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APRESENTAÇÃO o BEBÊ QUE NOS FALA Erika Parlato-Oliveira' Sempre que me coloco a trabalhar sobre o bebê me vem inúmeros questionamentos, a pergunta "somos realmente capazes de escutar o bebê?",e como con- sequência, "o que nós escutamos deste bebê que nos fala?" Estaquestão encontra-se presente em vá- rios estudiosos e clinicos que se ocupam dos bebês, dentre eles Trevarthen tem um lugar especial. Ele se dedica à pesquisa sobre o bebê há mais de 40 anos, enfrentando um desafio constante de fazer conhe- cer a todos: pesquisadores, clínicos e pais, o quanto o bebê é capaz e como ele constrói seu saber em processos complexos de intersubjetividade. Para a construção de seu saber sobre o bebê, Trevarthen tem não somente pesquisado sobre o bebê de forma direta, com parcerias com vários laboratórios de pesquisa espalhados pelo mundo, mas também tem se dedicado ao estudo de tudo o que é produzido sobre o bebê nos mais diversos 1. Psicanalista. Mestre em Unguistica (UNICAMP). Doutora em Comunica- ção e Semiótica (PUC -SP). Doutora em Ciências Cognitivas e Psicolinguis- tica (LSCP-Paris). Pós-doutora em Psiquiatria Infantil (Universidade Pierre et Marie CurielHospital Pitié Salpêtrlére). Professora do Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente de Faculdade de Medicina da UFMG. Orientadora de Doutorado na Université de Paris (Paris 7). Membro da ClPPA. da WAIMH, e da Associação "La cause des bebes".

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APRESENTAÇÃOo BEBÊ QUE NOS FALA

ErikaParlato-Oliveira'

Sempre que me coloco a trabalhar sobre o bebê mevem inúmeros questionamentos, a pergunta "somosrealmente capazes de escutar o bebê?",e como con-sequência, "o que nós escutamos deste bebê quenos fala?"Estaquestão encontra-se presente em vá-rios estudiosos e clinicos que se ocupam dos bebês,dentre eles Trevarthen tem um lugar especial. Ele sededica à pesquisa sobre o bebê há mais de 40 anos,enfrentando um desafio constante de fazer conhe-cer a todos: pesquisadores, clínicos e pais, o quantoo bebê é capaz e como ele constrói seu saber emprocessos complexos de intersubjetividade.

Para a construção de seu saber sobre o bebê,Trevarthen tem não somente pesquisado sobre obebê de forma direta, com parcerias com várioslaboratórios de pesquisa espalhados pelo mundo,mas também tem se dedicado ao estudo de tudoo que é produzido sobre o bebê nos mais diversos

1. Psicanalista. Mestre em Unguistica (UNICAMP). Doutora em Comunica-ção e Semiótica (PUC -SP). Doutora em Ciências Cognitivas e Psicolinguis-tica (LSCP-Paris). Pós-doutora em Psiquiatria Infantil (Universidade Pierreet Marie CurielHospital Pitié Salpêtrlére). Professora do Programa dePós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente de Faculdade deMedicina da UFMG. Orientadora de Doutorado na Université de Paris (Paris7). Membro da ClPPA. da WAIMH, e da Associação "La cause des bebes".

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campos de conhecimento. O resultado é uma pro-dução de conhecimento transdisciplinar que nãohesita em colocar à prova hipóteses teóricas e deproduzir experimentos que ampliam relatos obser-vacionais ou ideias intuitivas. Seus trabalhos sãorepletos destas referencias, neste livro, colocamostodas elas à disposição do leitor num novo forma-t02, ele atravessa os mais diversos estudos e o gran-de público encontrará referências a autores clássi-cos, tais como Piaget. Wallon, Vygotsky, para citarapenas os mais conhecidos no campo dos estudossobre o desenvolvimento.

A ênfase de Trevarthen na intersubjetividade co-loca em xeque vários estudos que garantem a pas-sividade do bebê nos processos de aprendizagem,ou mesmo, de uma constituição sobredeterminadade fora para dentro, seja do meio coletivo ou darelação parental. Pois, para que haja "inter-subje-tividade" é preciso que na relação a subjetividadeesteja presente em todos os envolvidos, inclusiveno bebê. O bebê do qual Trevarthen nos fala possuiuma subjetividade apoiada nos "rudimentos de umaconsciência individual e intencional", e ao coordenarsua subjetividade para interagir com os outros ajus-tando "seu controle subjetivo à subjetividade dosoutros" ele estabelece uma relação intersubjetiva.

A isto se soma o caráter provocador do bebê,que convoca o outro a ter com ele esta relação inter-subjetiva. A "provocação" do bebê, capacidade fun-

2.Toda a extensa bibliografia deste livro encontra-se acessível através deumQRCode.

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damental para sustentarmos a subjetividade, inten-cionalidade e o desejo do bebê no seu investimentopulsional no outro, foi desenvolvida a partir da tese deEmese Nagy sobre a imitação. Ao provocar o outro,o bebê instala um circuito, vejamos bem, é o bebêquem promove esta construção, é ele quem buscater com o outro, e ele o faz a partir de uma interpre-tação, não somente do ato motor, mas também dasintenções comunicativas deste outro para com ele.

O bebê é um intérprete do mundo e ele nos en-sina a forma pela qual ele faz estas interpretações.O seu saber é construido a partir das suas capaci-dades de apreensões perceptivas e de expressõescomunicativas. Sua capacidade subjetiva é capazde elaborar respostas complexas, tanto no planomotor como vocal. para os problemas que lhe sãoapresentados. Sua investigação sobre a funcionali-dade dos objetos é apenas um dos aspectos funda-mentais da sua relação com o mundo, ele tambémé capaz de perceber e analisar as nuances afetivaspresentes nos gestos e olhares dos seus interlocu-fores e de agir a partir destas análises interpretati-vas, abrindo-se ou fechando-se ao outro, indo aoencontro ou retraindo-se, sorrindo ou chorando, eaté mesmo recusando-se a estabelecer relaçõesCXlI'Tl sujeitos especificos de sua relação próxima.Suas eleições não são arbitrárias e, nem tão pouco,

do acaso, elas estão fundamentadas na aná-interpretativa que ele faz dos sinais comunica-que estão para além da palavra, mas que são

8IpI'eSSos pelo outro de forma multimodal.

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A produção sonora do bebê convoca o outro,sua voz se faz ouvir, e a fala do outro é também efei-to desta provocação. Ao falar, o bebê encanta o ou-tro, faz o outro falar. Neste jogo, o outro, para alémdo reconhecimento, antecipa no bebê o interlocu-tor capaz de estabelecer um diálogo. Ao falar dele,por ele e com ele, este outro convoca este bebê aocupar um lugar no jogo intersubjetivo. Temos en-tão umjogo de antecipação, onde os participantesocupam lugares distintos, porém ambos desempe-nham um papel fundamental na sua construção.

O bebê nos ensina, diz Trevarthen, ele "é umacriatura inventiva, criadora de sentidos e de inte-ração com os outros", sua capacidade criadorapermite aceder a qualquer código linguístico esimbólico humano, sua capacidade de apreenderlínguas, ritos e costumes lhe dá a condição de ser ede estar em qualquer comunidade humana. Ele in-venta para si uma língua que lhe possibilita poste-riormente expressar suas necessidades e desejoscomo um falante natural do grupo ao qual perten-ce, faz do código um veículo de expressão da suasingularidade. Mas antes de partilhar um código designificantes comuns, ele constrói um repertoriode expressões amparados nos recursos motoresque tem à sua disposição: do tônus ao gesto, dochoro às vocalizações, há todo um repertorio deproduções significativas que são produzidas coma intenção de se expressar para o outro e interagircom ele. Ele é um professor de língua multimodalsingular, nos ensina suas expressões para que pos-

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samos saber sobre ele e seus gostos, necessida-des e interesses.

O bebê promove a construção dos pais,é a partirdele que o lugar dos pais é assegurado. A interaçãonão é o resultado de uma insistência mecânica oupedagógica, ou mesmo, terapêutica, mas sim umprocesso complexo no qual a participação do bebêé decisiva. O bebê e seus pais criam uma complexarede comunicacional. construída e sustentada emsistemas multimodais perceptivos e expressivos.Para falar, o bebê não se restringe à língua oral. ain-da em construção, ele faz uso dos gestos, sons emovimentos corpóreos que exprimem seu interes-se ou desinteresse, seja pelo objeto, seja para como outro. Os pesquisadores, clínicos e os pais atentosa estas formas de expressão do bebê podem cons-truir um verdadeiro diálogo com ele, não apenasimaginariamente, como alguns sustentam, mas sime também, simbolicamente, a partir das tramas ex-pressivas pelas quais o bebê nos fala.

O bebê também constrói um analista para escu-ta-lo, sua tarefa é árdua, pois por vezes,ele chega atéà clínica sem muita disposição e disponibilidade parao encontro. Seuspaise, por vezes,outros profissionaisconsultados, apontam para a falência e ou impotên-cia das tentativas de estabelecimento de interação,há sempre muitas queixas, de todos, inclusive dele,bebê, que a seu modo, por vezes, recluso e arredionos conta das suas dificuldades e sofrimentos. Escu-tá-lo é o trabalho do analista que se coloca, frente aobebê, na condição de puro não saber sobre o que ele

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precisa,mas que se dispõe a aprender com ele o quelhe afeta.Atento aos sinais,por vezes discretos e im-perceptíveis nos primeiros encontros, o analista aospoucos arrisca-se a falar nesta língua nova, estran-geira e síngular do bebê, e como um falante poucodotado nas nuances do discurso da Unguaque não écompetente, o analista deixa-se levar pela maestriadeste outro que aos poucos lhe oferece e ensina ex-pressões ímportantes para que ocorram interações,epossibilitem interpretações analíticas.

Esta cLíníca cria um novo campo de conheci-mento para a psicanálise: escutar o bebê nas suasproduções linguajeiras, reconhecer seu discursoatravés do corpo, do olhar, dos movímentos, dossons produzidos ainda não articulados na Língua.Tudo isso nos permite reconhecer sua importânciana construção de suas condições e possibilidades.O bebê passa do lugar de submetido à historia aator de sua própria historia, decidíndo e organizan-do suas representações. Esse lugar retira da mãe,ou de quem se ocupa do bebê, o papel determi-nante de sua felicidade ou infelicidade. Sem retirar, .no entanto, a responsabilidade de quem se ocupado bebê, pelo que lhe é oferecido. Mas esta oferta,seja ela boa ou não, vai ser interpretada por essebebê, seu futuro não é determinado pela ação dooutro. Esse bebê, no momento da relação, vai inter-pretar através da Linguagem o que lhe é proposto.

A prosódia materna, que ultrapassa a Língua,atrai a atenção do bebê, favorecendo os diálogos. O

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manhês representa uma porta de acesso ao outro,uma via de comunicação de intenções afetivas dooutro em direção ao bebê. que por sua vez, provocae interpreta o seu interlocutor.

A formaLização dessas trocas podem ocorreratravés das pulsões. O bebê faz o terceiro tempodo circuito pulsionaL em várias modalidades sen-soriais, ele provoca o outro para "se fazer olhar", nocaso da puLsãoescópica, para "se fazer escutar", napulsão invocante, ou ainda para "se fazer tocar", emrelação à pulsão motriz3

Hoje nós já sabemos que o bebê é capaz, nãoainda a totalidade da sua capacidade e de que for-ma ele é capaz, cumpre a nós fazer com que aque-les que Lidam com os bebês nas relações amoro-sas ou técnicas profissionais, possam se aproximardeste conhecimento, que este trabalho realizadopor Trevarthen nos proporciona.

Ao me encontrar com Trevarthen nestes últimos10 anos na França e na Inglaterra, tenho tido a opor-tunidade de perceber o seu gênio criativo e inquie-to. Sempre gentil e atencioso, ele elabora questõescomplexas, sem respostas, verdadeiras questões,para serem respondidas com trabalho e argumen-tação sólida. Eo seu trabalho insistente nos mostrao quanto ainda há para ser estudado e construídoneste campo de estudos sobre os bebês.

3. Marie Couvert. em 2019. nos propõe uma nova proposta para compre-ender a clinica dos bebês. e a clinica psicanalitica de forma mais ampla,baseada na teoria das pulsões. "A clínica pulsional do bebê", InstitutoLangage (no prelo).