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APRESENT AÇÃO Q uando se acreditava que a revisão histórica enfocando a colaboração de setores da USP com os órgãos de segurança do Estado tivesse terminado, uma grande surpresa: reitores da universidade mantinham intercâmbio com o Dops antes mesmo do golpe militar de 64. E mais, diziam-se “honrados” em encaminhar listas de docentes para serem triados por aquele departamento policial. Documentos reservados, assinados pelos reitores Linneu Prestes, datado de 1948, e Ernesto Leme, 1951, foram localizados, recentemente, nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo pela jornalista e pesquisadora Beatriz Elias e estão sendo publicados com exclusividade pela Revista Adusp. Também pela primeira vez, divulgamos o documento que comprova a instalação de uma Assessoria de Informação do Dops na reitoria da USP durante o regime militar que se instalou no país pós-64. A existência desta Assessoria chegou a ser negada pelo reitor Orlando Marques de Paiva em depoimento prestado à CPI da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. A divulgação desses documentos, inéditos, não tem nenhuma conotação revanchista. Propõe, sim, contribuir para o esclarecimento do controle ideológico que se fez presente na USP durante três décadas e meia. Para não transformar esta questão numa “caça às bruxas”, a matéria se atém única e exclusivamente documentos do Dops que hoje são de domínio público. A primeira vez que a Adusp abordou esta questão foi em 1978, quando, por decisão de Assembléia, designou uma comissão especial encarregada de desenvolver uma campanha pela reintegração, na vida acadêmica, dos professores e cientistas atingidos pelos atos de exceção. Como parte de suas atividades, a comissão criou um grupo de trabalho, de participação aberta, cuja tarefa era realizar um levantamento do processo de controle ideológico sobre o corpo docente na Universidade de São Paulo. O relatório dessa comissão transformou-se n’O livro negro da USP, editado ainda no ano de 78. A Diretoria da Adusp e o Conselho Editorial da Revista Adusp acreditam que a junção dos documentos ora publicados com os do relatório divulgados em 78 transforma-se em fonte de esclarecimento da vida da Universidade nos anos de chumbo. Mais ainda, contribui para evitar que fatos como esses voltem a ocorrer.

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APRESENTAÇÃO

Quando se acreditava que a revisão histórica enfocando acolaboração de setores da USP com os órgãos de segurança

do Estado tivesse terminado, uma grande surpresa: reitores dauniversidade mantinham intercâmbio com o Dops antes

mesmo do golpe militar de 64. E mais, diziam-se “honrados” emencaminhar listas de docentes para serem triados por aquele departamentopolicial. Documentos reservados, assinados pelos reitores Linneu Prestes,

datado de 1948, e Ernesto Leme, 1951, foram localizados, recentemente, nosarquivos do Departamento de Ordem Política e Social do Estado de São

Paulo pela jornalista e pesquisadora Beatriz Elias e estão sendo publicadoscom exclusividade pela Revista Adusp. Também pela primeira vez,

divulgamos o documento que comprova a instalação de uma Assessoria deInformação do Dops na reitoria da USP durante o regime militar que se

instalou no país pós-64. A existência desta Assessoria chegou a ser negadapelo reitor Orlando Marques de Paiva em depoimento prestado à CPI da

Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. A divulgação dessesdocumentos, inéditos, não tem nenhuma conotação

revanchista. Propõe, sim, contribuir para o esclarecimento docontrole ideológico que se fez presente na USP durante trêsdécadas e meia. Para não transformar esta questão numa

“caça às bruxas”, a matéria se atém única e exclusivamentedocumentos do Dops que hoje são de domínio público.

A primeira vez que a Adusp abordou esta questão foi em1978, quando, por decisão de Assembléia, designou uma

comissão especial encarregada de desenvolver umacampanha pela reintegração, na vida acadêmica, dos

professores e cientistas atingidos pelos atos de exceção.Como parte de suas atividades, a comissão criou um

grupo de trabalho, de participação aberta, cuja tarefa era realizar umlevantamento do processo de controle ideológico sobre o corpo docente na

Universidade de São Paulo. O relatório dessa comissão transformou-se n’O livro negro da USP, editado ainda no ano de 78.

A Diretoria da Adusp e o Conselho Editorial da Revista Adusp acreditamque a junção dos documentos ora publicados com os do relatório

divulgados em 78 transforma-se em fonte de esclarecimento da vida daUniversidade nos anos de chumbo. Mais ainda, contribui para evitar que

fatos como esses voltem a ocorrer.

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DIRETORIAJair Borin, Osvaldo Coggiola, Marcos N. Magalhães, Iraci Palheta,

Ildo Luís Sauer, Lighia B. Horodynski-Matsushigue, José Moura Gonçalves Filho, Paulo Y. Kageyama, Antonio César Fagundes, Jairo Kenupp Bastos, Ires Dias

Comissão EditorialAdilson O. Citelli, Bernardo Kucinski, Fernando Leite Perrone,

Francisco Gorgônio da Nóbrega, Khaled Goubar, Nelson Achcar, Nilza Nunes da Silva, Norberto Luiz Guarinello e Zilda M. Gricoli Iokoi

Editor: Marcos Luiz Cripa vdEditor de arte e capa: Luís Ricardo CâmaraAssistente de produção: Rogério Yamamoto

Revisão: Isabel Cristina Lelis FerreiraSecretaria: Alexandra Moretti Carillo e Aparecida de Fátima dos Reis Paiva

Distribuição: Marcelo Chaves e Walter dos AnjosIlustrações: Maringoni

Fotolitos: Bureau BandeiranteGráfica: Chesterman

Tiragem: 5.500 exemplares

Adusp - S. Sind.Av. Prof. Luciano Gualberto, trav. J, 374

CEP 05508-900 - Cidade Universitária - São Paulo -SPInternet: http://www.adusp.org.brE-mail: [email protected]

Telefones: (011) 813-5573/818-4465/818-4466Fax: (011) 814-1715

A RReevviissttaa Adusp é uma publicação trimestral da Associação dos Docentes da Universidadede São Paulo - S. Sind., destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem,necessariamente, o pensamento da diretoria da entidade e são de responsabilidade dosautores. Contribuições serão aceitas desde que os textos, inéditos, sejam entregues emdisquete e tenham, no mínimo, dez mil e, no máximo, vinte mil caracteres. Os artigos serãoavaliados pela Comissão Editorial que decidirá sobre seu aproveitamento.

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ÍÍNNDDIICCEE6

AA UUSSPP NNOOSS AARRQQUUIIVVOOSS DDOO DDOOPPSS

8RREEIITTOORREESS DDAA UUSSPP CCOOLLAABBOORRAAVVAAMM CCOOMM ÓÓRRGGÃÃOOSS DDEE SSEEGGUURRAANNÇÇAA AANNTTEESS MMEESSMMOO DDOO GGOOLLPPEE DDEE 6644

11DDOOCCUUMMEENNTTOO CCOOMMPPRROOVVAA EEXXIISSTTÊÊNNCCIIAA

DDEE RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO DDOO DDOOPPSS NNAA RREEIITTOORRIIAA DDAA UUSSPP

14AACCOOMMPPAANNHHAAMMEENNTTOO DDIIÁÁRRIIOO DDOO CCAAMMPPUUSS DDAA CCAAPPIITTAALL

16FFLLOORREESSTTAANN EE SSCCHHEEMMBBEERRGG

FFOORRAAMM CCOONNSSTTAANNTTEEMMEENNTTEE VVIIGGIIAADDOOSS

18CCAAIIXXAA DDEE SSUURRPPRREESSAASS

20DDEESSAAFFIIOOSS TTEECCNNOOLLÓÓGGIICCOOSS

EE AASS EEXXIIGGÊÊNNCCIIAASS DDAA SSOOCCIIEEDDAADDEEJúlio Pudles

27AA PPOOEESSIIAA VVIIVVAA AACCAAMMPPAA

Alai Garcia Diniz

34EENNTTRREEVVIISSTTAA

Paulo Eduardo Arantes

43AA NNEEGGRRIITTUUDDEE NNOO BBRRAASSIILL

F. C. de Sá e Benevides

48OOSS PPAAGGOODDEEIIRROOSS EE OOUUTTRROOSS AABBUUSSOOSS::

AANNTTRROOPPOOLLOOGGIIAA SSEEMM AAÇÇÚÚCCAARRMauro Göpfert Cetrone

51RREEFFLLEEXXOOSS CCUUBBAA--BBRRAASSIILL,,

UUMMAA CCRRÔÔNNIICCAA DDEE RREEAALLIISSMMOO MMÁÁGGIICCOOPaulo Henrique Martinez

52VVEERRSSOOSS AALLEEAATTÓÓRRIIOOSS

Afrânio Mendes Catani

54RREEFFLLEEJJOOSS

Tomás Gutiérrez Alea

61NNOOTTAASS DDAA AACCAADDEEMMIIAA

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Abril 1998

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A colaboração com órgãos de segurança do Estado semprefoi objeto de indignação e denúncia por parte da sociedade.

No caso da Universidade de São Paulo, até mesmo umacomissão especial de Inquérito da Assembléia Legislativabuscou investigar e determinar a abrangência da prática

adotada pela direção da Instituição, especialmente nos anossubseqüentes ao golpe de 64. Abertos os arquivos de órgãosde segurança, como o Departamento de Ordem Política eSocial (Dops) do Estado de São Paulo, o quadro que se

desenha é muito mais grave: a colaboração da reitoria daUSP não ocorreu tão-somente após 1964. Pelo contrário,ela se constituiu em prática institucionalizada, envolvendo

as várias instâncias de poder dentro da burocraciauniversitária e os órgãos policiais, em troca de

informações, denúncias, pedidos de colaboração, desdeo início da década de 50. E, guardadas as

especificidades de cada período histórico do país e asconseqüências que tais práticas pudessem provocar,

elas se desenvolveram em padrões não muitodiferenciados daqueles que os arquivos registram

após o ano de 64. Há nomes, situações, datas,assinaturas que confirmam o fato.

por Beatriz Elias

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Adata é 24 de ju-lho de 1948. Aassinatura doofício, com tim-bre da Reitoriada Universidade

de São Paulo, é do reitor de en-tão, Linneu Prestes, dirigindo-seao Secretário da Segurança Públi-ca de São Paulo, Nelson de Aqui-no. No primeiro dos documentoslocalizados nos arquivos doDops/SP, envolvendo órgãosoficiais da USP e a colabora-ção com órgãos policiais, oregistro que, durante anos,iria se tornar regra: o envioda relação nominal de do-centes da Instituição, porcaminhos oficiais, de for-ma que o Serviço Secretodo Departamento de Or-dem Política e Social pu-desse observá-los, qualificá-los, re-gistrar suspeitas e acusações.

Deste primeiro encaminhamen-to, indicado pelo reitor como “rela-ção nominal dos catedráticos, livres-docentes e assistentes dos estabele-cimentos de ensino superior, inte-grados nesta Universidade”, cons-tam nada menos que 17 laudas, emque os professores são identificadospor suas faculdades de origem. Me-

nos de um mêsdepois, em 7 de agosto de 1948 —e vale relembrar que em 1948 oPCB já tivera suas atividades can-celadas e seus parlamentares cassa-dos —, o documento é encaminha-do ao Serviço de Informações, ape-nas com uma assinatura não identi-ficada do encarregado. Checadosos nomes dos catedráticos, dos ar-quivos do Dops emergem acusa-ções sobre 35 professores, classifi-

cados como “ex-integralistas,socialistas ou envolvidoscom organizações que man-têm algum tipo de inter-câmbio com a URSS”. En-tre os mais conhecidos,nomes como o de AndréDreifuss e Mário Schem-berg (Filosofia), Villano-va Artigas (Arquitetu-ra), Miguel Reale (Di-reito), Moacir FreitasAmorim (Medicina) eZeferino Vaz (Medici-na Veterinária).

O arquivamentodos documentos des-se primeiro período,que antecede o gol-pe militar de 64, éinconstante. São

cerca de 90 documentos, de varia-das caracterizações e temas, masem grande parte com a mesma ori-gem oficial: a Reitoria da USP, ou opróprio reitor. Há registros do enviode outras listagens de professores,sempre delatando os simpatizantesdo comunismo, de greves em unida-des como a Faculdade de Medicinae a Faculdade de Arquitetura e Ur-banismo e seus desdobramentos, doproblemas dos excedentes, entreoutros temas menos significativos.

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Abril 1998 RReevviissttaa Adusp

Reproduções dos documentos: Fernando Braga

REITORES DA USP COLABORAVAM COM ÓRGÃOS

DE SEGURANÇA ANTES MESMO DO GOLPE DE 64

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RReevviissttaa Adusp

Energia nuclear

A neurose característica dos ser-viços de informação, buscando co-munistas em todos os cantos, iriaperdurar durante os anos seguintes,mas, no caso da USP, entre o finalda década de 40 e os primeiros anosda década de 50, outro tema iria setransformar em assunto de certa re-levância na documentação trocadaentre o Dops e a Reitoria: as pri-meiras preocupações com o Institu-to de Física e as pesquisas relativasà energia nuclear. Uma área que,pelo seu significado estratégico, iriagerar pelo menos um dos típicos in-formes encontrados no Dops, nosquais a imaginação do informantenormalmente excedia qualqueranálise de bom senso.

Assim, ofício datado à mão, de10 de janeiro de 1949, com o tim-bre da Secretaria da Segurança Pú-blica, sendo enviado ao Dr. Anto-nio Ribeiro de Andrade, registraque “consta que o Prof. Gleb Wa-taghin — então um dos expoentesda área de Física da USP — asso-ciou-se ao Prof. Reinaldo Saldanhada Gama em um escritório na cida-de para o fim de exportar urâniobrasileiro para a Itália; de lá esseurânio seria remetido para a Rús-sia”. A preocupação com o profes-sor Wataghin iria persistir duranteanos, provavelmente também porconta de sua condição de estrangei-ro. Novo informe, sem identifica-ção de seu autor, datado de 22 deabril de 1955, depois de historiar aimplantação do Departamento deFísica da USP e sua relação com osprofessores Gleb Wataghin e Mar-celo Damy, admite que “o departa-

mento possui uma equipe brilhantede professores, que mantêm rela-ções internacionais”. Da relaçãoem anexo, que enumera todos osdocentes que ali trabalham, a res-trição se confirma apenas com rela-ção a Mário Schemberg, mais umavez por sua simpatia pelo comu-nismo. A crítica e a preocupação semanifestam, no entanto, numa ten-tativa pouco sutil de buscar deses-tabilizar a posição de Wataghin:“russo de nascimento, naturalizadoitaliano, foi presidente de um sub-comitê paulista de auxílio às víti-mas da guerra em 1947, comitêque geria um fundo comunista”. Oanalista ainda acrescenta que opesquisador tem 96 trabalhos pu-blicados, mas nenhum em portu-guês. Um quadro que lhe permitesugerir, “como se vê, que urge darao nacional o lugar que ele precisater: ser o primeiro em tudo”.

O extremo cuidado que envol-via não apenas pesquisadores, masas próprias instalações do Depar-tamento de Física, já havia sido re-gistrado ao final da década de 40,mais precisamente em setembro de1948, quando o delegado de polí-cia, Paulo Rangel, comunica ao de-legado especializado em OrdemPolítica os contatos realizados paraviabilizar um policiamento especialno Departamento de Física daUSP, “em função das instalaçõesdo Betatron”. Rangel relata que,dias antes, o porteiro do local tive-ra de atirar para o alto quando, ànoite, pessoas não identificadaspassaram a rondar o local. E acres-centa que a iniciativa deste tipo depoliciamento tem a “aquiescênciado Prof. Marcelo Damy”.

Nome aos comunistas

Antecedendo uma outra ten-dência na rotina de acompanha-mento e investigações dos órgãosde segurança que iria se instalar naUSP no período pós-64, também aobservação relativa a greves envol-vendo estudantes é registrada comfreqüência, nos primeiros docu-mentos localizados no Dops.

A primeira delas é datada de1951, quando a Faculdade de Me-dicina paralisa suas atividades emprotesto à suspensão de veteranosque haviam aplicado um trote maisviolento em estudante transferidodo Paraná. Neste caso, sequer setrata de uma comunicação aoDops: a Reitoria solicita “providên-cias” àquele órgão, já que outrasescolas da USP estariam iniciandomovimentos de paralisação em soli-dariedade aos veteranos punidos. Edá os nomes àqueles que ela enten-de como os articuladores da grevegeral: “os elementos comunistas fi-chados, Luiz Hildebrando Pereirada Silva (aluno do 4º ano de Medi-

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cina), Abrão Nicolas Tayer e VictorNussynveight”. Há, ainda, a nítidaintenção de caracterizar a participa-ção do professor Samuel Pessoa emtodo o movimento. Documentos re-latam que “sua esposa, Jovina Pes-soa, esteve na Faculdade de Medici-na várias vezes, conversando comestudantes comunistas”. Além dis-to, a denúncia garante que “as reu-niões prévias para articulação dagreve aconteciam noanfiteatro de Parasitolo-gia, cuja cadeira está acargo do Prof. Pessoa, en-quanto os demais profes-sores se recusaram a per-miti-las em suas salas”.

Aliás, os primeiros anosda década de 50, quando res-ponde pela Reitoria o pro-fessor Ernesto Leme (fo-to ao lado) — um ex-se-cretário de Justiça deSão Paulo —, são aque-les que apresentammaior cordialidade efreqüência nos con-tatos formais entreUSP e órgãos de se-gurança. Leme, por diversas vezes,pede a colaboração do Dops, comono caso da greve da Faculdade deMedicina. Em abril do mesmo ano,é ele quem novamente toma a ini-ciativa de solicitar ao delegado-chefe do Serviço Secreto do Dops“informações a respeito dos princi-pais dirigentes do movimento co-munista em nosso Estado, que te-nham ligações com a Universidadede São Paulo, como alunos ou pro-fessores”. A seguir, ele mesmoacrescenta uma lista de 12 nomesque caracterizariam esse tipo de mi-

litante, vinculados às faculdades deMedicina, Direito, Filosofia e Direi-to. Entre eles, Luis Hildebrando Pe-reira da Silva e Romeu Sofredini.Com apenas dois dias de demora, oDops lhe responde, anexando umaimensa listagem de médicos, enge-nheiros, arquitetos, escritores que,segundo seus arquivos, são liga-dos ao PCB.

A prática de no-minar seus professores comunistasparece ter sido uma constante nagestão Leme. No mesmo ano de1951, depois de 30 dias de greve dosalunos da Faculdade de Arquiteturae Urbanismo, num movimento que,segundo os relatos do Dops, inicia-se pela recusa da contratação do ar-quiteto Oscar Niemeyer (foto ao al-to, à direita) pelo Conselho Univer-sitário, mais uma vez o reitor pedeque o “Dops auxilie o presidente daComissão de Sindicância sobre a

FAU, a respeito da atuação políti-ca de alguns professores, comoVillanova Artigas, Romeu Sofre-dini, Ruy Machado e FannyBlinder”. Presidia a referidacomissão o professor José Car-los de Ataliba Nogueira.

Mas nem mesmo esta pro-ximidade entre Reitoria eDops livra o reitor de obser-vações cáusticas dos delega-dos do órgão. Ao final damovimentação na FAU,depois de meses de parali-sação e da reabertura daFaculdade, com a no-meação de um diretorefetivo e a aprovação deregimento próprio, um

relatório interno do Serviço de Se-gurança critica Leme pela conduçãodo processo, lembrando que se osavanços concedidos “eram uma pre-tensão justa dos alunos, considera-mos injusto o modo como tal pre-tensão foi pedida. E o magnífico rei-tor, passando por cima de todas asquerelas, atendeu os reclamos da-quela Faculdade”. Além disto, naprevisão do mesmo relatório, osatos da Reitoria não impediriam ostumultos que deveriam ser aindaprovocados pelos comunistas emfunção da questão Niemeyer.

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Abril 1998 RReevviissttaa AduspLuís Humberto/Abril Imagens

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Abril 1998RReevviissttaa Adusp

De sua existência, a co-munidade universitá-ria tinha poucas dú-vidas. Mas eram anosdifíceis. E a triagemideológica se fazia

sentir de maneira cada vez maispalpável por significativo númerode docentes, cujos processos decontratação enfrentavam obstácu-los inexplicáveis. Agora, não hámais como querer negar a existên-cia de uma representação do Dopsna USP. Um órgão de segurança,responsável pela disseminação deinformações de interesse da áreapolicial, visando ao controle efetivodo que ocorria dentro da Universi-dade de São Paulo, vetando contra-tações, “alertando” diretores a to-mar certos cuidados, acompanhan-do até mesmo debates que envol-viam a participação de intelectuaisque incomodavam o regime, existiusim. E diretamente vinculado àReitoria, informando aos demaisórgãos da comunidade de informa-ções seus telefones (288-0309 e286-3618) e, como endereço, nadamenos que o Gabinete do Reitor.

A criação da AESI — nome da-do a esta Assessoria de Informa-ção — data de 23 de maio de 1973e foi formalmente comunicada emofício distribuído a todos os minis-térios militares, Polícia Federal,

Polícia Militar, SNI, unidades doExército em São Paulo e Dops.Seus documentos — que terãosempre a mesma rubrica a acompa-nhá-los — adotarão um padrão vi-sual facilmente identificável: otimbre da Universidade de SãoPaulo/Reitoria, em sua abertu-ra. E essa primeira comunica-ção prima pela simplicidade,mas também pelo conteúdorevelador: “Esta assessoriaacaba de completar sua ins-talação. É órgão que funcio-na diretamente junto àUSP, mas se integra, tam-bém, na Divisão de Segu-rança e Informação do

MEC, dentro do Plano Setorial deInformações. Solicitamos corres-pondência a AESI/USP - ReitoriaUniversidade de São Paulo, Gabi-nete do Reitor”.

Este documento desmente, deimediato,

DOCUMENTO COMPROVA EXISTÊNCIA DE

REPRESENTAÇÃO DO DOPS NA REITORIA DA USP

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declarações oficiais prestadas peloex-reitor Orlando Marques de Pai-va, durante investigações realizadaspor Comissão Especial de Inquéri-to, instalada pela Assembléia Legis-lativa em 1977. Reproduzida par-cialmente em publicação da própriaAssociação dos Docentes da USP, Olivro negro da USP, a investigaçãoque buscava comprovar a existênciade uma prática de controle ideológi-co na contratação de professoresdeu um salto com as declarações doprofessor Antonio Guimarães Ferri,que ocupara vários cargos de dire-ção da Universidade. Em seu depoi-mento aos deputados, ele admitiu aexistência de um órgão vinculado aoMEC, que agiria no sentido de “to-mar informações sobre os docen-tes”. No entanto, afirmou também,tratar-se de um organismo de “cará-ter policial”, que “não é da Secreta-ria de Segurança. É um serviço desegurança do Ministério da Educa-ção, instalado fora da Universida-de...” Ferri ainda confirmou —conforme publica-do no DiárioOficial do Es-tado de SãoPaulo de30/9/1977 —“que o reitor éobrigado a fazerpassar pelos ór-gãos de segurançaos contratos queefetua, da mesmamaneira que éobrigado a exigir detodos os funcioná-rios admitidos quetirem seus documen-tos no cartório...”

A partir deste depoimento, aCPI insiste, então, em maiores es-clarecimentos do reitor à época,Orlando Marques de Paiva, que,também falando oficialmente aosdeputados, e instado a explicar ademora na contratação de novosprofessores, garantiu que “depoisde ter empenhado minha palavraperante o Conselho Universitário,no sentido de que jamais qualquerentidade, comissão ou pessoa exer-ceu pressão sobre o Reitor, pois eunão o permitiria, seria dispensáveldiscutir o assunto”. Pronunciamen-to do presidente da Comissão, Al-mir Pazzianotto, também registradono Diário Oficial do Estado, refor-ça ainda mais as tentativas de Mar-ques de Paiva de tentar acobertar oque era praxe. Textualmente, o de-putado garante que “em visita àUniversidade conversamos sobre oassunto exatamente com o Magnífi-co Reitor. Ele negou, peremptoria-mente, que qualquer professor seja

submetido ao crivo de uma comis-são interna de segurança”.

Confrontado com a própria de-finição da AESI — curiosamentecriada justamente no ano da possede Marques de Paiva na Reitoria— seu depoimento se perde no va-zio e no acinte feito ao poder legis-lativo do Estado, pelo seu conteú-do enganoso. Afinal, a AESI teráalgumas centenas de seus ofícios ecomunicados expedidos, ao longodos anos, e devidamente arquiva-dos no Dops/SP, especialmente en-caminhando listas e mais listas denovos professores a serem contra-tados. E não apenas professores,mas também funcionários e atéalunos selecionados para participa-r do Projeto Rondon. Especial-mente no ano de 1975, quandoPaiva ainda era reitor, serão deze-nas e dezenas, a representar maisde duas pastas especiais constituí-das apenas por fichas de encami-nhamento e um formulário, muitas

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Abril 1998 RReevviissttaa Adusp

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RReevviissttaa Adusp

vezes preenchido à mão — noque se supõe ser a própria letrado docente a ser contratado —com o timbre “Universidadede São Paulo/ Departamentode Administração”, ou , en-tão, “Universidade de SãoPaulo-Dados pessoais”.Nem mesmo os professoresestrangeiros escapavam. Ecópias desse materialeram, então, distribuídasfartamente aos órgãos desegurança e a ministérioscomo o da Educação edo Trabalho. Quando oDops localizava, emseus arquivos, informaçõessobre o docente, o informe eraimediatamente anexado à ficha.

Mas a AESI não se limitou a in-terferir nos processos de contrata-ção. Seus ofícios distribuíram à co-munidade de informações panfle-tos, boletins, relatos sobre congres-sos e semanas de estudo e até mes-mo pedaços de murais estudantisarrancados de algumas faculdades.O detalhamento de sua intervençãoe dos canais de influência dentro daInstituição pode ser demonstradoem relatório sobre a V Semana deEstudos de Jornalismo da ECA,ocorrida em 1973. Não apenas aprogramação ou observações dosdebates estão ali registrados: há atémesmo uma listagem nominal detodos os participantes vindos de ou-tros Estados e seu local de origem.

E a força de pressão de tal ór-gão perante diretores ou chefes dedepartamento também já não po-derá ser oficialmente negada. Em1973, por exemplo, documentosoriginários da AESI, que histo-

riam o planejamento e realizaçãodo II Encontro Nacional de Estu-dantes de Economia, são clarosem registrar que “alertado por es-ta AESI, o diretor da FAU, NestorGoulart Reis Filho, negou a ces-são do auditório”. E mais: “tam-bém o diretor da FEA, Laerte deAlmeida Moraes, igualmente aler-tado por esta AESI, vetou a reali-zação do encontro”.

No mesmo ano, 1973, outroprocesso registra a intervenção daAESI em curso de férias sobreDramaturgia, ministrado pelo pro-fessor Lauro César Muniz, naECA. Como a bibliografia indica-va, entre outras obras de apoio,“Lógica da dialética”, de H. Lefé-vre, e “Introdução à lógica dialéti-ca”, iniciam-se os questionamentos,ao mesmo tempo que se registra oinforme que Muniz participara, em1968, de manifesto contra a censu-ra. As explicações seguem o cursonormal da burocracia, quando o

chefe do Departamento, EduardoPeñuela Canizal, interpelado pelodiretor da ECA, “apresenta explica-ções prestadas por Muniz, em quedetalha não terem sido utilizadas asobras referidas, as quais foram eli-minadas da bibliografia no segundosemestre de 1973”.

Entre os muitos documentos deautoria da AESI nem mesmo aatual primeira dama, Ruth Cardo-so, foi perdoada. Datado de feve-reiro de 1976, um relatório infor-ma que “Eunice Durham compõe,com Ruth Correa Leite Cardoso eLeôncio Rodrigues, também pro-fessores do Departamento deCiências Sociais, grupo que lideramovimento esquerdista em toda afaculdade”. Segundo o informe, ogrupo não teria atuação ostensiva,o que dificultava a caracterizaçãoda ação por ele desenvolvida. Paranão deixar dúvidas, o informe se-gue com detalhado currículo deEunice Durham.

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Entre as muitas inter-rogações deixadas pe-los arquivos do Dopsencontra-se a dos si-lêncios em torno dealguns períodos e de

algumas pessoas de conhecidocomprometimento político que,estranha e aparentemente, pare-cem não ter sido monitoradas pelacomunidade de informações. Nocaso da USP, também esta situa-ção se repete.

Buscando a cronologia doacompanhamento dado à Univer-sidade, do ano de 1955 pula-se pa-ra o ano de 1964 e, ainda assim,poucos serão os documentos refe-rentes aos cinco anos seguintes.Em 1969, existirão alguns regis-tros esparsos, novo vazio e, apenasa partir de 1973, a documentaçãovoltará a ser farta, constante e di-versificada, talvez pelo surgimentoformal de um órgão de informa-ções, vinculado à Reitoria.

Dos primeiros anos pós-64, pou-cas revelações. Apenas — em docu-mento já bastante deteriorado e cu-ja leitura é prejudicada — o que pa-rece ser a indicação do reitor LuizAntonio Gama e Silva sobre quemrepresentaria a USP nos acompa-nhamentos de aplicação dos atosinstitucionais: o professor Julio Ma-rio Stamato, Secretário Geral daUniversidade. Do que é possível sereproduzir do texto, pouco legívelem algumas linhas, sabe-se que se

trata deofício onde o reitor apresenta aoDiretor de Ordem Política, An-dréas Aranha, o professor Julio Sta-mato, “que se dirige a este Depto. afim de cumprir missão determinadapela Comissão..... no âmbito destaUniversidade, em cumprimento.......contidas no Ato Institucional .....deabril de 1964, do governo federal, eno Decreto 43.217, de 16/4/1964, dogoverno estadual. A diligência queele irá solicitar tem caráter urgente,tendo em vista a exigüidade .....ulti-mação do trabalho afeto”. Em res-posta a esse ofício, designado comoSG/198, surge informação remetidaao Gabinete do Reitor, pelo ServiçoSecreto do Dops, em 3 de julho de

1964, relacionando 25nomes, entre os quaisLuiz Hildebrando Perei-ra da Silva, Paul Singer,Mário Schemberg, Flo-restan Fernandes, Fer-nando Henrique Cardoso,Villanova Artigas, CaioPrado Junior e José Serra.

Do mesmo período,permanece o registro de que caberiaao tenente coronel Ênio PinheiroSantos — um dos organizadores doSNI — a condução do IPM do IIExército para apurar atividades sub-versivas na Faculdade de Medicina.

Mesmo com a parca documenta-ção encontrada, os registros refor-çam a tese de que a colaboração en-tre Reitoria e órgãos de segurançanunca deixou de ocorrer. Datado de13 de setembro de 1969 — e portan-to ainda no mesmo ano em que o vi-ce-reitor em exercício, Hélio Lou-renço de Oliveira, fora cassado —,ofício assinado por Italo Ferrigno,delegado titular da Especializada de

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ACOMPANHAMENTO DIÁRIO DO CAMPUS DA CAPITALLuís Humberto/Abril Imagens

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Ordem Polícia, encaminha ao Dops,em nome do reitor Alfredo Buzaid(foto ao lado do documento), a rela-ção de todos os funcionários admi-nistrativos aprovados em concurso.A justificativa é clara: “face à cres-cente anormalidade nos meios uni-versitários, pediu-me o reitor quetodos os concursados sejam triadosneste departamento, em caráter ur-gente e sigiloso”. Da longa lista, 19nomes merecem reparos do Dops.

Uma das poucas mudanças decomportamento, em que parece ha-ver a inversão das posições sobrequem estaria a exigir alguma coisade outrem na estrutura de poder,registra-se em documento datadode março de 1973, quando o reitorMiguel Reale, já pressionado porvárias manifestações em todos oscampi da Universidade, encaminhaao Secretário da Segurança Públicapedido de informações, aprovadopelo Conselho de Ensino e Pesqui-sa, a respeito da morte do estudanteAlexandre Vanucchi Leme (vejabox). O que parece ser a respostaoficial encontra-se em documentosem nenhum timbre da Secretariada Segurança Pública, como se fosseapenas um rascunho preliminar, on-de é informada a versão oficial doórgão, divulgada à época. Alexandreteria sido preso por pertencer àALN e, durante interrogatório, teriadenunciado companheiros; acompa-nhado de policiais, teria indicadoum “ponto” em movimentado cru-zamento de São Paulo, onde teriatentado a fuga e, atropelado por umcaminhão, viria a falecer em funçãodas lesões provocadas pelo acidente.O corpo, não identificado, foi enter-rado 24 horas após a morte.

A partir de então, os registrospassam a se multiplicar. Mas jánão são originários apenas da pró-pria Universidade. Os órgãos deinformação registram rigorosa vigi-lância sobre o Campus da CidadeUniversitária, em São Paulo, ge-rando três relatórios diários — pe-la manhã, tarde e noite —, duranteanos, sobre o que ocorre de maissignificativo em cada uma das fa-culdades. Há observações — natu-ralmente a partir da ótica de quemos produz — de aulas, palestras,conferências, assembléias estudan-tis, quase que caracterizando umarotina que nunca se altera.

Em meio a este material, entre-tanto, persistem as denúncias deque a Universidade transformou-senuma central de comunistas. Mistu-ram-se denúncias de todos os tipos.Documento datado de maio de1974, aparentemente anônimo —em seu teor, o denunciante afirmaser professor da própria USP, vincu-lado ao Departamento de Matemá-tica e Estatística, onde exercia ativi-dades há 22 anos —, insiste na tese.E denuncia, por exemplo, Elza Fur-tado Gomes, Chaim Honig, CarlosBenjamin Lyra, Jacob Zimbarg So-brinho e Trajano Couto Machado,do Instituto de Matemática, como“esquerdistas indisfarçados”, che-

gando até mesmo a pedir ao Dopsque “possa averiguar a pessoa deWaldyr Muniz Oliva, entre outros”.

É do mesmo ano relatório doII Exército, que demonstra clara-mente a síndrome de caça aos co-munistas ainda viva: indica que, de-pois de conferência realizada naFaculdade de Ciências Sociais pe-los professores Florestan Fernan-des e Fernando Henrique Cardoso,foi possível constatar que um doslivros de Florestan estaria para seradotado pela Universidade. Motivosuficiente para a reclamação for-mal: “estes fatos, bem como as gre-ves ou ameaças de greve, têm so-brecarregado o Serviço de Infor-mações do II Exército que se vê nacontingência de, freqüentemente,intervir diretamente no problema,porque o sistema de segurança einformações do MEC em São Pau-lo vem deixando muito a desejar”.

Já extenso relatório do Centrode Informações do Exército, demaio de 1977, assinado pelo gene-ral Antonio Silva Campos, chefedo órgão, numa ampla exposiçãode mais de 40 laudas a respeito dasituação do Partido ComunistaBrasileiro no Estado de São Paulo,acaba por também concluir que “aUSP se constitui, hoje, no principalfoco de comunização do país”.

Neste ano de 98, homenageia-se AlexandreVannucchi pelos 25 anos de sua morte. Estudantede geologia da USP, nos três anos que esteve naUSP, no auge da repressão política (governo Mé-dici), destacou-se como organizador do DCE enas lutas pela reabertura das entidades estudan-tis. Denunciou torturas, os cárceres clandestinose os assassinatos cometidos pelo regime militar

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Entre os muitos intelec-tuais que ocuparamsignificativamente otempo e o esforço dosórgãos de segurança,destacam-se, no qua-

dro da USP, o sociólogo FlorestanFernandes (foto abaixo) e o físicoMário Schemberg (foto à direita).

Florestan, que em sua ficha dequalificação é definido como so-ciólogo e professor universitário,tem um primeiro registro sobre

sua vida política datado de 1945,quando, segundo o Dops, perten-ceu ao diretório provisório do par-tido Coligação Democrática Radi-cal. Ao longo dos anos, sua traje-tória seria acompanhada com de-talhes, que cresceriam de freqüên-cia a partir da década de 60. Em1961, as observações indicam queFlorestan integrou a comissãopaulista patrocinadora da coletade assinatura pelo registro do PCBe, em maio de 1964, a Divisão deInformações da Delegacia de Or-dem Política assim o define: “mar-xista ao extremo e declaradamentecomunista; como titular da cátedrade Sociologia da Faculdade de Fi-losofia Ciências e Letras da USPmontou esquema para evitar quesua cátedra fosse ocupada porprofessores anticomunistas. Dota-do de ambição sem limites, des-leal, despatriado, amoral e revol-tado com sua origem humilde (fi-lho de lavadeira)...”.

Em setembro do mesmo ano,IPM é instalado para averiguar asituação da FFCL, no qual se re-gistra, por exemplo, a acusaçãodo professor Ricardo RomanBlanco, no sentido de denunciarque “Florestan é tão virulentoquanto Mário Schemberg, sendosuas aulas autêntica doutrinaçãomarxista”. Indiciado pela Justiça

Militar, o sociólogo tem sua pri-são preventiva decretada, masquando isto ocorre já embarcarapara os Estados Unidos. Mesmoali, suas atividades continuam sen-do acompanhadas, com registrossobre os locais onde ministravasuas aulas e residia. As anotaçõesprosseguem pelo ano de 1968,quando a ele se imputa a declara-ção de que o regime se caracteri-zaria como “uma ditadura militar”e teria, então, “conclamado os es-tudantes a irem às ruas”.

Passados os anos, e já cassadopelo AI-5, Florestan continua aser monitorado com regularidade.Suas palestras, conferências, au-las e debates públicos estão devi-damente anotados e suas idéiasregistradas. A maior preocupaçãoparece se concentrar em 1975,quando Florestan ministra, noDepartamento de Ciências So-ciais da USP, um curso sobre Re-volução Socialista em Cuba. Em-bora, segundo o próprio Dops, ocurso tivesse duração de cerca de3 meses, todas as aulas foramacompanhadas e seu conteúdosintetizado em relatórios, um aum. Sobre a primeira aula, porexemplo, o investigador informaque o tema tratado foi “o domí-nio norte-americano sobre Cuba,desde o fim do século XIX até

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FLORESTAN E SCHEMBERG FORAM

CONSTANTEMENTE VIGIADOS

Carlos Namba/Abril Imagens

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1932, devendo nas próximas aulasse chegar até os dias atuais”. Se-gundo a opinião do investigadordo Dops, Florestan enfatizou “osmalefícios da dominação”.

Mas se os registros sobre Flo-restan realmente priorizam seusatos e atitudes como professor eintelectual, a preocupação comMário Schemberg teve uma ca-racterização política muito maisdefinida. Como candidato e mili-tante do PCB, Schemberg chega ater uma série inteira do Dops de-dicada exclusivamente ao arqui-vamento de parte de sua vida,com nada menos que 448 docu-mentos seqüenciais ali coloca-dos — o que não afasta a existên-cia de outros documentos, em ou-tras áreas do arquivo.

O primeiro registro data de1944, em função de conferênciapor ele proferida, na própria USP,sobre “Civilização e cultura ameri-canas”. A partir de então, o Servi-ço Secreto da Delegacia de OrdemPolítica estaria constantementeacompanhando seus pronuncia-mentos e especialmente atividadesque, como físico, iriam levá-lo a to-mar posicionamentos públicos so-bre a política de energia nuclear.Preso em 1948, o Dops mistura en-tre sua documentação bilhete es-crito pela esposa, Julieta Guerrini,onde ela, a lápis, pergunta-lhe: “seessa superdotada força para guar-dar vocês – 5 canhões, 10 parabeli-nos, 20 metralhadoras – não cons-titui violência”. Julieta ainda infor-ma que trouxera laranjas para ele eque iria se esforçar para queSchemberg não ficasse tão abando-nado na prisão.

Especificamente no que se refe-re a atividades acadêmicas, emboraos documentos originários da USPque registrem o fato não sejam en-contrados no Dops, documentos deoutras origens e até mesmo recor-tes de jornais relacionam o pedidode demissão de Schemberg, em1956, do cargo de diretor do De-partamento de Física da FFCL, em“função da falta de verbas e dos en-traves para o desenvolvimento daspesquisas”. Em 1965, registra-se aindignação dos presentes à soleni-dade de formatura da FFCL — tur-ma de 1964 — quando a mensagemencaminhada por Schemberg éproibida de ser lida pelo então di-retor da unidade, professor MárioFerri. Já àquela oportunidade, o re-presentante dos formandos denun-ciava, em seu discurso, “o terroris-mo cultural que se instala na Uni-versidade, vitimando professores,como Mário Schemberg”.

Ainda de 1965, as manchetesde jornais — devidamente arqui-

vadas — dão destaque a seu indi-ciamento no IPM que se desen-volve sobre subversão também naFFCL e que já atingira FlorestanFernandes, Fernando HenriqueCardoso e João Cruz Costa. Em-bora nada tenha sido encontradoque possa se caracterizar como opróprio conteúdo do IPM, os ar-quivos mantêm documentos quefalam sobre a indignação de cien-tistas e intelectuais pelo fato deSchemberg, o único latino-ameri-cano convidado a participar daConferência Internacional sobrePartículas Elementares, ter sidoimpedido de viajar ao Japão.

O último registro que lhe é fei-to, vinculando-o a atividades aca-dêmicas, data de agosto de 1968,quando Schemberg pede demissãodo Departamento de Física daUSP como forma de protestarcontra o tratamento que vinhasendo dado pela Instituição aotambém físico César Lattes, que setransfere para a Unicamp.

Madalena Schwartz

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Qualquer análise quese pretenda fazer deum passado recentedo país, a partir dadocumentação exis-tente nas 15 tonela-

das de papel que compõem os ar-quivos do Departamento de Or-dem Política e Social do Estado deSão Paulo, hoje abertos ao público,esbarrará em limites claros e defi-nidos. Cobrindo os anos de atuaçãodo órgão, de 1924 a 1983, ali seconcentram 150 mil prontuários,mais de 1 milhão e 300 mil fichasremissivas, milhares de pastas.

Mesmo transferido atualmentepara instalações mais adequadas,depois de permanecer durante anosem espaços onde a umidade e o ris-co de deterioração eram constan-tes, o Arquivo permanece como ummundo desconhecido, inclusive pa-ra aqueles que o manuseiam. Dosprimeiros técnicos que puderambuscar a lógica de sua documenta-ção, poucos restaram para dar con-tinuidade ao trabalho, já que sua si-tuação funcional sempre foi precá-ria e dependente da contratação deoutros órgãos que não a própria Se-cretaria de Cultura do Estado. Ho-je, grande parte do atendimento aopúblico é feita por estagiários, quesequer têm noção do material queestão manuseando, e muito menosalgum tipo de capacitação específi-ca que oriente o pesquisador nos

caminhos que lhe permitam encon-trar o assunto de seu interesse.Grupos de pesquisa da USP e daUnesp vêm buscando, entretanto,desvendar o significado do códigoalfanumérico que define a lógicaarquivística dos documentos.

Nenhum processo de informati-zação ainda foi estendido aos mi-lhões de documentos ali cataloga-dos. Há apenas um sistema rudi-mentar de fichas remissivas, a par-tir do nome de pessoas ou entida-des, ainda datilografadas em ve-lhas máquinas manuais de décadaspassadas. Ocorre, entretanto, quetais referências deixam vaziosimensos, escondendo, na maioriados casos, o que de mais rico e iné-dito existe nos arquivos. Quem secontentar em buscar apenas os do-cumentos indicados nessas fichasiniciais de consulta, certamente sedecepcionará pela pobreza dos re-latos que irá localizar.

O mapeamento ainda é precário,sem sistematização adequada. As-sim, há séries e dossiês já bastantemanuseados, atraindo maior aten-ção documentos sobre o movimentoestudantil, laudos necroscópicos da-queles que foram mortos durante aluta armada ou por torturas, inter-rogatórios de presos políticos, publi-cações apreendidas, acompanha-mento de partidos clandestinos, en-tre outros. Mas os documentos,muitas vezes duplicados em diferen-

tes pastas, passam a obter significa-dos diversos, se confrontados comaquilo que os antecede ou sucede.Portanto, sua análise pode ser alte-rada dependendo inclusive do localde seu arquivamento.

Grande parte dos documentosrelativos à Universidade de SãoPaulo, no que se refere à troca deinformações e colaboração institu-cional entre Reitoria e órgãos desegurança, encontra-se arquivadana série 50-K-104, que possui 29pastas, com cerca de 3.500 docu-mentos e 8 mil páginas. Mas relatosdos mais significativos foram locali-zados em pastas de séries comple-tamente distantes e desvinculadasde movimentos estudantis, educa-cionais ou universitários.

Em qualquer processo de recu-peração de novas versões para ahistória, a partir do que seja pes-quisado naqueles arquivos, há quese considerar, ainda, a própria du-biedade do conteúdo da documen-tação. Análises oficiais de órgãoscomo o Ministério da Marinha ouda Aeronáutica misturam-se a re-latos qualificados pelos órgãos desegurança até mesmo como “infor-me duvidoso”, gerado por “fontenem sempre idônea.” Assim, se deum lado é possível se surpreender,especialmente no que se refere aosanos da luta armada, com docu-mentos inéditos de análise de con-juntura ali existentes, há que se rir

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CAIXA DE SURPRESAS

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da imaginação e da limitação inte-lectual de grande parte dos infor-mes aceitos e referenciados paraanálise posterior de toda a comu-nidade de informações, já que adistribuição da maioria deles se fa-zia em âmbito nacional.

O mais grave, neste quadro, eraa absoluta consciência que os pró-prios órgãos de segurança possuíamquanto à fragilidade de seus siste-mas de informações. Exemplo típi-co que mostra a extensão do pro-blema pode ser encontrado na qua-lificação de Luiz Francisco Santos,informante profissional, caracteri-zado nos documentos oficiais comoa serviço de vários países, infiltradojunto à União dos Portuários deSantos, em 1965. Sua ficha, que re-laciona telefone, endereço, localpara recados, acrescenta que o ci-dadão mantinha, em Niterói, umorfanato para moças de quem tira-ria proveito. Quase 20 anos depois,as práticas eram as mesmas: um bi-lhete à mão, endereçado ao entãodiretor do Dops, Romeu Tuma,acompanhando uma análise políticasobre o Chile, informa pura e sim-plesmente que “o signatário destedocumento é um vigarista; não temqualquer conhecimento de organi-zações esquerdistas”. Apesar doalerta, o material merece o mesmotratamento arquivístico de tantosoutros documentos oficiais.

A outra face dessa incursãomais ampla pelos documentos doarquivo é a possibilidade efetiva dedetectar a identidade de numero-sos informantes e investigadoresdos órgãos de segurança, assim co-mo deparar com declarações feitas— aparentemente — por vontade

própria, das mais variadas pessoasinteressadas simplesmente emtambém combater o comunismo.Há simpatizantes de todas as ori-gens e formatos: gerentes debanco, pastores, ex-militares,pessoas respondendo por car-gos de confiança, simplesescroques. Mas, emborapossivelmente nem elesmesmos o soubessem,eram todos tratados —como se diz popular-mente — como “fari-nha do mesmo saco”,pouco importandoaos órgãos de segu-rança seu status outítulo. Importava,apenas, que eramcolaboradores ouinformantes.

Mesmo as-sim, qualqueruma dessasdenúncias, oque incluit a m b é mqualquer umaque fosse feita pela Rei-toria da USP, indicando nomes depossíveis comunistas, não se res-tringia aos órgãos policiais de SãoPaulo, mas seria distribuída, ime-diatamente, aos serviços de infor-mação dos Ministérios do Exército,da Marinha, da Aeronáutica; aoMinistério do Trabalho, ao MEC,Departamento de Polícia Federal,e, após 64, ao Serviço Nacional deInformações (SNI).

Este tipo de rede de informa-ções fica muito caracterizada pelaprática de consultas mantidas entreinstituições públicas antes de qual-

q u e rc o n -

t r a t a -ção de

funcio-n á r i o s ,

antes edepois de

1964. Osa r q u i v o s

m o s t r a mque não se

tratava ape-nas da USP e da justificativa mui-tas vezes apresentada de uma ale-gada exigência do governo militar,que poderia impor tal conduta. Atémesmo concursos públicos, em ins-tituições como delegacias do Minis-tério do Trabalho e o CPqD (órgãovinculado à Telebrás), estiveram su-jeitos aos humores do Dops paraque seus resultados fossem referen-dados, na década de 50, 60, 70 ouaté mesmo, como comprovam al-guns dos últimos documentos doarquivos, datados de 1982. RRA

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DESAFIOS TECNOLÓGICOS

E AS EXIGÊNCIAS DA SOCIEDADE

Júlio Pudles

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Neste fim de século, os grandes centrosde criação do conhecimento (universi-dades) estão atravessando múltiplascrises, a meu ver, extremamente saudá-veis, por estarem estimulando debatese toda uma reflexão sobre o que deverá

ser o ensino superior no próximo século. É importan-te salientar que, na sua maioria, os debates mais vivose as mais profundas reflexões sobre qual forma de co-nhecimento deverá ser transmitida ao estudante estãosendo, em particular, realizados nos países anglo-sa-xões (EUA e Grã-Bretanha).

Um breve retrospecto das importantes transforma-ções ocorridas na Universidade nesses três últimos sé-culos facilitará a compreensão do que está ocorrendonos dias de hoje.

Até quase o final do século XVIII, o ensino uni-versitário restringia-se à teologia (filosofia), medicinae direito. Podemos considerar que a grande mutaçãopara o que denominamos “a era moderna do ensino eda sociedade”, inicia a partir da descoberta da lei dagravitação universal por Isaac Newton e da influênciado iluminismo (filosofia das luzes), da qual Kant,Diderot, Voltaire, Montesquieu, Adam Smith e ou-tros foram os maiores expoentes. Essa corrente filosó-fica não somente enfatizou a importância da ciênciacomo também procurou estender o domínio da razão.O iluminismo tinha como objetivo não só incentivarum maior conhecimento do mundo físico, mas tam-bém fornecer aos homens e mulheres os instrumentosnecessários que lhes permitissem interpretar a morale a política por intermédio da investigação racional.Em grande parte, essas ambições foram realizadas, eas idéias desses filósofos permitiram modificar a visãoque se tinha do mundo, deixando como herança amodernidade da civilização ocidental.

Até o fim da segunda guerra mundial, existiamduas maneiras de definir a função da Universidade.Nos países anglo-saxões e latinos prevalecia a propos-ta formulada pelo Cardeal John Newman (fundadorda Universidade Católica de Dublin): “as Universida-des teriam como objetivo a procura da verdade, nãotendo de se envolver com as necessidades e proble-mas cotidianos da humanidade ou da sociedade. Elaseria o local privilegiado do conhecimento e das ciên-

cias, da investigação e da descoberta, da experimenta-ção e da especulação” (The Economist, supl. “A sur-vey of universities,” 4/10/1997).

Na Alemanha, desde o começo do século passadoprevalecia a definição de von Humboldt (criador daUniversidade de Berlim), para quem “a Universida-de ideal seria aquela capaz de integrar o ensino e apesquisa científica”.

Essas duas definições são semelhantes à medidaque apresentam a academia essencialmente como“torre de marfim”, e deixam de representar a realida-de do que está ocorrendo no seio do mundo acadê-mico, e essa é uma das razões da crise e dos debatesatuais sobre a função reservada à Universidade doséculo XXI.

A crise da Universidade

Crise de origem interna: debate entre duas corren-tes de pensamento, uma, herdeira da filosofia racio-nalista (iluminista) e outra, denominada pós-moder-nista. A primeira defende o universalismo do conheci-mento e considera que todas as idéias devem ser sub-metidas ao questionamento e à explicação científica.Só desta maneira a humanidade poderá libertar-sedas superstições e do irracionalismo. A segunda cor-rente de pensamento, à qual estão ligados os movi-mentos pós-modernistas, cujos precursores foram osmovimentos pós-estruturalistas, admite que o racio-nalismo chegou a um impasse e que a ciência não émais capaz de resolver todos os problemas da huma-nidade (saúde, economia, política, moral, controle danatureza, etc.).

Esses movimentos criticam o excesso de racionalis-mo (cientismo), que deu à humanidade a ilusão deque tudo poderia ser resolvido através da ciência,quando na verdade vivemos em uma era de incerteza.Eles dão ênfase ao que está ligado aos movimentos eparticularismos locais (respeito a tradições nacionais,costumes, dialetos) e contra o excesso de desenvolvi-mento tecnológico (movimentos ecologistas, medicinaalternativa, etc). Esse aspecto da crise alimenta-se doquestionamento sobre a natureza do conhecimento eo papel da ciência e tecnologia em contribuir para obem da humanidade sem danificar de maneira preju-

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dicial o ecossistema global. Portanto, denota uma per-da de confiança em uma série de convicções que fo-ram a base da idéia clássica de Universidade — asquais estavam agrupadas em torno das idéias da ra-zão, do conhecimento, progresso, universalismo, e“Enlightenment”.

Vale a pena notar que a falência dos regimes “mar-xistas”, que se consideravam “racionalistas e universa-listas”, teve um efeito desastroso sobre parte da elitede um grande número de países do Terceiro Mundo emesmo nos países desenvolvidos, os quais, na falta dealternativas, permitiram ou apoiaram a progressão demovimentos religiosos tradicionalistas, ultranacionalis-mos, misticismos exacerbados e seitas obscurantistas.

Crise de origem externa: existem duas forças im-portantes que estão por trás dessas transformaçõesdos objetivos (finalidades) e da própria imagem daUniversidade: uma de natureza intelectual e outra denatureza política.

A primeira força de transformação está ligada aotriunfo das ciências experimentais durante este sécu-lo. Esse sucesso da ciência e, portanto, da Universi-dade, em particular após a 2ª Guerra Mundial, estáligado ao fato de que os trabalhos científicos realiza-dos nas universidades, principalmente nas áreas dafísica e da química, foram cruciais para a vitória dasforças aliadas. Essa contribuição da ciência persua-diu os governos, na maioria dos países desenvolvidos,de investir em ciência, sendo a Universidade a pri-meira a ser inteiramente apoiada. Naturalmente,com essa avalanche de financiamento público vieram,e se acentuam cada vez mais, as exigências de maiorrigidez na prestação de contas além de uma diminui-ção da autonomia intelectual.

No seio da Universidade existem duas diferentes in-terpretações da intromissão política. A primeira justifi-ca a advertência dos acadêmicos “tradicionalistas” so-bre a presença do “cavalo de Tróia”. Tendo aceitado oenorme financiamento dado pelo governo (a partir deimpostos que a sociedade foi obrigada a pagar), a uni-versidade encontra-se presa às injunções do Estado.

Para evitar pressão política, assim como a incom-preensão dos políticos sobre a pesquisa fundamental,alguns centros universitários estão procurando diver-sificar as fontes de financiamento à pesquisa, como o

MIT, que já consegue 20% do seu financiamentoatravés da indústria.

Um aspecto paradoxal da existência dessas fontesde financiamento extra-governamentais é o que ocor-reu na Universidade de Cambridge (Grã-Bretanha),envolvendo um pedido de verba para a criação de umcentro de pesquisa na área da ciência da compu-tação. A resposta seria favorável, se as pesquisas des-se centro fossem direcionadas para fins aplicados aodesenvolvimento econômico. Essa ingerência do go-verno no direcionamento da pesquisa foi recusadapelo investigador principal do futuro centro, que aca-bou recebendo uma doação de 80 milhões de dólaresde Bill Gates (presidente da Microsoft) para criar umcentro de ciência da computação da Microsoft asso-ciado à Universidade de Cambridge, com liberdadetotal na escolha de seus temas para pesquisa!

Um outro exemplo: George Soros, considerado “omaior especulador financeiro do mundo”, já doou 500milhões de dólares para que a ciência fundamental naRússia não venha a desaparecer. Até parece que esta-mos retornando ao período da Renascença, e aquelesque quiserem realizar pesquisa fundamental terão deser mantidos por patronos.

A outra interpretação do papel da ciência na Uni-versidade considera que nem o governo, nem os polí-ticos, nem a Universidade são responsáveis por essasituação “nebulosa” da investigação científica nomeio universitário e se interroga qual deve ser o seudirecionamento no próximo século. Segundo essacorrente de pensamento, a atual pesquisa de van-guarda não se processa no interior de uma mesmadisciplina, mas, resolvendo problemas complexos quedependem de várias disciplinas. Em conseqüência,constatam que a ciência acadêmica tradicional estápassando por uma revolução cultural e sendo substi-tuída por uma ciência “pós-acadêmica” (Ziman, J:“Is Science Loosing Objectivity?” Nature, 382, 751-754, 1996), também denominada “mode 2” (Gibbons,M. et al. The New Productions of Knowledge: TheDynamics of Science and Research in ContemporarySocieties, Sage, London, 1994). Esses autores suge-rem que a ciência “pós-acadêmica” ou “mode 2” terácomo objetivo abordar projetos multidisciplinares es-pecíficos, possuindo interesses econômicos, e que se-

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rão desenvolvidos conjuntamente por pesquisadoresvindos de companhias industriais, de laboratórios dogoverno e das universidades. “Esse modo de produ-ção do conhecimento não será dirigido para produzirconhecimento pelo conhecimento, mas, resolver pro-blemas específicos.” Como exemplo, são citadas asrecentes experiências realizadas em novas universi-dades da França e do Japão, onde as investigaçõesestão sendo conduzidas através de uma rede de insti-tuições peri-universitárias — institutos de pesquisas,consultorias e pequenas empresas instaladas no cam-pus ou fora dele, organizadas transitoriamente para odesenvolvimento de projetos específicos.

Nesse tipo de ambiente de pesquisa, a Universidadeprecisa aceitar que existem competências fora do seuâmbito e que ela não é mais a monopolizadora do co-nhecimento. Esse processo centrífugo está acontecendoem todos os centros acadêmicos de pesquisa, mesmo osde alto prestígio científico, onde os investigadores estãocriando conexões e interações extramurais. Esse fenô-meno vem se amplificando com a introdução da Inter-net. O resultado dessas relações extramurais tem provo-cado uma diminuição da liga-ção do acadêmico com a suainstituição. Além disso, umgrande número de empresasou associações profissionaispossuidoras de grande “know-how” está criando seus pró-prios centros de ensino supe-rior ou organizando simpósiose cursos de reciclagem com no-vos conhecimentos. Por conse-guinte, na “periferia” da Uni-versidade tradicional estãosendo formadas novos centrosde “ensino superior”, que apublicação The Economist (su-plemento: “A Survey of Uni-versities”, 4/10/97, pp. 1-22)denomina “the core and thecloud”, criadores de conheci-mento operacional.

Contrastando com essa vi-são dirigista da investigação

científica, em dois editoriais da revista Science (“BasicResearch(1)”, “Basic Research(2): Organization”, 259,291 e 579, 1993), Koshland, D. Jr. comenta: “A ciênciabásica pode ser considerada um jogo de roleta cujaschances de sucesso são poucas, porém, quando se acer-ta no número os rendimentos são enormes. Ou então,a ciência aplicada é um jogo em números pretos ouvermelhos, cuja chance de ganhar é maior, todavia, osrendimentos são significativamente menores”. (...) - “Adiferença entre pesquisa básica e a aplicada encontra-se na abrangência de suas aplicações, na escala de tem-po para obtenção esperada de rendimentos econômi-cos e na possibilidade de predição dos resultados”. (...)“A pesquisa básica trouxe o raio-X, a penicilina, a vaci-na contra a poliomielite, os computadores, a revoluçãoverde, o DNA recombinante, etc. A pesquisa aplicadaaproveitou os resultados da ciência básica e desenvol-veu as vacinas, rádios, televisão, etc”. (...) “Portanto, odebate entre as duas maneiras de realizar ciência deve-ria ser formulado em termos de pesquisa revolucioná-ria (básica) e pesquisa evolucionária (aplicada)”. (...)“Se concluirmos que a pesquisa básica e a aplicada são

necessárias para a melhoriada qualidade de vida em umpaís desenvolvido, é evidenteque inevitavelmente devemaparecer as questões de prio-ridades, de nível de investi-mentos e de organização. Emcada um desses níveis é neces-sário que seja desenvolvidauma relação simbiótica entreas estruturas políticas e ascientíficas, a fim de obter omáximo de benefícios com omínimo de atrito”.

A segunda força de trans-formação da Universidadeestá ligada à ascensão da de-mocracia, tendo como corolá-rio a exigência de um ensinode massa.

Durante séculos a Univer-sidade ficou inteiramente re-servada para uma pequena

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A Universidade precisa

aceitar que existem

competências fora do seu

âmbito e que ela não é mais

a monopolizadora do

conhecimento. Esse

processo centrífugo está

acontecendo em todos os

centros acadêmicos de

pesquisa, mesmo os de alto

prestígio científico, onde os

investigadores estão

criando conexões e

interações extramurais.

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elite. Porém, nesses últimos vinte anos o afluxo de es-tudantes ao ensino superior, em quase todos os paísesdesenvolvidos, tem sido espetacular. Nesses países, osestudantes estão conscientes da importância de ad-quirir um diploma universitário de prestígio. A com-petição para obtenção de um emprego é tão acirrada,que os “empregadores” dão preferência àqueles quepossuem um diploma de Universidade de renome.

Mudanças no perfil da Universidade

Podemos dizer que no século XX ciência e demo-cracia foram as mais poderosas forças que deramforma à Universidade que conhecemos (The Econ-omist, ibid, 1997). Porém, quase no fimdeste século o perfil da Universida-de tem se modificado de uma ma-neira significativa. Ela não é so-mente uma criadora de conhe-cimentos, formadora de jo-vens ou transmissora de cultu-ra; é também considerada umdos maiores agentes de cresci-mento econômico. Nos dias dehoje, os governos consideram asuniversidades como laboratórios depesquisa e desenvolvimento da nação e ainstituição responsável pelo aumento do “ca-pital humano”, que permite a um paísobter melhores condições de competirna economia global.

Essa maneira de pensar, tomando contados organismos políticos e sua conseqüente influênciasobre a Universidade, faz com que ela seja cada vezmais obrigada a se distanciar de suas origens como “san-tuário do conhecimento”e a se tornar parte do sistemanacional de inovação” ou uma “incubadora de idéias”para novas empresas em uma sociedade dominada pelatecnologia. Por exemplo, o último relatório sobre a ciên-cia que o Presidente Clinton apresentou ao Congressodos EUA foi pleno de elogios no que diz respeito à “ne-cessidade de ser estimulada a curiosidade inata dos cien-tistas”. Porém, logo após, justifica esse interesse dando alista de descobertas de caráter puramente fundamentalque se transformaram em sucessos comerciais. Provavel-

mente, devido a esse fato, o Congresso Americanoaprovou um aumento de 40 bilhões de dólares no orça-mento da educação tendo como finalidade auxiliar osestudantes a ingressar no ensino superior.

Apesar de ser o país que mais avançou no ensinosuperior de massa, apenas 50 Universidades dos Esta-dos Unidos constituem a elite responsável pelas des-cobertas científicas mais espetaculares. Isto se deve aofato de que elas são capazes de atrair os melhores es-tudantes entre os milhões que estão seguindo os cur-sos de terceiro grau por todo o país. Além disso, umaoutra razão desse sucesso é a sua inteira autonomiacurricular e financeira, podendo competir entre si emnível de salário e de facilidades. Todavia, nas universi-

dades de vanguarda em pesquisa, o custonecessário para a formação de um jo-

vem é tão alto, que economicamenteestá sendo impossível aos organis-mos públicos manterem, ao mesmotempo, um ensino superior demassa associado à pesquisa que

ofereça qualidade.O professor Eli M. Noam (“Elec-

tronics and the Dim Future of the Uni-versity”, Science n. 270, pp. 247-249,1995; trad. Revista Adusp, n. 9, pp. 47-51,1997) calculou que nas Universidades de

elite o custo de hora/aula por estu-dante é de US$ 50. Devido a esse

alto custo, junto com a massifica-ção do ensino superior, os go-

vernos se encontram na impossibili-dade de manter o mesmo ritmo de crescimento de fi-nanciamento por estudante registrado na década de70. Na Grã-Bretanha, entre 1970 e 1995, o número deestudantes inscritos em cursos superiores aumentoumais de 40%, ao mesmo tempo em que a contribuiçãodos organismos públicos por estudante diminuiu qua-se 50%; na França, o número de estudantes inscritosem cursos de terceiro grau entre 1980 e 1995 passoude um milhão para dois milhões.

Para atender a essa massificação, além da necessi-dade de diversificar o ensino e principalmente dimi-nuir o seu custo, a saída seria a criação de centros di-recionados ao ensino vocacional. Todavia, a experiên-

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cia tem demonstrado que é extremamente difícil criaresses centros, contratando professores que possuamuma formação acadêmica e ao mesmo tempo impe-dindo-os de realizar investigações científicas. Qual-quer professor de ensino superior que possua um bomnível e ambições acadêmicas dificilmente apreciará serconsiderado um acadêmico de segunda classe por es-tar confinado a uma instituição de ensino apenas.

Ultimamente, nos EUA, as famílias de estudantesinscritos em cursos superiores têm criticado muito oforte aumento das taxas universitárias (aumento signi-ficativamente maior do que a taxa de inflação); alémdisso, consideram que houve uma grande baixa naqualidade do ensino. A seu ver, os professoresestão interessados somente em suaspesquisas científicas e na buscade prestígio pessoal; portan-to, dão menos prioridade aoensino de graduação. Essascríticas, associadas aos cor-tes nos orçamentos das uni-versidades, têm criado ummal-estar nas administraçõesuniversitárias e, como conse-qüência, foram formadas co-missões com a finalidade deprocurar soluções para me-lhorar a qualidade do ensino.

Em recente editorial da re-vista Science (“Evolution ofHigher Education”: pp. 277 e 747, 1997), P. Abelsonanalisa o relatório da comissão Kellogg (constituída porantigos presidentes de “State and Land-Grant Universi-ties”). Entre as várias recomendações apresentadas paraa melhoria do ensino superior, as mais importantes fo-ram: a) o status quo do ensino não pode mais ser manti-do, sendo necessário mais dedicação ao ensino (comen-ta-se que essa proposta tem encontrado orelhas surdas,principalmente ao nível dos departamentos); b) a gran-de rigidez e autonomia das estruturas departamentaissão os fatores que dificultam a interação com outras dis-ciplinas, têm sido um empecilho à renovação do ensinoe formação dos jovens para o século XXI; c) as melho-res oportunidades de desenvolvimento intelectual e pro-fissional encontram-se nas áreas multidisciplinares.

A comissão Kellogg também discutiu o importantepapel que a Internet tem tido para a melhoria de umensino de massa de qualidade e de baixo custo finan-ceiro: “Graças ao ensino pelo Internet, as instituiçõesde ensino superior tradicionais estão sendo obrigadasa competir com uma enorme variedade de vendedoreseducacionais que oferecem cursos pós-secundários,treinamento, diplomas, etc. Algumas universidades es-tão se adiantando na utilização dos meios eletrônicos,como a Universidade de Phoenix, que tem desenvolvi-do um programa de aprendizado a distância para maisde 20.000 estudantes anuais e a Universidade deMaryland que oferece um curso para obtenção de um

“master’s degree in computersystems management”, do qualparticipam estudantes de Min-

nesota, Texas, Austrália eArábia Saudita. Os diferen-

tes cursos transmitidos pe-la Internet oferecem co-mo opção um grandenúmero de inovaçõeseducacionais e estãosendo considerados co-mo um “mercado” ex-tremamente atrativo pa-ra pessoas com idade su-

perior a vinte cinco anosque desejam se reciclar e de-

senvolver seus conhecimentos profissio-nais. Finalmente, a comissão julga indispensável quehaja mais interação entre professores de diferentesdisciplinas a fim de que se encontrem soluções paramelhorar e adaptar o ensino a novas realidades”.

O Estado de Nova York também criou uma comis-são tendo como objetivo analisar o impacto das novastecnologias eletrônicas no ensino superior e verificarcomo as universidades estão se adaptando a essas no-vas formas de ensino. Em resumo, as conclusões queo presidente (Victor Riley) dessa comissão apresen-tou durante entrevista à revista Newsweek (5/12/94)foram: “1) necessidade de “colleges” e universidadesinteragirem para dar maior eficácia ao ensino e pes-quisa e diminuir seus custos financeiros, (será que to-dos os “colleges” e universidades precisam manter as

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custosas bibliotecas tradicio-nais?); 2) para obter um di-ploma, não é indispensávelque os estudantes sejam obri-gados, durante quatro anos, afreqüentar cursos em umcampus universitário; 3) atéalguns anos, um indivíduo quepossuísse um diploma trocavaem média quatro a seis vezesde emprego durante sua vidaprofissional. Atualmente, aexpectativa é de trocar quatroa seis vezes de carreira! Logo,é necessário que o ensino sejadiferente; 4) os diplomandosdos “colleges” formam-semuito jovens, sem possuir maturidade suficiente paraenfrentar a vida profissional; em conseqüência, opresidente da comissão considera indispensável que,antes de obter um diploma ou decidir por uma carrei-ra, o jovem tenha uma experiência de vida profissio-nal fora da academia, mas que haja a possibilidade deum contínuo retorno à Universidade; 5) a Universida-de deverá ser um centro de formação contínua, e 6) omaior competidor do ensino superior tradicional seráa “university down the street”.

Em suma, as academias estão sofrendo quatroprincipais mutações nos seus fundamentos (Barnett,R: “A Knowledge Strategy for Universities”, in TheEnd of Knowledge in Higher Education pp. 166-179,ed. Barnett, R., Griffin, A., Institute of Education.Univ. London-U.K., 1997):

“a) transformação do ensino superior em um ‘mar-keting’, no qual estudantes se transformaram emclientes de cursos que são vendidos como produtos.

b) fora o conhecimento produzido internamentepela academia, inseriu-se o chamado conhecimentoem uso ‘knowledge-in-use’. Neste processo, a Univer-sidade tem procurado ajustar suas concepções sobre oconhecimento, de tal maneira que nos cursos atuais in-clui-se um aprendizado mais baseado na ação.

c) a ideologia atual está ligada à noção de compe-tência: o importante não é o que uma pessoa é capazde compreender, mas o que é capaz de realizar. Co-

nhecimento é reduzido a in-formação, ‘wisdom’ é reduzi-do a competência.

d) as universidades nãomais detêm o monopólio co-mo criadoras do conheci-mento.

Esses ataques de origemexterna têm obrigado a Uni-versidade a enfrentar eabrir-se para novas formasde conhecimento. Nos diasde hoje, em um grande nú-mero de universidades, ob-serva-se que em lugar deadotar como lema a prote-ção de todos os conhecimen-

tos e da ciência, elas preferem celebrar as suas reali-zações como produtoras de conhecimentos úteis.

Por conseguinte, estamos em frente de duas formasde conhecimento: 1) a forma tradicional construída emtorno de conhecimentos proposicionais; 2) a nova for-ma, que é construída em torno do conhecimento emuso ou que está despontando, logo, endereçada à reso-lução de problemas que vão aparecendo de imediato.Isto significa, em essência, que a definição de conheci-mento tem passado de uma visão ‘contemplativa’ parauma definição mais operacional e instrumental.”

Finalmente, apesar das múltiplas crises pela quaisestá passando o ensino superior, podemos observar queexistem setores da academia que se encontram insatis-feitos com a antiga “torre de marfim” e estão realizan-do profundas reflexões e intensos debates sobre comoenfrentar os novos desafios tecnológicos e as exigênciasda sociedade para fornecer um ensino que atenda de-mocraticamente às múltiplas demandas da sociedademoderna, em constante mutação. Acreditamos com oti-mismo que através dessas discussões despontará umanova visão da Universidade para o século XXI, ondehaverá simbiose entre ensino de qualidade, pesquisa“revolucionária” e pesquisa “evolucionaria”.

Júlio Pudles é professor titular do Departamento de Pa-rasitologia do ICB-USP, Diretor de Pesquisa aposentadodo CNRS/França. Foi Pesquisador Associado das Uni-versidades: Zürich, Paris, Harvard, Brandeis, Tóquio.

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Nos dias de hoje, em um

grande número de

universidades, observa-se

que em lugar de adotar

como lema a proteção de

todos os conhecimentos e da

ciência, elas preferem

celebrar as suas realizações

como produtoras de

conhecimentos úteis.

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Dum lado, o colchãode dormir, embaixodo braço, o projetoPoesia Viva. Lá iaeu sozinha tentardescobrir num

acampamento os trovadores ecantadores e fomentar um espaçopara a criação do texto poéticoconvertido em oralidade.

Dos dezessete estudantes queiam no ônibus, eu conhecia apenasum “quase profissional”, porque oafastamento de quatro anos para odoutorado na USP retirara-me decirculação na Universidade Fede-ral. Quando eu dizia Poesia Viva, aconversa morria ali. Seguramenteo nome soava, no mínimo, raro. O

certo é que, entre os quatorze pro-jetos enviados pelo MovimentoUniversidade Popular (MUP), omeu ficara entre os sete escolhidospelo Movimento dos Trabalhado-res Rurais Sem-Terra (MST) paraser implementado durante a sema-na de 26 a 30 de janeiro deste ano,no oeste de Santa Catarina.

Mal subiu no ônibus, na Ensea-da do Brito, Geraldo perguntou sejá havíamos preparado algum can-to de chegada no acampamento.Olhei espantada. Com todo o di-namismo daqueles estudantes, oumesmo de nós — os dois professo-res que participávamos daquelaexpedição — realmente não tinhahavido nenhuma discussão sobre o

momento da chegada. Agradeci alembrança e aproveitei para meapresentar a Geraldo — de profis-são pedreiro — e aos cinco novosintegrantes que não eram da Uni-versidade Federal de Santa Catari-na, mas pertenciam ao MUP, mo-vimento que congregava entidadesde bairro da Grande Florianópo-lis. Seu Luís, expert em minhocas,também da Enseada do Brito, ofe-receria uma oficina sobre húmus.

Ao ser elogiado pela idéia deque o grupo de estagiários inventas-se um canto para chegar demons-trando alegria, retruca Geraldo:

— É que sou analfabeto, sabe,mas pensamento quem foi que disseque eu não tenho!

A POESIA VIVA ACAMPA

Alai Garcia Diniz

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Encafifada com essa preocupa-ção de Geraldo, elaborei algumaspalavras de ordem, uma paródiado canto de entrada da cantatapopular chilena “Santa Maria deIquique”, de Luis Advis. Outroslembraram algo mais e lá fomosnós para a experiência inusitada,já nos reconhecendo como um co-letivo que teríamos de caracteri-zar à chegada no acampamento.Foi no ônibus que soube o nomedo acampamento para onde iría-mos: Dissenha, em Abelardo Luz.Êta nominho feio! Só rima pau-perrimamente com senha, achoeu. Fazer o quê?

Em janeiro de 1997, os estu-dantes já haviam feito a experiên-cia de vivenciar um assentamentoe foram adotados um a um por fa-mílias de assentados para colherpepinos e dialogar sobre a expe-riência do movimento... Isso melembrava as brigadas estudantisque nos anos sessenta e setentatambém iam à Cuba cortar cana ebeber a garapa do socialismo re-cém-instalado. Tudo na clandesti-nidade, é claro!

Depois de dez horas de via-gem, surge a primeira indicaçãode que nosso destino estava próxi-mo: a entrada do município deAbelardo Luz. A partir daí tería-mos de afinar a visão porque noquilômetro 14 da rodovia que se-gue para Palmas, o ponto referen-cial na mata era só o estandartevermelho do MST.

Embora os olhos buscassem osinal da bandeira à esquerda co-mo nos foi dito, ela acabou surgin-do em meio à mata, à direita. Aidéia de lateralidade nunca deixou

de depender do ponto de vista dequem informa, e por telefone nemsempre os espaços se definem.

A partir da bandeira, um novodesafio começava para quem seacostumara a uma vida urbana. Oônibus nos deixou à beira da es-trada com os colchões de dormir,as mochilas, as doações em roupase alimentos e ainda a tralha dasoficinas de Educação Ambiental,Nutrição, Saúde Pública, Minho-cultura e Poesia Viva.

Chegar até a guarita foi um pu-lo com a ajuda da equipe que fa-zia a segurança do acampamento.Até onde pude perceber, eramseis ou sete homens munidos degarra e músculos.

Dali do asfalto já se avistavamas lonas pretas de uns vinte barra-cos numa encosta cheia de árvoressábias em sua antiguidade, distan-te uns quinhentos metros dali doponto estratégico em que fomosdeixados. A garoa facilitava a des-cida até o centro do acampamentoe houve ajuda de outros acampa-dos com a carga. Descíamos em-balados, cantando a paródia ouimprovisando a palavra de ordem:

— Qual é a senha que o sonhoagrupa?

— Dissenha! Dissenha!Por aqui vinham nos encontrar

uns olhinhos na entrada das bar-racas que, em geral, não tinham oluxo das janelas e por ali umamão tímida respondia ao aceno.E eu já eufórica não berrravamais na Avenida Ipiranga, de en-contro aos cavalos em 1968... ouna Paulista da década de oitenta,nas greves da Apeoesp que aindaconseguiam reivindicar um salá-

rio digno aos professores da redepública... Aos solavancos e meio“Soroco” (personagem do conto“Soroco, sua mãe e sua filha”, deJoão Guimarães Rosa), a genteberrava era ali mesmo no meiodo morro, dos pedregulhos e daterra vermelha.

Já num barraco de reuniões,cuja única mobília eram os bancosem fileiras que contornavam as la-terais, Neri, um dos líderes deolhos verdes e espáduas largascompondo suas raízes na imagemde imigrante italiano, nos deu asboas-vindas, aproveitando para re-tificar a nomenclatura de nossocanto de chegada. “Dissenha” erao sobrenome da família de latifun-diários que possuíam aquelas ter-ras e delas só extraíam as madeirasde lei. Com a ocupação em 8 dejunho de 1997, o MST renomeou aárea de “Oziel Alves Pereira”, emhomenagem ao jovem de 17 anos,morto sob tortura em Carajás.

Neri também nos informou so-bre os meandros institucionais emque se debateu a desapropriaçãoda área que ainda não se efetivarae a proposta que o MST fazia aoIncra de “coletivão”, em que os as-sentados se propunham a trabalharem um projeto auto-sustentável deprodução com a preservação damata. Ali só ficariam duzentas fa-mílias, sem a divisão tradicional delotes. Com vistas a um mercadocomplexo, como o da agriculturabrasileira, a organização em agro-vila objetivava contrapor-se à limi-tação do pequeno agricultor que,às vezes, era obrigado a abandonara terra devido a uma política ruralque beneficiava o grande produtor.

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Veio a calhar o pequeno histó-rico da ocupação da área com asagruras do inverno e do estado dedesnutrição das crianças do acam-pamento. Havia até pouco tempoinvestidas noturnas dos pistoleirose num domingo se aproveitaramaté do momento de descontraçãoem que se improvisava um vanei-rão para dar início a um acirradotiroteio. Por isso este tipo de di-versão tinha sido abolido tempo-rariamente... até nós chegarmos...porque no dia 25 de janeiro aplai-namos a “ágora” com um arrasta-pé catarina.

Ainda na manhã do sábado, de-cidiu-se sobre a alimentação dosestagiários, em grupos de três, pornúcleo de famílias. Esta forma or-

ganizativa do acampamento tornavivo o agrupamento por vizinhança,centralizando assim desde tarefasprimárias como as equipes de segu-rança que se revezam na guarita deseis a oito horas ou no pernoite(cinco horas por grupo), à distribui-ção de alimentos, como a questãodo banheiro único (patentes comfossas abertas) a cada dez famílias.

Ao todo eram dezenove nú-cleos e as reuniões dos lídereseram diárias e só os informes maisgerais (espécie de “Hora Nacio-nal”) eram chamados à “assem-bléia” — praça do acampamentocom o toque da ponta do machadona lâmina do arado. Béim! Béim!

Daí vem a brincadeira de PaulaSalvattori, 4 anos, vizinha do nosso

barraco (o das mulheres) que viviasubindo num tronco deitado e gri-tava: “Assembléia”, com o braço noalto, discursando algo que essa sur-dez típica de adulto não conseguiacaptar. Decerto ela pediria para to-das as crianças do acampamento fi-carem de olho naquelas rugas (ta-turanas) grudadas nas árvore quesó de relar, algumas horas depois, opiá começava a pôr sangue pelo na-riz, ouvidos e boca até morrer. Tal-vez Paula pedisse uma casa que ti-vesse telhado, porque a lona furalogo e empoça a água da chuva ecai sem dó nas tarimbas, no corpo aqualquer hora, sem aviso...

A chuva num acampamentotem o dom de mudar a programa-ção. O planejamento indicava que

TTeerrrraa ee sseerrttããooSou sem-terra, sou pequeno produtor rural.Sou daqueles que pra passar o tempo cantae sei que se os da roça não plantaros da cidade não hão de jantar.Sou daqueles que faz roça grandepelos matos que se expandemneste Brasil sem fim.Sou sem-terra, sou lutadorpor reforma agrária.Sou daqueles que trabalhapara uma terra conquistar,mas tenho fé em Jesus Cristoque com meu esforço e sacrifícioum dia ele há de me dar.Sou sem-terrasou pequeno roceiroque trabalhao dia inteiropra ter o que comer.Mas tenho certezade que até não sairreforma agráriaVou lutar até morrer.PPaauulloo CCééssaarr ddaa CCoossttaa,, 1133 aannooss..

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todos os recém-chegados ajuda-riam na cobertura e arranjo dosbarracos para abrigo de tanta gen-te. A equipe de trabalho dosacampados eram uns dez homens,mas, por causa das chuvas, não ti-nham ido ao mato recolher as ta-quaras para as tarimbas.

Confesso que tentei ser útil nacobertura dos barracos, nas tarim-bas — parte mais alta dentro dobarraco, coberto de taquaras emforma de estrado para os colchões.As esteiras serviam para ajudar nosfechamentos laterais e para o te-lhado e a concepção do trançado.Era, sem sombra de dúvida, heran-ça indígena: Xokleng ou guarani?

Sob a chuva que dava para mo-lhar, foram cobertos quatro barra-cos para alojar uns trinta estagiá-rios que iam chegando dos assen-tamentos. Hora de comer, comer!E o almoço na casa de Paulo Wal-lendorf Moura e sua irmã Mariaconstou de charque, arroz, feijão,macarrão e muita prosa.

O pai tinha umas terras nunsmorros mas não chegava para osoito filhos e a dívida com o bancoinviabilizara o futuro do clã.Eram filhos de pequenos proprie-tários e entre um chimarrão e ou-tro mostravam-se dispostos a ocu-par outra terra improdutiva, por-que ali seria um projeto diferente— “o coletivão”.

— “A gente tá lutando para to-car uns lotes entre três irmãos. Aquino Oziel a idéia é trabalhar tudojunto. Capaz que dá certo!”

Em geral, nos núcleos, há genteque sai do acampamento pra debu-lhar milho ou outras empreitadasque é obrigada a fazer pra ganhar

algum sustento. As crianças meno-res têm leite e sopa na creche e osadultos recebem farinha de trigo,de mandioca, arroz e feijão e ma-carrão do MST. Mas a banha, a ve-la, o açúcar, o sabão, o pão ficampor conta de cada família. A plan-tação de milho rodeava os barracosna parte sul até a sanga.

Embora o Movimento Univer-sidade Popular tenha levado víve-res e doações e até dinheiro, comoparte do projeto, as famílias aindanão tinham recebido nada nos pri-meiros dias. Por isso, eu me sentiaum peso a mais naquele mundo decarências e pensei em minorar issoatravés de uma atitude individual.Como há um armazém central doMST, que vende desde pilhas atédoces, fui até lá e comprei ovos,café e açúcar para contribuir. Ou-tros também tiveram esta idéia,mas na reunião dos estagiários dodia 25 houve crítica por parte dacúpula e da direção do acampa-mento por estas ações isoladas.

Um mundo regido pela organi-zação exibia outras leis saudáveiscomo a da lei seca, que, para quemjá teve contato com o estilo anglo-saxão, não agride tanto. No acam-pamento não entrava bebida alcoó-lica. Quem quisesse tomar umas eoutras teria de sair e voltar sóbrioporque na terceira autuação era li-teralmente expulso do Oziel. Estemétodo passou a existir por precau-ção a partir de uma problema con-creto e servia para evitar a margi-nalidade no interior do movimento.

Para a moçada, a mais difícil dasregras estabelecidas não parecia alei seca, salvo raríssimas exceções(um casal jovem que, impedidos de

ocupar a mesma tarimba à noite ede fumar uns “baseados”, acaboudesistindo no meio da jornada emassentamento). A que mais doeuna vida de quem já passou noitesinteiras, na boêmia da escritura deuma tese, realmente foi o toque derecolher e de se calar às dez horasda noite. Esta foi braba!

Sem luz elétrica, os violões e asvozes rompiam a barreira do som,mas, impreterivelmente, alguémanunciava a hora do silêncio e amoçada que aproveitava o campobucólico, sob a luz das estrelas maltinha a chance de namorar. Umadas noites, após o toque de reco-lher, houve um grupo que pediu li-cença à equipe de segurança paraestudar as galáxias ou, parnasiana-mente falando, “ouvir estrelas”.Eles permitiram, desde que se ou-vissem as estrelas sussurrando.

O pior é que rolou um papo so-bre a seqüência desse grupo inter-disciplinar na Universidade Fede-ral de Santa Catarina que se arro-dilhou na sociologia da cultura enão houve meio de engatar os dis-cursos díspares sobre o ser huma-no corrompido pela sociedade ouintrinsecamente impuro que de-sandaria qualquer tentativa de so-nho comunitário que ali nas nossasfuças se tentava... Sem resolver es-te enigma de séculos de reflexão,eu resolvi aceitar o toque de reco-lher, com um certo atraso masconsciente de que, se na tarimbaeu não encontrasse a solução, pelomenos eu teria a tarimba de nãocomprometer minha ficha corridade estagiária, perturbando o silên-cio alheio com elucubrações.

Os banhos podiam ser com bal-

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des nos banheiros dos núcleos on-de fazíamos a alimentação. Paramim balde d’água na cabeça, lá vaiMaria, não era problema, o difícilera restringir-me ao banheiro car-regado de varejeiras. Impensável!

Optei pelas zonas de lavagemde roupa onde havia cochos outanques que vinham das nascentespor mangueiras. Ao ar livre o ba-nho tinha que ser de maiô ou bi-quíni. Quando o dia estava maisquente havia a opção das cachoei-ras, um pouco mais distantes eaonde preferíamos ir em grupos.Nenhuma fantasia canhota pode-ria imaginar um balanço didáticoda oficina de Poesia no regaço deuma cachoeira geladinha. Pois te-ve disso, sim, lá no Oziel!

Logo no primeiro dia descobrique a vizinha, D. Maria Salvattori,conseguia cozinhar cuca no “jipão”— nome dado ao fogão de lenha.Era uma exceção no acampamen-to, eu sei. A maioria dispensava es-te hábito urbano de comer pão.

A partir do domingo, nós, osestagiários, tínhamos café da ma-nhã na creche.

Água quente à disposição parao café solúvel e o leite em pó combolachas. Tudo divino!

Ali pelas nove horas do domin-go, foi tocado o arado e todos seforam para a Assembléia. Alémdos líderes habituais no palanque,estava presente Vilson Fortin, ex-deputado do Partido dos Trabalha-dores, com informes de Brasília eexplicando a necessidade de todosrepetirem as palavras de ordem domovimento, com os olhos prega-dos na bandeira vermelha do altoda árvore. O ato de fé se devia à

presença de uma equipe de filma-gem do diretor Pena Filho que pre-parava um documentário sobre oMST. O olho na bandeira, os fa-cões ao alto, os ancinhos e a ban-deira no olho. No alto os facões e“a luta é pra valer” perdurou porumas vinte vezes num perfeccionis-mo que exasperava quem não esta-va habituado a estúdios de TV.

Às dez, naquele domingo devéspera, eu teria reunião com os es-tudantes interessados em ser moni-tores de minha oficina Poesia Viva.Apareceram cinco estagiários: Gus-tavo, do Jornalismo, grudado nanamorada de corpo bronzeado eum olho de madeira: seu violão.Renata, aluna de História, empol-gada por teatro e viva no trato comos piás. Heitor, professor de Geo-grafia, que, por falta de meios detransporte não poderia trabalharem Calmon numa pesquisa sobreos assentados e, por ser meio poe-ta, preferiu ver o que dava com aminha oficina. Beto, aluno de Eco-nomia, fotógrafo nada desprovidode estilo, entrou para tirar umas fo-

tos e acabou virando parte inte-grante. Finalmente, Luzia, aluna deEducação Artística, que se dividiaentre a minha oficina e o estudodas minhocas, mas acabou dandosua contribuição no encaminha-mento dos trabalhos.

Nesse dia expliquei-lhes meuprojeto e conjuntamente fomosmontando as aulas dia a dia. Aospoucos a equipe foi se firmando empapéis definidos e coube ao Heitora responsabilidade pelas anotaçõese organização geral das aulas; à Re-nata, os exercícios de mímica e voz.Luzia se ocupou do relaxamento eexpressão corporal. Beto, da coor-denação de grupos menores, dasfotos e filmagem, e Gustavo se en-carregou da sonoplastia que criavao encantamento para o ato de falarum poema ou de motivar a platéiapara ouvir com atenção. A mim ca-biam a seqüência dos trabalhos, oritmo e as propostas ligadas à pala-vra propriamente dita.

Assim como o acampamentoOziel desejou a oficina de PoesiaViva, relegou-a à andança. A ofici-

Primeiro de Janeiropela madrugadaeu me pus a caminharpras bandas da esperançae fui acampar.DD.. EEffeelliicciiddaaddee,, 4422 aannooss

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na da palavra precisava andar pa-ra se instalar. No MST, a poesiavirou um misto de caminhada,ocupação, anarquia, circo e ani-mação. Há muito sinto a poesiacomo uma necessidade corporal,mas com o MST fui senti-la nospés. E me lembrei da teoria lor-quiana do “duende”.

Federico García Lorca, poeta edramaturgo andaluz, tinha umateoria para distinguir as grandesdançarinas do flamenco: eram asque sugavam a seiva da terra, seucomponente mais fecundo e o tra-ziam através dos pés. “Ter ou nãoter duende” virou uma forma decaracterizar um momento catárti-co na dança, na voz ou no teatro,na Espanha republicana(1930/1936). Pois é. No último diameu calo não era nas cordas vo-cais mas nos dois lados dos pés. Setive ou não duende, não sei, mascomo andei nessa poesia!

Os sem-teto éramos nós, daoficina de Poesia porque como osespaços centrais do acampamentojá estavam ocupados com Educa-ção, Saúde Pública, Nutrição eEducação Ambiental, não sobroubarraco para a minha oficina.Além disso, como no projeto euincluía os adolescentes de 12 anosem diante, a organização determi-nou que eu trabalharia em outroacampamento — o Primeiro deJaneiro, de recente ocupação.Aceitaram inscrições de criançasde dez anos em diante levando asinscritas do Oziel para lá.

No primeiro dia lá fomos nós,os monitores e 24 crianças a partirde dez anos numa caminhada dequatro quilômetros e meio entre

morros de soja e florestas úmidasde imbuia e canela. Íamos todosalinhados porque as crianças ti-nham de atravessar o asfalto e istodemandava ordem e atenção. Abandeira vermelha era o guia e emgeral eram os meninos que se reve-zavam com os dois adultos na tare-fa de mantê-la no alto tremulando.

A chegada no acampamentofoi um fuzuê. Todos vieram para a“Assembléia” sem o toque do ara-do, só para ver aqueles seres es-tranhos e os do lado de lá da pis-ta. Ao todo, o grupo formado erade quarenta e uma crianças emais o dobro disso espiando oque iria acontecer.

Aula de poesia ao ar livre ecom tantas crianças virou unica-mente jogo. Ficamos das duas àscinco da tarde, só interrompendodevido à iminência da chuva. Aperspectiva de tomar um banhoera menos pior do que ficarmospresos ali sem a nossa imprescin-dível lona preta. Lá fomos nós su-bindo o morro da soja de um lado

e a cerca do outro. Melhor deixarlogo o bosque porque havia re-lâmpagos! Corram crianças!

Ah! Esqueci de dizer que eunão pernoitava no Primeiro de Ja-neiro, porque como ele havia sidoocupado no “reveillon”, os pistolei-ros ainda gostavam de pipocar suasarmas à noite a torto e a direito. Averdade é que meu tempo de he-roína já havia ficado bem para tráse entre a épica e a lírica, fazia tem-po que optara pela segunda.

O fato é que no dia 26 nos ba-nhamos nas águas das palavrasque caíam do céu em forma líqui-da... Andréia, de onze anos, tremiatanto que, além da bolsa e da pas-ta, resolvi abraçá-la para esquen-tar um pouco aquele corpinho liso.Não sei se o abraço pesou, ou a ca-minhada aguada, eu não sei, o cer-to é que, embora inteira, Andréianão voltou mais à oficina de Poe-sia. Em meio a uma perda, o gru-po foi crescendo em tamanho.

No dia 27, decidimos que asequipes dos dois acampamentos

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Nós se organizamosOcupamos terraNem que não encontremmotivoNós seguimosOcupando terraEnquanto háLatifúndioImprodutivoZZiillttoo,, 1122 aannooss

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iriam se encontrar num bosque aolado de um campo de futebol, per-to do asfalto, quase no meio docaminho. Escolhemos a área e aocupamos. Ali, para dissolver aidéia simplista de um antagonis-mo entre proprietários e sem-ter-ra, o grupo da oficina (que nãoera menor do que cinqüenta pes-soas, entre adultos e crianças) re-cebia refrigerante de graça, numbar ali próximo, pago por um me-cenas, dono de uma granja ao la-do do acampamento Oziel. Numdos dias ele também pagou um ri-soto para todos, com salada de to-mate, coisa que raramente ascrianças tinham no acampamento.

Na oficina renderam os exercí-cios de expressão corporal, os jo-gos de memória (palavra-puxa-pa-lavra), os instrumentos musicaisinventados pelos piás. O melhorfoi descobrir o “berrante” da abó-bora, planta que abundava noOziel. O som era intenso e efême-ro. Assim como a flor murcha forada raiz, o caule também murchavae bem na hora de testá-lo para o“Passa boi/passa boiada” do poe-ma de Manuel Bandeira, desco-brimos mais esta. “Berrante” deabóbora tem um defeito, murcha!

No terceiro encontro, do dia28, eu havia dado a tarefa de criarpoemas a partir de consoantes re-petidas como “p”, “m” ou “s”,tentando trabalhar a idéia de so-noridade que não se limitaria à ri-ma mas também levaria em contaa aliteração.

A maioria levou sua trova. Umdeles. Dilceu Schmidt, com a aju-da do pai, escultor de aves e san-tos, criou uma paródia ecológica

com a música de “Asa Branca”.Algumas delas falavam da vida de“acampadinho”. Professavam, emgeral, a fé na luta. Poucos vieramcom as trovinhas populares “láatrás daquele morro...” Mas gos-taram de ouvir a própria voz. Fa-zíamos eco, orações e as palavrasse repetiam pelo prazer da orali-dade. O templo era a poesia (ou oque para eles era essa arte).

Houve poucas imposições. Aidéia era deixá-los livres para criarseu mundo e sua estética, já que amídia ali chegava tão pouco.Aquele sonho do acampamento eda Poesia me levou a um outro so-nho, o de Cuba, uma ilha agoraem ruínas pelo bloqueio, mas coa-lhada de poetas pelos quatro can-tos daquele terreno em forma de“jacaré”. Inevitavelmente, o dese-jo cria poesia quando ultrapassa olimite biológico.

Nos dois últimos dias, trabalha-mos os poemas nos painéis em pa-pel pardo ou cartolina com dese-nhos das crianças e, munidos des-ses materiais visuais, fizemos apre-sentações nos dois acampamentos.No dia 29 foi tocado o arado, pela

primeira vez para chamar osacampados para um ato poético.Nos palanques, estendemos o pa-no colorido de vinte metros comburacos para o encaixe das cabeci-nhas no momento em que cadaum (criança ou adulto) fosse falarseu poema. Os pais se emociona-ram como em qualquer escolinhaurbana de classe média. Algunspoemas eram originais, outros re-ceberam ajuda de algum pai “meiopoeta enrustido”, segundo os piásmesmo confessaram. Outros pre-feriram decorar texto apresentadona oficina, mas o importante foi omomento de comunhão coletivaem que se reconheciam adultos ecrianças num espaço lírico.

Há algo de novo no projeto?Só a andança do mundo urbanopara o rural, de criação de um lai-vo de arte na vida precária dosque vivem à espera da terra, daampliação do leque de possibilida-des que a Universidade que sepermite também acampar fora docampus oferece.

Alai Garcia Diniz é professora ad-junta do Departamento de Linguase Literaturas Estrangeiras/ UFSC

O MST vem lutando por terraspara ajudar dos sem-terraa ter um pedaço de chãopara ter a sua casae sua terra pra plantar.EEddeenniillççoo FFeelliixx CCoollppoo,, 1122 aannooss

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Professor de Filosofia Contemporânea na USP, Paulo Eduardo Arantes avalia como catastrófica apossibilidade de Fernando Henrique Cardoso – a quem se refere como professor Cardoso –

permanecer mais quatro anos na presidência da República. Porém, acredita na reeleição de FHCem conseqüência da desarticulação da esquerda e da eficiente implantação de um processo de

chantagem social, que faz com que a população se sinta ameaçada com a possibilidade da volta dainflação. Para o filósofo Paulo Arantes, tem-se a impressão de que não existem mais diferenças

entre esquerda e direita porque a economia se transformou em algo autônomo em relação àsociedade. Ele critica também o Partido dos Trabalhadores e afirma que a legenda está interessadaapenas em ganhar eleições e eleger deputados. No âmbito da universidade, Paulo Arantes critica osgrupos que se apoderam da chancela ‘USP’ para vender serviços e cursos. “Aqui é uma universidade

de país pobre, indiano, a gente tem de dar cursos de graduação e pós. Não temos uma missão deinterferência na política de formar grandes diplomatas”, afirma Paulo Arantes.

Entrev is ta

Paulo Eduardo Arantespor Marcos Cripa e Adilson O. Citelli

A REALIDADE CONTEMPORÂNEA É ECONOMICISTAFotos: Daniel Garcia

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Adusp - Faz sentido discutiratualmente direita e esquerda?

Paulo Arantes - Vou começarfazendo uma brincadeira quanto aessa distinção supostamente sepul-tada, enterrada, entre direita e es-querda. Eu não queria falar desseindivíduo, mas o próprio professorCardoso (Fernando Henrique Car-doso), nosso presidente da Repú-blica, volta e meia dá entrevista pa-ra dizer que ele é de esquerda. Diz:“A esquerda não é a esquerda, eu éque sou de esquerda”, veja só! En-tão, mesmo do ponto de vista se-mântico, histórico, esse vocabulá-rio que está correndo por aí aindaserve para discriminar mesmo, in-clusive contra a esquerda feita pelopróprio presidente quando diz:“Eu sou de esquerda e você...”, “Aesquerda é conservadora, é atrasada,não é de esquerda”. Esquerda estásignificando, nessa linguagem ofi-cial, progressiva. Esse progressis-mo se coloca a favor das forçasprodutivas mundiais, desencadean-do de maneira fantástica a revolu-ção microeletrônica e assim pordiante. Então, esquerda começa avirar sinônimo de determinismotecnológico, de terceira revoluçãoindustrial. Isso é confusionismo dopresidente. Não de caso pensado,porque acho que é espontâneo, eacredito que, sinceramente, ele seconsidera de esquerda. Então, con-tinua havendo essa distinção e nocaso dele, no caso desse novo esta-blishment, está operando aquelacoalizão conservadora que é o no-vo regime. Todos eles, quase semexceção, vieram da esquerda e con-tinuam raciocinando em termos deesquerda. Portanto, acho que há

uma grande insensatez e uma faltade clarividência total nessa histó-ria. Ele (FHC) não é neoliberal.Neoliberal é o Roberto Campos,que sempre foi liberal mas em mo-mentos históricos estratégicos dei-xou de ser liberal e foi desenvolvi-mentista. Eles são muito pragmáti-cos e flexíveis em questão ideológi-ca. No caso, ele (FHC) não é neo-liberal. Ele raciocina em termos dedesenvolvimento, de classes so-ciais, de economia, e assim pordiante. É toda a forma mental danossa tradição progressista.

Adusp - Defina essa nova es-querda.

Paulo Arantes - O presidentediz que é de esquerda, é a favordo progresso, da fabricação de au-tomóveis, de microcomputadorese assim por diante. Ser de esquer-da é isso; num certo sentido, paraesse novo pensamento estabeleci-do e quase que oficial de estarprestando um serviço extraordiná-rio. Para a nossa direita conven-cional, isso caiu do céu. Ser de es-querda significa ser a favor daqui-lo que existe de progressista nosentido histórico do termo do ca-pitalismo novo contra o capitalis-mo velho. Então, as grandes cen-trais sindicais, todos os movimen-tos populares fazem parte do capi-talismo velho e quem é de esquer-da deve estar do lado do capitalis-mo novo, como Marx n’O Mani-festo. É claro que estou brincando.Isso tudo se trata de uma comédiaideológica. Fora dessa comédia, épreciso perguntar: por que se temessa impressão de que não existemais diferença entre esquerda e

direita? Porque a economia setransformou em algo autônomoem relação à sociedade e essa“autonomização” do econômicofaz com que o tema seja tratadocomo se fosse uma segunda natu-reza. Não se pode governar e, por-tanto, tem que se ajustar. E todomundo, diante disso, se ajusta demaneira igual porque ela é sobe-rana, ela é irregulável, ela é umaforça cega que se tornou indepen-dente da regulação política, docontrole social. Do ponto de vistaideológico, das convicções de va-lores, de justiça, de igualdade, deliberdade, todo esse palavrórioque teve substância, agora já nãotem mais. Independentementedisso, se você chegar lá, vai fazer amesma coisa, senão os mercadosfinanceiros internacionais sancio-nam qualquer desvio e você estámorto. Portanto, é uma questãode sobrevivência, dada essa “auto-nomização” das forças econômi-cas que se desencadearam de ma-neira endoidecida, ensandecida.Baseada nesta independentizaçãodo econômico, todo mundo estáno mesmo barco e não tem muitaalternativa a não ser se ajustar ese adaptar. Tem-se a impressão deque os outros fazem a mesma polí-tica do Balladier, de um Chirac, eo Schroeder vai fazer a mesma doKohl, e o Blair vai fazer a mesmada Margareth Thatcher, o Clinton,a mesma do Bush, e quem vier de-pois de FHC vai fazer a mesmacoisa. Se for o Lula, ou mesmo umoutro, o Ciro (Ciro Gomes) porexemplo, vai fazer a mesma coisa.Estamos diante de um bicho quese chama economia, mercado in-

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ternacional, economia mundializa-da. E diante do qual pouco resta afazer, a não ser se adaptar. E todomundo se confunde.

Adusp - A quem interessa essaconfusão? Quem se beneficia?

Paulo Arantes - Qualquer ar-ranjo no capitalismo internacio-nal beneficia sobretudo quem es-tá lá em cima e, dependendo dotipo de arranjo a turma de baixosobe um pouco. Sempre foi assim.Mas acho que tem de ter um pro-cesso objetivo que é essa, diga-mos, “autonomização” do econô-mico contra a sociedade, e queViviane Forrester chama de Hor-ror Econômico. Isso é um dadoobjetivo, não é uma invenção. Ocapital é isso, é um processo de-vastador que perdeu as suas vir-

tualidades civilizatórias — se éque as teve alguma vez —, etransforma-se num processo con-tínuo de destruição social ao mes-mo tempo em que acumula rique-za. É esse o panorama: somos es-magados e regulados por esseprocesso, sendo a vida por elepautado. Tem-se a impressão deque outras alternativas como pro-jeto de sociedade capitularam, fo-ram sepultadas, caducaram, setornaram obsoletas. Mas não im-porta, não obstante isso tudo,existe uma confusão ideológicaentre esquerda e direita e que, nomeio de campo, acaba benefician-do aqueles que sem saber muito oporquê, simplesmente se adap-tando, se beneficiam desse pro-cesso aparentemente regular, masque, na verdade, é irregular.

Adusp - Qual, então, é a agen-da da direita?

Paulo Arantes - Estabilidademonetária, abertura comercial edesregulamentação dos mercados.Isso permite ganhar eleição e, éclaro, competitividade da econo-mia nacional e redução do “CustoBrasil”, que é um custo social. En-tão você tem essa agenda que todomundo reconhece que é da classedominante. Só que a classe domi-nante está subordinando o supostointeresse dos cidadãos da Repúbli-ca à meta da estabilidade monetá-ria. Dizem eles: “Você aí com a suareivindicação salarial, com essa ma-nia de seguridade social, está preju-dicando o valor agregado daquiloque transita pelo Brasil. Então cortaum pouquinho em nome da compe-titividade, que é um desiderato na-

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O dicionário escrito porPaulo Arantes reúne umasérie de frases e declaraçõesde políticos, jornalistas, in-telectuais, banqueiros. Pos-tas numa cifra irônica as de-clarações entram num jogodialogal e permitem pensarcriticamente seqüências davida cultural, intelectual epolítica do país.

Filósofo - Antes de tudo,um Funcionário da Huma-nidade (v. Funcionário).Definição atribuída a Ed-mund Husserl pelo renoma-do pedagogo Dr. AristarcoArgolo de Ramos. O corpo-

rativista Platão achava quefilosofia era uma carreira deEstado (v. Bresser).

Era Vargas - Modelo deprodução asiático. Vigoroumeio século no Brasil. Como início da Era FHC, o paíspôde enfim retomar o pro-cesso de ocidentalização in-terrompido em 1930.

Danças - 1) “Muitos se-tores vão dançar, outrosnão” (FHC. Entrevista,Mais!, 13/10/96); “Quempode, pode; quem não po-de desaparece” (FHC, aoreceber o título de DoutorHonoris Causa pela Uni-

versidade de Tübigen,RFA, fev/97); “Quem foique disse que eu não vivosatisfeito? EU DANÇO!”(Mário de Andrade. Re-mate de males).

Janela de oportunida-

des - 1) Globalização se-gundo o Gabinete da Pre-sidência da República; 2)Liquidação na rua 25 deMarço.

Intelectuais da pesada -1) Gregários; 2) Quandoreunidos em cooperativa,formam: a) MinistériosÉticos (v. Minet); b) Go-vernos que permitem a

pessoas sérias fazerem coi-sas sérias; c) Grupos de Al-to Nível (GAN) (v. GAN);3) Dotados de excepcional“Empuxe individual” (v.

“Empuxe individual”); 4)Devido à dieta muito gor-da, costumam apresentarproblemas de “fissura e es-capamento” (v. “Fissura e

escapamento”). Exemplos:Primo Carbonari, Serjão,Batatão, Faustão.

Intelectualzinho - Ex-funcionários da Humani-dade. Entrou num Planode Demissão Voluntária(v. Filósofo).

DICIONÁRIO DE BOLSODO ALMANAQUE PHILOSOPHICO ZERO À ESQUERDA

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cional sem o que o país quebra.Com inflação, desorganiza nova-mente a economia brasileira e vocêsserão penalizados”. Trata-se dechantagem. O pensamento de di-reita é esse pensamento que discri-mina a população no sentido dereconhecer, recortar, como um fa-to natural, que dois terços da po-pulação estão se encaminhandopara a insolvência. Ou seja, nãosão mais rentáveis, tornaram-seum peso econômico. Isto é direita.Não se tem notícia em lugar ne-nhum do mundo que “flexibiliza-ção” do mercado de trabalho geraemprego. Se fosse assim, por quefranceses, alemães, italianos, espa-nhóis e ingleses não encontrarama “fórmula mágica” até agora?

Adusp - E a agenda da esquer-da?

Paulo Arantes - A agenda daesquerda deve pensar na reprodu-ção em termos civilizados de umasociedade republicana que tem ci-dadãos com direitos iguais e aomesmo tempo não sejam chanta-geados por esta agenda economi-cista no sentido reducionista queo termo sempre teve no marxis-mo. É exatamente isso, como éque você pode dizer: “Olha, nãoestou nem aí com a sua competiti-vidade, não estou nem aí com a suaestabilidade monetária. Ah, entãovocê deseja a inflação?” Essa van-tagem é fatal. Depois de trintaanos de hiperinflação, as pessoasestão na lona, é um inferno. Tem-se o limite da dor, não se sabemais o momento em que essa ba-lança vai se desequilibrar. A en-crenca da esquerda é essa. É con-

seguir romper esse círculo viciosoda chantagem social em que aprópria vítima acha que ela, aoreivindicar direitos, é desviante doponto de vista racional, está indocontra o progresso científico, con-tra a telemática, contra a informá-tica, contra a moeda sólida e con-tra os mercados que fazem umaalocação racional de recursos.

Adusp - Existem no Brasil par-tidos de esquerda com condiçõesde romper com esta realidade?

Paulo Arantes - Tem um parti-do de esquerda que está interessa-do em ganhar eleições, eleger de-putados. Acontece que depois deum apogeu, não entendeu as ra-zões desse apogeu e quer simples-mente sobreviver, marcar posiçãoe ser hegemônico à esquerda en-quanto máquina capaz de elegerdeputados que, bem ou mal, sevocê compara com a selva parla-mentar brasileira, parecem até de-putados suíços. Civilizados e ra-cionais, mas que se tornaramcompletamente inócuos. Esse par-tido tem de ser passado a limpo.

Adusp - Você se refere ao Parti-do dos Trabalhadores?

Paulo Arantes - Isso. É o únicopartido, o resto não merece o no-me de partido.

Adusp - Ao fazer esse tipo depolítica, o PT serve aos interessesda elite brasileira?

Paulo Arantes - Não que elesirva à elite, aí seria uma absolutainjustiça com o PT. Nunca, jamais,diria que ele serve à elite. Mas averdade é que ganhar a eleição

para a presidência está fora de co-gitação em qualquer circunstân-cia. O apogeu de 89, no qual o Lu-la quase ganhou do Collor, nãovai se repetir. Na verdade, o PTnão tem mais o que propor por-que agora propõe coisas específi-cas. O auge do PT se deu nos dezprimeiros anos de sua fundação.Tinha-se organização popular,apoio e mobilização para algumacoisa. As pessoas tinham a sensa-ção de que a liderança petista en-trando em campo isso aqui pode-ria virar talvez uma democracia.Poderíamos ter salário decente,seguridade social, empregos nãopodres, direitos, enfim, o Brasilpoderia ser um país viável. A inde-finição programática do PT, que aspessoas sabiam dizer que não eraum partido tradicional, tinha no-vos sindicalistas, setores da igreja,intelectuais, jornalistas, etc. Erauma coisa nova que estava surgin-do debaixo da ditadura. Sentia-seum sopro novo na vida nacional eesse sopro passava pelo PT.

Adusp - O PT ainda pode re-construir o partido que disputoua primeira eleição em 1982?

Paulo Arantes - Acho que sim.Ele é um embrião de estrutura pa-ra acontecer alguma coisa se, numcerto momento, é claro, ele voltara essa indefinição e começar amostrar que pode ser diferente dapolítica tradicional. O partido nãopode dizer: “Vou fazer assentamen-to assim ou assado; vou apressar areforma agrária assim ou assado; te-nho um plano de saúde assim ou as-sado; um plano da previdência as-sim ou assado”. Desta forma ele es-

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tá aceitando a chantagem. Ele nãotem de vir a público com um calha-maço de quinhentas páginas pauta-da pelo governo: reforma do Esta-do, estatuto do funcionalismo, Pre-vidência etc. Não vai dar! Dois car-dápios para justamente se adaptarao que está acontecendo.

Adusp - O PT sempre foi acu-sado de não ser propositivo.

Paulo Arantes - No momentoem que ele detalhou o seu proje-to, entrou na vala comum dospolíticos.

Adusp - A reorganização docapital, no nosso caso concreto,está envolvida por uma lógicadiscursiva legalizada intelectual-mente pela mídia e mesmo porsetores das universidades. Seráque o projeto dominante, esseque muita gente chama de “pen-samento único”, ganhou a para-da no território da constituiçãosimbólica?

Paulo Arantes - Vou fazer duasobservações, uma geral e outraparticular sobre o Brasil, inclusiveesta adesão simbólica que eu tam-bém às vezes chamo de ajuste in-telectual. Uma das coisas mais in-teressantes que estão ocorrendono plano mundial é que a mundia-lização tem vários cenários. Paraexplicá-la não vamos discutir se is-so vale A ou B, o que é globaliza-ção, o que é hegemônico ou atransnacionalização produtiva. Onovo é a globalização financeira, eela tem um pólo: é americano. Va-mos ter outro cenário do que estápor trás desse aparente caos e quepossui uma ordem fortemente hi-

erarquizada, assimétrica e nadaconvergente quando se consideraa concentração de poder e din-heiro em alguns pólos privilegia-dos. Portanto, essa bobagem de ci-vilização universal é conto da ca-rochinha. Independentementedesse cenário, voltamos àquelaquestão da aparente e por outrolado efetiva autonomização da

economia. Significa, na linguagemdos nossos clássicos, que a abstra-ção real — e a abstração real matamesmo —, mata de fome as pes-soas: aquela abstração real quevocê está fora do mercado, vocênão passa pelo buraco da agulha.O mercado, tudo aquilo que vocêproduz é nada, então você vaimorrer. Você morre porque existeessa abstração real que é a produ-tividade média.

Adusp - A pessoa morre se sen-tindo culpada.

Paulo Arantes - Morre se sen-tindo culpada, morre com remor-so: “Eu não sou nada”, “Sou inú-til”. Aquele paradigma do traba-

lho ainda é o paradigma da comu-nicação: “Você é anticientífico”, eassim por diante. De modo queexiste essa “autonomização” doeconômico; o capitalismo é isso etende cada vez mais a isso. Só queisto agora é um fenômeno, diga-mos, empiricamente palpável, aspessoas concordam com isso, re-conhecem esse fenômeno, a prio-ridade é isso. Portanto, o funda-mento em primeira, média e últi-ma instância da reprodução da vi-da social em todos os planos éeconômico. Marx disse isso há 150anos; agora é uma banalidade co-tidiana. Portanto, o marxismo crí-tico perdeu o gume porque a rea-lidade tornou-se marxista vulgar.Esse é que é o problema. Quer di-zer, a direita tornou-se “marxistavulgar” e diz que, no frigir dosovos, o que decide é a racionali-dade econômica, a reproduçãomaterial da vida cujas forças pro-dutivas são pujantes, como esta-mos vendo a revolução microele-trônica. Elas estão sendo freadas,barradas por essas relações sociaisde produção retrógradas, basea-das nos termos do “welfare state”.Você diminui a produtividade, vo-cê emperra a revolução tecnológi-ca e diz: “Vocês são supérfluos, sãobudistas”. Então você tem uma ca-ricatura involuntária, uma paródiasatânica, por assim dizer, de maugosto do que foi o marxismo noseu sentido mais elementar, comorevolução. As pessoas não sabiamque a reprodução da vida, em últi-ma instância, era uma reproduçãomaterial e que lá é que se dava oconflito. Portanto, você abria asconsciências através da crítica, vo-

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A direita tornou-se“marxista vulgar” ediz que, no frigir dosovos, o que decide é

a racionalidadeeconômica, a

reprodução materialda vida cujas forças

produtivas sãopujantes.

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cê vai lá que nós vamos resolver aparada, não é espírito, não é civili-zação, não é o progresso, não écaminhar o direito da liberdade,não é nada, é lá. Agora as coisasmudaram. Então você tem um dis-curso, que eu chamo de pensa-mento único, e que os outros cha-mam de neoliberal. Ele é únicoporque engloba tudo. A esquerdasempre pensou assim, veja só, eagora a direita também.

Adusp - O pensamento é únicoporque é imposto?

Paulo Arantes - Ele é justa-mente imposto por essa nova rea-lidade... A realidade se tornoumarxista... A realidade se tornoumaterialista vulgar, a realidadediz: “Eu sou a economia”.

Adusp - A nova revoluçãomundial.

Paulo Arantes - Isso: “Eu sou aeconomia. A história está avançan-do e ela passa sempre com o sacrifí-cio humano, mas depois virá umfuturo radioso”. De modo quequalquer atrocidade, qualquer, di-gamos, bagatela moral, ética ousocial é uma nota de rodapé. Co-mo um verdadeiro bolchevique di-ria na época: “Campo de concen-tração, direitos... olha, o que tempela frente é uma coisa tão enorme,grandiosa, que isso é banalidade”.

Adusp - A idéia da razão cíni-ca desaparece? Não tem mais ocínico?

Paulo Arantes - O cinismo pas-sou a ser segunda natureza, nin-

guém esconde nada. Vamos pegaro Proer como exemplo. Se nós es-tivéssemos no tempo da RainhaVitória, seguramente um socorrodo Banco da Inglaterra a algumascasas bancárias em dificuldade,seria, digamos, justificado. Seriauma medida civilizatória da Rai-nha Vitória para manter o impé-rio inglês coeso, porque estava ci-vilizando o mundo. Agora, noBrasil o sujeito vai à televisão ediz que o Proer é dinheiro públi-co. É claro que é dinheiro públicopara garantir a intermediaçãobancária para que não haja umacrise na intermediação, já que épreciso salvaguardar as contas doscorrentistas. É dinheiro público fi-nanciando banqueiro, e banquei-ro, hoje é gênero de primeira ne-

COLEÇÃO ZERO À ESQUERDA

Em 1997, Paulo Eduardo Arantes esteve envolvido com olançamento da Coleção Zero à Esquerda, da editora Vozes, oca-sião em que publicou o Dicionário de Bolso do Almanaque Phi-losophico Zero à Esquerda (veja trechos na página 36). É parteintegrante deste primeiro pacote da Coleção os livros Os Moe-deiros Falsos, de José Luís Fiori, A ilusão do desenvolvimento,de Giovanni Arrighi, Os últimos combates, de Robert Kurz, ePoder e dinheiro, organizado por Maria da Conceição Tavares eJosé Luís Fiori. “Não se trata apenas de uma coleção, mas deum projeto com o propósito de mostrar que não estamos mor-tos, não somos sectários, não somos baluartistas e vamos reini-ciar de zero, ou de quase zero”, diz Paulo Arantes. Ainda se-gundo ele, a coleção tem o propósito de aglutinar pessoas da“velha guarda” e jovens que estejam começando a pensar demaneira diferente. Neste ano de 98, a Coleção estará lançandomais dois pacotes de livros com o propósito de debater e anali-sar a produção literária, o urbanismo, o teatro, a economia po-lítica da globalização, etc.

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cessidade para a população. Tudobem, eu não quero que o Econô-mico quebre, que o Banco Nacio-nal quebre e assim por diante. Etodo mundo explica isso. Então,não há o menor pudor, não temmais o decoro. Um ministro vito-riano jamais falaria isso.

Adusp - Além de oposição, fal-tam quadros técnicos para en-frentar esta situação?

Paulo Arantes - Queimaramos quadros técnicos para operar ocapitalismo no Brasil, operar não,dirigir, dominar é outra coisa.Então você tem essa nova ano-malia, uma aberração, mas é umasingularidade histórica que mere-ce ser estudada do ponto de vistasociológico, antropológico e ideo-lógico que não existe no mundo.Enfim, capricharam, digamos es-tilizaram, à enésima potência obarbarismo operado por quadrosde esquerda de sólida formação,inclusive com passagem pelomarxismo. Não que eles sejamvenais, possivelmente não são,mas quando descobrem, estão en-terrados até o pescoço porque dearrego em arrego se chega lá umdia. Nenhum deles tem intençãode enriquecimento ilícito, nem oprofessor Cardoso. O professorCardoso só quer uma coisa: en-trar para a história como segundoVargas. Aí faz qualquer negócio.

Adusp - No simbólico?Paulo Arantes - No terreno

simbólico, evidentemente. Entãoexistem estes novos quadros téc-nicos que substituem os quadrosclássicos. Eles não são neoliberais

porque não nasceram neoliberais,não dá para ser da noite para odia ainda que estejam aplicando,gerindo e administrando umaagenda que não tem nada de no-vo, e que está sendo aplicada por60 ou 70 países no mundo inteiro.Se você der uma de marxista oude sociólogo progressista, como oprofessor Cardoso, ele lhe dáuma aula porque você não estádizendo nada que ele não saiba,esse é o problema. Você não podefazer uma análise marxista arrasa-dora do governo FHC. Ele diz:“Já conheço, está chovendo no mo-lhado e pense bem se essa análisemarxista arrasadora não é o que euestou fazendo”.

Adusp - Qual a sua opinião so-bre os intelectuais que estão nogoverno Fernando Henrique?

Paulo Arantes - Diria que tema turma que pertence ao reino mi-neral: não pensa, é burocrata, es-creve abobrinhas no jornal, e querepete como realejo; e tem os bemintencionados que acham que va-mos reformar o Estado brasileiro.E mais, acham que não será umEstado mínimo. Acontece queeles não estão conseguindo fazer;o capitalismo não deixa mais, é es-se o problema. Mas eles são, nessesentido, bem-intencionados, sóque inteiramente equivocados eestão emburrecendo, ajustando-se. Mas o que pensam eles? Temum novo surto de desenvolvimen-to que não tínhamos no sentidoantigo. Portanto, temos de ter umEstado empreendedor, ágil e forteque seja um Estado neomercanti-lista, como são os grandes estados

dos países centrais, e que simples-mente sirva, digamos, de caixeiro-viajante, que venda o Brasil. En-tão o Brasil é uma empresa. Vocêimagine o intelectual pensando asociedade brasileira sendo ajusta-da e se transformando numa gran-de empresa... Não dá mais parachamar de intelectual. Enfim,lembra um pouquinho, digamos,os nossos déspotas soviéticos fa-zendo industrialização privada naUnião Soviética, colonizando opróprio povo, escravizando o pró-prio povo para chegar lá, e racio-cinaram já como um gerente ter-rorista de uma grande empresachamada União Soviética, que ti-nha um grande patrão que de vezem quando decepava cabeças. Noimaginário deles é isso que estãofazendo e é o dever de todos nós.“O quê que vocês querem, meus ca-ros? Que eu passe para o lado dopovão, que seja do lado do atraso evá apostar nos setores que não têmchance histórica?”

Adusp - Criar direito social...Paulo Arantes - Não, não, não.

Eles dizem o que o professor Car-doso diz a toda hora nas entrevis-tas e tem outra vantagem: nãoprecisa mentir. Em sociedades co-loniais você não precisa mentir,você pode dizer. Então ele dizcom todas as letras: “Um terço doscidadãos brasileiros vai ficar de fo-ra”. Se um presidente francêsdisser isso, ele será “impichado”no dia seguinte com revoltas po-pulares. Não pode dizer. Um ale-mão não pode dizer: “Sinto muito,mas alguns cidadãos alemães — oufranceses — estão fora do barco.

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São cidadãos de segunda categoria,viverão da caridade pública, assis-tência social.” Não pode dizer is-so; embora esteja acontecendo,não pode dizer. Aqui pode por-que sempre tem uma chance deque uma pequena fatia desses ex-tranumerários tenha algumachance de se incluir e isso é outrasuposição dele: o capitalismo nãoé um modo de produção, é umsistema de geração de empregos.Então, na visão deles, é bom àGM e à Renault instalarem fábri-cas para gerar empregos. Nãogera empreo, mas corre-se atrásda miragem.

Adusp - Vamos agora falar dauniversidade. A USP vem cum-prindo o seu papel?

Paulo Arantes - Se a função épreparar profissionais competen-tes, num certo sentido, a USP,por enquanto, é uma escola res-peitável. Não dá para imaginar oestado de São Paulo ou o Brasilsem a USP. Agora, não é possívelvulcanizar a universidade e dizerpara cada um: “Vai procurar asua própria linha de financia-mento”. Aí começam as aberra-ções, cursos financiados com ins-crição a mil dólares.

Adusp - Mas isso já é uma prá-tica em vários institutos.

Paulo Arantes - Isso é o fim,não é mais universidade, acabou.As pessoas deveriam, então, mon-tar os seus centros privados depesquisa, como se faz nos EstadosUnidos. Deveriam ir atrás do mer-cado vendendo seus serviços, masnão com a chancela “USP”. A

USP é patrimônio acumulado,duas gerações de trabalho intelec-tual coletivo e socializado. Estãose beneficiando disso. É tambémo que vem ocorrendo na escolaprivada, que pega um professorcom trinta anos na USP. Ele foiformado e pago pelo Estado e vaipara os “Objetivos” da vida ga-nhando vinte mil reais. As univer-sidades privadas podem pagar até

mais porque para ela o profissio-nal sai de graça, já que aqueleprofessor não foi formado por ela.É de graça! Atrai gente! Se é as-sim, sai da USP, abre um escritó-rio na avenida Paulista, põe placana porta e anuncia na Gazeta Mer-cantil: “Vendemos curso de políticainternacional, 1.000 dólares a ins-crição”. Claro que não vão fazerisso. A partilha é feita inter-namente. Claro que eles não vãolargar nunca esse osso. Mas é pre-ciso propor: “Aqui é uma universi-dade de país pobre, indiano, a gen-te tem de dar cursos de graduação epós. Não temos uma missão de in-terferência na política de formargrandes diplomatas, grandes pano-ramas de política internacional”.

Adusp - Se essa atitude não forproposta pelo reitor, como é que acomunidade deve resistir? Existeum caminho?

Paulo Arantes - Não sei, talvezos órgãos colegiados, por ondepassam esses canais, pudessem fa-zer algo. É claro que para implan-tar um curso de mil dólares deinscrição essa decisão deve passarpor algum órgão colegiado, já quenão está na clandestinidade e nãoé um setor informal. Então al-guém tem de vetar.

Adusp - Como formar cidadãosdiante desta realidade?

Paulo Arantes - Primeiro te-mos de descobrir em que socieda-de estamos. Não temos mais agrande sociologia do Brasil que sefez nos anos 60 e 70, aquela gera-ção não é só do Florestan, mas emtorno do Florestan, em torno de

FHC diz: “Um terço doscidadãos brasileiros vaificar de fora”. Se um

presidente francês disserisso, ele será “impichado”

no dia seguinte comrevoltas populares. Umalemão não pode dizer:

“Sinto muito mas algunscidadãos alemães estão

fora do barco. Sãocidadãos de segundacategoria, viverão da

caridade pública,assistência social.”

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toda a escola sociológica da qualsaiu o novo establishment. Não co-nhecemos mais o Brasil direito ecomo as classes se relacionam. Ogoverno vai no fácil, que é a apos-ta nas tendências regressivas, queé o consumo imediato da deman-da reprimida a ponto de, porexemplo, reprimir os representan-tes do velho capitalismo — veja aúltima greve dos petroleiros. Cla-ro que a receita é internacional; aThatcher fez assim com os minei-ros, o Reagan fez assim com oscontroladores. Quebra-se a espi-nha dorsal das grandes centraissindicais e acabou. Então é umaquestão de vida ou morte. O go-verno sabe que o planeta, do pon-to de vista social, deu uma guina-da para a direita. Há uma espéciede aspiração mundial ao capitalis-mo como facilidade de consumo.Portanto, a nossa função é mos-trar como é execrável essa socie-dade à qual todos aspiram, inclu-sive esquerda e direita, num certosentido. Então, portanto, temosde começar a estudar qual é a di-nâmica nova disso. O governo sa-be que a sociedade é regressiva enós temos de saber também. Nãopodemos ter grandes planos mira-bolantes progressistas e, digamos,esclarecer a população de manei-ra geral e partir para o confrontoem nome do progresso que vemda regressão social.

Adusp - O que fazer diantedeste quadro?

Paulo Arantes - Temos de co-meçar levando em consideraçãoesse quadro que traçamos. Umacoisa simples, mas da mais com-

pleta dificuldade: reinventar umaespécie de sentido histórico deoposição. Oposição não é simpatiaabstrata com a classe operária, quenós não sabemos nem onde está.Seguramente, volta e meia, estánegociando, como o Vicentinho,com o governo a cabeça dos ou-tros que ficaram de fora.

Adusp - A perspectiva de Fer-nando Henrique ficar, no mínimo,mais quatro anos no governo éruim para o país?

Paulo Arantes – Não é ruim, écatastrófica. Resta saber como vaiser o Brasil, porque o economicis-mo significa que o ciclo de negó-cios garante, digamos, a recompo-sição da sociedade. Pelo contrário,vai aprofundar a decomposiçãoporque a economia se descolou.Não adianta ter dez assentamen-tos de GM, Renault, Ford, Volks-wagen no Brasil porque isso nãoforma tecido social. O desmantela-mento daquilo que o RobertCastell chama de sociedade sala-rial é o desmantelamento da socie-dade, não é de grupos corporati-

vistas beneficiados pela proteçãopaternal do Estado às custas docontribuinte etc. Acaba a socieda-de, esse é o problema. Então nóstemos de reinventar o sentimentohistórico da oposição na inteligên-cia brasileira e, por outro lado, en-grenar esse sentimento numa idéiade reconstituição da sociedade en-quanto tal.

Adusp - Quem, ou quais gru-pamentos, pode(m) puxar essadiscussão?

Paulo Arantes - Pela velocida-de da desintegração do nacionaltem muita coisa que não está apa-recendo e que está nas universi-dades. No Brasil, pequenos nú-cleos estão estudando a nova po-breza brasileira, a nova sociedadeque está se formando. Eu sou so-zinho; meu escritório e um con-junto de amigos, mais nada.Creio que quando a universidadechegar à beira de morte, às véspe-ras da extinção, as pessoas vão co-meçar a reagir e vão começar aaparecer coisas que estão sendofeitas e que nós não sabemos. Aísurgirão os grupos que estão pes-quisando urbanismo, saúde públi-ca, base energética, reproduçãoda economia brasileira, etc. Temmuita gente pesquisando, o Brasilnão é burro, a esquerda não éatrasada e burra. Isso a mídia diz,mas não é verdade. Tem muitagente bem formada, que conhecea sua profissão, sabe o que faz, etem consciência de que o país e asociedade tornaram mais comple-xos do que o Estado. O presiden-te ainda vai morrer pela boca,exatamente pelo que ele fala. RRA

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Então nós temos dereinventar o sentimentohistórico da oposição

na inteligência brasileirae, por outro lado,

engrenar essesentimento numa idéia

de reconstituição dasociedade enquanto tal.

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A NEGRITUDE NO BRASIL

F. C. de Sá e Benevides

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Oartigo “Quilombo dos Palmares, símbolode resistência e luta”, de autoria de Casi-miro P. da Silva, publicado no número dedezembro de 97 desta revista, sugeriu-me, talvez por pulsão, como dizem osmodernos psicanalistas, a me envolver,

mais uma vez, com a questão da negritude no Brasil.A última vez que isso aconteceu foi com um artigo

intitulado “A face oculta da negritude”, que enviei àrevista do Clube Militar, que não o publicou. Talvezporque tenha tratado do tema do ponto de vista estra-tégico, relacionando-o com a construção e consolida-ção do poder nacional. Mexia, pois, com a política doatual governo, caracterizada pelo desmonte do Esta-do nacional, para se pôr de acordo com a filosofia damodernidade do Diálogo Interamericano, formuladopor Samuel Huttington, teórico da Trilateral.

É precisamente aí que a questão da negritude noBrasil toma dimensão nova e diversa de mero aciden-te étnico, para se enquadrar no cenário geopolítico,com intermediação da linguagem indutora da utopiade “um mundo só”, explicitada na “Nova Estratégiado Poder Norte-americano”, cujo fenômeno teórico éa tese do Fim da História, do sociólogo do Pentágo-no, Francis Fukuyama.

O centro de gravidade dessa ideologia está na novavisão do poder hegemônico, desvendada no discursooficial do governo Bush, por ocasião da Guerra doGolfo: “Os Estados Unidos são hoje a única potênciamilitar do mundo. Os países já não precisam se preocu-par com a defesa de seus interesses e da sua soberania.Essa é a missão histórica dos Estados Unidos. Portan-to, os demais países devem renunciar às políticas exter-nas agressivas e se colocar sob a proteção benevolentedo mais forte”. Esse o substrato da globalização.

Tal visão da “Pax Americana” tem suas raízes naDoutrina do Destino Manifesto, de Blain, que estendeuo alcance da Doutrina Monroe, “a América dos ameri-canos”, desmentida no episódio da Guerra das Malvi-

nas, quando Reagan apoiou a Inglaterra. De outro la-do, essa ideologia do “mundo-de-um-só” atualiza aspropostas de Bertrand Russell, quando este, na décadade 40, formalizou a doutrina de um governo mundial,perante a comunidade acadêmica dos Estados Unidos,com a assessoria de Noam Chomski e Zbigniew Brzen-zinsk, afinados com as teses do Tavistock Institute, eque, mais adiante, seriam “enriquecidos” com as propo-sições malthusianas e genocídicas do Clube de Roma.

Observe-se que as peregrinações de Russell nos Es-tados coincidiram com o momento em que Churchill,no encontro com Roosevelt, a bordo do Prince of Wal-les, disse a este: “o governo do mundo no pós-guerradeve caber, por razões morais, aos anglos-saxões”.

Russell, o pacifista de antes de 1914, era agoraadepto de uma política fundamentada no monopólioda bomba atômica, possibilitando o controle de guer-ras localizadas de limpeza de área. Quando esse mo-nopólio foi quebrado pela Rússia, incluindo a bombade hidrogênio, o filósofo inglês admitiu a viabilidadede coexistência provisória de pelo menos dois impé-rios com os mesmos propósitos em suas respectivasáreas de influência, fato que acenava para outra Yalta.

A partir daí, à estratégia político-militar de con-tenção de possíveis focos de turbulência foi agregadaa estratégia do uso da linguagem audiovisual, visandoà cooptação dos setores ativos das sociedades perifé-ricas, nas quais maiores eram os riscos de perturbaçãoà segurança do novo sistema de governo mundial. Aosnovos meios de comunicação a distância estaria desti-nada essa tarefa, dadas as condições de envolver mi-lhões de criaturas simultaneamente.

As conquistas científicas do pós-guerra, a Ciberné-tica de Wiener, os computadores digitais binários deNewman e, logo a seguir, a tecnologia dos satélites,permitiram compor o sistema telemático de transmis-são e percepção, com repetição de imagens e mensa-gens em condições virtuais, juntamente com a táticada corrupção dos conceitos.

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A comissão Trilateral e os centros acadêmicos es-pecializados em Antropologia Aplicada, que, nessemesmo tempo, foram implantados de acordo com osestudos de Radcliffe Brown, desenvolveram táticascomunicativas, tendo por suporte aquelas conquistas,no sentido de obter condicionamento mental recepti-vo à idéia do governo mundial russeliano. Nada im-possível, já que a linguagem exerce influências trans-formadoras do comportamento e da personalidade.Os estudos de W. P. Robinson, Robert Serpell, DavidPeck e David Whithlow são conclusivos a esse respei-to. A linguagem despojada e alta freqüência das in-formações operam como forças inibidoras da refle-xão. Inibida esta, lesada fica a capacidade de discerni-mento das relações de causa e efeito entre os fatoseconômicos, políticos e sociais e os sistemas de poder,sobretudo no que concerne aos poderes hegemônicose os poderes nacionais periféricos.

Isso já foi quase inteiramente conseguido no pla-no econômico e político. Restava alcançá-lo no planosocial, cujas dificuldades foram reconhecidas comomaiores, devido à conjunção de diversidade de variá-veis que complica as derivações funcionais, requeri-das pela integração orgânica da dominação.

Os especialistas dos centros de decisão hegemôni-cos, jogando com os componentes psicológicos, so-ciais, econômicos e históricos da formação das socie-dades periféricas, encontraram a fórmula removedo-ra das citadas limitações: a invasão cultural, impul-sionada por agentes estético-emocionais, com o re-forço da qualidade motora das imagens, no caso, as-sociada à idéia-força da superioridade cultural, queinduz à imitação. Aliás, Newman, quando apresentouseu computador binário (vinculado à Cibernética deWiener), declarou que com a lógica binária (já que alógica humana reproduzia a lógica dos computado-res) se estava de posse de um instrumento capaz demodificar o comportamento das pessoas e orientá-lonuma direção desejada.

O exposto nos permite entender que o problemada negritude no Brasil não deve ser entendido comosimples questão de etnia e de étnica. Por razões histó-ricas, no atual contexto das relações internacionais depoder, há de ser tratada como questão geopolítica nocenário do “mundo-de-um-só”. Isto porque não pode-mos desvinculá-lo do objetivo de desmonte do podernacional nos países periféricos como condição ineren-te ao governo mundial centralizado.

John Stoessinger, ex-consultor da ONU, em seu li-vro o Poder das nações, política internacional de nossotempo, fundamentado nas diversas teorias geopolíticas,nos informa que o poder nacional compreende catego-rias de natureza objetiva e subjetiva. Entre as primeirascita o poder militar e os recursos naturais disponíveis,principalmente no que se refere a minerais críticos e es-tratégicos, aos quais devemos acrescentar os da biodi-versidade, por implicarem potencial energético renová-vel e matérias-primas necessárias à química fina e aosfármacos. Entre as segundas inclui a imagem que o po-vo faz de seu próprio país e a recíproca: a imagem queos outros dele fazem; o sentimento de auto-estima e deamor à terra natal. Essas categorias dizem respeito àpopulação, na qual se concentram as táticas divisionis-tas da linguagem, operadas pelos centros do poder he-gemônico, porque entendemos que ela é categoria mis-ta objetiva-subjetiva a um só tempo.

Portanto, do ponto de vista geopolítico, levandoem conta tais componentes do poder nacional, o Bra-sil é provido de potencialidades que ameaçam o cita-do poder hegemônico centralizado no Norte. Sua ex-tensão territorial de características continentais (quejá foi objeto de recomendações no sentido de sua re-gionalização com soberanias divididas) lhe propiciaelevado índice de aproveitamento do solo, incluindoos recursos hídricos, hoje considerados estratégicos,o que, no conjunto, lhe assegura elevado nível de au-tarquização. Sua posição geográfica é privilegiada:faz fronteira com todos os países do continente, exce-

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ção do Chile e Equador, e tem um largo front abertopara os países negros da África subsaariana, com osquais, por razões históricas, tem larga margem paraintercâmbio. Estão, pois, aí configurados os cenáriosde suas forças como poder nacional.

Não é por outras razões que Henry Kissinger, oratrabalhando para a inteligência anglo-americana, ex-plodiu, dizendo que os Estados Unidos não permiti-riam um Japão nos trópicos e que, por outro lado, es-sa inteligência desenvolve, atualmente, uma políticaagressiva de cooptação combina-da com pressões dissi-muladas em ajudas“humanitárias” àspopulações ne-gras da África ede empréstimospara o desenvolvi-mento da economia(?) dos países sub-saarianos, recente-mente visitados pelasecretária de estado Ma-deleine Albright.

Estamos na alça da mirados poderes externos hegemôni-cos, que, depois de obter a adesãode nossas elites para a construção dogoverno mundial, para o “mundo-de-um-só”, passaram a focalizar o fato desermos um país mestiço e perceber quenisso está nossa força, inclusive anímica,com inclusão da enorme capacidade deassimilação e criação. Mais de 60% denossa população compõem-se de negrose mulatos, com variada gama de colora-ção da pele, graças ao contínuo inter-

câmbio carnal do colonizador branco moreno mediter-râneo, por si bastante miscigenado, com a mulher ne-gra e, também, indígena, com sua descendência cabo-cla. Talvez a mestiçagem de origem tenha predispostoo lusitano a esse intercâmbio, no isolamento geográficoe no fato de ter chegado desacompanhado da família.

Essa força há de ser desequilibrada com a introje-ção de antagonismos que rompam as pulsões unio-nistas, na tentativa de reacender os resíduos de es-cravidão e neutralizar sentimentos de coesão, para,em seu lugar, reviver ódios raciais, que o tempo di-luiu. A tática é a do uso da linguagem, embutido na“invasão cultural” programada, com a subliminari-

dade de trasladar para nosso meio ambiente osantagonismos radicais que a escravidão ge-

rou nos Estados Unidos e, assim, estorvaro processo de integração da popula-

ção brasileira e, conseqüentemen-te, desarticular o poder nacional.

A estratégia é inibir a percep-ção de que o problema do ne-gro no Brasil nada tem decomum com o do negro nosEstados Unidos.

A diferença substancialestá no fato de que, no Bra-

sil, a miscigenação foi a nor-ma pelas razões geográficas e

sociais referidas, dando-se ocruzamento racial sem traumas

e perplexidades, conforme se de-duz de depoimentos de visitantes

estrangeiros nos séculos XVIII eXIX, entre outros, de Charles Expilly,

em “Mulheres e Costumes no Brasil”. Asexceções traumáticas por conta do ciú-

me e do amor próprio ferido das ma-

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ter-famílias, de que serve de exemplo o incidente des-crito por John Luccock, da matrona que mandou ser-vir a sopa ao marido com os globos oculares da escra-va, cuja beleza dos olhos o marido havia enaltecido.

Nos Estados Unidos, o intercâmbio carnal de bran-cos com escravas negras e índias sempre foi fato episó-dico. Quando ocorria, era estigmatizado como trans-gressão ético-religiosa. Portanto, aqui foi possível contí-nua interação afetiva amalgamadora; lá a transgressãoreprimida dava lugar ao ódio, como catarse da culpa pe-rante a fé protestante, que assumiu o nível de fanatismode mistura com hipocrisia, de que o filme Chuva, ence-nado por Joan Crawford, serve de exemplo. Além disso,aqui não foram raros os casos de entrega da mulherbranca ao escravo negro ou ao mulato semi-livre, com o“patriarca” dissimulando a situação dando trabalhomais categorizado ao descendente desse conúbio.

Por outro lado, o sincretismo religioso-cultural,com suas aberturas para a interação social, no que seinclui a convivência nos terreiros de umbanda e qui-mbanda, por cima do religiosismo católico, operoucomo atenuador da discriminação preconceituosa, oque se reflete na comum ligação de mulheres brancascom homens negros e mulatos e vice-versa, principal-mente nos segmentos sociais de média e baixa renda.

A invasão cultural, despejada nos últimos anos emnossa sociedade, por indução, nos entremeios da de-terioração dos conceitos, pretende reverter o sentidodesse processo miscigênico, incluindo conceitos adul-terados, como, por exemplo, a posição de certas lide-ranças negras, no que se refere “à defesa da preserva-ção da identidade negra” e de retorno do negro atual“às suas raízes culturais”, e isso é dito por negros quese casaram com mulheres brancas e louras. Conside-ramos tais posições como reacionárias, por se inseri-rem num estado estacionário, de volta a um passadodinamicamente desaparecido.

Tais lideranças negras invocam, como prova de ra-cismo branco, a oposição à existência de uma impren-sa negra. A oposição, se existe, é a existência de umaimprensa negra americanizada, de que serve de exem-plo o jornal Mundo Black. Por que não Mundo Negro?Porque a intenção é a de criar o clima do racismo ne-gro existente nos Estados Unidos. Outro fato: por quea mídia, notoriamente ligada aos interesses econômi-

cos norte-americanos, durante algum tempo se ocu-pou do “movimento funk”, contrapondo-o às ricascriações estéticas e de lazer do brasileiro negro, asquais eram relegadas ao silêncio?

A última novidade da “invasão cultural”, adultera-dora dos comportamentos étnicos, foi exibida pelomarketing da propaganda comercial, ao considerarvesguice preconceituosa desconhecer a realidade deum mercado consumidor negro no Brasil, numa faixade renda média mensal de R$ 1.200,00, cerca de 26 a30% da força de trabalho. Por que essa ênfase numconsumidor negro? Por acaso ele consome produtosque não o sejam pelo consumidor branco? Nesse apa-rente movimento de simpatia, percebe-se, entretanto,se bem analisado, o propósito de jogar com o incons-ciente coletivo negro, despertando o sentimento deantagonismo e ferindo o processo de integração sociale política, sem a qual a cidadania não prospera e a de-mocracia é lesada.

Vê-se nesse jogo aquilo que Weber observou nosfatos sociais, que o levou à visão dual em sociologia: ofato social em si e a intenção nele embutida enquantofator de ação social.

Que se deseja: um Brasil branco, um Brasil negroe um Brasil mulato e por que não, também, um Brasilcaboclo, ou um único Brasil de negros, mulatos, cabo-clos e brancos?

Aqueles Brasis são os que constam do projeto he-gemônico da recolonização embutida na globalizaçãodo “mundo-de-um-só”. Por isso, é pertinente lembrarJosé Bonifácio, quando afirmava que, se quiséssemosser uma nação soberana e não apenas um país politi-camente independente, haveríamos de perseguir arealização da homogeneização social.

O problema não é, pois, de resistência na busca doenclausuramento étnico, mas de luta para que a cida-dania seja para todos, como condição suprema darealização democrática. Esse parece ter sido o sentidoontológico da luta de Palmares: a conquista da liber-dade contra a escravidão excludente. Não é lícito con-cluir que em Palmares se defendiam a identidade e apreservação da cultura negra como valor estático.

F. C. de Sá e Benevides é articulista do Jornal do Com-mercio - RJ

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Há algumas décadas,no Brasil, os negrosdesenvolveram etêm cultivado umhábito que é revela-dor de um gosto, no

mínimo, extravagante e que sugereum ethos verdadeiramente singu-lar: reunir-se em saletas mal venti-ladas com a intenção premeditadade se lamuriar, resmungar, zangar-se, esconjurar o homem branco, fa-zer votos de redenção e fuxicar umpouco — e até, quem sabe, arru-mar um namorado(a)... De modogeral, esses pagodes terminambem, com a promessa tácita de to-dos voltarem a se reunir, ali mesmoou alhures, numa data acordada.

Evidentemente, um tal exotismonão poderia passar despercebidodos antropólogos (estes perversos),que, rápido, reconheceram a neces-sidade de cunhar um neologismopara se referir àquele ritual lúdico-catártico tão fascinante: chama-ram-no de “movimento negro”.

Em que pesem os esforços decooptação realizados pelos adeptosdessas seitas e os seus ensaios de

formação de uma irmandade na-cional, o fato de terem sido desco-bertos pela academia (e depois pe-la mídia eletrônica) foi a melhorsorte que poderia ocorrer a essesbizarros. Súbito, entidades, funda-ções, sindicatos, instituições, coor-porações (nacionais e estrangeiras)e órgãos públicos tomaram conhe-cimento de sua existência e viram-se constrangidos a reconhecer sua“legitimidade”. Desde então, aque-las reuniões melancólicas em sali-nhas sem janela têm dado vez, pe-riodicamente, a grandes encontrosestaduais ou nacionais (natural-mente, patrocinados pelo dinheirodo “inimigo”), não raro, em con-fortáveis auditórios com ar refrige-rado e com direito à divulgação nagrande imprensa e passagens aé-reas para as lideranças — isto é,aqueles pretos mais sabidos quepuderam, talvez, perambular poruma universidade, esbarrar noscorredores com brancos ilustrados,bisbilhotar suas conversas e apren-der seus trejeitos e maneirismos.

Este novo cenário tem sido opalco para a performance de novos

atores da cena brasileira — “os ne-gros de classe média”, de que aque-les militantes são apenas a expres-são mais espalhafatosa. Ocorre quea novidade do espetáculo tem dadooportunidade a apreciações e co-mentários que, sob a aparência depenetrantes, só arranham a superfí-cie. Resta-nos discordar, sem inten-ção polêmica; apenas com esperan-ça de distinguir o aparente do justoe, se possível, colaborar com a hi-gienização dos costumes.

Pessoalmente, considero poucoverossímil a opinião corrente, se-gundo a qual aqueles “ongueiros”,bolsistas vários, professores, sindi-calistas, assessores, etc., etc... (en-fim, todos estes simpáticos barna-bés) sejam guiados unicamente pe-lo propósito mesquinho de con-quistar, preservar e ampliar suas si-necuras. É claro que este motivo éimportante (e legítimo, diga-se):um homem tem de ganhar a vida!Contudo, apenas se fôssemos unsingênuos, isto é, se fôssemos mar-xistas e acreditássemos que os ho-mens são movidos fundamental-mente por seus interesses econômi-

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OS PAGODEIROS E OUTROS ABUSOS:ANTROPOLOGIA SEM AÇÚCAR

Mauro Göpfert Cetrone

“... [o] amor pelas pessoas como elassão nasce do ódio ao homem correto”

Theodor Adorno

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cos, só neste caso, aquela opiniãofrívola pareceria fazer sentido.

Mas, sabemos que as coisas sepassam de outro modo; que a pai-xão que agita as criaturas huma-nas é a vaidade, mais que a cupi-dez. É por isso que o movimentonegro brasileiro não se explica so-mente pelas parcas vantagens ma-teriais (quase simbólicas...) quetem sido capaz de oferecer a seusexpoentes (os proprietários das“entidades” e amigos).

É preciso reconhecer nele atradução legítima da vaidade dos“negros de classe média” — estaúltima expressão, utilizo-a apenaspor comodidade lingüística; elanão é adequada e induz a erro.Com efeito, só o hábito brasileirode resolver no plano da linguagemaquelas mazelas e contradições so-ciais que não encontram soluçãoreal explica que se denominem ne-gros de classe média aqueles bis-netos de escravos que tão-somenteescaparam da indigência. Emboraseja preciso reconhecer que estespretos que abandonaram o estadofamélico têm realizado um corajo-so e comovente esforço para seremreconhecidos, de direito, na cate-goria de cidadãos-consumidores.Até onde permitem os malabaris-mos com seus orçamentos domés-ticos, estes negros (militantes àfrente) têm se empenhado heroica-mente para mimetizar os hábitosde consumo e lazer dos brancosquase-letrados dos estratos médios(dos leitores da “Ilustrada”, eu te-ria dito, se pretendesse ser exato àcusta de ser entendido apenas porpaulistas). De fato, alguns destespretos até já foram vistos xeretan-

do em livrarias e todos têm em ca-sa sua coleção de CDs de liquida-ção; excursionam pelo país inteirode ônibus e sempre carregam con-sigo uma agenda cheia de nomesde gente importante — infelizmen-te, gente importante que não temlhes dado muita importância. Nemé preciso dizer que estes aristocra-tas negros (e particularmente seus

componentes femininos) com-preendem perfeitamente as restri-ções que sua condição superiorlhes impõe; e em vão pretendería-mos acusá-los de promiscuidadecom os negros da ralé. Quanto aosnegros verdadeiramente estabele-cidos, só há uma profissão em queprocurá-los: os engolidores de sa-po. Mas, em tempos de correçãopolítica, o pai-João aderiu ao radi-calismo consentido e à contestaçãoruidosa da ordem como meio efi-caz de integrar-se nela; e quasetrocamos o seu nome!

Assim, a má-consciência dosbrancos pode descansar em paz;esta elite marrom é testemunha deque vivemos uma verdadeira de-mocracia racial: aqui o sol nascepara todos.

O que querem, afinal, estes pre-tos que já não passam fome? Aoque parece, querem tornar-se ho-mens. E não estão dispostos a tole-rar rodeios sobre o significado des-te termo: trata-se, simplesmente,de arrumar um emprego (ou, me-lhor do que isto, pensaria secreta-mente o militante, uma função)que remunere bem; o suficientepara comprar uma casa bonita, umcarro bonito e uma mulatinha bo-nita. Mas, não por cupidez, insisto,por vaidade. A vaidade de tornar-se homem.

Assim, pode-se dizer que o mo-vimento negro brasileiro transcen-de seus militantes — diz respeito atodos os negros remediados — eseu futuro não depende das velei-dades dos seus dirigentes. O quenão nos autoriza a supor que temalgo a ver com a política. Qualquerum que já teve notícia do que foi aluta dos negros norte-americanospelos direitos civis e da naturezadas tarefas que ela impôs aos líde-res e militantes afro-americanoscompreende, sem esforço, a razãopor que o movimento negro brasi-leiro não tem nada a ver com a po-lítica e seria aconselhável encontraroutro ramo de negócios em queseus militantes tivessem acumuladomaior experiência: a indústria doturismo popular, talvez. De qual-quer modo, quanto aos scholars mi-rins do movimento, só nos cabeelogiá-los por serem capazes de

Pode-se dizer que o

movimento negro

brasileiro

transcende seus

militantes — diz

respeito a todos os

negros remediados

— e seu futuro não

depende das

veleidades dos seus

dirigentes.

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conter seus impulsos revolucioná-rios e nunca se meterem em arrua-ças ou inconseqüentes atentados àordem pública. Também é precisonão desdenhar do modo como seagarram a seus papers e apostilascomo um náufrago segura sua bóia.Estes eruditos têm muitas orelhasde livros para ler e só devem deixara universidade com o nome dedoutor. Sua missão: forjar a cosmo-visão africana e fundar os pilaresda insurreição negra.

Mas, não seria também o caso deperguntar se o humor tropical donegro brasileiro, sua bonomia, seuespírito festivo e temperamento efe-minado não o incompatibilizamcom as tarefas históricas que a re-versão do seu status subalterno exi-giriam? Não se aborreçam lideran-ças (?) negras, universitários habi-tués de seminários sobre a “questãoétnica” e moças e rapazes de tran-ças, em geral: não ignoro a históriados quilombos, a Revolta dos Ma-lês, etc., etc... Apenas constato queos afro-brasileiros já compreende-ram que o importante é “viver a vi-da” e que fazer a história é umaidiossincrasia dos povos europeus,dos neurastênicos e dos sexualmen-te reprimidos. No Brasil, a “eleva-ção da raça” continua dependendodos esforços solitários dos negrosarrivistas, e de sua saudável intuiçãode que a realização de seus anseiosrequer algum tipo de “ação entreamigos”; aliás não é esta intuiçãoque explica a origem e as feições domovimento negro brasileiro?

Mas, pelo que dissemos atéaqui, talvez nos acusem de sermosparciais em nossa avaliação dos mi-litantes negros brasileiros; de não

considerarmos suas qualidades hu-manas. Ainda é tempo de reparar asituação. Porque, na verdade, estaspessoas são bem-intencionadas emuito divertidas — e só o fato detransformarem ressentimentos efrustrações em combustível paraatividades socialmente relevantes epessoalmente lucrativas já os tornaespeciais: quantos de nós somos ca-pazes disto? Apenas, não seria pru-dente tomá-los a sério demais.

Ou considere-se, por exemplo,seu discurso anti-miscigenação esuas queixas habituais sobre osmestiços. Ora, aceito que os mula-tos não são criaturas confiáveis.Ou antes, que há poucas tarefasque se lhes pode confiar. Umexemplo: colocá-los em pé dianteda porta (qualquer porta) para quecontrolem a entrada de negros. Oentusiasmo juvenil com que execu-tam este serviço pode enterneceruma alma mais sensível. Tambémsão bons para fazer o troco, nosônibus, e pilotar os elevadores. In-felizmente, não parece haver mui-to mais que saibam fazer.

Então os militantes negros estãocertos neste ponto. Apenas, seuscomentários rabugentos sobre oscasais mistos — “os negros bem-su-cedidos se casam com brancas, bla-blablá...” — deixam entrever me-nos reprovação do que inveja; edestoam da sua opção preferencialpelas mulatinhas caucasóides.

Mas, são pessoas simpáticas eesforçadas e é preciso colaborarcom seus esforços.

Pessoalmente, sinto-me no mo-mento pouco inclinado a tomarparte em suas iniciativas. Mas te-nho dedicado alguma atenção ao

problema racial brasileiro e nãome negarei a propor uma solução.Ei-la: considerando que cinco sé-culos não foram suficientes paraque o elemento africano se aclima-tasse em terras do Brasil, apresen-tando o afro-brasileiro toda sortede atitudes destoantes, condutasbizarras e um comportamento ver-dadeiramente patológico, não con-viria patrocinar o regresso dessapopulação à mãe-África ?

O custo de uma tal empresa se-ria menor do que poderíamos su-por, tendo em vista que o númerode pretos entre nós não deve ultra-passar algumas centenas de milha-res, conforme afiança o IBGE. Emtodo caso, as vantagens eugênicase outras proporcionadas pela me-dida compensariam quaisquer es-forços para levá-la a efeito: osbrancos (e também os “acastanha-dos”, os “amarelos-escuros”, e os“morenos-puxados-pra-branco”)estariam, finalmente, desembara-çados para construir uma civiliza-ção completamente européia.

Quanto a mim, negro, ativistabissexto e curioso dos costumes dasgentes, permanecendo aqui ou emsafári pela África, quereria apenaster algum tempo para dedicar atrês questões que me atormentam:

1) Por que tão poucos queremcaminhar pelo caminho que vai darno Reino da Verdade ?

2) Por que só nos restou a indis-crição como forma possível da ge-nerosidade?

3) A que se deve atribuir a na-tureza bovina do negro brasileiro ?

Mauro Göpfert Cetrone é graduandoem Filosofia e membro do Núcleode Consciência Negra na USP.

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Das janelas dohotel HabanaLibre, no bairrodo Vedado, nacapital cubana,se podia avistar

as casas que vendiam livrosusados expostos junto à calça-da. Foi ali, entre a poeira dotempo e a fumaça dos antigoschevrolet de antes da revolu-ção, sob um calor ameno, masescaldante, que encontreiuma pequena brochura commanchas na capa. O nome doautor chamou minha atenção:Tomás Gutiérrez Alea. Perce-bi tratar-se do cineasta cuba-no, falecido dois meses antes, e que nos encantaracom Fresa y chocolate (Morango e chocolate, no Bra-sil). Imediata, mas discretamente, chamei Ana LúciaJackson, que me acompanhava na viagem e, momen-tos antes, abandonara comigo o salão abafado ondese realizava o congresso acadêmico que nos levara aHavana. Mostrei-lhe o pequenino achado e confabu-lamos sem muito disfarce. Aleatoriamente, coloqueio volumezinho entre os demais livros que pretendía-mos adquirir. Negociar o preço em bloco fora a es-tratégia adotada para não chamar a atenção do ven-dedor. Em vão. Preço final: 2 dólares. Paguei e fo-mos tomar sorvete na Kopélia, situada logo adiante.

Minha euforia com o livro do cineasta-poeta sóera menor que a de Ana Lúcia pela estada em Cuba.Ela estava radiante, feliz, com ânimo e uma alegria

pela vida como eu nuncatinha visto, desde que a co-nhecera, cinco anos antes.Era como se o sol, a brisa ea música lhe servissem dealimento. De posse do queconsiderava uma relíquia,eu folheava o livrinho.Uma série de poemas líri-co-metafísicos, com algunsdisparos místicos, publica-dos em 1949. Título: Refle-jos. Edição do autor, euma dedicatória: “Para Pi-no Zito con afecto y sim-patia, Tomás Gutiérrez.15/maio/49”. Um frio cor-reu pelas minhas costas

enquanto meu helado se descompunha com o calorque assolava as mesinhas ao ar livre da Kopélia.

Voltei à Cuba um ano depois. Foi quando conheciRaúl Rodríguez, um estudioso do cinema cubano eentusiasta dos festivais de cinema de Havana. Con-versamos algumas vezes e fomos jantar em um pala-dar sugerido por Raulito. La guarida se chamava orestaurante. Um casarão colonial do século XVIII, si-tuado entre as ruas Gervásio e Escobar, em CentroHabana. Curiosidade: as dependências do restauran-te eram as mesmas que serviram de cenário para Fre-sa y chocolate, o apartamento de Dieguito, com a de-coração vista no filme. Entre garfadas de arroz congris e chicharritas, deliciosos por sinal, perguntei-lhese conhecia os poemas de Alea. Surpreso, Raulito de-monstrou grande interesse em conhecer o poeta em-

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REFLEXOS CUBA-BRASIL, UMA CRÔNICA DE REALISMO MÁGICO

Paulo Henrique Martinez

Tomás G. Alea, 11/12/1928 • 17/4/1996

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butido no cineasta. Prometi-lhe enviar o volume.Resgatado o livro, chegara a vez de sua preservação edivulgação, e Raúl Rodriguez não apenas era a pes-soa indicada para isso, como estava disposto a tanto.

De volta ao Brasil, aguardava que algum conhe-cido viajasse à Cuba. Correndo os olhos pelas pági-nas de El cine silente en Cuba, do amigo Raúl Rodrí-guez, ofertado no La guarida, notei uma coincidên-cia: Raulito era nascido em 1949, data da dedicató-ria de Alea. Foi então, que no final do ano, surgiuum portador confiável para conduzir Reflejos de vol-ta à Cuba. Um primo meu encarregou-se de procu-rar o destinatário e entregar-lhe o livro de Alea,juntamente com o de Afrânio Catani, sobre a chan-chada brasileira, que igualmente despertara o inte-resse de Raulito. Tentei falar com Raúl, para avisar-lhe da remessa. Nenhum sucesso, as comunicaçõestelefônicas nunca se completaram. Por algum moti-vo, o portador pediu a uma (des)conhecida que fi-zesse a entrega do material. Os livros nunca chega-ram ao seu destino final.

Este ano, preparando nova viagem à Cuba, tenteirestabelecer o contato com Raulito. Fiquei sabendoda morte fulminante, por um câncer que o matou empoucas semanas. Descobri também, com muita im-precisão, que a fase da doença correspondia à daviagem do meu primo. Tentei localizar a pessoa aquem este teria entregue os livros em Havana. Se-guidos telefonemas, até descobrir que a pessoa esta-ria fora, em um curso, durante toda a semana de mi-nha permanência em Cuba. A casa de livros usados,em frente ao Habana Libre, também desapareceu,cedendo lugar às reformas dos prédios daquela rua.Era como se um cenário e suas personagens fossemdesaparecendo, subitamente, um após o outro.

Passei a última semana imaginando: se o livro deAlea voltou a desaparecer no casario colonial de Ha-vana, ressurgindo no Brasil, através das páginas daRevista Adusp, nada impede que Ana Lúcia reapare-ça na ilha de Cuba, alegre e vigorosa, em harmônicaconvivência com o sol, a brisa e a música do Caribe.O mesmo sol que no Brasil, repentinamente, encur-tou-lhe a vida com um câncer de pele. Hoje, uma se-mana após a sua morte, estou convencido: quandoquiser rever Ana Lúcia Jackson, irei a Cuba.

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VERSOS ALEATÓRIOS

Afrânio Mendes Catani

“Yo era un hombre buenosi hay alguien bueno en este lugar.”

El Fantasma de CantervilleCharly García

Nos últimos dias eu estava todo prosa.Puxava papo com alguns amigos e fa-zia com que as conversas confluíssempara o cinema latino-americano, atéchegar em Tomás Gutiérrez Alea(1928-1996), o mais importante ci-

neasta cubano, diretor de uma dúzia de longas-me-tragens e de outros seis curtas.

Acrescentava, em seguida:— Alea é um bom cineasta, fez vários filmes inte-

ressantes, mas também gosto muito de seus poemas.Todos se espantavam, e eu dizia:— Ele é autor de um belo livro, Reflejos etc. e tal.

E me punha a falar.Honestamente, não sei se Guetiérrez Alea publi-

cou poemas antes ou depois de Reflejos. Graças aPaulo Martinez podemos, a partir de agora, ter emmãos esse sensível conjunto de versos, reunidos nes-se pequeno livro de 63 páginas, editado em Habana(1949) e contando com 3 belas vinhetas — incluindoa da capa — de Cabrera Moreno.

A primeira parte intitula-se “Canción Sola Entrelas Aguas” (pp. 11-20) e traz oito poemas, enquantona segunda (pp. 27-63) encontramos outros cinco,cujos títulos originam-se dos primeiros versos de ca-da um deles. Assim, temos “Caer en el ámbito de unpoema...”, “Me ceñi de anhelos...”, “No sé qué tor-menta de alas lejanas...”, “Es la Noche...”, “Aquí...”.

Acredito que Reflejos possa ser classificado comouma “obra de juventude”, escrita aos 21 anos. Nessemomento, Tomás Gutiérrez Alea estudava Direito(formou-se em 1951) e, aos poucos, foi se interes-sando por cinema, tendo realizado, em 1950, UnaConfusión Cotidiana (curta-metragem, 8 mm), ba-

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seado em Kafka. “Titón”, como era conhecido portodos, foi estudar cinema no Centro Sperimentale diCinematografia, em Roma, de 1951 a 1954, tendo si-do aluno de Cesare Zavattini. Declarou à jornalistaMaria do Rosário Caetano que seu trabalho final,em Roma, “foi um curta, em 35 milímetros, chama-do Il Sogno di Giovanni Bessain. Fiz o argumento,colaborei no roteiro e fui assistente de direção”.

De volta a Cuba, em 1955, juntamente com seu ami-go Julio García Espinosa, participou do curta El Méga-no, sobre “a vida dos carvoeiros de Ciénaga de Zapata.Este filme foi muito importante para o novo cinemacubano que se seguiu à Revolução. A partir de 1956,dirigi pequenas reportagens para cinejornais. Em 58,somei imagens de cinejornais no filme A Tomada deHavana pelos Ingleses. Em 59, com García Espinosa, or-ganizei a ‘Seção de Cinema da Direção Cultural doExército Rebelde’. Foi com esse grupo que dirigi o pri-meiro documentário produzido depois do triunfo daRevolução: Esta Nossa Terra, sobre a reforma agrária.E isto aconteceu porque eu não tinha dúvidas de que ocinema era o meu caminho, e minha opção de vida”.

O acesso de Fidel ao poder, em 1959, permitiuque Gutiérrez Alea, Alfredo Guevara e García Espi-nosa criassem o ICAIC (Instituto Cubano de Arte eIndústria Cinematográfica), que foi o responsável pe-la implantação do novo cinema em Cuba.

A carreira de “Titón” prosseguiu com sucesso,tendo realizado os seguintes longas-metragens: Histó-rias da Revolução (1960), As Doze Cadeiras (1962),Cumbite (1964), Morte de um Burocrata (1966), Me-mórias do Subdesenvolvimento (1968), Uma PelejaCubana contra os Demônios (1971), A Última Ceia(1976), Os Sobreviventes (1978), Até Certo Ponto(1983), Cartas do Parque (1988), Morango e Chocolate(1993) e Guantanamera (1995), sendo os dois últimosfeitos com seu assistente Juan Carlos Tabío, uma vezque o câncer pulmonar já o consumia.

Gutiérrez Alea foi, além de cineasta, um teóricodo cinema, tendo seis de seus ensaios compilados emDialética do Espectador (São Paulo, Summus, 1984 -tradução de Itoby A. Correa Jr.).

O crítico Inácio Araújo escreveu que o cinema de“Titón” apresentou como características “a originali-dade, a convivência entre o humor e preocupação so-cial, independência e fidelidade ao regime cubano”.

Gostaria de terminar este pequeno comentáriocom a citação de alguns pequenos versos de TomásGutiérrez Alea, num momento em que vamos come-morar, em 16 de abril próximo, o segundo aniversá-rio de sua morte: “silencio yquietud nebulosa. Casi unvacío cuando se acerca lahora precisa”.

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PRÊMIOS E FATOS SIGNIFICATIVOS SOBRE OS FILMES DE ALEA

A Última Ceia (1976)Melhor Filme do Ano na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (1976)

Morango e Chocolate (1993)Urso de Prata no Festival Internacional de Cinema de BerlimMenção Especial no Latin America Cinema AwardIndicado para o Oscar de melhor filme de língua estrangeiraFilme cubano de maior bilheteria no mercado externo

Guantanamera (1995)Prêmio do Júri de Melhor Filme Estrangeiro no Festival Internacional de Ft. LauderdaleMenção Honrosa no Sundance Film FestivalMenção Honrosa e Prêmio Especial do Júri no Latin America Cinema AwardIndicado para o Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza

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Abril 1998 RReevviissttaa Adusp

REFLEJOS

Tomás Gutiérrez AleaHabana, 1949

ilustrações de Cabrera Moreno

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CANCION SOLA ENTRE LAS AGUAS

No Sabemos cuándo. Aquél que tuvo su día, verá sucrepúsculo. Después… ¿Por quê después? Hemos de rociarblancura a nuestro alrededor, pero vemos assombrasdos quenuestro aliento hace niebla… Y el agua es negra y no deja demoverse para atraernos. Aquél que tuvo su día… ¡No osmováis!…, para que no pase el tiempo.

Quiero apurar mi vino entre las aguasdeliciosamente yo… siempre.

O envolverme en mi niebla,dormirme lentamente,lentamente gris…

Saldrán de mi casa,(pájaros elegantes, ligeros)saldrán mis vigilias lentamente,lentamente grises…

Quiero apurar mi vino entre las aguasdeliciosamente yo… siempre.

El deseo, como una gran boca que se abre indefinidamente,inclinado hacia las perlas blandas del mediodía, las perlaslíquidas, brillantes, que duermen en un hueco de las rocas. Labrisa en la nuca. Pero tuvo que gritar muy alto para nosucumbir al encanto de unos pájaros que volaron (no se sabe

de dónde venían) a su alrededor. Tuvo que ahuyentar todo serviviente para beber su extraño vino. Quietud. Sabía cuidarmy bien los reflejos del mediodía. Ensueño creciente.

Sembré la luz entre las aguasy ella sabe multiplicarsey yo sé mirarla.Ni insectos siquieray me olvidé de mi cuerpopara beber mi lento vino:Yo... deliciosamente yo...

..............................

¿Qué?Esa música...Pero ya cae la tardey cada vez más solo.Así siempre...

¿Después?.............................

No, no me moveréy no veré la nochePero... esa música.

Reflejos. Más reflejos. Y nubes rosadas. Silencio y quietudnebulosa. Casi un vacío cuando se acerca la hora precisa.

Crepúsculo intacto.

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— Algo ha subido del fondo de las aguas inquietas paraacelerar el crepúsculo. Pero no me moveré, cerraré los ojos yen ellos guardaré estas últimas luces para no ver la noche.

.................................

— Pero... esa música... Ay, que ya el vino me sabe a vinagre.No vengas a apresurar la llegada de la noche.

— Vengo a traer luz para pasar lanoche... Calor y perfumes.

— No quiero, no. Que me haces sentir mi cuerpo...

— Cantaré para ti y no sentirás lanoche.

— Pero ya oscurece, y de las aguas escapan los reflejos... Tú,la de las aguas, ¿qué luz me traes?

— Acércate...

— Vamos

Se hizo la noche. El calor de um momento hace sentir el friode siempre. Se fué la de las aguas en medio de la noche. Yani reflejos. Soledad repetida.

Yo... tristemente yo...

Y se envolvia en su niebla lentamente, lentamente gris.

A la noche tan sola y vaga hay que levantarle nocturnos ysacrificarle suaves olores, porque la noche se detiene y buenoes saber que tiene estrellas.

Yo.... solamente yo...

¿Antes?

No sabemos...

Entre las aguas.

(Nocturno final.)

G

CAER EN EL AMBITO DE UN POEMA...

Caer en el ámbito de un poemay entre sus arcos frescosde fresca nieblapasear el almay hacerla desplegar su infinitosiguiendo los tenues olores del vino.

Y morder la luz,sentir el sabor intensode un camino que corre a mis pies.

Y a cada paso descubrir labiosque suavemente rocen mis entrañasprovocando nuevos sonidos.

Camina el almacomo un recién nacido por el alba...

¿Y qué son esos espejos azulesque multiplican los saboresde un nuevo aire?

¿Quién juega con las luces y las sombrasdetrás de las columnas,y quién derrama los perfumes?

Caí en el ámbito de un poemae hice pasear mi almasiguiendo los tenues olores del vino...

Ya se redondean velocidadesque provocan en mi almalos vaivenes ágiles de un murciélago.

Ya mi alma es una florsobre la marcha de un rio estrecho.

Tras de mílas puertas se cerraron.

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Sobre la espumaluces y sombras se congelaronen la essencia misma,sola, desnuda, de la Poesía.

Junté mi alma con su cuerpoy me introduje eu ella para arrancarle um hijotodo forjadoen cuerdas de laúd.

I

ME CEÑI DE ANHELOS...

Me ceñi de anhelosy marché sobre mi nuevo mundo.

A penetrar.A penetrar.

Devancos de penumbra empobrecidaceden a mi nuevo canto

en las delicias del despertarentre escombros renegables.

Y ya penetro lentamenteentre el ligero vuelodel murciélago anunciador.

En el senderome ven mis propios ojosy la oscuridad me atormenta.

Puedo surgir al final del caminocuando despierten mis inquietudestransformadas en piedra

Piedra de un mediodía penetrante.

Puedo surgircuando encuentre mi armaávida de morder penumbras.

Cede a mi cantola marcha de esos aires negros.

Cede a mi inquietuddespertada en ligeras piedrecitas.

Cede a mi avidezde penetrar jardines vírgenes.

Apartaré mi vista de las gotas negrasporque se me mojan los hombrosen el perfume del alba.

En nuevo dia.El, grávido despertar.El surgimiento entre escombrosde viejas ciudades.

Di mis alas a mi vigiliay aqui estoy.

Inquietud del espectrode mis luces y mis sombras.

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Suaves ondulacionesde mi corriente:así se vive en mi mundoclavado en medio de las transformaciones.

La brancura de la luna.La redondez de la luna.Entre los picos más altosde las montañas más altas.

Aquí estoyplantado en medio de mi existir:álamo acogedor de variables vientos.

Es mi mundo.En él tengo mi jardínque soporta todo el pesode la luz que cae en él.

En él mi inquietud se levantay se resume en la integración de mi existir.

Allí surgícuando cedieron a mi cantolentamentelas penumbras.

N

NO SE QUE TORMENTA DE ALAS LEJANAS...

No se qué tormenta de alas lejanasse agolpa en torno mío.No sé si sobre mis huellas se amontonansangrientas orquídeas.Quizás en mis pasos venideroscontraiga el asco mis heridas.

Pero he de caminarentre las hierbas verdes.Pero he de caminarbajo la noche negra.

Hilanderas de antaño me dictaronhebras de rosieler a mis vestidos.

Y en las simas harapientasse me hundieron las entrañasderramando intensa vida.

Viviendo en rotar de carruselentre el cienoy el aroma naciente.

Viviendo en correr de carnavalen el azarde un torrente.

Danzandoal sonar de campanas.Muriendoal danzar de campanas.

Pero hundiendo las pisadasen vómito celeste,desarrollando un hilo de platadesde su extraño surgir.

Y he de caminarentre las hierbas verdes.Y he de caminar

bajo la noche negra.Y he de caminar.

Q

ES LA NOCHE...

Es la nochede una dulzura espantosa,con insinuaciones de cosas tristes,con presagios...

Gatos niñosHoran debajo de los muelles

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y muerden la voluptuosidaddel temor a la nada.

La luna se mojadetrás de la lluviay envuelta en sus veloscamina sin saber a dónde,fría y orgullosa.

Es la noche...

Oh noche infinita:Cantemossobre las ropas rotasbajo la orgía de tantas lucecillas.Cantemosa la tristeza de las ondas salvajesdel terrible despertar,a su esenciaque nos hace hombres,y volvamos los ojos al abstracto ébano sideralque nos aprieta.

Sumerjámonos desnudosen el aliento que nos brinda la nochey dejemos rodar nuestras ideascon rostro adornado de yerbas que ofendeny al compás de las quejasde antiguas vírgenes.

Lloramos lo triste de sery de estar sumidos en esta espuma de vigilias.

Todo es tristeen la noche extrañaque nos hace verlo que ustedes los vivos no conocen

Todo es tristeen la noche revuelta y sin reposo.

Todo es tristeen la noche de brumas atrayentes.

Lloramos,

lloramos pero cantamos;todo es un sueño...y queremos cantar!

Yo solo séque no soy ni vigilia ni sueño,que soy gris y egoísta...

Que quiero y aprietoy siembro la semillade otra estrella fugaz.

Y que en los jardinesaspiro el perfume contando la flor.

Es la noche con presagios...

Quiero ver esta nocheel éxtasis de la Eternidad en un momento de reposo,sin juzgar nada.

Sigamos bebiendo de este vino,subámonos en lo más alto de todas las ciudades,donde nos envolverán nubes deleitosasy donde oiremos cantara las sirenas de bellos senos.

Allí estaremos

hasta que seamos otros hombreso no seamos nada...

Mientras tanto,no pensemosy veremos el reposo de las ciudadesy séntiremos el roce de lo divinosin saciarnos.

Después,rompamos las copas.

U

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AQUI...

Aquí,entre el resonar injuriosode palabras-pedradas-miserables de cieno,paseando lentamente,lentamente goteando sangrepor la punta de los dedos,sangre escapada de la noche que llevamos.

Aquí,con la cabeza hirsutay los ojos bien abiertos,paseando lentamenteentre brumas apretadasque se salen por la boca de los hombres-fango.

Aquí,miserias,dolor de lo más bajo y oscuro y asqueroso,crueldad de la pequeñez,tristeza tan grande de todo lo minúsculoque a mi alrededor yace.

Sangre derramada...Frío.

Los oídos de la tierra se han llenado de clamores,clamores de los hombres que han pasado,clamores largos,chorro continuo de ilusiones.

Pensamos que somos da tierray no queremos sentirlo.Y nuestras piernas, cansadas, no descansan.

Un largo son de sangre que se agitasin saber adónde ir.

Los caminos se cortan en un puntp:lo sabemosy no queremos sentirlo.Y nuestras piernas, cansadas, no descansan.

Allí,aquello que se acerca a cada instantey que nunca tocaremos,y donde los hombres son transparentesy sonríensólo para que veamos la puertaque siempre se abre ante nosotros,sólo para que veamos la brumarota de continuo.

Allí,adonde vamos sin retorno,adonde nunca llegaremos...:

lo sabemosy no queremos sentirlo.

Y nuestras piernas, cansadas...

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PPrroodduuççããoo cciieennttííffiiccaa ((eerrrraattaa))No período 92/96 houve um

decréscimo na contribuição

percentual dos EUA na produ-

ção científica mundial, en-

quanto a Europa aumentou

sua participação de maneira

que o número total de publi-

cações está praticamente

idêntico entre a União Euro-

péia e os EUA (cerca de

1.200.000 artigos). O número

de citações por artigo nos EUA

(5,03) só é superado no entan-

to pelo índice da Suíça (5,66).Nature, 5/6/97

aEEUUAA iinnvveesstteemm mmaaiiss eemm cciiêênncciiaaEm novembro de 1997 o Con-

gresso dos EUA concedeu au-

mento de 7,1% nos recursos

para 1998 do National Institu-

tes of Health (NIH), a agência

responsável pela maior parte

do apoio à pesquisa biomédi-

ca nos EUA. Mais recente-

mente, a administração Clin-

ton cedeu às pressões exerci-

das pelas sociedades científi-

cas norte-americanas (que re-

presentam cerca de 3 milhões

de cientistas e engenheiros) e

decidiu continuar o investi-

mento em ciência para o ano

de 1999 com propostas de au-

mento superiores a 7% para o

NIH e 9% para a National

Science Foundation (NSF). Os

aumentos são bem superiores

à inflação. Cerca de 28 mi-

lhões de dólares serão tam-

bém investidos em treinamen-

to de pessoal no uso de com-

putadores e em programação

para qualificar a mão-de-obra

norte-americana considerada

ainda aquém da demanda

existente e futura.Nature, 15/1/98

AAAppooiioo àà cciiêênncciiaa ee tteeccnnoollooggiiaa 11 A pequena Nova Zelândia

criou um grupo de estudos

com 40 notáveis (incluindo

estrangeiros) para avaliar o

cenário mundial até 2010 e

guiar o pretendido aumento

nos investimentos em ciência

e tecnologia no futuro próxi-

mo. Também Japão e Coréia

do Sul, apesar do aperto eco-

nômico e da severa crise na

bolsa de valores com inter-

venção do FMI (Coréia) deci-

diram investir mais em ciên-

cia e tecnologia (Japão, mais

4,9%). O diretor de planeja-

mento do Ministério de Ciên-

cia e Tecnologia da Coréia

comentou que apesar das di-

ficuldades econômicas que o

país atravessa, “a melhoria e

a expansão da ciência básica

são essenciais para a prospe-

ridade futura”, e criou-se um

plano de cinco anos, que in-

clui: aumento de 50% em

cientistas e tecnólogos; du-

plicação das bolsas de pós-

doutoramento e triplicação

do número de cientistas visi-

tantes estrangeiros; criação

de 20 centros de pesquisa co-

laborativa com outros países

e aumento da colaboração

internacional em geral; apoio

aos governos regionais de

maneira que aumentem os

recursos para pesquisa e de-

senvolvimento.Nature, 8/1/98

aAAppooiioo àà cciiêênncciiaa ee tteeccnnoollooggiiaa 22O esforço pretendido pela Co-réia aumentará ainda mais adistância científica e tecnoló-gica entre aquele país e o Bra-sil: segundo a Unesco, o Bra-sil tem cerca de 330 cientistase engenheiros engajados emprogramas de desenvolvimen-to científico e tecnológico pa-ra cada grupo de um milhãode habitantes, contra aproxi-madamente 1900 na Coréia.

Unesco Statistical Yearbook, 1995

ACCrriissee nnaa UUnniivveerrssiiddaaddee ??Desconforto nos campi: altastaxas escolares, ensino sofrí-vel, professores descontentescom o salário e aperto finan-ceiro são problemas que as-saltam com intensidade cres-cente a velha torre de marfim.Cresce a pressão em funçãodos interesses dos financiado-res da Universidade, sejameles o governo, sejam particu-lares. A perda de autonomiaseria compensada pelo au-mento em relevância diantedos objetivos da comunidadea que serve. Mesmo no Cana-

dá, que conta com excelentesuniversidades (e onde três emcada quatro jovens se matri-culam no ensino superior),sabe-se que 42% de seus tra-balhadores não estão prepa-rados para empregos que de-pendem das ciências da infor-mação. A China terá de multi-plicar por 10 o número degraduados em curso superiordentro dos próximos 10 a 20anos, de acordo com a análisede Peter Drucker. A Universi-dade deverá ser capaz de usaras novas tecnologias de infor-mação para atingir mesmo adistância indivíduos de todasas idades de uma maneiracompatível com uma institui-ção que acolhe a atividadeempreendedora e estabeleceparcerias com a indústria. Nospaíses em desenvolvimento, odesafio principal é prepararmuitos alunos com alto pa-drão. Centros de elite devemser estabelecidos e privilegia-dos estrategicamente. O autor(R.W. Nichols, New York Aca-demy of Sciences) concluicom um provérbio da Malásia:não se iluda com a calmaaparente dos campi, “nãopense que não há crocodilossó porque a água está calma”.

The Sciences, jan/fev 1998

aAAvvaalliiaaççããoo ddee pprrooffeessssoorreessA avaliação do ensino minis-trado nas universidades nor-te-americanas é assunto deinteresse crescente. Segundo

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o comentário, a confiança nouso dos índices outorgadospelos alunos aos docentesdeveria ser temperada pelaconsideração de pesquisasrecentes que revelam uma re-lação direta entre a relativafacilidade de um assunto (enotas mais altas) e a avalia-ção estudantil. Por outro la-do, pesquisadores da CornellUniv. (EUA) verificaram umefeito surpreendente do estiloda apresentação de um mes-mo assunto: se usual ou seacompanhada de bastantemovimentação gestual e va-riação no tom e altura da voz.Os alunos preferem clara-mente um bom espetáculo.

Science, 10/10/97

AÁÁffrriiccaa ddoo SSuullO ano de 1998 será o ano da

ciência e tecnologia na África

do Sul. Nelson Mandela lança

a iniciativa visitando a sala

de computadores de uma es-

cola e recebe correio eletrô-

nico dos estudantes de ou-

tras escolas. A idéia é atingir

os escolares de cada lugar do

país levando a eles a mensa-

gem da importância da ciên-

cia e tecnologia. Semanas de

atividades serão programa-

das ao longo do ano nas di-

versas províncias e áreas ru-

rais. França, Rússia, Holanda

e Estados Unidos da América

darão apoio às atividades.Nature, 15/1/98

aAA aaccaaddeemmiiaa ddee ttaammaannccoossNossos irmãos portugueses,

que no tempo da Escola de

Sagres lideravam na aplicação

da ciência à navegação, en-

contram-se isolados entre os

países da Comunidade Euro-

péia (EU) quanto à produção

científica. Comentário recente

do Dr. Adelino V.M. Canario

mostra como a produção cien-

tífica da EU é diretamente pro-

porcional ao produto nacional

bruto (PNB) dos países. No ca-

so de Portugal, o número de

artigos é três vezes inferior ao

valor esperado. Portugal in-

veste em ciência e tecnologia

apenas 0,6% de seu PNB, en-

quanto a média na Europa

Ocidental é de 1,78% do PNB.

Outros fatores de atraso estão

na estrutura da Universidade

com poucos recursos investi-

dos no ensino e o que o autor

denomina “um sistema indes-

critível de autonomia demagó-

gica”, segundo o qual os estu-

dantes de graduação e os pro-

fessores iniciantes (em douto-

ramento) retêm 70% dos votos

para eleição do Reitor e indi-

cação de chefias acadêmicas.Nature, 25/12/97

APPaatteennttee aammeerriiccaannaa bbllooqquueeaaddaaA Índia comemora uma vitória

rara junto ao U.S. Patent and

Trademark Office (PTO), sem-

pre acusado de ser instru-

mento de piratarias orques-

tradas por poderosas multina-

cionais. A agência voltou atrás

na concessão de uma patente

já com dois anos sobre o uso

médico de um tempero típico

indiano, o “turmeric”, que é

um produto amarelado usado

no preparo do “curry”. O re-

sultado anima a todos que lu-

tam contra a biopirataria e re-

sultou de um esforço que reu-

niu 40 laboratórios nacionais

e foi conduzido pelo Conselho

de Pesquisa Científica e In-

dustrial da Índia. Os autores

da patente são indianos radi-

cados nos EUA e o produto

seria efetivo para promover a

cicatrização de feridas.Science, 5/9/97

aPPrrooppoossttaa:: uumm nnoovvoo ccoonnttrraattoo ssoo--cciiaall ppaarraa aa cciiêênncciiaaUm artigo instigante foi publi-

cado pela Dra. Jane Lubchen-

co na Science. Considera o sé-

culo que vamos adentrar co-

mo o da ecologia e discute as

relações estreitas entre o

ecossistema e a ação humana,

assim como a importância

crescente do impacto destas

interações sobre a saúde hu-

mana, a economia, a justiça

social e a segurança. O con-

ceito do que seja o “ambiente”

está em constante mutação e

a autora propõe um novo con-

trato social para enfrentar a

necessidade de ação imediata

sobre questões ambientais e

sociais. Esse contrato repre-

sentaria um compromisso dos

cientistas no sentido de voltar

talento e energia para a solu-

ção dos problemas mais críti-

cos que desafiam a sociedade

em troca do financiamento

público que recebem. As ações

reforçariam uma biosfera sus-

tentável que seria “ecologica-

mente sadia, economicamente

possível e socialmente justa”.

Uma parte considerável deste

esforço seria dedicado à co-

municação, educação e gera-

ção de políticas de gestão.

Science, 23/1/98

ASSeemm mmaacchhiissmmoo nnoo RReeiinnoo UUnniiddooRecentemente, um estudo so-bre a concessão de bolsas depós-doutoramento na Suéciarevelou que candidatos do se-

xo feminino tinham de ser 2,5vezes mais produtivas queseus colegas do outro gêneropara que obtivessem a mesmapontuação (Nature, 387:341,97). Este artigo provocou umaanálise de pesquisadores in-gleses sobre os auxílios con-cedidos pelo Wellcome Trust epelo Medical Research Coun-cil. Não se comprovou qual-quer discriminação entre can-didatos que estivesse ligadaao sexo. No entanto os pes-quisadores verificaram que,embora nas universidades doReino Unido 44% dos docen-tes em biomedicina são mu-lheres apenas, cerca de 20%dos pedidos de bolsa foramfeitos por mulheres.

Nature, 4/12/97

aRReennddaa ee eessccoollaarriizzaaççããooInvestimentos em educação

podem aumentar a renda na-

cional: no caso do Brasil, as

taxas de retorno de investi-

mentos em educação estão

entre 15% e 20%, valores su-

periores a muitos investi-

mentos diretos na produção.

Esse aumento da produção

se dá por meio do aumento

de ganho em função da esco-

larização. Segundo levanta-

mento recente do Dieese, a

renda média mensal no mu-

nicípio de São Paulo de famí-

lias cujo grau de instrução do

chefe é nulo é de R$ 683;

com o primeiro grau comple-

to, essa renda média sobe

para cerca de R$ 1.340 e com

o segundo grau, para R$

1.680. Com o curso superior

completo, a renda média fa-

miliar é perto de R$ 2900.

http://www.dieese.org.br/pof/pof2

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