brancóides não pare-cem dispostos a renunciar à ima-gem vaidosa, idílica e românticaque construíram de si mesmos, de“sua terra” e das relações de raçaque aqui têm lugar, razão por quenão são capazes de libertar seudiscurso racial de velhos cacoetes(que apenas expressam hábitosmentais arraigados), e por que denenhum modo poderão apoiarnossas reivindicações.

O fato de a argumentação dosdetratores das cotas ser inconsis-tente, capciosa, impertinente ousimplesmente ininteligível nãoparece ser um bom motivo paraimpedi-los de imaginar que suaposição se deva à reflexão séria ea motivos honestos - e não, como

parece ser, à cegueira ideológica,interesses mesquinhos, covardiaou apenas preguiça (no caso dosnegros), ou simplesmente à soli-dariedade racial (no caso dosbrancos),

De fato, nossos adversários,convencidos de que suas opiniõesasininas expressam outra coisa quenão o desejo de preservação deodiosos privilégios de castas, ani-mam-se a proclamá-las em públicoe em voz alta; e têm sido mesmocapazes de fazer com que muitosnegros desavisados dêem as costasa seus interesses vitais.

Nas linhas seguintes, expus erefutei alguns pseudo-argumentosque mais freqüentemente se ou-vem dos que têm podido partici-par do esforço ideológico destina-do a justificar os atuais critériosde seleção para ingresso nas uni-versidades públicas brasileiras, pe-los quais brancos e brancóidestem acesso monopolístico à for-mação superior.

Os pseudo-argumentos

1º) “As cotas aproveitariamapenas aos negros da classe média,que - acrescentam alguns ‘militan-tes negros’- não têm nenhum com-promisso com a luta pelo fim dadesigualdade racial no país”.

A um interlocutor que empre-gasse tal argumento deveríamos, defato, indagar ansiosos qual, afinal, asolução por ele apresentada comoalternativa à proposta de cotas, masque, ao contrário desta, possibilita-ria aos negros pobres e paupérrimosacesso em massa às universidades, enum prazo igualmente curto. Talvezsuprimindo-se, para os candidatosnegros, a exigência de conclusão do2º grau, ou mesmo do 1º grau! Pois,realmente, para o Estado brasileiro,alfabetizar as gerações de descen-dentes de escravos jamais constituiuobjetivo prioritário e é mesmo sur-preendente, e deve-se exclusiva-mente aos esforços hercúleos de al-gumas famílias negras, o fato de que

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Graças ao amigo Paulo Sérgio Pinheiro, do Núcleo de Estudosda Violência da USP, pude ser solto por volta das 22h. do últimodomingo de Páscoa, depois de permanecer sob custódia da delega-da Cristina Jarnyk por cerca de sete horas. Naquela tarde, não semprotestos de familiares, deixei a troca de ovos e coelhinhos de cho-colate pelo que classifiquei, diante da delegada horas depois, de di-reito de livre expressão de pensamento. Assim fazem os grafiteiros,caras-pintadas, apaixonados incontidos.

O fato é que fui pego escrevendo com tinta spray num muro emfrente à Reitoria da USP a frase que agora consta do boletim deocorrência: “Fuvest é racista!” Um dos agentes da Guarda Universi-tária comentou depois comigo que o lapso de tempo entre o final dapalavra “racista” e o ponto de exclamação foi o suficiente para euser pego. Ou seja, ganhei um processo nas costas por causa de umaexclamação! Não se discutiu ainda se a Fuvest, que seleciona 80%de ricos e brancos anualmente para ingressar na USP, é ou não oque a frase diz. Nem se a luta por cotas para negros nos bancos uni-versitários é ou não legítima e se os meios para chegar a seus resul-tados dispensariam pichações.

A delegada do 93º DP teve de lavrar o flagrante, sob a acusa-ção de “dano ao patrimônio público”. Pensei em argumentar: ve-

jam-se os casos dos computadores e equipamentos comprados deIsrael para a USP e Unicamp, do Proer, dos financiamentos aosusineiros e à família Mairink Veiga feitos pelo Banco do Brasil etc.,mas desisti: certamente não valeria a pena. Pela lógica do raciocí-nio proposto pelo Código Penal (Art.163, item III, elaborado peladitadura militar em 1967), entre uma pichação de muro - que é“dano ao patrimônio público” - e o assalto escandaloso feito diu-turnamente contra o Estado pelos poderosos e seus apaniguadosnão há muita diferença. Senão o fato de que o pichador em ques-tão não tem amigos em palácios.

Sem esses amigos, me restou comunicar à delegada que não fa-ria mal passar a noite na cela. Peremptória e amigável, ela bateu péfirme que “não!”, que eu providenciasse a fiança porque não mequeria na cadeia junto com os demais presos. Tenho diploma supe-rior, lhe disse, mas as “celas especiais” - que, segundo ela, nem sem-pre são tão “especiais” assim – também estão indisponíveis. Ela es-tipulou a fiança mínima em R$ 185,32, que eu deveria pagar, assi-nar umas papeladas e passar a responder o processo em liberdade.

Antes, a delegada ainda tentou um acordo com a Administra-ção da USP, para retirar o flagrante enquanto eu me compromete-ria a “ressarcir” os “prejuízos” gerados pela pichação. Pelo telefone,

Um episódio kafkiano pelas cotas

uma parcela - reduzidíssima- decrianças e jovens negros tenha podi-do ingressar em uma escola e pros-seguir em seus estudos; pelo menosaté o momento do vestibular...

Com efeito, conquanto estejaevidentemente correta a avaliaçãosegundo a qual a universalização doensino de 1º e 2º graus constituicondição sine qua non da possibili-dade de desconcentração racial dariqueza e do poder em nosso país, éfundamental compreender que, noBrasil, a ascensão social dos negrosé obstaculizada por barreiras suces-sivas - impostas pela sociedadebranca e destinadas precisamente aneutralizar os esforços do negro pa-ra sair do “seu lugar” –, dentre asquais o vestibular ganha uma impor-tância especial e não apenas simbó-lica. Constitui a fronteira que separaos trabalhadores subalternizados,mal-remunerados e degradados(moral e fisicamente) pelas condi-ções de trabalho impostas por umcapitalismo periférico e dependen-

te, dos prestigiados, bem-remunera-dos e felizes bacharéis de todo tipo,consumidores entusiasmados dascomodidades e distrações oferecidaspor uma economia globalizada aosvencedores de todas as latitudes.

Quanto à afirmação de que osnegros de classe média, por não es-tarem suficientemente engajadosna luta contra a opressão racial, oupor não professarem ideologias ra-dicais, não devem ter direito de en-trar em uma universidade não é su-ficientemente séria para merecerum comentário mais longo ou mes-mo a mínima atenção. E conquantoseja verdadeira a afirmação de que,no Brasil, os negros de classe mé-dia sejam medíocres, vaidosos, per-nósticos e mesquinhos; e não obs-tante a inveja, a desconfiança e oressentimento que os negros da ra-lé nutrem pelos negros bem-sucedi-dos estejam, portanto, plenamentejustificados, e sejam mesmo, emcerta medida, saudáveis - consti-tuem um antídoto eficaz contra os

aspirantes a “voz da raça”-, é preci-so contudo proclamar, à moda dosfascistas, que, no nosso caso, o ódiorecíproco entre as classes só inte-ressa ao inimigo externo.

De fato, casos notórios de mino-rias raciais que obtiveram êxito emsuas lutas por ascensão social - co-mo os negros norte-americanos ouos judeus da diáspora - patenteiamque alianças de classes são absolu-tamente fundamentais para a cria-ção das oportunidades que tornampossível a uma raça historicamentedominada e/ou subalternizada rei-vindicar com sucesso uma posiçãode igualdade com os grupos tradi-cionalmente dominantes.

2º) “A verdadeira razão da ausên-cia de negros na universidade é aprecariedade do ensino público de 1ºe 2º graus A proposta de cotas, agin-do unicamente sobre os efeitos finaisde um sistemas perverso, deixa into-cadas as estruturas desse mesmo sis-tema, isto é, não combate as causasverdadeiras da exclusão do negro.”

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algum chefão da USP (penso que esfregando as mãos e babandosadicamente) quis saber meu nome e negou qualquer acordo. Fian-ça estipulada, eu não tinha o dinheiro à mão e, aí, as coisas com-plicaram - como convém aos processos jurídico-policialescos.

Em vez de um domingo de Páscoa o meu começou a se trans-formar num domingo de Kafka a partir do momento em que, soborientação telefônica de advogado, voltei atrás na idéia de dormirna cadeia (já tinha até providenciado junto a um colega da USPque me trouxesse as “Obras Escolhidas” de Gramsci e um exemplarpara revisão de minha dissertação de mestrado, “Imprensa e Racis-mo no Brasil”, cuja defesa se daria dia 15/04).

Na carteira de cédulas, apenas R$ 25,00 e alguns trocados. Fa-lei em pagar a fiança com cheque, e a delegada “na, na, ni, nã,não”. A lei não permite. Fiança tem de ser paga em dinheiro vivo.Sendo assim, eu teria de ir a um caixa eletrônico com o meu cartãodo Banespa. A delegada indicou dois agentes policiais para metransportarem até o quiosque bancário mais próximo.

O que fica dentro da Cidade Universitária estava desativado.No carro, rumamos para a Praça Pan-Americana. Na tela damáquina, a mesma mensagem, que seria lida por nós cincoquiosques percorridos depois: “No momento estamos fora de ser-viço”. Gentis, os agentes pacientemente me levaram ainda aosquiosques da Teodoro Sampaio, Francisco Morato e, segundoeles, a última esperança, ao Carrefour da Raposo Tavares, quetem um caixa eletrônico de difícil acesso. Os bancos haviam dei-

xado de funcionar na quarta-feira, em nenhum caixa do Banespatinha dinheiro na noite pascal.

“Infelizmente...”, me disseram os agentes quando lhes pedi queme levasse de volta à delegacia. Mas lá a delegada continuou semaceitar a minha má sorte e pediu que eu ligasse para os amigos e fi-zesse uma vaquinha. Tentei alguns: dois deles estavam com o mes-mo problema (não tinham moeda em mãos, a fiança não aceitacheques e os caixas eletrônicos estavam sem dinheiro). Outros doisestavam viajando, aproveitando o feriadão. O professor Paulo Sér-gio Pinheiro, que não costuma atender chamadas, dessa vez estavaem casa, mas também sem dinheiro vivo. Teve de apelar para a es-posa para vir me buscar minutos depois, com quatro notas deR$ 50,00 nas mãos. Dinheiro milagroso este, num domingo em queos computadores bancários estavam em pane.

Resta agora a solidariedade daqueles que não toleram a intole-rância dos poderosos encastelados por detrás de leis burocráticas,que só servem a seus interesses. Do contrário, posso ser condenadoa até seis meses de detenção – que de forma alguma minha orienta-dora na ECA aceitará como “atividade programada” para os crédi-tos de que necessito no meu doutorado.

Fernando Conceição, 37, jornalista, doutorando na ECA-USP, mem-bro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro da USP ecoordenador executivo do Núcleo de Consciência Negra, é autor de“Negritude Favelada” e “Cala a Boca Calabar” (Editora Vozes).

No Brasil tornou-se um hábito,posto a serviço do imobilismo e dostatus quo vigente, descartar medi-das praticas, eficazes e de efeitoimediato, sob a alegação de queconstituem tão-somente paliativosque não nos devem desviar das so-luções definitivas.

Gostaria de perguntar a essaspessoas se estão dispostas a es-tender seu raciocínio à solução deoutras questões impor-tantes; e se concorda-riam por exemplo quese desarmassem (oumesmo se extinguis-sem, as polícias). Comefeito, como sabemos,a criminalidade con-temporânea não podeser combatida por me-didas repressivas. Suas“causas verdadeiras”repousam em certaspatologias sociais queacometem a existência dos ho-mens que vivem sob as circuns-tâncias impostas pela hodierna ci-vilização ocidental; na ansiedadesexual coletiva; no fato de o capi-talismo agonizante propor àsmassas o consumo obsessivo semser capaz (sobretudo em sua ver-são periférica e dependente) deoferecer-lhes os meios correspon-dentes; no fato de o consumo, porisso, de meio pelo qual se satisfa-zem necessidades reais, ter-se tor-nado elemento essencial de cons-trução da identidade pessoal einstrumento pelo qual as classessuperiores assinalam sua posiçãona hierarquia social; etc - ah, sim,também na fome: não tenho a in-tenção de desgostar nenhum co-munista cristão.

Mas nem por isso sentimo-nosagora, armados com esses argu-mentos tão sutis, retirados de umarefinada análise da realidade con-temporânea, no dever de intimar aclasse média branca a abrir mão desuas milícias particulares; talvezapenas devêssemos pedir a essaspessoas que não aplaudam demaisas chacinas purificadoras.

Na verdade, é quase paradoxal

que pretendam convencer- nos deque as cotas têm um caráter apenaspaliativo, quando a razão por queprovocam tanta resistência está pre-cisamente no fato de que são revo-lucionárias. Com efeito, nas circuns-tâncias brasileiras, em que a transi-ção do trabalho servil para o traba-lho assalariado e livre não se fezacompanhar da dissolução dos ele-mentos da antiga sociedade de cas-tas, continuando o ex-cativo a de-sempenhar o mesmo papel socialdos tempos da escravidão - quandonão foi simplesmente reduzido àcondição de mendigo pela entradado trabalhador imigrante -, as cotaseqüivalem a uma segunda, ou antes,a uma verdadeira abolição.

3º) “As cotas não deram certonos EUA.”

Realmente, esses críticos não setêm animado a comentar mais de-tidamente a experiência norte-americana, e talvez se contentemem afirmar que há, ainda, negrosmuito pobres nos EUA.

Podemos apenas supor quenossos adversários, apoiados emnotícias recentes que dão conta doataque da direita americana aosprogramas sociais do governo e ao

sistema de cotas pa-ra minorias, e dacrescente impopula-ridade, entre a classemedia branca, daspolíticas de açãoafirmativa, sintam-seautorizados a procla-mar, apressadamen-te, que as cotas fa-lharam nos EUA.

Ora, o sistema decotas deu certo nosEUA (deve-se a ele,

em grande medida, a formação deuma classe média negra naquelepaís), e é precisamente porque deucerto que está sendo atacado. Pre-cisamente porque foi capaz decumprir o objetivo a que se desti-nava - isto é, permitir que negros,latinos, mulheres e gays pudessemter acesso a empregos e posiçõesque até então constituíam um pri-vilégio reservado para homensbrancos heterossexuais -, o sistemade cotas tem provocado nos EUAreações violentas, que apenas ex-pressam a ira e a frustração dosque viram seus privilégios secula-res serem abolidos, e esperneiampara reavê-los.

O que as recentes e iradas rea-ções às políticas de ação afirmativanos EUA nos ensinam é que, ao

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No Brasil tornou-se um hábito,

posto a serviço do imobilismo e do

status quo vigente, descartar medidas

praticas, eficazes e de efeito imediato,

sob a alegação de que constituem

tão somente paliativos que não nos

devem desviar das soluções definitivas.

contrário do que se poderia supor,não há políticas sociais redistribu-tivas que não prejudiquem interes-ses consolidados, e, portanto, nãoprovoquem resistências.

A decisão das elites governa-mentais norte-americanas de apro-var e implementar os programasde ação afirmativa, na década de60, deve-se ao fato de que, àquelaépoca, a economia norte-america-na, em franco crescimento, tornavapossível ampliar as oportunidadeseducacionais para os negros, desti-nar-lhes as novas ofertas de em-prego geradas pelo crescimentoeconômico e permitir que aumen-tassem seu consumo; tudo isso semque o padrão de vida dos brancosfosse significativamente alterado.

Mas podemos supor (e nãopenso que isso implique de nossaparte um juízo apressado) que ja-mais teria ocorrido aos cidadãosbrancos norte-americanos a idéiade aproveitar o rápido crescimentoda economia para incluir nela osnegros não fosse o fato de que es-tes últimos se tinham, simplesmen-te, rebelado e ameaçavam condu-zir o país à guerra civil. E que te-riam preferido, antes, que as in-dústrias nacionais continuassem aproduzir bens para o consumo ex-clusivo da classe média branca, in-tensificando, assim, a concentraçãoracial da riqueza naquele país.

As reações crescentes aos gas-tos sociais das políticas de açãoafirmativa nos EUA revelam-nosque a classe média branca norte-americana deu-se conta de quenão será mais possível que todoscontinuem ganhando. De fato, aredução do ritmo do crescimentoda economia norte-americana -

processo cujo marco é assinaladopela crise mundial de 1973 - e aperda progressiva da capacidadedo capitalismo de gerar emprego(fenômeno que os norte-america-nos têm chamado jobless growth eque se relaciona à reestruturaçãodas economias nacionais impostapela globalização) sugerem que ocapitalismo americano volta a serum jogo de soma zero. O que, ab-solutamente, nada nos diz a respei-to de quem serão os vencedores...

Mas esta analise é apenas parajustificar por que fiquei surpresocom a declaração que me fez meuamigo Fernando Conceição, deque, no Brasil, as cotas vêm para obem de todos. Segundo sua análise,assim como nos EUA do pós-guer-ra as políticas keynesianas de favo-recimento dos mais pobres - queculminaram nos anos 60 com as co-tas para minorias - significaram aexpansão do mercado consumidore, portanto, ajustaram-se perfeita-mente aos interesses do capitalis-mo americano, no Brasil ocorreriafenômeno análogo, razão por queos “brancos”, e sobretudo suas eli-tes, não se deveriam preocupar.

Na verdade, apenas circunstân-cias muito especiais tornaram pos-sível, nos EUA das décadas de 50 e60, minorar a pobreza dos pobres,sem tornar os ricos menos ricos.

Hoje, nos EUA ou no Brasil,apenas agindo-se como RobinHood pode-se dar aos pobres oque eles precisam.

E Conceição, a julgar pelo en-tusiasmo com que defende as repa-rações, certamente sabe disso.

4º) “A exclusão social do negrobrasileiro - que tem na ausênciadeste grupo étnico das salas de au-

la das universidades apenas um re-flexo - é uma das conseqüências daconcentração de renda no país.Portanto somente um modelo dedesenvolvimento distribuidor de ri-queza será capaz de combater asdesigualdades raciais.”

Este é um argumento que, comfreqüência, podemos ouvir de indi-víduos que se autodenominam es-querdistas-brancos ou negros.

Pessoalmente, não considerouma atitude prudente perguntar-lhes sobre este “novo modelo dedesenvolvimento econômico”. Amenos, é claro, que estejamos pre-parados para ouvi-los ensinar que,segundo o método dialético aplica-do ao conhecimento da história - omaterialismo histórico -, o regimede propriedade privada, ao con-centrar nas mãos de uma minoriaos meios de produção ... etc., etc.E, embora quase nos convençamde que a iminente revolução prole-tário-camponesa, conseqüênciainexorável do desenvolvimento dasforças produtivas capitalistas, é aúnica capaz de pôr fim aos antago-nismos de classe, de que o racismoé tão-somente uma expressão, tei-mamos em pensar que talvez sejapossível - enquanto não vem a re-volução redentora - tomar algumasmedidas práticas para forçar o ca-pitalismo a dividir melhor seus fru-tos. E pensamos que nossas expec-tativas não são quiméricas, comonos asseguram os detentores privi-legiados das “leis da história”, mas,antes, assentam na experiência re-cente dos negros - norte america-nos e na luta histórica dos traba-lhadores nas diversas democracias.

O que devemos compreender éque a quase estrita correlação en-

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tre raça e classe no Brasilabsolutamente não nos au-toriza a supor que à desi-gualdade racial se reduz adesigualdade de classes. An-tes, e pelo contrário, obriga-nos a reconhecer que, entrenós, a raça é o fator em tor-no do qual se organiza a hie-rarquia social.

5º) “As cotas significama institucionalização e eter-nização do racismo.”

Temos boas razões parapensar que as pessoas queempregam este argumentonão sabem, exatamente, do queestão falando, por isso seria injus-to pedir que se explicassem me-lhor. Mas podemos suspeitar quesão pessoas bem-intencionadas epiedosas, embora confusas.

Certamente, suas impressõessobre as políticas de cotas são umreflexo de um tipo de sensibilidadesocial autenticamente brasileiro:aquele moldado pela ideologia dademocracia racial.

Permanecerá para sempre umfeito admirável e merecedor donosso aplauso o formidável esforçopatriótico de construção da ideolo-gia da democracia racial. Brancose brancóides brasileiros jamais po-derão avaliar corretamente oquanto devem ao pernambucanoGilberto Freire.

De fato, quando nos pergunta-mos como foi possível ao brancobrasileiro preservar todos os seustradicionais privilégios de casta,aos quais se tinha afeiçoado, semque isto fosse motivo para doresde consciência ou pretexto paramotins ou arruaças de negros, po-demos vislumbrar uma resposta

unicamente considerando os efei-tos medicinais da ideologia da de-mocracia racial.

Pode-se muito facilmente resu-mir a ideologia da democracia ra-cial: no Brasil, as oportunidadessão iguais para todos, independen-temente da cor; entre nós, a inten-sa miscigenação, resultado do tem-peramento flexível do colonizadorportuguês, dificulta ou mesmo im-pede que se classifiquem as pessoaspor raça, razão por que preferimossentir-nos todos pertencentes auma “raça morena brasileira”.

Seus efeitos saneadores são evi-dentes: redime a má-consciênciado homem branco e, fundamental-mente, impede que os negros nosreconheçamos enquanto grupo ra-cial, submetido ao jugo de outrogrupo racial. Parafraseando Marx,poder-se-ia dizer que a ideologiada democracia racial impede que,no Brasil, o negro em si torne-senegro para si.

“As cotas significam a institucio-nalização e eternização do racismo.”

Que pode isso significar senão aangústia e a perplexidade do ho-

mem branco brasileiro,que se tinha habituado àimagem cordial que fez desi mesmo, e que gostava depensar que, neste país, asatitudes discriminatóriasconstituem casos isolados,jamais característicos damentalidade nacional?

Como compatibilizar alição aprendida na escola,de que o Brasil é habitadounicamente por uma belaraça morena de homensgentis, com esta propostaextravagante de que os es-

tudantes nas universidades - oumesmo os empregados nas empre-sas - sejam selecionados por crité-rios raciais?

A ideologia da democracia ra-cial, ao sustentar que no Brasil aspráticas racistas têm caráter ape-nas excepcional, impede que sereconheça que, entre nós, a discri-minação racial é, de fato, o ele-mento central que organiza as re-lações sociais. E que, portanto,cotas significam a única possibili-dade de que haja oportunidadesiguais para todos, independente-mente de raça.

6º) “Quem são os negros?” Quecritérios permitiriam distinguir ne-gros de brancos em um país onde amaioria da população é constituídade mestiços?

Eis aqui um argumento que,não por acaso, é utilizado exclusi-vamente por brancos e brancóides.Certamente, nós, negros, tambémdiscutimos os critérios que permiti-rão decidir quem deve ter direitoàs cotas, mas sem nunca conside-rar que dificuldades eventuais se-jam pretexto apara declarar a pro-

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posta de cotas impraticável!, econstato que, mesmo entre os ne-gros que se declaram contráriosaos sistema de cotas, não parecehaver um suficientemente desaver-gonhado para empregar este argu-mento, de fato, imoral.

A polícia, os selecionadores decandidatos a emprego e os publici-tários são apenas alguns exemplosde categorias inteiras que não pa-recem ter nenhuma dificuldade pa-ra distinguir negros de brancos.Poder-se-ia entregar a essas gen-tes, que por circunstâncias profis-sionais são diariamente obrigadasa separar as pessoas pela raça –sob pena de não poderem desin-cumbir-se de suas tarefas –, a res-ponsabilidade de responder àquestão: “Quem são os negros?”

7º) “Por que apenas aos negros,e não também a outros grupos ét-nicos, devem ser destinadas cotasde vagas nas universidades? O quepode impedir descendentes de ita-lianos, judeus ou japoneses de rei-vindicar o mesmo tratamento?

A razão por que exclusivamenteaos negros e a nenhum outro gru-po étnico deve ser concedido aces-so especial às universidades (etambém às empresas públicas ouprivadas, às academias militares,ao Itamarati...) é bem simples deentender: apenas os negros, mesti-çados ou não, somos descendentesde escravos, que, por quatro sécu-los, foram os produtores exclusivosde riqueza no país – riqueza à qualjamais tivemos acesso.

Não tenho a intenção de excitara imaginação dos leitores destas li-nhas, mas vamos supor - unica-mente para efeito pedagógico -que o movimento abolicionista ti-

vesse fracassado no Brasil. Querodizer: que aquela conspiração lide-rada por mulatos e que tinha porobjetivo impedir que a libertaçãodos escravos fosse o resultado daluta dos próprios escravos, isto é,impedir que o negro se tornasseum ator político e um agente histó-rico não tivesse obtido êxito. Supo-nhamos, portanto, que a aboliçãoda escravidão, entre nós, houvessetido a conseqüência de uma insur-reição negra vitoriosa; e que os lí-deres insurretos não se contentas-sem em abolir o trabalho escravo edesejassem também promover ajustiça. Suponhamos ainda que es-ses líderes fossem as pessoas maisbondosas que Deus jamais tenhafeito habitar este mundo, e que,por isso, tivessem decretado umaanistia geral única - condição sob aqual se poderiam evitar execraçõescoletivas -, mas que também hou-vessem determinado que as terrasdeveriam pertencer a quem, algu-ma vez, nelas houvesse arado eplantado; e os bens móveis ou imó-veis aos que, com seu trabalho, ostivessem produzido.

Com que meios poderiam osbrancos financiar sua longa via-gem de volta?

Não pretendo converter nin-guém a uma opinião radical, masnão me posso impedir de pergun-tar o que os ex-escravos, rebelados- na hipótese fabulosa que estamosconsiderando -, não poderiam, le-gitimamente, reivindicar como seu.Que terras, em quatro séculos deescravidão, não foram cultivadaspor negros e quais casas não foramconstruídas por suas mãos.

E que boas razões teria paraprotestar o poderoso senhor de

engenho - ou mesmo a pobre viú-va de condição modesta que tives-se como única fonte de renda umou dois escravos de aluguel - se onovo poder revolucionário hou-vesse decretado que os brancospoderiam, sim, abandonar o país,desde que saldassem suas dívidas,para o que, por não terem nadade seu, deveriam prestar serviçosà coletividade?

Já podem abandonar este cená-rio apocalíptico. Não estamos pro-pondo nada semelhante. E pensa-mos, mesmo, que é um bom pre-ceito jurídico, e muito adequado, aconvivência pacífica dos homens, oprincípio de que as penas jamaispodem exceder a figura do conde-nado. Não se pode, em nome dajustiça, pretender penalizar alguémpor um crime cometido por um an-tepassado seu.

Mas, atenção. Exigir indeniza-ção por crimes pretéritos não im-plica, absolutamente, criminalizarinocentes! Um homem não podeser penalizado porque seu pai ma-tou outro homem, e morreu pormorte natural antes que pudesseser punido por seu crime. Mas seeste crime tornou possível ao as-sassino apropriar-se de algum bemde sua vítima, e se este bem, de-pois da morte do assassino, coubeao seu filho, então o filho da víti-ma pode, sinceramente, reivindi-car a posse daquele bem que per-tencera a seu pai.

E deverá contar com o socorrodos tribunais de justiça e a simpa-tia dos homens honestos.

Mauro Göpfert Cetrone é coordena-dor do Núcleo de Consciência Negrae aluno da Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas da USP.

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“ Que a lucidez e a têmpera se façampresentes em tempos de solerte

imposição, rendição sem pudor etraição criminosa.”

MONOPÓLIO DAS PATENTES

J. W. Bautista Vidal

Silvio Ferreira/Abril Imagens

OBrasil esteve entre os dez países fun-dadores do Sistema Internacional dePatentes, em 1863, nele permanecen-do até hoje. Sem tradição secular nodomínio técnico-científico-industrial,como a maior parte dos beneficiários

desse sistema, não se explicam as razões dessa prema-tura adesão. Na realidade os marcos iniciais dessasatividades no Brasil somente vieram a ocorrer jáavançado o século XX. A Universidade de São Paulo- USP foi criada em 1934 e a Companhia SiderúrgicaNacional - CSN nos anos 40. Por isso, por mais de umséculo pagamos elevado preço pelo controle externodos monopólios das patentes.

Somente em 1971 o Congresso Nacional aprovouum Código da Propriedade Industrial que regulamen-tou essas concessões, excluindo do sistema os setoresquímico-farmacêutico e de alimentos, cujos privilégiosconcentravam-se nos princípios ativos, além de criarperigosa dependência para a vida dos brasileiros.

O Poder Executivo, ainda no governo Collor, enviouao Congresso projeto de lei que generalizava o mono-pólio das patentes a todos os setores produtivos, redu-zia drasticamente os mecanismos de proteção da socie-dade e das empresas não beneficiadas pelo monopólio,concedia privilégios a estrangeiros com efeitos legais re-troativos - “pipeline” - e atentava contra a vida conce-dendo patentes a microorganismos engenheirados.

Como os microorganismos não são objeto de inven-ções e sim de descobertas na natureza, o seu patentea-mento fere o princípio secular de somente concederpatentes a invenções novas, de utilidade produtiva.

A proposta inicial representou assim um claro en-durecimento da legislação brasileira em benefício dosdetentores dos privilégios. Este espírito não só foimantido, como acrescido ao longo dos cinco anos emque o projeto de lei está no Congresso. Ademais, nes-sa nova legislação desaparece praticamente a figuraoriginal do inventor ou de qualquer direito do pesqui-sador-empregado a benefícios do invento patenteado.Os direitos são dos empregadores, privados ou esta-tais, e incluem o período de tempo posterior à desvin-culação empregatícia.

O privilégio das patentes corresponde à práticamedieval pela qual o Estado concedia monopólio emtroca da produção interna de uma invenção nova.

Trata-se portanto da intervenção do Estado na econo-mia, criando custos adicionais para a sociedade emtroca de duvidosos benefícios - salvo para os premia-dos detentores de patentes. Até a condição essencialda produção interna do produto foi retirada do proje-to de lei e substituída por importações em regime demonopólio externo.

No caso de países de baixa capacidade tecnológica,esta prática resulta em grandes danos, como o de-monstra a experiência secular brasileira, no períodoentre 1863 e 1971.

Nesses países, o objeto do privilégio recai, em suaquase totalidade, em corporações transnacionais deorigem externa.

Nos países industrializados de grande poder tecnoló-gico, as patentes criam internamente privilégio de mo-nopólio para os grupos mais poderosos, além de reser-var mercados, também em regime de monopólio, nosdemais países; portanto, altamente vantajoso para eles.

Não existe nenhuma evidência real de que os mo-nopólios das patentes estimulem invenções ou pro-movam o desenvolvimento; pelo contrário, o congela-mento que provocam sobre determinado espaço pro-dutivo com proteção não justificada àquela invenção,reservando-lhe o mercado, em regime de monopólio,pelo longo período de 20 anos, impede que outras in-venções venham estimular o avanço e o progresso. Narealidade, as graves restrições da reserva de mercadoe do monopólio, no nosso caso de controle externo,impedem, por esse período, qualquer perspectiva deevolução tecnológica.

Trata-se, desse modo, de benefícios para uns pou-cos, em geral corporações transnacionais, resultantesde brutal (no caso dos fracos) intervenção do Estadona economia, com sérias restrições à livre concorrên-cia e ao desenvolvimento tecnológico. Um exemplodisso é um maior avanço daquelas atividades não sub-metidas a patentes, como as técnicas e métodos cirúr-gicos e terapêuticos, por exemplo.

Como afirmado em 1974 pela Corte Suprema dosEUA, no caso entre a Kumanee Oil Co. e a BicronCo.: “A patente é a negação da livre concorrência”.Ademais, pelos custos adicionais que ocasiona para asociedade e para os consumidores, decorrentes do re-gime de monopólio, sua prática corresponde à impo-sição pelo Estado de incalculáveis e arbitrários subsí-

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dios, de difícil comprovação, em benefício de privile-giados produtores que, no caso do Brasil, são, em suaquase totalidade, estrangeiros.

No projeto de lei de patentes, em fase final deaprovação em abril de 1996 na Câmara dos Deputa-dos, após sua aprovação no Senado, o Estado, ao fa-zer valer sua intervenção, penal, no qual o ônus daprova cabe ao suposto infrator.

Evidentemente, subsídios e privilégios dessa natu-reza distorcem a economia, criando odiosos monopó-lios privados, na prática, em benefício de interessesexternos, resultado, do ponto de vista ideológico, deum planejamento central do Estado, porém sem cen-tro e sem plano - ao arbí-trio de corporações pre-miadas, baseado na su-posta vantagem de uminstantâneo conhecimen-to inovador.

Pelas circunstânciaspráticas de nossa realidadeatual, após longo períodode recessão e de políticaseconômicas que a promo-vem, as patentes privile-giam um restrito clube, doqual estão excluídas as em-presas de capital nacional.Trata-se desse modo de enérgica intervenção do Esta-do que objetiva entregar setores inteiros de nossa eco-nomia ao controle externo, especialmente aqueles queenvolvem a segurança de vida dos cidadãos, como ofarmacêutico e o alimentar; ademais, pelo patentea-mento de microorganismos, essa entrega extender-se-áa setores potencialmente estratégicos de peso mundial,como o energético da biomassa, único caminho univer-sal para a substituição do petróleo, em exaustão no pla-neta, e dezenas de outros.

Como a patente cria reserva de mercado monopó-lica durante vinte anos, no nosso caso de controle ex-terno, fica sem objetivo o esforço tecnológico nacio-nal, posto que o mercado a que se destina estará re-servado para os que detêm concessões de patentes.Como justificar então inversões que podem exigir mi-lhões de dólares para um desenvolvimento que temseu uso bloqueado em favor de corporações externas?

No caso específico da indústria farmacêutica, poderepresentar a destruição das poucas de capital nacio-nal que sobraram, além da estagnação tecnológicaque isso implica. As dificuldades que lhe foram im-postas até aqui já fizeram grande estrago. Das seis in-dústrias de capital nacional de antibióticos implanta-das nos anos 70, somente sobrou uma. A nova lei,sem dúvida, promoverá a erradicação dessa atividadeessencial para a vida dos brasileiros, salvo evidente-mente aquelas empresas que sejam toleradas pelosgrupos transnacionais ou seus agentes.

Com a saturação da química de síntese, a indústriafarmacêutica internacional caminha na direção dos

medicamentos e fármacosde origem natural, cujopatrimônio genético bási-co encontra-se nos trópi-cos - cerca de 90%, con-forme avaliação de órgãoespecializado do Conse-lho de Ministros da UniãoEuropéia. A patente dosmicroorganismos visa in-diretamente apoderar-sede modo gratuito desseincalculável patrimônio,em regime de monopólio.

Segundo Noam Cho-msky, professor do MIT, organismo de comércio in-ternacional da Casa Branca, essa legislação de paten-tes, uma vez aprovada, implicará um aumento do flu-xo de recursos financeiros do Sul para o Norte (EUA)da assustadora ordem de 61 bilhões de dólares porano, o que, necessariamente, irá acarretar a trágicaelevação da miséria no País.

Não é necessário detalhar a natureza dos efeitosnegativos que a patente das sementes irá provocarna agricultura brasileira, setor importantíssimo danossa economia; ao contrário do setor industrial, aagricultura está ainda em grande parte em mãos debrasileiros. Com essa legislação, o seu controle pas-sará às mãos de umas poucas corporações transna-cionais de sementes, agrotóxicos e fertilizante e, evi-dentemente, acentuar-se-á a dependência que temde banqueiros e agiotas. As indústrias de álcool, dequeijos, de pães, etc., entrarão em fase de grande

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Essa legislação de patentes, uma vez

aprovada, implicará um aumento

do fluxo de recursos financeiros

do Sul para o Norte (EUA)

da assustadora ordem de

61 bilhões de dólares por ano.

vulnerabilidade com a patente de microorganismos.Os danos dessa legislação para o País são ilimita-

dos, ainda que seja difícil avaliar com antecipação averdadeira dimensão dos estragos por vir. Um verda-deiro suicídio!

Cerca de 300 instituições universitárias, estudantis,de profissionais liberais, de trabalhadores e associa-ções de indústrias nacionais agregaram-se no Fórumpara a Liberdade do Uso do Conhecimento com o ob-jetivo precípuo de combater os inúmeros aspectos ne-gativos dessa nova lei.

A Igreja Católica, por meio de suas mais altas hie-rarquias, tem rejeitado energicamente o patenteamen-to da vida, e a última encícli-ca papal, “Evangelicum vitaegeneticae”, reage aos “ma-quiavélicos efeitos da enge-nharia genética”e da “cultu-ra da morte”.

O Parlamento Europeu,após cinco anos de debates,recusou pela diferença de80 votos a patente sobre avida. A Suprema Corte daAlemanha opôs-se tambéma tal despropósito.

Tais são as resistênciasmundiais ao patenteamentoda vida que o próprio Congresso americano condi-cionou a aprovação da Rodada Uruguai do GATT,que criou a Organização Mundial do Comércio e asnovas leis de propriedade intelectual, ao acompa-nhamento de uma junta de magistrados. Se em trêsocasiões, a critério da junta, os interesses norte-ame-ricanos forem prejudicados, os EUA retiram-se daOrganização.

Tais são as suspeitas e intranqüilidades que o pa-tenteamento da vida vem provocando, que a própriaOrganização Mundial do Comércio já admite a revi-são desse tema num prazo de quatro anos. Comoadmitir então a aprovação de uma lei quando seuspróprios proponentes já admitem sua revisão emcurto prazo?

Conforme informa a revista científica Nature, emseu número de abril de 1996, entre os anos 1981 e1995 foram concedidas em todo o mundo 1175 paten-

tes para seqüências de DNA humano. Cada uma de-las relativa a um pedaço do código biológico de umser humano. Três quartos delas foram concedidas aempresas privadas, sendo metade japonesas e as res-tantes divididas entre norte-americanas e européias.Aquelas patentes concedidas a instituições públicasestão nos EUA. Dentro do quadro ético das grandesreligiões, é muito difícil saber aonde querem chegarcertos Estados com o patenteamento da vida, o queimplica a mercantilização da vida em regime de mo-nopólio, como são de sua natureza as patentes.

“Corporações transnacionais da área farmacêuticaestão recorrendo a bancos de cultura de microorga-

nismos para patentear aque-les que oferecem potencialcomercial. No AmericanType Culture Collection (-ATCC), no qual estão regis-trados (1994) 258 microor-ganismos isolados no Brasil,15 deles aparecem já paten-teados, conforme a Funda-ção Internacional para oAvanço Rural, instituiçãocanadense, a saber: Patentede J. C. Burton nº 33.845;Patente nº 31.351 da DowChemical, produz enzima

que ajuda na quebra da molécula de glicose; Patentesnº 15.422, 31.906 e 21.393 de Bristol Laboratory,Warner-Lambert/Parke Davis e Lapetit Lab., utiliza-das respectivamente na produção de antibióticos; Pa-tente nº 76.735 de Kaken Pharmaceuticals, utilizadasna produção de substâncias antitumorais, etc. Evi-dentemente, trata-se de usurpação de nossas matri-zes biológicas, impondo criminoso monopólio sobremicroorganismos que fazem parte da biodiversidadedo planeta e cuja apropriação é crime de lesa huma-nidade, em afronta direta ao Tratado de Biodiversi-dade, aprovado por todos os chefes de Estado e degoverno presentes à ECO-92, com exceção do presi-dente George Bush, dos EUA.” (Bautista Vidal, J.W., O esfacelamento da nação, Vozes, 1994).

No regime de monopólio privado, preços e lucrospotenciais não mais dependem de fatores de produ-ção, de custos e riscos, mas do poder de arbítrio do

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No regime de monopólio privado,

preços e lucros potenciais não

mais dependem de fatores de

produção, de custos e riscos, mas

do poder de arbítrio do detentor

do monopólio.

detentor do monopólio. As conseqüências dessa lógi-ca não são de difícil previsão. Não é por acaso que emsociedades ricas, como os EUA, o regime de monopó-lio decorrente das patentes vem subtraindo parcelascrescentes da população do uso de medicamentos -cerca de 30% - e levando setores inteiros da econo-mia à inviabilidade, como o agrícola devido à patentede sementes.

A afirmação de que o arbítrio nos preços decor-rente do monopólio permite ao beneficiário cobrir oscustos tecnológicos da inovação é falsa. Nada impedeque esses custos sejam justamente cobertos pelos pre-ços de uma saudável livre concorrência. Isso é verda-de em todos os outros setores da produção em quenão existe patente do produto final - inclusive setoresde alta competitividade e de rápida obsolência tecno-lógica, como os setores aeronáutico e eletrônico, porexemplo. Por que não é possível, então, a mesma sau-dável dinâmica do setor farmacêutico? Por que paraeste privilegiado setor é necessário o monopólio? Evi-dentemente, por tratar-se de produtos dos quais de-pende a vida das pessoas, o seu controle monopólicotem outras implicações muito mais graves, como o fa-to de poderem ser usados como armas de guerra.Qual é o país que pode resistir algumas semanas comfalta de insulina, por exemplo? Foi o que aconteceucom a Argentina na Guerra das Malvinas: antibióticose insulina foram usados como arma.

Todos os ressarcimentos justos que decorrem deinvestimentos tecnológicos, bem como a garantia dosigilo dos conhecimentos inovadores envolvidos naprodução, são normalmente objeto de cláusulas con-tratuais universalmente adotadas nos contratos deuso de pacotes tecnológicos. Para que então a necessi-dade do monopólio e da reserva de mercado impostospelas patentes, em indevida intervenção estatal? Evi-dentemente é para fugir da livre concorrência o Esta-do impondo à sociedade e ao cidadão um absurdomonopólio privado e tudo o que ele implica. Ade-

mais, visa também impedir que os países não hegemô-nicos, especialmente aqueles com grandes mercadospotenciais, possam desenvolver-se e, um dia, ganhar aindispensável autonomia tecnológica nesse crucial se-tor que envolve a vida de seus cidadãos.

Se existem portanto cláusulas de sigilo tão rigoro-samente especificadas nos contratos de uso tecnoló-gico, como falar-se então em pirataria? Por que a pi-rataria é exclusiva do setor farmacêutico? Ou estãoexaltando e promovendo, pelo poder de intervençãodo Estado, um absurdo sistema econômico constituí-do exclusivamente de monopólios privados? Nessesistema, qualquer concorrente potencial passa a ser,por definição, um pirata... Por que a pirataria é res-trita aos nacionais, envolvendo coação do exterior so-bre o Estado nacional? Por que empresas que cum-prem as leis do país, e que seguem as regras interna-cionais na área de patentes, são pública e impune-mente acusadas de piratas? Circunstâncias de similargravidade levaram o Congresso argentino a conside-rar o embaixador norte-americano persona non gratapor ter emitido esse tipo de falso e irresponsável jul-gamento sobre a legislação daquele país. O que sepoderia dizer da intenção formalizada de apoderar-se, a troco de nada, de nosso portentoso patrimôniogenético? Classificar essa operação de banditismo ereal pirataria seria o mínimo. O que é de lamentar,posto que fruto de traição, é que esse projeto de lei éimposto pelo Executivo por meio de pressões de todaordem e é aceito por um Congresso venal, que nãorepresenta os interesses mais cruciais da sociedadebrasileira. Ademais, é um atentado à vida, ainda con-siderada sagrada pelo espírito religioso de nosso po-vo e uma profunda ilegitimidade legal. Sem dúvidainconstitucional e criminosa, no que comprometetambém o Poder Judiciário.

O Acordo de Paris, e todos seus ajustes posterio-res, garantiram aos países o direito soberano de esco-lher os setores em que se concederia o privilégio das

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A afirmação que o arbítrio nos preços decorrente do monopólio permite ao

beneficiado cobrir os custos tecnológicos da inovação é falsa. Nada impede que esses

custos sejam justamente cobertos pelos preços de uma saudável livre concorrência.

patentes. Talvez por isso o sistema tenha durado tan-to. Como então classificar de piratas aqueles paísesque não reconhecem patentes em determinados seto-res? Cada um, naturalmente, ajusta a lei de patentes asuas necessidades e interesses. Japão, Suíça e Itália,por exemplo, só adotaram patentes farmacêuticas jáavançada a década de 70, mais de um século após acriação desse sistema internacional; o Japão, quandoas indústrias japonesas já supriam 80% da demandanacional, e a Suíça, quando ocupava a posição privile-giada de terceira potência farmacêutica mundial. Co-mo é possível, por isso, acusá-los de praticarem pira-taria! Valesse esse critério, poder-se-ia acusar os EUAde serem uma naçãopirata durante todo oséculo XIX. Só quan-do suas indústrias sedesenvolveram e elesse tornaram impor-tantes exportadores,passaram a interes-sar-se por uma rigo-rosa lei de proteçãode sua criatividade ede eliminação daconcorrência externa.A Itália e a Espanha,por exemplo, emborarepresentem situa-ções muito distintasdaquelas brasileiras,passaram a adotarpatentes farmacêuticas dentro de uma ampla negocia-ção de benefícios compensatórios correspondentes asuas respectivas entradas na ex-Comunidade Euro-péia, hoje União Européia. A China e a Índia, compolíticas nacionais consistentes de defesa de seus legí-timos interesses, resistem bravamente, criando meiosde defesa impensáveis pelos legislativos brasileiros.

A queixa das corporações farmacêuticas norte-americanas de que perdem dinheiro naqueles paísesonde não podem gozar do privilégio do monopóliopara seus produtos e processos também não é verda-deira. Não se pode perder o que não se tem. Na piordas hipóteses, deixam de ganhar o que não lhes é le-galmente devido. Na realidade, queixam-se de não

deter o monopólio por concessão de Estado inter-ventor que elimine qualquer tipo de competição elhes garanta polpudos subsídios e poder de arbítrioinaceitável. Para conquistar a privilegiada situação,queixam-se de fantásticas falsas perdas, que a im-prensa venal brasileira divulga como verdades, en-ganando a população.

A indústria farmacêutica de capital nacional de-senvolveu-se e dominou 85% de nosso mercado atéa Segunda Guerra Mundial, exportando vacinas emedicamentos para os EUA e a Europa. Nossas in-dústrias, todas privadas, dispunham de centros dedesenvolvimento tecnológico próprios, como Vital

Brasil e outros. Como modelo de cresci-mento econômicodepende das políticasde atração do capitalestrangeiro, as indús-trias brasileiras fo-ram inicialmente in-viabilizadas e depoiscompradas por cor-porações estrangei-ras, como descreve orelatório preparadopelo senador FrankChurch, do Congres-so dos EUA, sobre opapel dessas corpo-rações norte-ameri-canas no Brasil e no

México. Hoje, a participação dessas empresas de ca-pital nacional mal alcança 13 do mercado de medi-camentos e é quase zero no dos fármacos. Quem,de fato, está exercendo pirataria no mercado brasi-leiro de remédios? Com a nova lei de patentes, nemessas sobreviverão! Nessas condições, resta questio-nar duramente o papel do Estado (Executivo, Legis-lativo e Judiciário) como interventor contrário aosinteresses nacionais.

Nos países industrializados, as licenças de exclu-sividade das patentes, concedidas por outras razões,e as dinâmicas de fixação de preços não resultam,como vimos, do livre mercado, mas das expectativasdos protegidos pelo monopólio. As conseqüências

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Egberto Nogueira/Abril Imagens

negativas dessa concessão do Estado no que se ref-ere aos preços ao consumidor poderia ser contra-posta com uma regulação dos mesmos. Os EUA,por exemplo, que mantêm um rigoroso sistema depatentes e, ao contrário da maioria dos países doocidente, não exercem controle sobre os preços,têm o mais elevado custo farmacêutico para a popu-lação que qualquer outro país na história. Hoje,30% da população americana não têm acesso a me-dicamentos.

As patentes vêm a se constituir, portanto, nestescasos, em abusivo sistema de privilégios, mantidos pe-lo Estado, em garantia da falta de desejo das corpora-ções farmacêuticas de competirem livremente, au-mentando continuamente seu poder, por meio de vas-to subsídio retirado indiscriminadamente da socieda-de, graças ao regime de monopólio. Os cursos poten-ciais de um sistema de patentes sem restrições sãoportanto uma ameaça à sociedade.

As conseqüências de tudo isto são, como vimos,ainda mais graves no caso brasileiro, porque em suaquase totalidade o Estado privilegia interesses exter-nos ao País. A patente estrangeira extensiva e indis-criminada é insuportável para a estrutura produtiva epara a nação. Nenhuma sociedade resiste por longoprazo a tal vulnerabilidade.

“Enquanto o sistema de patentes tem deformadoseriamente o mercado farmacêutico dos EUA - dizMichael Davis, professor de direito da UniversidadeEstadual de Cleveland -, a aplicação de uma forteproteção patentária em países menos desenvolvidosresultará em desastre.” E acrescenta: “Aqueles paísesque adotarem as políticas de patentes dos mais desen-volvidos podem ter a certeza de que sairão perdendo,em todos os sentidos”.

Assim, a adoção de regras internacionais de pa-dronização ou, como são chamadas, de “harmoniza-ção”, como as do Acordo TRIPS da Rodada Uruguaido GATT, que criou a Organização Mundial de Co-mércio, conduzirão necessariamente ao congelamen-to do atual desequilíbrio mundial entre as nações he-gemônicas e as periféricas, retirando destas últimas apossibilidade de defesa pela concentração monopóli-ca do saber mundial nas primeiras. “Harmonização”,no caso, serve como designação dessa operação im-positiva, subjugatória. Quando um país mais desen-

volvido insiste em que suas leis de propriedade in-dustrial - que são apropriadas apenas para um eleva-do nível de desenvolvimento industrial - são adequa-das para países menos desenvolvidos, o que está de-sejando não é outra coisa senão subjugá-los a umaforma sofisticada de imperialismo, como esclarece oprofessor Michael Davis.

Na medida em que a produção da riqueza mundialdepende cada vez mais do trabalho intelectual, o con-trole do que resulta desse poder torna-se o grandeinstrumento de dominação.

A lei das patentes é a institucionalização do pro-cesso que congela o status quo do desequilíbrio depoder atual, que se acentua por falta de instrumen-tos de resistência. Corresponde em seus efeitos, pa-ra o futuro, ao papel que teve o Tratado de Me-thuen, em 1703, imposto pela Inglaterra a Portugal,e que nos afastou da Primeira e da Segunda Revolu-ção Industrial e nos transformou em colônia de umacolônia.

O referido projeto de lei, já aprovado pelo Senadode modo vergonhoso, encontra-se nesta data de voltaà Câmara dos Deputados para ser votado em regimede urgência urgentíssima.

Esperamos que, assim como até aqui um dedicadogrupo de brasileiros conseguiu retardar por cincoanos a aprovação desse projeto, apesar de compro-missos de pronta aprovação, assumidos pelo entãopresidente Collor com o presidente Bush, ainda antesde assumir a presidência da República, essa resistên-cia, associada sempre ao debate sério e digno de bra-sileiros com compromissos com seus filhos e com oPaís, venha a impedir que tal crime de “lesa humani-dade” seja consumado.

Os docentes da Universidade de São Paulo e dasdemais universidades brasileira têm, certamente, nes-se esforço de dignidade profissional, um papel impor-tantíssimo a desempenhar.

J. W. Bautista Vidal foi secretário de Tecnologia Indus-trial do Ministério da Indústria e do Comércio, e profes-sor da Universidade de Brasília.

Para maior aprofundamento de inúmeros aspectos da vida nacional,impossíveis de abordadar neste ensaio, relacionados com a famige-rada “lei das patentes”, recomendo a leitura do capítulo III do nossolivro O Esfacelamento da Nação, Editora Vozes, de dezembro de1994, sob o título “Lei das Patentes: A chantagem do século”, da pá-gina 151 à 216.

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As nossas universi-dades são jovens, amais antiga é a doParaná, fundadaem 1912. A tradi-ção de associar en-

sino com a pesquisa é ainda maisjovem, pois nasceu com a Faculda-de de Filosofia, Ciências e Letrasda USP em 1934. A formação dedocentes profissionais só começouhá trinta anos com a implantaçãoda pós-graduação. Quando se ana-lisa o crescimento científico brasi-leiro nestes últimos trinta anos, o

entusiasmo faz com que se compa-rem as nossas instituições com aseuropéias e americanas, esquecen-do a diferença em tempo percorri-do. Sem dúvida alguma o esforçofeito pela geração que iniciou após-graduação é significativo e im-portante. No entanto, com exceçãodas universidades paulistas em quehá uma política clara de qualifica-ção docente, nas demais institui-ções públicas os docentes envolvi-dos em pesquisas são minoria. Asinstituições privadas, com algumaspoucas e honrosas exceções, ainda

não têm grupos dedicados à gera-ção de conhecimento. A luta paramanter um grupo ativo de pesquisaé dura, requer muito mais que asimples competência científica, es-pecificamente fora de São Paulo.Muitos e muitos jovens doutores sedesesperam ao não ver seus sonhosrealizados. Não só por falta deuma política interna nas universi-dades, como pela falta de investi-mento no sistema federal de ciên-cia e tecnologia. É importante, aose avaliar a ciência brasileira, quese leve em consideração todos os

AVALIAR PARA CRESCER

Glaci T. Zancan

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parâmetros, especialmente a capa-cidade de formar da escola.

O uso de dados cientométricosisolados pode levar a um desvirtua-mento da realidade. Normalmente,os dados são coletados em bancosespecializados como é o caso doInstitute for Scientific Information(ISI) ,que selecionam as revistaspara indexar. Por outro lado, ébom lembrar que aproximadamen-te 50% dos trabalhos produzidosno mundo não são citados. Issonão significa que a qualidade des-ses trabalhos não possa ser equiva-lente à daqueles citados. Além dis-so, trabalhos descrevendo técnicasnormalmente têm um maior índicede impacto do que os trabalhosconceituais. Por outro lado, os ín-dices de impacto variam com aárea do conhecimento, o que decerta maneira dá uma idéia dequais as ciências mais competitivasno momento, haja vista os núme-ros da área de imunologia, cujospesquisadores, no topo, têm um ín-dice de impacto de 400

1. Os dados

cientométricos mostram que aciência brasileira cresceu e repre-senta 0,5% da produção mundial.No entanto, os índices de impactoestão ainda aquém dos parâmetrosmédios internacionais, mesmo nas

áreas que contam com maior nú-mero de pesquisadores. Na reali-dade, o que se observa é que sãoimpactantes alguns poucos pesqui-sadores nacionais, cujos índices es-tão acima da média mundial, massem atingir o topo da escala. Usan-do dados recentemente publicadospor Leta & De Meis2 sobre os índi-ces de impacto da ciência nacionalmedidos no período de 1981/1993,podemos fazer algumas compara-ções (veja quadro).

Das ciências brasileiras, a únicaque está acima da média mundial éa matemática. Recentemente aScience4 publicou dados sobre aciência latino-americana. Lá o quese vê novamente é que os índicesde impacto relativo são baixos,confirmando que estamos abaixoda média mundial. No caso da ge-nética e biologia molecular, o nos-so índice, em relação ao mundial, é0,2. Como se vê, a simples análisecientométrica nos faria desesperar.No entanto, é preciso se alegrarcom o número de núcleos de pes-quisa que o país criou, com o nú-mero de jovens que se interessampela pesquisa. Afinal o Brasil criouo mais amplo programa de pós-graduação dos países do hemisfé-rio sul. Tínhamos, em 1992, cerca

de 17.762 professores trabalhandoem 497 cursos de doutorado e1.012 de mestrado, e formamos1.504 doutores de 6.841 mestres5.É importante que este esforço nãose perca e que se amplie o númeroe a qualidade de nossos núcleos depesquisa. No momento em que sediscute a nova Lei de Diretrizes eBases da Educação, a qual admiteprofessores universitários apenascom o título de especialista (cargahorária de 360 horas), é funda-mental lutar para que a pós-gra-duação de qualidade seja mantida.É importante avaliar para quepossamos crescer com qualidade enão usar instrumentos de avalia-ção para marginalizar os centrosmenores que lutam para sobrevi-ver. Num mundo em que ciência etecnologia são instrumentos depoder, abrir mão da ampliação doparque instalado é suicídio. Mes-mo porque a criatividade é aleató-ria, e a ciência, como a arte, de-pende basicamente dela para cres-cer. É preciso encontrar formas depremiar a competência, melhorara infra-estrutura das universidadespara a pesquisa e deixar que a nos-sa juventude continue a caminha-da para colocar o Brasil no mapada ciência mundial.

Glaci T. Zancan é professora titulare chefe do Departamento de Bioquí-mica da UFPR.

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Watch 6 (5) 1-2, 1995.2. LETA, J & DE MEIS, L. A profile of science in Brazil.

Scientometrics 35:33-44, 1996.3. MITOON, S. South African Science Anemic: Serius

Action surely advisable. Science Watch 6 (3); 1-2, 1995.4. SCIENCE Science in Latin America. Science 267:808,

1995.5. GUIMARÃES, J. & HUMANN, M.C. Training of

human resources in science and technology in Brazil:The importance of a vigorous pos-graduate programmand its impact on the development of the country.Scientometrics, 34:101-119, 1995.

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Ahistória construída é importante e pe-rigosa. A essa conclusão chegou, apósexaustivas pesquisas, o professor An-toon de Baets, do Departamento deHistória da Universidade de Gronin-gen (Países Baixos), em precioso rela-

tório sobre trezentos e sessenta historiadores perse-guidos e censurados, em quase setenta países, no pe-ríodo de 1945 a 1995. Tal documento, destinado, prin-cipalmente, a conscientizar nossa comunidade da uti-lidade de uma ação conjunta com as organizações dedireitos humanos no sentido de viabilizar uma postu-ra solidária, mas também preventiva, chega, sem dúvi-da, em boa hora. Todos sabemos como o esquecimen-to é algo quase incontrolável. E o nosso passado re-cente, registrado no trágico O Livro Negro da USP,

editado graças ao empenho da Adusp, está aí paraprovar que colhemos, ainda hoje, os frutos da intole-rância política e da tentativa de controle ideológicoplantados na ditadura militar. Os tempos são outros,mas as práticas, muito semelhantes...

O relatório de Baets, apresentado, parcialmente,durante o XVIIIth International Congress of Histori-cal Sciences, que se realizou de 27 de agosto a 3 desetembro de 1995, na cidade de Montreal, é dedicadoà memória de todos os cidadãos envolvidos de algummodo com o passado e que lutaram pelo direito deescrever, com liberdade e autonomia, a história, algu-mas vezes colocando em risco a própria vida. Sob essaperspectiva, é plenamente compreensível o uso deuma definição flexível do termo “historiador”, empre-gado para designar, de um lado, os que atuam no

A MORTE DO CONTRAPODERNanci Leonzo

“Il n’ya pas de démocratie effective sans vrai contre-pouvoir critique.”

Pierre Bourdieu, 1993.

campo histórico (historiadores, arquivistas, arqueólo-gos e também estudantes de história) e, de outro, osautores de trabalhos históricos, acadêmicos ou nãoacadêmicos, independentemente de sua instrução ouprofissão (jornalistas, políticos, etc.). Nota-se, assim,que importantes cuidados metodológicos foram to-mados para garantir ao texto final um bom índice deconfiabilidade, não obstante seu caráter um poucoprovisório, pois Baets encontrou muitas dificuldadespara comprovar boa parte das informações recolhi-das. Todavia, mesmo lidando com o que denominou“provas imperfeitas”, conseguiu agrupar as evidênciasdisponíveis em três categorias: a) informações geraissobre a censura da história; b) historiadores censura-dos ou perseguidos dentro do campo histórico; c) his-toriadores censurados ou perseguidos fora do campohistórico. O resultado foi surpreendente: a repressãoconfigurou-se como algo comum e multifacetado, po-dendo surgir nos mais diferentes contextos políticos ehistoriográficos.

Ao discutir as “provas imperfeitas”, Baets nos legasignificativas reflexões sobre a natureza e o alcanceda censura. Denuncia o fato de que ela toma, reitera-das vezes, o caráter de “tortura menor”, pois acabaimpondo restrições às carreiras acadêmicas, restriçõesestas muitas vezes mantidas em segredo pelas pró-prias vítimas. O seu desenvolvimento em uma atmos-fera sigilosa visa, sobretudo, atingir o âmago do histo-riador, que passa a se submeter, conscientemente, aoprocesso de auto censura, talvez mais danoso do quetodas as outras formas visíveis de repressão. Sem es-paço para contestação, o intelectual, condenado àcondição de sujeito passivo, contribui, em minha opi-nião, para que se consolide, nas mais diferentes esfe-ras decisórias, a “marca degenerescente do compro-misso negociado”, do qual nos falou, em primorosotexto, o saudoso Florestan Fernandes.

Mas as pesquisas de Baets têm, como já assinalei,objetivos práticos, que se corporificam através daNetwork of Concerned Historians (NCH), organiza-ção que se apresenta como universal, independente esem fins lucrativos, onde informação, pesquisa e açãose combinam com o propósito de agilizar, quando ne-cessário, a American Association for the Advance-ment of Science e a Anistia Internacional. O Grupode Trabalho que atua na NCH, sob o comando do

próprio Baets, do qual faço parte, entende que, des-pertando a atenção para os diferentes casos que seconfiguram como episódios em que ocorreu a viola-ção dos direitos humanos, acaba colaborando paraque os censurados ou perseguidos obtenham um pou-co de imunidade e proteção. Os poderes constituídos,por sua vez, não vêem com bons olhos a possibilidadede divulgação de atos arbitrários, e nenhum deles, porcerto, tende a acentuar os mecanismos repressivosquando ameaçado de uma condenação coletiva forade suas fronteiras.

Seria ilusório imaginar que estamos hoje livres dasdiferentes formas de censura no âmbito dos estudoshistóricos. Há casos recentes em todo o mundo. Osexemplos vão da Guatemala à China; da Bulgária aosEstados Unidos. Na Albânia, por exemplo, segundoinformações chegadas, no último mês de março, à se-de da Anistia Internacional em Londres e repassadasà NCH, vários cidadãos foram acusados de atividadesanticonstitucionais. Elvira Shapllo, historiadora, eVladinir Qiriaqi, arqueólogo, sofreram ameaças porterem participado da elaboração de um guia turísticode Gjirokast contendo uma fotografia de Enver Hox-ha, um nativo da cidade e antigo líder comunista.Quanto ao Brasil, as informações em poder de Baetsque cobrem a ditadura militar são reduzidas. Temos odever de completá-las ou mesmo corrigi-las. O mes-mo vale para Portugal. Joaquim Barradas de Carva-lho, o historiador que, por anos, permaneceu conoscocolaborando com o Departamento de História, erapara Baets um nome desconhecido.

A crença na impossibilidade de um retrocesso po-lítico parece alimentar o esquecimento e o desinteres-se pelo nosso passado recente. O fato é que vivemosdesmobilizados, empenhados em combates que divi-dem o campo científico e alienam a comunidade. Lu-ta-se, na atualidade, apenas por cargos e títulos e nãopelo direito de garantir aos insatisfeitos uma vaga noscírculos destinados, teoricamente, à livre discussãodos problemas acadêmicos. É o poder aniquilando,dia-a-dia, o contrapoder crítico. É a universidade sesubmetendo ao jogo político sustentado pelo “é dan-do que se recebe”. Os tempos são outros, mas as prá-ticas, muito semelhantes.

Nanci Leonzo é profa. associada - Depto. de História.

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Dengue

EM DEBATE O RESSURGIMENTO DA QUESTÃO DA

ERRADICAÇÃO DO MOSQUITO TRANSMISSOR

O Aedes aegypti já causou terríveis danos à Nação. No início deste século milhares depessoas morreram nas avassaladoras epidemias da doença. Atualmente, apesar de não

viver situação semelhante à de 90 anos atrás, o Brasil volta a se defrontar com oproblema. O governo, através do Ministério da Saúde, admite a possibilidade de umacampanha para erradicar o mosquito. Esta, porém, não é a melhor forma de atuação,na avaliação de Delsio Natal, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. Para

ele, um bom sistema de vigilância entomológica, associado às ações eficientes decontrole, impedem a propagação do dengue. Cuba enfrentou, em 81, uma epidemia de

dengue hemorrágico e, hoje, tem o Aedes aegypti sob controle.

Oscar Cabral/Abril Imagens

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No final de 1995,participamos, co-mo convidados, doseminário sobre aerradicação do Ae-des aegypti, mos-

quito considerado o principaltransmissor do dengue em nossopaís. O evento ocorreu nas depen-dências do Ministério da Saúde,onde reuniu-se a comunidade cien-tífica com a intenção de debater,criticar e opinar sobre a pertinên-cia da proposta.

Ficamos surpresos ao ver nova-mente em tela a discussão sobre aerradicação de um mosquito queatualmente espalhou-se, ocupandoos centros urbanos da maioria denossos estados. Há muito essa es-tratégia foi substituída por controle,o que envolve uma filosofia com-pletamente diferente na maneira deenfrentar do problema.

Historicamente o Aedes aegyptijá nos causou severos danos comotransmissor da febre amarela urba-na. É só nos reportarmos ao iníciodo século, quando grassavam epi-demias avassaladoras dessa doen-ça, que atingiam grandes centros,como o Rio de Janeiro. Através deorganizadas campanhas, coube aOsvaldo Cruz o mérito de ter im-pedido a morte de milhares depessoas, dominando a virulentadoença. Não eram campanhas de-mocráticas, pois com freqüênciaviolavam a privacidade domiciliare a cidadania, chegando a provocarrevolta popular.

Foi através de majestoso esfor-ço que o serviço nacional de saúdeconseguiu erradicar a doença denossas cidades. O último caso dafebre foi registrado em Sena Ma-

dureira, no Acre, em 1942. Mesmocom o desaparecimento do malnessa forma epidemiológica, omosquito persistiu, infestandoáreas urbanizadas até meados dadécada de 50, quando a saúde pú-blica, outra vez vitoriosa, con-seguiu sua erradicação. Cabe lem-brar, referindo-se a mosquitos, queerradicar implica “banir” a espéciede um determinado território,através de ações específicas aplica-das sistematicamente.

Passada a Segunda GuerraMundial, o mundo viveu um perío-do eufórico com a descoberta daação inseticida de determinadosprodutos, quando o DDT despon-tou como arma primordial contraos insetos. Ao ser rociado em su-perfícies, como paredes, ficavaaderido, e os mosquitos que aípousavam morriam intoxicados.Nessa época, a malária desapare-ceu de vários países, sob o efeitodas campanhas organizadas de er-radicação. É muito lógico que oAedes aegypti tenha sido derrotado,em grande parte, graças à açãodessas armas químicas.

Talvez pela proximidade tempo-ral da Segunda Guerra as campa-nhas de saúde pública herdaramem muito os ensinamentos doscampos de batalha. Havia um ini-migo, o mosquito, o qual deveriaser combatido. Basta lembrar a or-ganização de um serviço de erradi-cação. Era mantido um “quartelgeneral”, representado pela sededo serviço nacional de saúde. Umarede de outros “quartéis” espalha-va-se por todo o país. Eram orga-nizados verdadeiros comboios deviaturas, destinados a uma fase deataque das operações. Emprega-

vam bombas de aspersão de inseti-cidas que poderíamos comparar àsmetralhadoras. Eram recrutadosbatalhões de “soldados” que, far-dados, cumpriam rigorosamente oque lhes era determinado. As ope-rações eram tipicamente verticais.Submetiam-se às ordens emanadasdo poder central.

Traduzida em uma luta que en-volvia gastos exorbitantes dos gover-nos, a erradicação era muitas vezescoroada de êxitos decorrentes doelevado grau de organização e doesforço incondicional das equipes.

Mesmo com o desenvolvimen-to científico-tecnológico, que re-sultava na reformulação de estra-tégias introduzidas nas campa-nhas de erradicação, houve a rea-ção do componente biológico ma-nifesto através da resistência aosinseticidas. Era necessária umaconcentração cada vez maior doproduto químico para se obter omesmo nível de mortalidade dosmosquitos. A indústria represen-tada por grupos multinacionaisprocedentes dos países do nortenão perdia tempo, lançando nomercado novos inseticidas, sem-pre mais caros, mas que tambémlogo perdiam sua eficiência.

Por outro lado, muitos países la-tino-americanos enfrentavam criseseconômicas sucessivas e não po-diam mais se dar ao luxo de aplicarvultosas quantias de recursos paramanter um “exército” além das for-ças armadas, para combater ummosquito que aparentemente nãorepresentava ameaça alguma, poisa febre amarela urbana já não eramais transmitida, e o dengue aindanão havia chegado.

Em nosso continente, dado o

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relaxamento das campanhas de er-radicação, vários países que ti-nham obtido esse êxito voltaram ase infestar com o mosquito. Foi nadécada de 70 que a reinfestação doterritório brasileiro se consolidou ea espécie passou a se dispersar de-finitivamente, ocupando hoje qua-se todo o país, exceto alguns esta-dos do norte.

À medida que a erradicaçãonão lograva mais êxito, foi se forta-lecendo, já no final dos anos 70, aconcepção de controle. Essa idéiaadmite a persistência da populaçãodo mosquito em nível reduzido eincompatível com a transmissão dadoença. A filosofia do controle nãoé a de guerra total, mas sim a tole-rância. Tem por base, além da lutaquímica em situações específicas, atomada de medidas integradas quevisam eliminar as causas da infes-tação. Elegem-se áreas prioritáriasde maiores riscos, barateando asoperações. Torna-se possível o es-tabelecimento de um sistema de vi-gilância que se destina a acusar notempo e no espaço a situação daintervenção.

É interessante verificar que amanutenção do controle seria mui-to mais barata que a outra estraté-gia. Em lugar da convocação deum “exército” para borrifar inseti-cidas no país inteiro, seria necessá-rio um número muito menor deoperadores que atuariam somentenas situações de risco. O controleexige, sim, a preparação de umcorpo técnico habilitado a lidar di-ferentemente em distintas situa-ções. Exige o envolvimento de ou-tros setores do governo e da comu-nidade. Em resumo: quando se fa-la em controle na guerra contra os

mosquitos, não se desperdiça bala.Se até a década de 70 o Aedes

aegypti foi importante por repre-sentar risco de reintrodução da fe-bre amarela urbana, no início dosanos 80, o dengue, transmitido pe-la picada desse mosquito, iniciasua incursão em nosso território,quando irrompe uma epidemia emBoa Vista, Roraima.

A partir de 1986, a doença ins-tala-se definitivamente, começan-do com uma vasta epidemia noRio de Janeiro. Atualmente, den-gue é doença bem estabelecida, in-cidindo na maioria dos estados daFederação. Sua expansão foi rápi-da, alarmante. Atinge de grandescentros a pequenas comunidades.Emerge em favelas, como na Bai-xada Fluminense, mas não poupaas áreas mais ricas do Estado deSão Paulo, como a região de Ribei-rão Preto, nossa Califórnia!

Mais um fator de complicaçãofoi acrescido também a partir de1986. Foi a entrada de outra espé-cie de mosquito no país: o Aedesalbopictus. Na época os meios decomunicação anunciaram a chega-da do “tigre asiático”. Esse mos-quito está se dispersando rapida-mente pelo Brasil, já tendo se pro-pagado por vários estados a partirda costa leste. Diferentemente dooutro Aedes, que é urbano, essa es-pécie, além de colonizar cidades,invade também o meio rural. Podedesenvolver-se em “recipientes”naturais, como as cavidades ou bu-racos que se formam em troncosde árvores, onde a água da chuvase acumula. Com capacidade detransmitir os vírus do dengue e ou-tras viroses silvestres, esse mosqui-to veio incomodar ainda mais nos-

sas autoridades sanitárias. Erradi-cá-lo é tarefa impossível, pois rura-lizou-se. Esse comportamento difi-culta qualquer tentativa de lutacontra a espécie.

Mas o dengue que temos expe-rimentado tem se manifestado pre-dominantemente na sua formaclássica, que é geralmente benigna.A situação se complica diante dainvasão de outras cepas dos vírus edo desencadeamento da febre he-morrágica do dengue. A manifes-tação hemorrágica é grave, exigeelevada taxa de internação, provo-ca sofrimento e morte. Sem dúvi-da, nosso sistema hospitalar precá-rio não está preparado a dar aten-dimento, frente ao afluxo simultâ-neo de pacientes, em períodos deintensa transmissão. Surtos e epi-demias da forma hemorrágica sãocada vez mais comuns nas Améri-cas, não estando isento o Brasil.

É totalmente justificável a preo-cupação de nossas autoridades sa-nitárias diante do quadro que pro-gressivamente vem se complicando.Consideramos absolutamente per-tinente a reunião de Brasília, co-mentada na abertura desse artigo,porém, gostaríamos aqui de fazeralguns comentários sobre o evento.

Foi a convite da AssociaçãoBrasileira de Pós-Graduação emSaúde Coletiva e da SociedadeBrasileira de Medicina Tropicalque cerca de cem especialistas oucientistas deslocaram-se de váriospontos do país para o prédio doMinistério da Saúde, em Brasília.O encontro tinha por título: “Se-minário de Erradicação do Aedesaegypti: um desafio para as Amé-ricas”. Esse debate surgiu comorecomendação de uma Comissão

Técnica, convocada pelo Conse-lho Nacional de Saúde para estu-dar o assunto.

O discurso de abertura do sen-hor Ministro foi sereno, tranqüilo.Durante toda a sua fala, ele trans-pareceu seriedade, como era de seesperar de sua pessoa. Falou sobrea ameaça que o dengue está repre-sentando ao país. Tocou em ques-tões políticas e orçamentárias.Descreveu o quadro nacional da ri-queza e da pobreza. Discorreu so-bre fatores ambientais e culturais,relacionados à doença em debate.Conclamou a comunidade científi-ca ao desafio para uma luta contrao mosquito. Sua palavra preocu-pou-nos muito, pois era totalmentevoltada ao restabelecimento deuma política de erradicação.

Muitos presentes ilustres fala-ram. Foi apresentado um quadrodo avanço do dengue clássico e he-morrágico no mundo, nas Améri-cas e no Brasil. Nossa inquietudecrescia, pois, uma a uma, as mani-festações eram unânimes na defesada erradicação. Ficamos dois diasouvindo as grandes vantagens des-sa “nova” velha política.

Encontramos pesquisadores deoutras instituições do país. Muitosmanifestavam-se pessoalmentecépticos em relação aos possíveissucessos da empreitada que estavasendo proposta. Apenas poucosousaram tomar a palavra para ex-pressar pública e claramente asdesvantagens de uma política deerradicação. Vivíamos momentosem que a força do paradoxo inibiaa fala de muitos. Toda intenção departicipar foi se diluindo à medidaque entendíamos que a decisão pa-recia sacramentada! Havia uma

firme proposta de se lançar a partirdo Brasil, uma campanha de erra-dicação do Aedes aegypti para asAméricas.

Os dias que se seguiram ao en-contro foram de intensa reflexão.A importância e complexidade dapolêmica exigiram que colocásse-mos em evidência as ponderaçõesdos parágrafos subseqüentes.

Estamos cientes de que o Mi-nistério da Saúde continua despre-zado e lidando com parcos recur-sos. Nas distintas esferas do gover-no é o setor saúde que lamentavel-mente desponta entre os menosfavorecidos. Seria essa propostauma “cabeça-de-ponte” habilmen-te colocada, visando a conquistade uma fatia maior do orçamentopara o Ministério?

O país está em péssimas condi-ções ambientais. Megalópoles seexpandem, a urbanização é intensa.Temos bolsões enormes de pobreza,extensas áreas de favelamento. Sa-bendo que o Aedes aegypti é favore-cido nesses ambientes, pois seuscriadouros estão associados aos re-cipientes-descartes da sociedademoderna, que pululam em áreasmenos fovorecidas, nossa preocu-pação só tende a aumentar. É sabi-da, e muitos se pronunciaram a esserespeito na reunião, a importânciado saneamento ambiental no com-bate ao mosquito. Um plano de er-radicação teria que ser interminis-terial. Uma campanha nacional delimpeza urbana teria que ser lança-da em conjunto. Logicamente, essaestratégia melhoraria em muito asaúde e a qualidade de vida na con-quista de um Brasil limpo.

O abastecimento de água trata-da nas cidades brasileiras, ainda

que esteja melhorando, deixamuito a desejar. Restam muitasáreas com serviços precários ouinexistentes. A falta d’água, que écomum principalmente nas perife-rias, gera o hábito da populaçãode armazená-la em recipientes di-versos, favorecendo a proliferaçãode mosquitos e aumentando o ris-co de transmissão. Uma campa-nha visando erradicar o Aedesaegypti não poderia deixar de ladoessa complicada questão, cuja so-lução demanda investimentos vul-tosos. Bom seria se o governo em-barcasse com a bandeira da erra-dicação do mosquito, atacandodefinitivamente essa questão cru-cial, trazendo conseqüentementea melhoria da saúde no seu aspec-to mais amplo.

Foram citados problemas sé-rios, como a penetração em áreasfaveladas de domínio de trafican-tes. Poderiam as equipes de opera-ção freqüentar essas “ilhas”? Sa-bendo que o conceito de erradica-ção significa exterminar todos osmosquitos, logo todo o territórioteria de ser coberto, todas as habi-tações verificadas, todo quintalvasculhado... Essa limitação nãoinviabilizaria o programa?

Foi sugerida a possibilidade deuma erradicação moderna, não ti-picamente vertical como no passa-do, mas envolvendo fortemente acomunidade. Para isso a implanta-ção do Sistema Único de Saúde(SUS) seria primordial. Falou-sedo fortalecimento da municipaliza-ção e dos Conselhos Municipais deSaúde. Abrir-se-iam canais de par-ticipação popular. Campanhaseducativas seriam implementadas,utilizando-se os diversos meios de

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comunicação. Mas até quando aoperacionalização do SUS deixaráde ser utopia?

E o problema do Aedes albo-pictus que abrange o meio rural?Diante da impossibilidade de seuextermínio, qual seria sua impor-tância na manutenção dos víruscirculantes em nossomeio? Qual seria sua ca-pacidade de transmissãodo dengue?

É interessante refletirque historicamente os Es-tados Unidos nunca sepreocuparam em erradi-car o Aedes aegypti de seuterritório. Sabem eles queum bom sistema de vigi-lância entomológica e epi-demiológico associado àsações eficientes de con-trole impede a propaga-ção do dengue e outrasarboviroses. Sabem tam-bém que a erradicação se-ria estratégia muito cara.Por outro lado, cremosque eles vêem com grandeinteresse o ressurgimentode uma campanha de er-radicação na porção sub-desenvolvida do continen-te. Abrir-se-á um vasto mercadopara a venda de inseticidas, dan-do mais prosperidade às suasmultinacionais.

Outra experiência que não po-de ser omitida é a de Cuba. Após acalamitosa epidemia de dengue he-morrágico que enfrentou em 1981,o país passou a ter como priorida-de ações contra o mosquito. Mes-mo considerando seu sistema desaúde de alto nível e a facilidadede resposta em relação à participa-

ção da população, aquele país con-vive até hoje com o mosquito, po-rém as epidemias não tiveram maisespaço. Se uma ilha pequena e or-ganizada não conseguiu debelar omosquito, seria exeqüível erradicá-lo do Brasil ou do continente?

Quantos milhares de bombas

de aspersão de inseticidas necessi-taríamos? Quantas toneladas doproduto químico compraríamos?Qual seria o tamanho da frota deveículos? Quantos milhares de“guardas” contrataríamos? Dianteda política neoliberal que viven-ciamos, como entender a admis-são de milhares, se a filosofia doatual regime é a de reduzir o ta-manho do Estado? Ou seria cons-tituído um “batalhão” terceiriza-do? Mas nesse caso não sairia

mais dispendioso ainda? Quãoonerosa seria uma campanha paracobrir todas as áreas urbanas in-festadas desse país?

Alcançariam os países vizinhossimultaneamente a erradicação?Caso não lograssem êxito, a partirdeles não estaríamos novamente

vulneráveis a constantesameaças de reinfestação?Como seriam monitoradosportos, aeroportos e fron-teiras para impedir a en-trada clandestina do mos-quito?

Acreditamos, como foienfocado, que muitos bene-fícios poderia trazer ao paísuma intensa campanha deerradicação do Aedesaegypti, mas ao mesmo tem-po estamos convictos deque sua factibilidade dificil-mente será atingida. Comodecisão política ela é plau-sível, bem como tecnica-mente, mas sua operacio-nalização está próxima doimpossível.

Foi Collor que, ao taxarnossa indústria automobi-lística de obsoleta e seuproduto de “carroças”, ini-

ciou a importação de veículos La-da, com desenhos ultrapassados,equiparáveis aos modelos dosanos 60. Foi Itamar que, ao substi-tuí-lo na presidência, colocou no-vamente o Fusca na linha de pro-dução da Volkswagen. Não é deadmirar que o governo atual pos-sa relançar “uma campanha de er-radicação do Aedes aegypti”! A in-tenção de submeter o tema à co-munidade científica é saudável eabre espaço ao debate. RRA

André Penner/Abril Imagens

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Conheci o professor Florestan Fernan-des em 1949, quando ingressei no cur-so de Pedagogia da Faculdade de Filo-sofia, Ciências e Letras da Universida-de de São Paulo. Naquele tempo oscursos de Filosofia, Ciências Sociais,

Letras, Pedagogia, História, Geografia e Matemáticafuncionavam no segundo andar do prédio que à épo-ca era a sede do Instituto de Educação Caetano deCampos, na Praça da República. Na década de 70, achamada Casa de Caetano de Campos se tornou oprincipal edifício da Secretaria Estadual de Educaçãode São Paulo. O Instituto, como toda a educação pú-blica brasileira, a partir desse período fragmentou-seaté perder os últimos resíduos da boa qualidade deensino de que fora padrão.

Pois bem, aluna do 1° ano de Pedagogia, com de-zoito anos incompletos, iniciei meus primeiros passos

no campo das Ciências Sociais; interessou-me enten-der o mundo, a sociedade, o comportamento huma-no, as questões deixadas pelas gerações anteriores;entender, de modo particular, os dados e os processossociais que influenciam ou determinam a educação.Professora primária no final de 48 pelo Instituto deEducação Padre Anchieta (antiga Escola Normal Mo-delo do Brás), ávida de saber, mas também vaidosados êxitos até então conseguidos, comecei os estudosuniversitários certa de que os venceria com tranqüili-dade. Redigi os primeiros trabalhos acadêmicos, fiz asprimeiras provas. Aparentemente tudo ia bem (eu le-cionava e estudava) quando me deparei com as notasobtidas em Sociologia I, programa ministrado peloquerido mestre Florestan. A nota média por mim ob-tida foi 5, um susto e uma frustração, somente meta-bolizados quando tive coragem de procurar o profes-sor para lhe pedir explicações. Eu estava acostumada

FLORESTAN NÃO TEVE MEDO DA LIBERDADE!Cassada pelo AI-5 quando era Coordenadora do Serviço do Ensino Vocacional da Secretaria Estadual da Educação, a professora da Faculdade de Psicologia

da Pontifícia Universidade de São Paulo, Maria Nilde Mascellani, relata neste texto/depoimento a importância do professor Florestan Fernandes na sua formação. Aluna e mais tarde companheira de trabalho de Florestan

no Remov (Relações Educacionais e do Trabalho), Maria Nilde enfatiza a coerência do mestre na postura pessoal, na política e enquanto docente.

Ela relembra, ainda, o período em que Florestan optou por não retornar à USP, após a Lei da Anistia. “Infelizmente, a competição acadêmica e alguns guetos

ideológicos trataram de afastá-lo definitivamente”.

a notas bem mais altas até aquela fase de minha vidaestudantil. Mas tudo isso foi providencial. O leitorconclua sobre o perfil de Florestan Fernandes após anarrativa que se segue:

- “Sra. Maria Nilde (era assim que os professoresnos chamavam, senhores e senhoras), a nota não querdizer nada. O que conta é o conhecimento, a atitudede investigação. Vamos reler os seus trabalhos e asenhora. perceberá o que quero dizer...”.

De fato, Florestan Fernandes teve a paciência he-róica de sentar-se ao meu lado, na sala do Departa-mento, e comentar todas as anotações que fizera nosmeus trabalhos. Página por página, parágrafo por pa-rágrafo. Levantou inúmeras questões que eu deveriarever e aprofundar. Em meio à conversa, perguntou-me se aceitava o desafio da elaboração intelectual, as-sim como o escultor burila até o fim sua obra. Confes-so que me senti diante de um gigante e ao mesmotempo de uma figura profundamente humana.

Percebi logo que seria um imenso privilégio tê-locomo professor. Comprometi-me com o desafio e as-sumi a proposta de ler várias obras, anotar as indaga-ções decorrentes e ter um encontro quinzenal com oprofessor para avaliar o caminho encetado. Foi assimque descobri as Ciências Sociais, a Sociologia, a An-tropologia e a Política, a ponto de desejar reorientarminha opção profissional. Aí também Florestan en-trou para me ajudar, para “pensar junto”, como cos-tumava dizer. Refletimos muito sobre a relação edu-cação-sociedade, a necessidade de bons educadores,competentes e comprometidos com a transformaçãoda realidade brasileira.

À distância, com o passar do tempo, concluo queminha decisão não poderia ser outra - afinal, a tarefade formar consciências é fundamental num país decultura colonial e de educação autoritária. Era, comoaté hoje é, necessário que os homens entendam oque é liberdade, e isto se faz processualmente, reali-zando ações, vivendo experiências e refletindo sobresua eficácia.

A Universidade de São Paulo de 50 era muito maiselitizada do que hoje. O alunado, em sua maioria, vi-nha das camadas média alta e alta da sociedade.Eram jovens que só estudavam, tinham tempo para ascoisas da cultura, mas sobretudo eram despertadospara o trabalho científico. Então, fazer ciência era so-

mente na USP. Isto significava status, reconhecimentoacadêmico, respeitabilidade profissional.

Este foi um período muito rico para mim. O conta-to com Florestan Fernandes continuou mesmo depoisde seus programas e persistiu até sua morte; sempretive a liberdade de procurá-lo para esclarecer dúvidas,solicitar sugestões e críticas para meus trabalhos, par-tilhar a angústia de jovem educadora frente aos pro-blemas que encontrava na relação ciência/filosofia;ciência/religião; filosofia/sociologia. De todos os en-contros saí sempre muito enriquecida e não poucasvezes com muito material para ler. A biblioteca deFlorestan tinha uma dimensão pública. Era tambémde seus alunos e companheiros de trabalho.

Depois de um hiato determinado por penoso pro-blema de saúde e de quatro anos de magistério públi-co no interior do Estado, em Socorro, voltei a encon-trar com mais freqüência Florestan Fernandes duran-te a década de 60. Ele colaborou decisivamente emminha formação e de muitos outros colegas, entre es-tes, alguns professores que integrariam a equipe doServiço de Ensino Vocacional do Estado (1961-1969).Com carinho, muitos de nós lembram a casa da RuaNebraska, no Brooklin, uma “segunda Universidade”,a excelente acolhida e o cafezinho de dona Míriam.Tivemos muitos encontros e seminários nos quais seconfiguravam cada vez mais a necessidade da luta po-lítica e da defesa intransigente que fazia e fez até o úl-timo momento de vida, da escola pública, estatal, lai-ca e gratuita. Éramos fruto da escola pública, devería-mos ser amplamente seus principais defensores! Suaorigem humilde, os sacrifícios da infância e da adoles-cência, sua consciência de classe, o levaram a uma im-pressionante fidelidade aos excluídos da sociedade.Era uma postura contagiante!

Mas a universidade e os grupos politicamenteatuantes da década de 60 pagaram um alto preço.Com o golpe militar de 64, sucederam-se as pressões,as perseguições aos opositores do regime e defenso-res da democracia e da liberdade. Florestan, assim co-mo outros combativos intelectuais e cientistas, foiaposentado com base no Ato Institucional n° 5, de de-zembro de 68. O regime militar, ceifando o trabalhodocente e de pesquisa, criou barreiras imensas, quaseintransponíveis, para os atingidos e lacunas até hojenão resolvidas na formação de gerações universitárias

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que se sucederam. A partir de 69, os “aposentados” eos “cassados” não puderam adentrar à universidadepública. Florestan, profundamente abatido por estascircunstâncias, aceitou ministrar alguns cursos no ex-terior, mas por breve espaço de tempo, pois logo as-sumiu a grande tarefa solitária de escrever, produzin-do nesse período doze obras sobre o Brasil e a Améri-ca Latina, além de numerosos ensaios e artigos.

Por outro lado, o grupo de educadores que lidera-va o Ensino Público Vocacional em São Paulo tam-bém foi duramente atingido. Estava na coordenaçãogeral deste serviço quando fui aposentada igualmentecom base no Al-5. Com alguns ex-companheiros deserviço público criamos o Renov (Relações Educacio-nais e do Trabalho), alternativa que encontramos pa-ra, a partir da área privada, continuar formando edu-cadores, jovens de grupos populares e outros. Tam-bém Florestan Fernandes esteve presente não somen-te com sua solidariedade humana e política, mas como trabalho profissional, ministrando cursos, fazendopalestras, preparando textos. Até o encerramento doRenov, em 1986, Florestan colaborou negando-se areceber qualquer pagamento por seus serviços.

Tive ainda a ventura de poder estar ao lado deFlorestan Fernandes na PUC de São Paulo e no Insti-tuto Sedes Sapientae, a convite de madre Cristina So-dré Dória, na década de 70. Neste tempo, ministrouinúmeros cursos, orientou teses, mas principalmentecolaborou com a palavra e com a produção escrita naformação de uma nova geração de universitários e detrabalhadores que não encontrava nem na universida-de nem nos sindicatos oportunidades de formação crí-tica e de uma arguta análise da conjuntura nacional.

No final dos anos 70, veio a Lei de Anistia (ampla,geral e restrita). Muitos professores e pesquisadoresvoltaram para seus cargos. Florestan se negou a fazê-lo, primeiramente, porque a concessão da anistia es-tava sujeita a “uma certa negociação com o governodo Estado”, mas, também, porque não via sentido ematuar na nova situação. Nesse período, ele assim seexpressou:

“Cheguei a pensar que não era reprimido pela di-tadura, mas por meus antigos companheiros...”.

Infelizmente, a competição acadêmica e algunsguetos ideológicos trataram de afastá-lo definitiva-mente. Também na PUC de São Paulo houve algumas

decepções, embora por outras causas. Nos cursos depós-graduação, alunos evitavam escolhê-lo paraorientador, pois alegavam que ele, além de erudito,era muito exigente para com a produção intelectual.Assim, infelizmente, muitos se autoprejudicaram, ig-norando que, com tal atitude, pouco mereceriam o tí-tulo de mestres ou de doutores.

Socialista por opção, fundado na compreensão domarxismo-leninismo, era ao mesmo tempo cioso desua independência e da liberdade de pensar.

Com tal espírito aceitou, em 1986, ser candidato àCâmara Federal pelo Partido dos Trabalhadores,cumprindo dois mandatos (1987-1994).

Na verdade, seria necessário escrever várias obraspara dizer de Florestan Fernandes - sua vida e obra,seu perfil de cientista, educador, intelectual e militan-te. Foi um resistente na luta contra a ditadura militar eo arbítrio, na construção intelectual e cientifica daUniversidade de São Paulo, na defesa da escola públi-ca, na defesa da causa dos trabalhadores, na luta revo-lucionária por um Brasil genuinamente democrático.

Florestan Fernandes foi sempre coerente na pos-tura pessoal, docente e política, de extraordináriasimplicidade no trato com as pessoas, de muita humil-dade intelectual e, sobretudo, de impressionante soli-dariedade com seus colegas, seus alunos de ontem ede hoje, com todos os que, como ele, foram atingidospelo regime militar.

Os verdadeiros democratas continuam porém in-conformados com o não aproveitamento ou subapro-veitamento de nossos melhores cérebros e, porquenão dizer, escandalizados com a onda cada vez maiorde oportunismo que atingiu cabeças intelectualmentebem formadas, algumas das quais até passaram pelosbancos universitários como discípulos de Florestan.

O homem que não teve medo da liberdade assimrespondeu aos seus últimos alunos da USP nos idosde 69:

“Ter medo é humano. Ceder ao medo é errado. A lu-ta contra a ditadura exige que estejamos em permanentetensão com o nosso medo.”

Ele, decisivamente, não teve medo da liberdade!

Maria Nilde Mascellani é professora do Departamento

de Psicologia Social da PUC/SP.

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Há alguns meses, oVaticano decidiupermitir aos di-vorciados, em al-guns casos, que,ao voltarem a se

casar possam receber a comu-nhão, mas desde que não copu-lem com seu novo parceiro.

Na Escola de Suboficiais deMecânica da Armada (ESMA),essa mesma Igreja oferecia a eu-

caristia aos capitães-de-corvetaquando eles retornavam dos vôosnos quais atiravam pessoas aomar; caso os capelães - com oEvangelho de São Mateus emmãos - aventassem dúvidas quan-

SOBRE HÓSTIAS, CÓPULAS,BISPOS E DIVORCIADOS

O mês de março de 1976 está marcadona memória do povo argentino pelogolpe militar que jogou aquele país emuma das ditaduras mais sangrentas daAmérica Latina. Cerca de 30 mil pes-soas foram mortas e outras dezenas demilhares perseguidas pela repressão.Durante todo o mês de março desteano foram realizadas atividades pararelembrar as atrocidades cometidas pe-los militares. Em São Paulo, promovi-do pela Adusp, foi realizado o debate“20 anos do golpe militar na Argentina- A questão dos desaparecidos hoje”.León Ferrari, artista plástico que teveum filho morto pela repressão, partici-pou do encontro e relatou a indignaçãodo povo argentino diante do perdãoconcedido aos chefes militares respon-sáveis pelas mortes. Neste artigo, publi-cado originalmente em maio do anopassado na publicação Mães da Pra-ça de Maio, León cobra uma posiçãodo clero católico argentino, que sem-pre se colocou ao lado dos militares.

Ronaldo Entler

to à necessidade de separar o joio(os desaparecidos) do trigo. As-sassinato, confissão, alento pasto-ral, comunhão, essa era a seqüên-cia dos atos religiosos naquelaEscola, entre um e outro vôo: amatança dos desaparecidos nãoimpedia a comunhão que a cópu-la do divorciado impede. Tambémnão impediu que Pio Laghi ofere-cesse uma hóstia ao general Suá-rez Mason, numa missa na Igrejade São Patrício dos Padres Paloti-nos, pouco depois que vários des-ses padres foram assassinados pe-las forças de segurança, conformeadmitiu o próprio Laghi.

Como conseqüência da notade Verbitsky, no jornal Página/12,sobre alguns antecedentes daque-le núncio, cinco bispos saíram emsua defesa, reafirmando, além domais, a conhecida iniciativa daCúria e do governo para atenuaros delitos das Forças Armadas, aqual propunha a igualdade deresponsabilidades aos participan-tes daquela guerra: uma nova fa-ce para os dois demônios.

No que ocorreu quinze anosdepois do bombardeio de 16 dejunho de 55 (o maior aconteci-mento terrorista já visto nestasterras, desde que esqueçamos, en-tre outras coisas, o terrorismopraticado pelos crentes queacompanharam Ulrico Schmidtnaquele processo evangelizadorde aborígines), podem-se distin-guir dois aspectos. O primeiro de-les é o enfrentamento entre aguerri-lha e as Forças Armadas(luta pessoal, bombas, atentados),quando caíam civis acidentalmen-te de ambos os lados, ações cujosresponsáveis são os que direta ou

indiretamente delas participarame sobre as quais todos temos o di-reito de opinar, de atribuir cul-pas, de arrepender-nos, de recon-ciliar-nos ou não. O outro aspectoa salientar são os delitos de lesa-humanidade cometidos pelos ter-roristas das Forças Armadas enão pela guerrilha: as mil formasde tortura a combatentes e nãocombatentes, adultos ou crianças,o estupro de moças seqüestradas,o roubo de crianças que os la-drões continuam retendo, os de-saparecidos; a guerrilha não fezdesaparecer ninguém, não jogougente no mar, não roubou crian-ças, não torturou.

Entre as responsabilidades daguerrilha não se incluem os cri-mes alheios, crimes que a Igrejaavalizou acompanhando seus au-tores no governo, pedindo a leido esquecimento quando se ini-ciavam os julgamentos, exigindoperdão quando foram condena-dos, visitando-os na prisão deMagdalena quando foram encar-cerados e compartilhando comeles festas e missas logo após te-rem alcançado o indulto.

Esses bispos continuam empe-nhados em conseguir um novo es-quecimento, um novo indulto,uma espécie de absolvição moralpara os absolvidos pela Justiça,exigindo o arrependimento de to-dos os argentinos, o perdão e areconciliação (poderão os bispos,antes disso, dar-nos o exemplo re-conciliando-se eles com os divor-ciados e suas cópulas?) comocondição prévia para conhecer averdade. Tal colocação faz comque os bispos continuem prestan-do ajuda aos delinqüentes: lutam

para que a necessária verdade se-ja tão inatingível quanto a desne-cessária reconciliação entre víti-mas sem justiça e vitimários in-dultados.

Em lugar de esconder suacumplicidade com os torturadoresprocurando culpas nos tortura-dos, a Igreja deve tratar de lavaras suas revelando aquilo queoculta, aquilo que cardeais emonsenhores souberam em seusencontros com generais e almi-rantes na Cúria, na Casa Rosadae na Nunciatura, e aquilo que vi-gários e capelães viram e ouviramnos 325 centros de seqüestro, ecujo pessoal foi por eles alentadoespiritualmente.

Se não querem remexer nasferidas do passado (eles revolvemas de Jesus há dois mil anos, cau-sando a morte de milhões de ju-deus), devem ao menos divulgaras listas dos sacerdotes e purpu-rados que entraram naquelescentros, seus endereços e telefo-nes, para que possam ser interro-gados sobre essa verdade quetanto temem.

Não pode haver reconciliaçãocom aqueles que garantiam ser areserva de honra e de valor daNação, transformados agora emportadores escondidos de umavergonhosa covardia: ontem, ma-taram e torturaram mulheres ecrianças; hoje, não se atrevem aconfessar, fora do confessionário,sobre como, quando e onde o fi-zeram. A Igreja continua ao ladodeles.

Tradução: Graciela Fogliae Leonardo Chianca

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Ensa io

O jornal argentino Página/12

publicou, no ano passado,

uma série de fascículos com

ilustrações de artistas argentinos

retratando os 20 anos da ditadura

militar e a relação dos mortos

e desaparecidos. O trabalho do

artista plástico León Ferrari

concentrou-se no apoio do clero

católico aos militares. Nestas duas

páginas reproduzimos parte do

material produzido por León.

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