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Organização: Thiago Cervan Apresentação: Carlos Eduardo Carneiro Foto da capa: Laura Aidar Julho de 2015

Aquafúria: uma antologia de poetas sedentos

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Lute pela água. Lute pela vida.

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Organização: Thiago Cervan Apresentação: Carlos Eduardo Carneiro

Foto da capa: Laura Aidar Julho de 2015

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Organização: Thiago Cervan Apresentação: Carlos Eduardo Carneiro

Foto da capa: Laura Aidar Julho de 2015

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APRESENTAÇÃO

Aproveitando o ensejo da crise hídrica que assola o Brasil, direto da Cantareira surge este pequeno livro virtual com versos de poetas de todo país. Não cabe falar sobre este ou aquele poema do livro. Os poemas aqui publicados não passaram por nenhum processo de seleção, ou melhor, de exclusão. O critério foi apenas enviar os poemas para o organizador; quem os enviou, aqui está. O organizador, e tenho pleno acordo, é contrário ao discurso da meritocracia e, por isso, o leitor encontrará poemas qualitativamente distintos tanto na forma como no conteúdo. Hidratar-se de arte faz-nos humanos melhores, mas não basta. Beber os versos que se seguem ou declamá-los não mudará o fato de que um terço da

população mundial não tem acesso à água potável; não alterará o fato de que os trabalhadores e a juventude das periferias pagarão pela crise... já estão pagando. Shoppings, empresas, latifúndios e bairros elitizados não ficam sem água: a burguesia brasileira e a alta classe média negociam com os burocratas das autarquias do sistema de abastecimento a compra de enormes volumes de água que são desviados de bairros carentes. Em 1992 a ONU lançou a Declaração Universal dos Direitos da Água no qual afirma no primeiro artigo: a água é um patrimônio da terra. Na verdade até na Lua tem água, por isso, eu diria que a água não é apenas um patrimônio da Terra, mas sob o capitalismo a água é, sobretudo, uma mercadoria. Mas não poderíamos esperar que a ONU, uma instituição conivente com tantos crimes contra humanidade já que submissa ao grande capital, declarasse tal verdade contra os senhores do mundo que dão preço a todo e qualquer patrimônio da Terra, inclusive à vida humana. Sabemos que só a luta muda a vida e, portanto, só a organização popular pode reverter a situação. Enquanto a água for mercadoria nem todos terão acesso a ela. Que os poemas aqui nos inspirem na construção de uma nova organização social. Quanto vale a água? Quanto vale a vida?

Carlos Eduardo Carneiro

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Thousands have lived without love, not one without water.

W.H. Auden

faltou água, já é rotina, monotonia, não tem prazo pra voltar já fazem cinco dias

Mano Brown

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ÁGUA S.A.

1. tua sede não enche barriga 2. garganta seca não grita 3. tu não faz parte desse negócio água é pra vender não é pra beber

Ana Lucia Silva

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(O ÍNDICE PLUVIOMÉTRICO DE MERDA)

Narciso reencarnou com um irmão gêmeo. Se apaixonaram e se amaram rompendo todos os tabus. Despiram as camisas os calções e todo o resto, pularam no lago argênteo para se banharem juntos, nus. Mas para a gente o lago, com o impacto da nossa queda,

se articula dentro da pedra como dentro de um cacto a flor que amanhã será aberta. De prata, só restam as moedas de um antigo império lançadas com pedidos de sorte, e incrustradas no minério as ossadas dos consortes pagos com a única sorte certa. Do amor, só o que resta é as conchas siamesas todas fechadas em si mesmas e, dentro delas, as pérolas nunca dadas aos porcos desde que o chiqueiro virou deserto. Mas eu, como o filho pródigo, já fui perneta e maneta; a mão que estava faltando troquei por uma marreta, e a perna por uma britadeira. E assim eu ando, soco a tabela periódica, me coloco entre os escombros das eras geológicas e as peneiro. E encontro lá no fundo da cisterna os potes de incenso, mirra e ouro e até mesmo encontrarei a manjedoura, mas o que eu quero é encontrar uma torneira no palheiro. E só então verei o Pai Eterno e numa revelação profética com uma das pernas colocadas na estação vindoura

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e sentindo vir de lá um sopro fétido: o deserto voltará a ser chiqueiro! E diremos: aleluia! Pois então de mala e cuia sobre a lama navegaremos para tentar a sorte em algum lugar do pólo norte que, dizem, está virando mar. Assim como os remos devem ser pares para a nau seguir em frente, assim hão de rolar fêmures,

tíbias, calcanhares à direita e à esquerda do atropelamento pois não perguntaremos se os esqueletos querem conosco viajar. Apenas se, com o ranger da hélice, arrepiar-se a grama como os pelos da pele, e se da terra abrirem-se os poros e ejacular a catacumba algo parecido com lama que brote pelo tubo e encha os reservatórios, convidarei então a dama que lá dentro mora para que suba e me namore. O amor faz que eu queira me fundir com uma garota como sob uma torneira uma gota com outra gota. Sou interesseiro, porém fiel e, se encontrar uma mina de ouro - um bico de teta que sirva de bebedouro – , prometo: não a troco por outra. Não preciso que o seio da terra verta leite e mel, com a fartura de Dioniso, nem banhando-se no lago da luxúria de Narciso com o seu irmão gêmeo. Eu só preciso de uma pura lágrima de hidrogênio com oxigênio.

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Mas só o mercúrio espirra do estourado termômetro. Uma gota rola pelos veios da minha digital assim como a prateada bola numa pista de pebolim. Não me misturo com sua densa massa atômica. Mesmo assim, inutilmente eu teclo à toda impulsionando meus botões para o venenoso metal catapultar de volta ao solo, e mesmo que eu distenda meus tendões fazendo petelecos

com os dedos como trampolins... Eu devo, como projetista de mim mesmo, pensar uma engenhoca que, não importa a pirueta que faça a roda da vida, uma fortuna me prometa onde seja eu mesmo a minha própria jazida, uma bolsa gástrica de auxílio: “Minha vida, meu vívere”. Afrouxei umas rebimbocas que mantinham presas as minhas vísceras, e foi desligado meu senso crítico quando de minha cabeça eu removi alguns fusíveis. Todos os meios técnicos eu os pus a meu serviço – desde a minúcia das pregas com seus grampos e parafusetas, até o eco épico da minha robusta marreta – e cheguei a uma fórmula empírica para nunca mais revirar gravetos atrás de restos alimentícios e outros detritos comestíveis: agora eu só me servirei da minha própria sevícia com um sistema cíclico de reaproveitamento de vícios! Pois eu, como um rei que sofre de complexo de Midas, a última coisa que farei é limpar o cu. Abre-se-me a vida como um cofre sem segredo,

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e abrem-se-me todas as virilhas como dinamitados baús. Mas eu, colocando o dedo, a tudo que é couro folheio de ouro, revisto de ladrilhos tinjo de dourado, e por isso nunca desnudo o meu precioso alvo onde miro as minhas setas... Só o meu cu como solitária ilha é o último ponto no mundo

que permanece nu e – embora intocado e, tomara, intocável... – totalmente descoberto. Abre-te mandacaru de césio com as suas pétalas floridas no deserto! Sê carne que se preze de alto quilate e como uma sirene acene com seu último sinal de alerta! Como o abutre quando sente fome come as suas próprias fezes, que eu me represe e de mim mesmo me nutra – por mais difícil que me seja abrir a boca (este teimoso orifício!) até todo o caminho da garganta revolvendo-se no bócio, e mesmo que eu sofra com as moelas que roncam em cálculos insolúveis, me parece um bom negócio: eu encho de enxofre as pás dessa roda-gigante onde a tudo eu câmbio em giro de moeda, promovo um aumento do índice pluviométrico de merda e lambo sem melindres, e sorvo sem frescurice

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o meu único remédio. Eis o verdadeiro tesouro: o conteúdo da marmita. Transformem-se em batatas todas as pepitas! O tremor da carne quando abro a lata da lixeira é mesmo a coisa mais bonita e a beleza estagnada de um pântano de ouro, realmente, nada há de mais triste. Os pedreiros massageiem com as suas britadeiras

esses estressados edifícios e, deitando a cidade numa esteira, dêem-lhe uma de mão cheia! Aprenderemos o sabor dos gafanhotos e se lacrimejarmos com o seu amargo gosto lambamo-nos as lágrimas uns dos outros em comunhão eucarística. Chupemos a coriza que escorre dos narizes em resfriados alheios e aprendamos a amar a todo rosto em que exista uma torneira com goteira. É isso o que eu chamo “sustentabilidade”. Que a nossa engenharia íntima se proclame auto-suficiente e nunca mais seremos vítimas de um sistema tão instável quanto o meio ambiente! Possa a minha engenhoca com sua marcha pela terra seca ir amontoando esterco à potência de mil carroças! E os porcos venham comê-lo como se o desperdício se evitasse por não nos importarmos com o fedor. Agora nós olhamos por espelho mas, quando nos vermos face a face – um dupla-face, por favor! Dois sóis se geraram em nossas bochechas risonhas quando nos barraram

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na porta identificadora de metais. Não é para menos, como estão os nossos buchos cheios de chumbo, cromo e arsênico! Mas talvez nossa vergonha com o calor de seu efeito hilário venha a ser o nosso último gerador de elétrica esperança. Puxaremos as nossas pálpebras murchas e diremos, de nós para nós mesmos: minhas bochechas caem,

me corroem os sais e que cor dourada é essa da minha veia sob o cancro? Mas é então, com o negado acesso a um incendiado banco, como à porta de um forno onde barrados fomos, que nos consideraremos salvos, e nos lembraremos do cromo, do chumbo e do arsênico, nos perceberemos saudáveis ou não tanto assim anêmicos, a esperança reaparecerá no gasolímetro e daremos graças ao veneno o qual recheia a nossa pança e nos dá esse novo ímpeto. Todos os relógios-de-sol pararam. Mentirosos são os relógios a pilha que seguiram contando fuso-horários depois que a Terra parou. As pilhas, removamo-las dos traseiros das máquinas como seus metálicos cocôs e façamos a partilha como fossem a água e o pão de nosso eterno meio-dia sob o qual secou sem perdão toda a superfície terráquea, e comamo-las num ritual báquico ou num romântico encontro com nosso verdadeiro amor. As flâmulas ardem nos candelabros e nossas bocas se abrem com o tilintar das taças, abro-te

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um estojo de cesáreas moedas para pedir-te em matrimônio... e por fim eu como sem tremelicar de nojo. Eu dei os cântaros da nossa festa de casamento, eu dei as taças de nosso encontro romântico, eu dei todo o ouro do meu templo para o Senhor da previsão do tempo que os faça

transformar não sei se em água, não sei se em vinho, se em lágrima, se em moeda, se em merda, não sei... mas cantarei enquanto me esbaldo comendo e bebendo o que me deres com minha exuberante bacante, com meu esqueleto de grinaldas, um addendum miserére para o Cântico dos Cânticos e assim melhor cortejarei a morte. A vocês eu deixarei o meu Sagrado Coração em calda mas ninguém conseguirá abrir o pote.

André Nogueira

Novembro 2014.

* OBS. Este poema corresponde ao Capítulo 3 de uma obra maior, chamada “O Centro do Lago Furado”, com o subtítulo “Uma Proposta de ‘Sustentabilidade’”.

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CHUVA:

assoar do silêncio bruma num meio do dia chuva-apito inaudito úmida,

só faltava essa: ida de uma lembrança - fogo do se foi

Ari Marinho Bueno

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A CHUVA TRANSBORDA uma sensação de limpeza da alma Aos poucos seu caos nos atinge e fica-se puro Um belo pulo em um rio Um banho de mar Um banho bem tomado A água nos sustenta e também no limpa Cuidar dela é essencial Vive-se toda uma vida dependendo dela Pense nisso quando matar sua sede Clara como nunca visto ela refresca Ela nos banha e deveríamos ser gratos a ela Nossa porção de vida depende dela A nossa saúde brindo contigo A nossa natureza

A nossa passagem por esse mundo

Caiubi Teruya Maranho

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VIDA SECA Um dia de sede Na cumbuca quente, alguém: O amargo vai tomar. Num dia tão triste Não pra quem o viu, Para quem esta a olhar. Olha com vibrante coração Pasmo. . . De ver o aceitar. Por estar encurralado, nem reflexão Contenta irrigar. Quantas ideologias martirizam a morte

E não vivendo a dor, o burguês vai discursar. Num dia de sede Dome ao som de estalos A inocência breve, Abreviando a sede, ficam olhos secos, Secos de incomodar. Quando a morte breve leva a inocência, Vem olhos inundar. Onde alimenta a crença, alimenta a dor, Dor e aliviar. Na poeira seca não importa o adeus, Importa quem ficar. . . No café amargo adoçado à cana, Cana de amargar; Espanta os pensamentos, Pois o corte é certo e não há de acabar. A coragem é vida, dez reais ou trinta, E nas paredes frias, a demagogia Pensa se importar, Se as bocas secas, com seus olhos cegos Conseguem falar. Passa-se por herói, patrão ou doutor, O mal gira a cabeça, E a cachaça apaga o fogo dessa dor. Um dia de sede Poucos que se importam podem aguentar. Longe das manchetes, Do podre deste verme Eles vão lidar; Corações valentes Escravos sem correntes Acorrentam-se a trabalhar. Chora o coringa farto, E este palhaço implora Nunca mais lembrar. E na lembrança traída Permanecem vitoriosos, E para casa voltam, voltam para voltar. Na poeira seca não importa o adeus,

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O próximo é irmão, Importa quem ficar. . . No canavial, a alma vai ao fogo E o dia vem forjar. O balançar dos braços, E no amontoar da cana Há de se aguentar. Se a poeira é seca Dobra-se a poeira E bebe sem pensar. Lá no esquecimento Um povo por lamento Não vai se escravizar.

Coçam-se os calos E um abraço é guardado Por valorizar. Repartir um ovo, Se não há mistura Alguém vai misturar. Recuperam-se os braços Caídos com o espinhaço Para recomeçar. Chora o coringa triste Longe da miséria, Este palhaço implora Nunca mais lembrar. E os vitoriosos fortes Voltam pra casa forte, Pois na poeira seca Não existe morte, Não importa o adeus Importa quem ficar. . .

Campos Moncla

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DA HABITAÇÃO INVISÍVEL Existir é morrer e não existir é desaparecer

REDES REDES que há vida se há redes ligam-se vidas redes lançadas o tempo é marcado pelo sol e pela pele e não o pelo adereço do pulso O rio não é mais o mesmo então eu sou outro homem apareço e permaneço nesta pedra TODOS OS SANTOS dias noites em claro cloro nas sanguessugas de câmeras e microfones NO AR!! pimenta nos olhos do rio é refresco sem líquido muretas para proteger-nos da água mureta, o segurança que protege o patrão Eu sou o Zé nós somos os Zés Zé zé zé é o que é Zé é você eu nós Nóiz junta nós juntam nós de costuras provocando em nóis fissuras procurando Zé pelas ruas encontrando o dentro de nóis entrelaçados em redes se pondo neste ponto do mundo Alvorecendo, enoitecendo invocando, evocando Admiro os sapos, eles habitam os dois mundos: água e terra há um abismo entre os dois e estamos neste limbo Existir é morrer e não existir é desaparecer Nossa trajetória segue sinuosamente ou você se canalizou?

Emerson Alcalde

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SEM TÍTULO OU FRAGMENTOS LÍQUIDOS

réptil, este rio (espelho de espasmos) rasteja dentro de si. este, ao sol desta hora convulsiva. dia sem encanto ou quina. rio indigente, aborto desta urbe.

(este, adeus à pequena vila que o esmerilha). ... o rio, este, cadáver líquido.

Fabiano Calixto

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GERANDO ALQUIMIA Uma molécula de hidrogênio E duas de oxigênio Mágica da simples química da vida No entanto com a alquimia devida Um pouco de photoshop e controle sobre a mídia Aplaudirão o truque de mestre do alquimista No seu laboratório elabora o contrato comercial Grandes impérios mercantes de olhos na pedra filosofal Com todos sabedoria, metodologias e experiências Os antigos mestres das magias e das ciências Procuraram e procuram por tantos e tantos séculos Mas nunca encontraram a fórmula de tal tesouro

Agora vejam o governante com seu mandato, seu terno e seus óculos Transformar água, o verdadeiro elixir da vida em ouro

Felipe Nikito

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CLUB SODA

Palavra-cruzada, parábola encruzilhada, cilada dodecafônica. Pégaso, alado

equino, montado pelo herói Belerofonte, nunca houve muro ou monte que lhes

afastassem o horizonte - não fosse a vespa enviada pela inveja de Zeus. Matam

Quimera, Sólimos, Amazonas. Depois saem pelos Andes, levam Cervantes,

ensambarcantes, sambarolentes, ensimesmantes, salvaguardentes. Sambam

poentes, pastam solenes salmos dormentes, pescam a fome, mascam

correntes. São felizes. Mas, ao redor, veem apenas aqueles que seivam de

sono, silvam serpentes, saem de fino, choram os dentes. E, quando sonham,

apenas roem repentes, rufam cacimbas, rangem caretas, morrem ranhetas;

vendem o cio para ganhar o ágio da puta que os pariu. Fodem, nihil. É tudo

que comentam, é o máximo que algum ali já sentiu. É essa áurea mediócritas

de merda, mas as verdadeiras feras são os patrões das sentinelas. Arruma-te

todo engomado e bem barbeado às sete da manhã, por pior que tenha sido o

cubanacã da noitada anterior. Não te esqueças dos cartões, do lenço, das

barbatanas, do zíper, da gravata e dos capangas. Adentra agora a tua cápsula

intransponível e transportável, te farta sozinho de toda a água potável, recicla

o próprio mijo e vende como Club Soda aos demais paspalhos, outras bestas

sanguessugas iguais a você; infames ácaros da casa do caralho.

Fernando José Ramos Borges Filho

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MAR RUIM

o paraíba de ferrugem intestinal aparece à janela da poltrona 11 na dutra agora de espelhos mineral tem sono e me dá o braço seguirmos juntos

ele que vai sobre as barragens as leva consigo toma por sereias suas moças faz marinhos seus cavalos logo abre os dedos não me pode acompanhar baixou a guarda posso ver as pedras redondas às beiras suas praias meninas as pontes não levantam mais a saia têm você nas solas poça rasa paraíba por amor queimaram com ferrete no peito na cara as ombradas que rugiu sua testa caprina o amarelo dos ipês e da mrs é seu cortejo seus batedores encontro nas curvas esperam você

mas as casas agradecem puderam furar os cascos não flutuam mais rio paraíba do sul mãe do vale perdeu o feminino alagadiço não precisa mais parir pode descansar mas se chover vejo você Boi Aríete matando a fome Heyk Pimenta

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GOTAS DE VIDA

Suplica a chuva que não cai, mergulha em pedras rochosas e os peixes sendentos no vazio do rio aguardando a sua hora. E a vida deságua no único mar de lágrimas do homem que não lavra mais a sua terra sedenta, sua mulher ora enquanto de verdade seu filho chora, pois há tempos não se alimenta.

Surpresa fica a cidade com seu poder e tecnologia, nunca sentiu a seca de verdade e os prédios se apagam por falta de energia. Sofre o homem, sofre também a natureza pois ofereceu tudo ao homem, e hoje os dois morrem da mesma pobreza.

Jeferson Cardoso

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CACIMBAMOR

Cacimba, carro pipa, cisterna Armazene meu amor pra quando eu voltar Que n'águamor Desaba e faz encharcar Sabe dançar na chuva tanto o que tem pressa, quanto quem sabe esperar Pisa, perde a chinela, sem medo de dançar Sapateia n'água também quem tem medo de se molhar.

Na hora dada, sem muitos planos, enxuga o pano e deixa de novo molhar. Quem tinha medo da gripe Agora deixou resfriar e esquentar O coração no ninho de quem deixa se molhar.

João Ernesto

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VOLUME MORTO consumido milhares de litros de poemas em alarme entro agora no volume morto nenhuma nuvem de versos ou gafanhotos no céu ulcerado da seca sobre ossadas de palavras fósseis

nenhum poço guarda no fundo ritmo líquido e cristalino todo poema quando não houver mais poemas invisível memória no talvegue das páginas do volume morto

José Antônio Cavalcanti

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DIZEMOS ÁGUA e continuamos

com sede, o banho de chuva

ácida não lava nossa alma

mas expõe todos os ossos

há um enigma cabisbaixo

surfando em nossas lágrimas

há um milagre moribundo

impregnando nosso suor

nossas salivas não salvam

os oceanos de merda e plástico

tartarugas morrem todos os dias

sufocadas no horror de nosso sangue

não há líquido amniótico suficiente

para proteger os nascimentos dos rios

e não adianta andar sobre as águas

ou então transformá-las em vinho

enquanto não renovamos a seiva

de nossa medula mergulhando

plenamente na lama e no lodo, diluindo

nosso egos nas águas subterrâneas

dizemos água e continuamos

uns animais cheios de esquiva

esquecendo nossa origem aquática

e uma ética molhada para estes dias

José Juva

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SONETO DA LAVAGEM CEREBRAL

Nem mais cinza, nem mais chata existe Que a chuva fina, leve, densa e vazia Se o carioca, sem casaco, insiste Ela espanta e traz uma frente fria E onde houvesse rua, correm afluentes E onde musas nuas, cobrem-se doentes E onde houvessem casas, resta lama E se houve governo? Má fama E já nem Copa, samba e futebol Globeleza, mulata, pão, circo

Nada alegra, se não houver o sol E o povo crítico, unido, pensa Cadê a verba? Quê fiz com o voto? Que chova forte nas mentes, intensa!

Letícia Brito

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CHUVA DE AQUERONTE

“Aquele rio jamais se abre aos peixes.”

João Cabral de Melo Neto

DESCERAM

do C É U,

fluíram pelo concreto,

atacaram as maiores torres,

beijaram as estruturas dos prédios,

submergiram os carros,

desidrataram o mato,

picharam as árvores,

sugaram os peixes,

desmaterializaram os bravos,

endureceram o coração das crianças,

uniformizaram os imaturos e sangraram o peito das fêmeas.

Indaguei sobre suas identidades e eles

se admiraram – exibiram placas (suas credenciais) e

depois cursaram o meu corpo com lâminas afiadas.

Zombaram

como

hienas,

treparam

como cavalos,

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ruminaram

feito Molochs e

disseram que eram demônios brotados da alma humana.

E eu que não possuo alma (tão raro saudade)

fechei os olhos, respirei três vezes até que o cheiro

do último Diabo fosse embora e arrastasse consigo todo sinal de morte.

E eles cantavam:

Lá fora nada sobrou – nem homem, nem mulher e nem bicho sagrado.

Lembro como se fosse hoje da primeira chuva de 2050: “Chuva de Aqueronte”

cobriu as cidades com um véu de morte, emudeceu o canto, infiltrou no solo,

contaminou o magma e o que era para ser benção volveu-se em passagem

para o meu barco sobrecarregado de mortos.

Chuva de cinzas,

chuva estéril,

chuva da desmaterialização,

chuva do infortúnio.

Meu nome é Deserto e nós somos muitos.

Lisa Alves

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NO ESTADO DE SÃO PAULO NÃO é são pedro que decidiu não colaborar, olho a avenida nações unidas, bauru: desperdício! calçadas dos condomínios os mendigos congelam nas enxurradas os carros são levados pelas enchentes não são as tempestades que estão faltando e sim a vergonha nem mesmo uma gota de honestidade torcendo as gravatas dos nossos senhores os excelentíssimos representantes os que só tem é língua e desmatam toda a amazônia assassinam os índios e nada mudou com os séculos no fim é o resultado a escassez

o país com o maior volume de água do planeta inteiro vivendo uma crise hídrica porque sua matéria prima ao povo não pertence é assim que entendem os herdeiros dos velhos conquistadores mesmo em dois mil e quinze mais de quinhentos anos depois o brasil ainda é uma terra a ser pilhada e dominada roubem destruam o nosso ecossistema que bebam todos sobretudo os mais pobres areia privatizem os rios e a chuva que os ricos encomendam caminhões pipas brindam suas perriers gaseificadas seguimos apenas nos banhando em ira e os miseráveis sobre o calor do sol cozinhando infernos nas barrigas ocas fome queima como fogo vai aos poucos nós tomando suor lambendo vapor esses são tempos de seca sobretudo a pedra dura ressequida no peito sem peso mudo sem qualquer sensação repleto de dentes um tipo de vírus

Marcos Tamamati

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LEILÃO DE VINHOS DA ADEGA PRESIDENCIAL

essa é a história de quando crianças mediam as lâminas pelo tamanho do rasgo e pelo barulho de longe sabiam com qual tecnologia a bomba tinha sido feita. era uma trindade pueril. Evapora, Catulo e Pedro. o trio de crianças cristais ou alienígenas ou uma porra. nova armadilha da polícia

que os usa de cães perdigueiros. era um milênio sombrio, mais do que todos os outros de que se tinha notícia. a guerra durava séculos e desandou tanto tanto que tivemos que apertar reset três ou quatro vezes. quando surgiram as tais crianças, em quase todos os territórios havia a monocultura do cacto. principalmente nos estados do sul, onde costumam fertilizar as árvores com vapor de Coca-Cola e pólvora. o cacto desalinizava o mar e se tornou investimento rentável, desde que o preço da água ficou mais alto que o dólar e o racionamento tão severo que até chorar era proibido. o pouco d’água que inda havia era reservado a crianças idosos

e à monocultura do cacto. não demorou e a situação foi ficando insuportável. então criamos o Cumulus. eu tinha uns vinte e nove. me lembro, como fosse hoje, quando vi Catulo e Evapora. já eram famosos pelas proezas. Pedro chegou foi depois, quando já éramos caçados. a facção terrorista, de nome Cumulus Nimbus,

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surgiu numa padaria de esquina na Augusta. éramos jovens bêbados, revoltosos não só de internet. nos bolsos tínhamos pílulas de hidratação trazidas de Miami pela mamãe de alguns dos nossos, enquanto todos em volta bebiam e suavam Coca-Cola. não lembro se era o Jonas a nos dizer dos meninos

de rua que escavavam casas soterradas pra morar, quando exaltado bati na mesa fabulando algum terrorismo. um plano e os olhos em chamas ao menos atenção garantiam: “sugiro que façamos assim: entremos pelo aquífero guarani, com os submarinos que navegam mesmo em territórios secos...” o plano era infalível: entrar com drones-nuvem nos cernes do plantio, ali instalar as bases pra hackear os cactos e converter água em vinho, digo, azedar a água dos ricos e irrigar a goela do Brasil. era isso que planejávamos: entrar no servidor do Planalto, plantar sementes de vinagre e dar cabo ao destempero. é a fé que faz exato o palpite. com fé demos primeiro ataque e infalível seria o próximo e logo viria um terceiro. derramaríamos chuva rala na jarra de todo homem sedento, não tivessem as três crianças, Evapora Catulo e Pedro, não tivessem sido pegas e então lobotomizadas para servirem de radar contra os nossos ataques.

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quando por fim nos prenderam, revi Catulo, tentei olhar no olho: era um abismo maciço que não dá pra cair dentro. meu peito se renovou em ódios, não dele que não era inimigo. aquela menino de antes, o nerd superdotado, podia ter sido um dos nossos, logo aprendia a beber. não duvido seria o líder, irradiaria insubordinação.

a lobotomia, entretanto, os converteu em sutilíssimas antenas e radares que até futuro predizem, mas funcionam de acaguetes a serviço da polícia. gênio vegetativo agora, Catulo baba e aponta o dedo na direção de qualquer falha ou vulnerabilidade que possa haver no sistema, na cidade ou no planeta. foi assim nossa captura, quando, depois de sabotar metade do plantio do cacto, íamos invadir uma reserva de água perrier que descobrimos num banco suíço, em nome da Dilma. foi batizada Operação Cirrus a campanha que nos caça com a ajuda das três crianças: e dos treze principais membros da facção Cumulus Nimbus

hoje sete se encontram presos. há oito dias sem água, na cela, um rato me disse: “veja, filho, a imaginação já é reflorestamento. não adianta chorar as árvores derramadas.” consumindo só Mc. e Coca-Cola, temo pela minha sanidade. ontem até disse ao repórter que só resolveria a crise hídrica

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fazer leilão a preços de banana dos vinhos da adega presidencial.

Marcus Groza

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ANÚNCIO

Na boca um gosto de ansiedade No peito uma agonia de calmaria estranha Prelúdio que venta no ventre, na entranha O corpo que anuncia chuva e densidade. Mas não chove, Embora tempestade.

O que nos move? Os olhos procuram por algo Cego: fico ou galgo? Não há vida, nem tampouco morte. As mãos que tentam tatear Um norte? Tempestade de secura Chove medo, ilusão e amargura.

Mônica Estela

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ÁGUA: vitamina para sertanejo.

Ni Brisant

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METEOROLOGIA DOS CORPOS

Nenhum dilúvio limpará esse ódio haverá sempre uma vingança justa sempre uma revolta necessária. Qualquer apelo é inútil rezar nem se fala. Não há onde esconder esse desespero As crianças não cabem nos bolsos e ainda precisam empilhar corpos como os brinquedos de uma guerra. Um olho nunca será uma bolinha de gude Uma amarelinha não se pula sobre cadáveres. O único céu é o da boca

quieta como um dia nublado em que a chuva encontra o silêncio que abandonou a carne Sangue não é urucum para pintar o rosto da cidade com pavor e medo. Nem tente recostar seu rosto nessas bochechas que desmancham, qualquer carinho é um crime toda empatia uma cumplicidade. Do telhado do país a vertigem das gotas, em vão esfrega essas mãos: água não lava o horror. No Jornal Nacional tudo será paz e progresso e a previsão do tempo indicará estiagem seca das lágrimas racionamento da saudade. A vida escorre confundindo choro com chorume... Daqui algum tempo, quando o sol evaporar o medo o ódio grudará nas nuvens escurecendo o céu e novamente seremos mortos órfãos ou cúmplices.

Pedro Spigolon

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H2O

não falta sede não falta não falta fome não falta não falta bala de borracha gás de pimenta porrada não falta não falta desejo não falta não falta genocídio em massa desocupações miséria tem bastante não falta não falta chuva alagamento barracos boiando não falta

não falta incompetência não falta não falta gente nos presídios fundações casa vidas condenadas desde o primeiro respiro não falta não falta dor não falta não falta bala (essa nunca faltou) para destruir vidas mães chorando pelo sangue corrido não falta não falta gado apertado em lotações e paus de arara não falta não falta o assalto nosso de cada dia roubando nosso pão e dignidade não falta não falta barulho ensurdecendo as vozes que gritam não falta e no entanto são tantas as faltas

Pedro Tostes

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DAS profundezas das águas o tesouro maldito é socializado por falsos profetas : metais pesados ( matar o pobre que mata a sede)

Rosana Banharoli

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DA FLOR DAS FONTES

Que brota num veio Para assinar-te a sede E pela sede ensinar-te Que é da fonte a flor Incolor e inodora Que te olha Que te molha Que te água.

Tere Tavares

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_DA LAMA À LAMA a cantareira sem um mísero cântaro o cântico duro da terra quebradiça a ausência das aves o marrom nas torneiras os lençóis manchados as dores de barriga e verminoses à mesa a louça imunda à mostra o esgoto incontrolável dos dias a draga sugando a merda a lama os ossos dos peixes os galhos as garrafas pet latas bitucas pneus papéis de bala linhas os parafusos as barragens a ferrugem dos carros submersos os papéis higiênicos o lixo hospitalar com órgãos apodrecidos e seringas usadas

os santinhos do descaso a paciência o sangue da desova de pretos e pobres o choro de mais uma mãe de maio e de todos os outros meses o volume morto enterrado sem salvação sem reza sem cruz nem credo nem vela: não secaremos calados: o fundo do poço transbordará

Thiago Cervan

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PARAIBUNA A represa que era água agora até parece um campinho de futebol só que sem pelada só que sem moleque O campinho que era barro submerso fica ao lado da cerca da propriedade

que era árvore na cerca que era árvore na casa A árvore foi podada já faz tempo A água ainda ontem tinha tanta bem ao lado Hoje o poço parco irriga mais ou menos a cerca, a casa, a propriedade de galinha, arame e barro Só que sem pelada, só que sem moleque, só que sem represa Ainda bem que agora pouco choveu no meu telhado mas haja água pra molhar o mundo inteiro

Thiago José Diogo

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DESERTOS (Janeiro de 2008)

I. o bardo de barbas ralas caminha cantando aos homens sem luz de canção as trovas no Livro do Povo é posto uma anti-oração sem tinta pautada de som sagrado corre a música dança a plástica tempo fica modifica a história corre em busca do homem o tempo langueia e corre o homem mudo II. e eis que o bardo coreografando de improviso entre saltos longos e espacates vibrando junto ao vento busca o oásis deste deserto cada lençol de areia que ergue seu encanto desnuda mais o rosto da virgem sereia exótica e exuberante esperança o pó lançado ao lado pode por certo mostrar morada não contém a célula de silício em si todo o deserto? há de haver morada na areia corre e canta o aedo balançando-se em galhos e brincando em poças (se existissem) deixando levar seu lenço o vento para veloz ir buscá-lo nas paredes de barro e teto de palha busca o maestro sua fundamental pedra sua derradeira casa III.

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entre dunas e rios ásperos correm os furacões sentinelas esterilizando o pó sempre buscando a vida o tocador assobia baixinho tentando encantar os ventos em busca de casulo com um chapéu encharcado a barba cheia de areia o homem cava um abrigo nas mantas do grande deserto entre os papagaios voantes vê o cantor esperança de avançar caminhante

há no deserto algo de novo que não areia e miragem IV. após treze anos de caminho de contenda contra os ventos sílices gigantes rodopiantes surge cansado viola as costas e pandeiro à mão cantando as cobras nosso arauto sem pousar as paredes do infinito só fizeram ferver as esperanças sem permitir ganchos de redes às costas fatigadas o vítreo carpete de pão assava as massas dos pés no errante sem bacia de prata para o banho o calor cria desaconchego aconchego apenas ao longe na nuvem de calor enxame de miríficas belezas calor há no homem mais que viola e vibrar de ofídios pandeiros sua bandana encarnada e chapéu de couro moreno de brinco dourado a língua comprida a tocar o queixo e dançante e lânguida e comprida a lançar aos céus pragas e acusações ousando romper o lacre da criação o deserto seco como giz imaculado de fluídos desde a origem sofre a ira do portador da voz e geme aos golpes do céu as cargas de águas descentes

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como carruagens guiadas por sílfides a competir num coliseu latino preenchem cada vão de areia tocando a funda cova do réptil os ventos tombam ante a força do insaciável e frio aquífero os bandos eólicos tremem e choram doloridos ante os dardos de água a caçar ninhadas de tufões as primeiras gotas derretiam e anuviavam-se ante a majestosa defesa de calor juntavam-se depois pacientes e forçavam carregadas de cavalaria e plúmbeas armas

a entrada nos fortes de areia fazendo assalto às donzelas de vidro as caldeiras desérticas movidas desde a grande criação verbal nas blasfêmias se intimida e morre... resfriam-se as areias a escalada encantada das águas transformou o pó em movimento as palavras guardadas e então ditas revelaram o segredo do plano seco e deu-se seu fim o cantor faiscava água pelos olhos maldições como abelhas de sua boca colméia apenas com as águas nos joelhos úmido parou o recital e olhou sua criação mudou

Tomaz Amorim

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AMOR E ÁGUA

precisou sufocar pra entender que era gás precisou congelar pra sacar que era líquido precisou derreter pra saber que era sólido precisou secar

pra GRITAR que era raro

Willian Delarte

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