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1 Ardente Perigo

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Ardente Perigo

Larissa Siriani

2ª Edição

São Paulo, 2011

ISBN 9788580450132

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Seja feita a vossa

vontade

Assim na terra como

no céu

[...]

Perdoai as nossas

ofensas

Assim como nós

perdoamos

Aqueles que nos tem

ofendido

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E não nos deixei cair em

tentação

Livrai-nos de todo

o mal

Amém

(Pai

Nosso)

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Capítulo 1

- O que você fez depois? – perguntou ele,

após um minuto.

- Pesquisei um pouco na Internet.

- E isso a convenceu? – sua voz não

demonstrava interesse. Mas as mãos estavam

agarradas ao volante.

- Não. Nada se encaixava. A maior parte era

meio boba. E então... – eu parei.

- O quê?

- Concluí que não importava – sussurrei.

- Não importava? – Seu tom de voz me fez

olhar – eu finalmente tinha rompido sua máscara

cuidadosamente composta. A expressão dele era

incrédula, com um toque de raiva que eu temia.

- Não. – eu disse suavemente – Não importa

para mim o que você é.

Um tom ríspido de escárnio penetrou sua

voz.

- Você não liga que eu seja um monstro?

Que eu não seja humano?

- Não.

Aquela já devia ser a quarta ou quinta vez

que eu lia aquelas mesmas linhas. Ainda assim, o

arrepio e a eletricidade que percorreram a minha

espinha, o riso que tomou conta do meu rosto, tudo

era o mesmo. Eu não podia evitar que todas as

vezes que eu relesse as discussões e diálogos

complexos entre Bella e Edward eu me sentisse

desse jeito.

Fui cortada quando a minha mãe se

aproximou e se sentou ao meu lado no sofá da sala,

me fazendo erguer os olhos do livro. Ela sorriu pra

mim e ergueu a capa para ler o título: Crepúsculo.

Apenas uma dentre as dezenas de obras do gênero

que eu guardava com cuidado no meu quarto.

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- Não acredito que você está lendo esse livro

de novo. – ela me disse, perplexa. Minha mãe não

tinha absolutamente nada a ver comigo: ela não era

amante dos livros, era sempre muito aérea e

impulsiva. Eu já fazia o tipo decidida, teimosa e pé

no chão da família.

- Se você lesse, ia entender o porquê. –

afirmei, mostrando a língua. Ela riu e me passou o

livro de volta.

- Você devia parar de ler e cuidar da vida

real. – apontou, me estendendo o telefone sem fio

– O Pablo já ligou três vezes hoje. Se ele ligar a

quarta vez, pare de fingir que saiu e atenda logo o

menino.

- Eu não mereço isso! – bufei e peguei o

telefone, olhando pra ele por alguns segundos,

querendo mesmo é jogá-lo na parede com toda a

minha força.

- Laura, o que é isso, filha? O garoto é seu

namorado! Se as coisas estão desse jeito, por que

você simplesmente não fala e termina com ele?

- Porque... porque...

Porque eu era uma covarde. Eu tinha essa

resposta na ponta da língua fazia mais de um mês.

Minha mãe não era a primeira e nem seria a última

a me perguntar isso, mas Pablo era um caso

delicado. O nosso namoro tinha demorado a

ingressar, e depois de sete meses juntos eu

simplesmente não estava mais no clima de

continuar com ele.

O problema é que nem todo o meu jeito

decidido de ser colaborava quando eu tentava

terminar com ele. Pablo era gentil, meigo e me

amava – até demais. Ele era tão grudento que eu

acabei enjoando. Mas ele era tão sensível que toda

vez que eu tentava terminar ele já ficava a ponto de

chorar, e eu simplesmente desistia.

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- Amanhã começam as aulas, mãe. – falei,

com um ar derrotado – Eu vou vê-lo e falo com

ele. Não posso fazer isso pelo telefone!

Mamãe simplesmente me lançou um olhar

desconfiado e foi embora. Eu fiquei ali, na sala

ampla e fria da nossa casa, encarando a parede com

a lareira que era acesa somente nos dias mais

absurdamente frios do ano e as fotos que traziam

pequenos momentos da nossa vida.

Pregados na parede estavam três quadros: o

primeiro, do casamento dos meus pais. Minha mãe,

com seus rebeldes cachos negros e o seu sorriso

sempre aberto, e meu pai, com o mesmo bigode

estranho e a careca já ameaçando aparecer. Logo

em seguida, uma foto da minha mãe com a minha

irmã mais velha, Loren, enquanto ela ainda era um

bebê, e uma foto da minha tia, Gilda, comigo no

colo logo após o meu nascimento.

Era uma história confusa, a da nossa família.

Meus pais eram casados havia quase trinta anos, e

minha irmã nascera uns três anos depois de eles

terem se casado. Não haviam planejado mais

filhos, até minha tia ficar grávida – de mim. Ela era

muito nova e solteira, não queria uma filha pra

cuidar. Minha mãe me adotou, e eu cresci, sabendo

de tudo, mas nunca considerando tia Gilda como

minha mãe biológica.

As fotos menores, que seguiam sobre a

lareira, eram antigas e algumas recentes.

Começavam com uma foto da nossa família

reunida, no meu aniversário de sete anos e

terminava numa foto minha com Pablo, cujo

cabelo ralo castanho entrava em contraste com a

pele branca demais, e os óculos, que antes eu

achava fofos, agora pareciam emoldurar um rosto

que eu não suportava mais olhar.

Suspirei e me agarrei ao meu livro. Se ao

menos eu tivesse Edward Cullen, ou uma vida tão

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complicada e tão melhor como a da sortuda Bella

Swan, tudo seria melhor. Mas eu não podia contar

com isso. Certas coisas apenas não se tornavam

reais.

- Loren, quer fazer o favor de tirar os meus

sapatos?

Dez anos de diferença e eu dividia o quarto

com a minha irmã mais velha. Loren era mais

parecida com a minha tia Gilda do que eu deveria

ser, considerando o rolo familiar – tinha os cabelos

de um louro escuro, os mesmos dentes pequenos e

a covinha no queixo. E a odiosa mania de achar

que tudo o que era meu era dela também. A única

coisa que trazia da minha mãe eram os cachos.

- Eu vou sair com um cara, eu preciso desses

sapatos! – ela justificou, se admirando no espelho.

Eu balancei a cabeça e comecei a jogar sobre a

cama dela tudo o que ela havia lançado sobre a

minha: roupas, meias, bolsas, maquiagem. Loren

era a rainha da bagunça, e infelizmente eu sempre

estava metida no meio dela.

- Você tem quase trinta anos, devia estar

pensando em se casar com um cara! – apontei,

rolando os olhos. Ela riu enquanto tirava a blusa e

a jogava para o alto, fazendo com que caísse sobre

a mesinha do nosso computador.

- Eu estou na idade perfeita pra sequer me

lembrar da palavra casamento! – remexeu na pilha

de roupas que eu estava fazendo sobre a sua cama

e achou outra blusa – Sério, esses romances estão

acabando com você. A última vez que eu peguei

um livro seu ele falava sobre uma garota que

descobriu que era princesa. Quem lê isso?

- O Diário da Princesa é um livro muito

bom, sabia?

- Claro. Esse e aquele outro dos vampiros

bonitinhos. Eu até concordo que o cara do filme é

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um gato, mas daí a suspirar por vampiros pelos

cantos da sala, fala sério!

- Loren... – parei com uma saia dela na mão

e suspirei. Como eu iria explicar pra ela de uma

forma que ela me entendesse? – Eu não fico

suspirando. Eu nem acredito que dez por cento das

coisas que eu leio sejam até remotamente possíveis

de se tornarem reais, mas é legal imaginar,

entende?

- Não. – ela tirou os meus sapatos e os jogou

no topo da pilha de roupas – Eu posso pegá-los

emprestado essa noite, certo?

- Há alguma coisa que eu possa fazer sobre

isso? – indaguei, já sabendo a resposta.

- Claro que não! – Loren me disse, naquele

tom zombeteiro que ela parecia usar sempre, não

importava qual a situação.

Ficamos em silêncio por um tempinho,

enquanto eu pensava em Crepúsculo. Eu agia uma

idiota cada vez que relia a série, sempre

relembrando as cenas, literalmente suspirando

pelos cantos – por menos que eu gostasse de

admitir.

Nessas horas, eu tinha que concordar com a

Loren. Aquilo não me fazia muito bem.

- Com quem você vai sair hoje? – resolvi

perguntar, por puro hábito. Naquelas férias, minha

irmã tinha saído com uns dez caras diferentes, e

nunca rolava nada além de uns beijos vez ou outra.

Ela era super descolada e totalmente não-adepta ao

conceito de se apegar a alguém. Pra ela, já era o

fim do mundo que eu estivesse namorando.

Embora eu tivesse que concordar com ela

sobre isso.

- Com o meu professor de informática! – ela

disse, animada – Sabe, ele me lembra o Pablo.

Toda aquela cara de nerd fofinho e coisa e tal. Eu o

acho um encanto.

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- Tomara que dure até depois da meia-noite.

– ironizei, e ela riu e me atirou um ursinho de

pelúcia que estava no chão, ao lado da cama.

- Falando nisso, e você e o Pablo? Vão ficar

nesse chove-não-molha até quando?

- Não tem chove-não-molha nenhum.

- Corrigindo, então: quanto tempo mais você

vai demorar pra dar um fora nele?

- De amanhã não passa. – respondi, de

cabeça baixa. Loren parou sua seção prova de

roupas e veio se sentar na beira da minha cama,

com uma mão sobre o meu joelho.

- Você diz isso já tem semanas, Laurinha. –

ela me deu uns tapinhas que deveriam ser

encorajadores – Quanto antes você fizer isso,

melhor. Eu não sei o que você está esperando.

- Eu não quero magoá-lo, Loren.

Como já era esperado, Loren abanou as

mãos para o ar e rolou os olhos, sem compreensão

nenhuma do tamanho da minha agonia. Se ela

soubesse como era difícil terminar com um cara

depois de tanto tempo, ela poderia me ajudar. Mas

não. De todas as irmãs do mundo, eu tinha que ter

a única que nunca ficou com ninguém por mais de

duas noites seguidas.

- Olha, me faça um favor, ta legal? – ela

pediu, se levantando de novo – Quando você

terminar com esse garoto, vai sair mais comigo e

não vai arranjar outro gato fixo por um bom tempo.

- “Gato fixo” não é bem como eu imagino

os garotos por quem eu me apaixono, Loren. –

afirmei, com uma pontada de irritação.

- Paixão tem que ser como as minhas,

rápidas e fáceis.

- Eu nem vou responder.

Ela riu, e eu não pude resistir acompanhá-la.

Logo a conversa morreu e, lentamente,

acompanhei e opinei no longo processo que era

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Loren escolhendo uma roupa. Quando ela saiu, já

estava escurecendo, e meu coração começava a

pesar de novo.

Ela estava certa, é claro. Mamãe estava

certa, todo mundo estava certo. Pablo tinha se

tornado um problema pra mim, algo que estava me

impedindo de ser feliz, e eu tinha que resolver

aquilo depressa. Na segunda-feira, prometi a mim

mesma, eu iria fechar os olhos na hora do

intervalo, ignorar sua carinha triste e soltar logo o

que eu tinha pra dizer.

Não ia ser fácil. Não ia ser nada fácil.

Eu estava quase dormindo quando o meu

celular vibrou sob o meu travesseiro. Abri os

olhos, irritada, e peguei o celular, forçando os

olhos para enxergar as letrinhas no visor do

aparelho.

Pablo. Às onze da noite, no domingo que

precedia a volta às aulas. Ele devia estar realmente

incomodado com alguma coisa. Ou talvez ele

estivesse me ligando pra dizer que queria terminar

comigo. Tornaria as coisas muito mais fáceis.

Eu fiquei um bom tempo sem saber se

atenderia ou não a ligação. Eu já o tinha ignorado

tantas e tantas vezes ao longo do dia que eu não

achava que faria mal fazê-lo novamente. Amanhã,

quando eu falasse tudo – se eu falasse, completei

mentalmente – Pablo ia entender e tudo ficaria

bem. Não havia necessidade de atender um

telefonema àquela hora da noite.

Mas ele era insistente. Muito insistente.

Qualquer garoto normal já teria desistido.

Qualquer cara que se preze já teria desistido de

ligar pra mim e tentaria o número de outra garota.

Mas de todos os garotos da minha escola, eu fui

namorar justamente aquele que grudava pra nunca

mais desgrudar. Eu estava mesmo feita na vida.

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- Alô? – atendi, com uma voz sonolenta

meio falsa, meio verdadeira. Eu estava com sono,

mas não tanto quanto eu estava fingindo.

- Laurinha, eu te acordei? – Pablo quis

saber. Ele tinha a voz chorosa, sempre baixa, como

se estivesse sempre sofrendo. Eu vinha trabalhando

isso nele desde que havíamos começado a namorar,

mas quando começou a me irritar demais eu

simplesmente parei de tentar.

- Mais ou menos. – falei, sem nem pensar no

que eu estava dizendo. Suspirei e resisti ao impulso

de dizer a ele que parasse de pegar no meu pé –

Você não deveria estar dormindo? Nós temos aula

amanhã.

- Eu não consigo dormir. – sério? Eu

também não.

- E o que eu tenho a ver com isso, Pablito?

- Eu tentei falar com você o dia todo, mas

você nunca estava, e eu liguei pra Keyla e você

também não estava lá, e...

- Você ligou pra Keyla? – nem eu conseguia

acreditar. Keyla era a minha melhor amiga, mas

nem ela tinha que aturar o desespero desmotivado

do meu namorado. O que ele estava pensando?

- Desculpa. – pediu, sentindo a descrença

raivosa na minha voz – Eu fiquei teimado com

isso, Laurinha, porque parecia que você não queria

falar comigo...

- Não, é que eu... – bufei. Eu não podia mais

dar desculpas, simplesmente não podia. Não era

certo. Então voltei atrás e cortei de uma vez – Nós

nos falamos amanhã, ta bem? Quando eu não

estiver de pijama tentando dormir.

- Tudo bem. – concordou. Pablo me dava

nos nervos até com a sua mania de sempre

concordar com tudo. Não brigar era ótimo, claro.

Mas namorar alguém sem opinião própria era

deprimente.

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- Boa noite.

Não esperei que ele dissesse nada e não falei

o cotidiano “amo você”, tão sem sentimento nos

últimos tempos. Às vezes eu tinha a impressão de

que eu apenas falava pra não deixá-lo naquele

silêncio horroroso pós-declaração, pra que ele não

se sentisse incomodado e começasse a reclamar e

ficar triste. Eu me preocupava demais com a

sensibilidade do Pablo pra minha própria sanidade.

Não era nada saudável.

Quando amanheceu, meu telefone começou

a soar o alarme. Eu tinha essa mania de dormir

com ele debaixo do travesseiro, a despeito de todos

os alardes da minha mãe, sobre como era perigoso

fazer isso. Era o único modo de eu acordar com o

alarme sem ter que acordar Loren também.

Tentei me mexer praticamente em silêncio,

mas assim que abri os olhos percebi que não era

necessário: Loren não estava em casa. Sua cama

estava tão desarrumada quanto estivera na véspera,

e eu preferia não dar palpites sobre onde ela

passara a noite. Ao invés disso, preocupei-me em

pegar uma muda de roupa e ir tomar banho.

Enquanto lavava o cabelo, ficava repetindo

para mim mesma as várias formas de dizer o que

eu queria com delicadeza.

“Pablo, você é muito especial e eu realmente

gosto de você, mas não do mesmo jeito.”

Estava péssimo. Ele provavelmente iria me

interromper no “realmente gosto de você” pra dizer

que gostava de mim também e que adorava me

ouvir dizendo isso, e eu acabaria desistindo.

Reformulei a frase.

“Pablo, você é muito especial pra mim, mas

eu não acho que eu gosto de você do mesmo jeito.”

Hm, não. Conhecendo o Pablo, ele faria cara

de cachorro perdido e me diria que ele entendia

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que eu estava confusa, que ele ia me ajudar a

passar por isso, e que juntos nós iríamos passar por

mais essa batalha e não sei mais o quê. Melhor

tentar de novo.

“Pablo, você é muito especial pra mim, mas

eu não gosto mais de você como antes.”

Ainda assim ele faria cara de cachorro

perdido e ia me implorar pra repensar. Mas que

coisa!

“Pablo, eu não agüento mais olhar pra sua

cara e eu já to cheia de ser a sua namorada. É, eu

estou terminando com você. Tchau.”

Assim seria melhor, à prova de dúvidas e de

tempo pra caras de cachorro perdido. Mas seria

como enfiar cem facas no peito magrelo dele, e eu

realmente não queria isso. Pablo podia ter se

tornado um desagradável grudento nos últimos

meses, mas eu não estava mentindo quando dizia

que ele era muito especial pra mim. Tínhamos

vivido tempos legais juntos, e eu não me esquecia

de nada disso.

Talvez seja por isso que nem refazendo a

frase dez vezes durante o banho eu tenha

conseguido chegar a algo decente pra dizer.

Enquanto colocava o uniforme do colégio, me

convenci de que não havia certo ou errado quando

a matéria era não machucá-lo: ele iria se magoar de

qualquer maneira. Eu apenas tinha que ignorar sua

carinha de cachorro perdido daquela vez.

Mas só de lembrar, já me enchia de um

misto de raiva e agonia, porque parecia que ele

fazia de propósito. A carinha, eu quero dizer. Ele

sabia que eu não suportaria vê-lo sofrer e faria

qualquer coisa pra que ele não se chateasse, e por

isso lançava aqueles olhos pidões pra mim. Não

era justo.

Depois de enfiar uma camiseta branca gasta

com o logotipo do colégio e uma calça jeans

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surrada que eu usava todo santo dia na escola,

peguei minha mochila, meu fichário e desci para

tomar um café da manhã rápido, toda hora

repetindo na cabeça as diversas formas de terminar

de vez o meu namoro. Nenhuma delas parecia boa

o suficiente.

Engoli um copo de café com leite e um pão

murcho com manteiga, joguei a louça suja na pia e

peguei as chaves de casa. Eram quase sete e dez da

manhã quando saí, com um leve tremor de frio.

Meu corpo ainda estava quente e aquela manhã,

como praticamente todas desde que eu me entendia

por gente, estava fria.

Andei a passos curtos e rápidos, respirando

o ar gelado e olhando a paisagem bonita e calada

das ruas de São Joaquim. Eu precisava de pouco

mais de dez minutos para chegar ao Colégio

Paradigma, onde eu estudava, mas sempre

desviava do caminho para passar na casa da minha

melhor amiga, Keyla. Ela morava na rua atrás da

minha, e nós sempre íamos juntas pra escola.

Cheguei à frente da casa dela em questão de

minutos. Os pais de Keyla tinham a mania de

sempre encontrarem algum defeito na casa, razão

pela qual eu não conseguia me lembrar uma só vez

nos últimos seis anos em que eu a conhecia em que

sua casa não estivesse em reforma. Quando

acabava o dinheiro, eles simplesmente paravam,

como era o caso. Desde setembro do ano anterior,

a frente da casa estava com apenas metade dela

reformada e o jardim estava completamente

destruído, esperando para ser consertado. A janela

da sala ainda era uma série de tábuas pregadas para

não deixar um buraco no lugar.

Bati palmas três vezes assim que cheguei,

nosso código secreto para que Keyla soubesse que

eu estava ali sem que eu tivesse que gritar ou tocar

a campainha. Ela apareceu na porta com um pão na

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boca, pedindo pra que eu esperasse, e eu

concordei. Cinco minutos depois ela estava de

volta, correndo apressada com a mochila pendendo

num braço e meio pão ainda na boca.

- Não precisa sair correndo, hoje é só o

primeiro dia! – exclamei, rindo dela. Ela tirou o

pão da boca e engoliu um pedaço.

- Não quero chegar atrasada, você sabe. –

falou, e eu ri de novo. Eu sabia, e como sabia. Era

graças a ela que eu nunca faltava ou chegava

atrasada. Keyla era especialmente boazinha e

certinha em tudo o que fazia.

Ela saiu e trancou o portão e começamos a

andar em direção à escola. Eu deixei que ela

comesse, tentando acompanhar seu ritmo rápido de

andar. Era sempre difícil, apesar de fazer isso há

tantos anos.

Passados alguns minutos de silêncio, ela

olhou pra mim com os olhos semi-cerrados: o jeito

dela de demonstrar preocupação. Devolvi o olhar

sem dizer nada, simplesmente porque não

conseguia: na minha cabeça, eu ainda repassava as

300 formas diferentes de dizer ao Pablo que eu

estava terminando sem deixar que ele se

machucasse (muito).

- Você está quieta. – Keyla declarou,

respirando fundo. Eu não entendia como ela

conseguia praticamente correr e ainda manter a

respiração tão calma daquele jeito.

- Eu estou pensando. – falei, com a voz

soando distante até mesmo para mim. Tentei

respirar fundo também, mas o ar gelado pareceu

cortar o meu nariz por dentro e desisti.

- Sobre o quê? – ela quis saber. Mordi o

lábio antes de dizer alguma coisa.

Porque Keyla desaprovava o meu namoro

desde o início. Ela me dizia que já podia ver no

que ia dar, que eu ia acabar ficando de saco cheio e

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magoando o garoto, e que no fundo eu não gostava

dele, que namorar desse jeito era errado. Por isso,

eu já sabia o que ela iria me dizer, do mesmo jeito

que já sabia que ela tinha certeza sobre a razão do

meu silêncio antes mesmo de perguntar.

Mas eu não poderia simplesmente virar pra

ela e dizer “estou cansada” ou “voltaram as aulas”

ou qualquer outra mentira boba pra desconversar.

Não era o fato de a Keyla ser minha amiga; era

engraçado, mas alguma coisa nela simplesmente

tornava impossível mentir ou disfarçar. Eu não

conhecia uma única pessoa naquela cidade que

conhecesse a Keyla e a tivesse enrolado alguma

vez. É só olhar pra ela que a verdade simplesmente

pula da nossa boca.

Por isso eu bufei e nem tentei dizer o

contrário quando abri a boca pra falar e soltei:

- É o Pablo.

Ela me olhou por alguns segundos antes de

dar de ombros.

- Eu não preciso e nem vou dizer “eu te

disse”. Isso não vai resolver nada. – Keyla me

disse, já adivinhando tudo.

- Obrigada.

- Quando vai ser?

- Hoje. Eu acho. Estive pensando nisso a

noite toda, num jeito de dizer, sabe?

- Não tem jeito certo de fazer isso. Apenas

seja honesta.

Honestidade. Se eu fosse honesta, Pablo

ficaria tão magoado que não seria surpresa se eu o

visse se atirando de uma ponte com uma pedra

amarrada no pescoço. Ele era muito exagerado, e

eu tinha que ter cuidado com a escolha de palavras

toda vez, por qualquer coisa. Agora seria ainda

mais complicado. Ser honesta e direta não estava

nem de perto nos meus planos.

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Eu não disse isso em voz alta, mas acho que

Keyla entendeu o recado. Ela balançou a cabeça, e

então viramos na esquina da rua do colégio. Ela

parou a uns cinco metros do portão e virou-se de

frente pra mim.

- Eu sei o quanto você se preocupa com ele,

e eu realmente admiro isso em você. – ela falou,

pondo uma mão sobre a minha – Mas se você não

for honesta, mesmo que isso o faça sofrer, essa

história só vai ficar mais longa. Diga o que você

tem a dizer, certo? Diga ao Pablo que ele... que ele

vai sofrer mais e te fazer sofrer se ficarem juntos.

Eu não sei. Diga a verdade e o faça entender.

Assenti, sem conseguir evitar o pensamento

raivoso de como era fácil pra ela falar. Eu devia

experimentar colocar Keyla e Pablo numa gaiola

de interação direta pra ver se ela se sairia tão bem

na prática quando é na teoria. Enquanto

entrávamos no colégio, só pude pensar como teria

sido mais prático dar o fora nele pelo telefone, ou

por correspondência. Qualquer coisa que eu

pudesse fazer ser olhar pra ele, ou que fosse fácil

de ser ignorado caso ele decidisse responder.

Eu estudava no Paradigma desde a primeira

série, mas aquela era a primeira vez que passar

pelos seus portões realmente me causava um

arrepio que vinha de dentro pra fora. Pablo já devia

estar lá, mas eu não tinha certeza se falava agora

ou se deixava pra quando a aula acabasse. O que

seria pior, cinco horas de aula com ele sendo meu

namorado ou cinco horas tendo que tolerar a sua

carinha triste? Difícil dizer.

Quando um par de mãos cobriu os meus

olhos, eu já sabia dizer quem era. Bufei e tirei as

mãos dele de lá, já sem paciência pra entrar no

clima das suas brincadeiras. Quando me virei,

Pablo estava sorrindo pra mim, como sempre.

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O problema é que eu não suportava mais ver

aquele sorriso. Eu o achava bobo e infantil agora,

pendurado no rosto dele sem mais me fazer sorrir

de volta. Ele abriu os braços e me puxou pra um

abraço apertado sem esperar que eu desse algum

sinal de retribuição.

Devolvi seu abraço sem nenhum

entusiasmo, por pura educação, com um tapinha

nas costas pra enfatizar o fato de que seria melhor

ele ter mantido a distância. Mas quando ele se

inclinou pra vir tentar me beijar, eu desviei e me

afastei.

A mudança no rosto dele foi imediata, mas

eu tentei me manter forte, impenetrável. Primeiro

ele pareceu confuso, torcendo o nariz e enrugando

a testa, fazendo os óculos ficarem tortos na casa.

Então a expressão foi relaxando aos poucos, até

que ele parecia ter sido atingido por um meteoro

no meio da testa.

- Nós precisamos conversar. – afirmei, antes

que a cara de cachorro perdido viesse – É sério,

Pablo.

- Eu sabia, eu sabia que tinha alguma coisa!

– Pablo exclamou, com a voz tristonha – Eu

percebi porque você não me atendeu quando eu

liguei e parecia brava quando me atendeu ontem à

noite e...

- É claro que eu estava brava! Você tem

noção da hora em que você me ligou? Eu estava

quase dormindo!

- Tem razão. Desculpe. – ele suspirou,

parecendo derrotado – Sobre o que nós temos que

conversar?

Balancei a cabeça e olhei em volta,

procurando algum lugar mais vazio. Não havia.

Embora a população estudantil fosse pequena, todo

mundo tinha a mania de se aglomerar no mesmo

lugar. Teria que ser ali mesmo.

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- Pablo, eu... – droga, onde estavam todas as

minhas frases montadas agora? – Eu quero

terminar.

Olhei pras minhas próprias mãos trêmulas

enquanto falava, e me arrependi profundamente ao

erguer os olhos e encontrar a expressão facial que

eu mais odiava nele. Os lábios caídos, os olhos

grandes, as sobrancelhas erguidas, os ombros pra

baixo como se mal conseguisse se manter de pé.

Naquele segundo, desejei ter ficado de boca

fechada. Meu estômago pareceu vir parar na boca,

tamanha foi a repulsa que eu senti de mim mesma

por machucá-lo daquela forma.

- Por quê? – foi tudo o que ele disse.

Eu já tinha ouvido aquela pergunta vezes e

vezes mais. Às vezes, não acreditava em como era

possível que ele não percebesse. Será que Pablo

realmente não notava o que me incomodava nele?

Será que ele nunca ia se tocar que o que o afastava

de mim era o fato de ele ser tão incrivelmente

apaixonado, dependente e... grudento?

Mas quando eu fui dar as minhas razões, o

sinal tocou, e fomos interrompidos por uma

enxurrada de pessoas indo em direção às suas

salas. De longe, vi Keyla me olhar como se

quisesse me forçar a continuar falando e ao mesmo

tempo me dando força.

E eu não sei o que me deu. Eu realmente não

sei o que me deu, mas quando eu olhei pro Pablo

de novo, tão absorto em sua tristeza quanto um

mocinho de cinema, eu simplesmente amarelei.

Peguei na mão dele e sussurrei um “continuamos

mais tarde” e o arrastei comigo para a nossa sala.

Dentro da minha cabeça, eu cantarolava

maldições à minha própria vida. Existia mais

alguma garota tão totalmente idiota quanto eu

nesse mundo? Não era Pablo quem não me

merecia: era eu quem não o merecia. Primeiro

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porque eu o estava machucando mais desse jeito, e

segundo porque eu não parecia conseguir ser

honesta com ele. Não sem me arrepender e estragar

tudo depois.

Fui afundando na cadeira à medida que a

aula passava, com Pablo atrás de mim, tão

obviamente me encarando que dava pra sentir o

olhar dele penetrando a minha pele.

E não era nada legal.

Quando o sinal anunciou o intervalo, fiz

sinal à Keyla pra que ela me encontrasse no

banheiro feminino e deixei a sala o mais depressa

que pude, tentando não ligar pro fato de que Pablo

vinha logo atrás de mim. Lá dentro, me espremi

contra a parede pra que ele não me visse – como se

mudasse alguma coisa! – até que Keyla entrou e

me olhou, preocupada.

- O que aconteceu? – ela quis saber – Você

falou com ele?

- Falei. – eu disse, soltando o ar devagar.

Parecia que eu tinha alguma coisa presa na

garganta.

- Graças a Deus. Como foi?

Eu tive vontade de chorar ao escutar essa

pergunta. Porque eu queria sinceramente poder

dizer a ela que tinha sido difícil, mas que estava

feito, que eu tinha terminado e que ia ficar tudo

bem. Mas ao invés disso, eu baixei os olhos, mordi

o lábio inferior e soltei justamente o contrário:

- Não foi.

- Ah, não, Laura. Como assim não foi?

- Não foi, Keyla. Estava indo tudo bem, eu

juro. Ele sequer estava discutindo, apenas

perguntou por que, mas ai eu...

- “Olhei pra ele e simplesmente não pude”. –

Keyla completou minha frase com perfeição, sem

tirar nem pôr uma única palavra. Eu suspirei, e ela

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me lançou um olhar repreensivo – Você já me deu

essa desculpa umas cem vezes, Laura.

- O que eu posso fazer, Keyla? – indaguei,

cobrindo o rosto com as minhas mãos suadas de

tão nervosa que eu estava – Eu disse a ele que

iríamos conversar mais tarde, mas eu sei no que

isso vai dar!

- Laura, pelo amor da minha Virgem Maria,

você é mais forte do que isso! – Keyla bufou – Eu

sei que você é uma pessoa boa, e sei também o

quanto você detesta fazê-lo sofrer desse jeito, mas

ele não está mais feliz com você do que estaria

sozinho.

- Talvez você esteja certa, mas quando eu

vejo aquele olhar no rosto dele eu me sinto a pior

pessoa do mundo!

- Mas você não é. – ela pôs as mãos sobre os

meus ombros e me balançou de leve – A sua

felicidade também conta. Eu sei que você é forte o

suficiente pra fazer o que é certo.

Eu apenas fiz que sim e fiquei em silêncio.

Virei o rosto pra não ter que encará-la nos olhos e

dei de cara com o meu reflexo no espelho,

parecendo tão abatido e derrotado que eu imaginei

se era só eu ou se todos me viam daquela maneira.

Era vergonhoso.

Quando saímos do banheiro, não havia mais

ninguém no corredor ou nas salas de aula do nosso

andar. Keyla disse que ia comprar alguma coisa

pra comer, e eu nem precisei dizer a ela que ia me

refugiar na nossa classe, pra não ter que ver Pablo

de novo. Entrei e acendi a luz, e tão logo o fiz,

tomei um susto.

Tinha alguém na sala. Não era o Pablo –

graças a Deus – nem um funcionário da escola nem

ninguém que eu conhecesse, pra ser mais exata.

Mas sim um garoto cujo rosto eu não podia ver,

porque ele estava debruçado sobre a mesa,

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dormindo. Um garoto que não estivera presente nas

primeiras aulas do dia.

Me apressei a apagar de novo a luz enquanto

ia com todo o cuidado do mundo até a minha

carteira. Não queria que ele acordasse. Não queria

que ele olhasse pra minha expressão derrotada,

nem queria que aquele silêncio incômodo que

sempre paira entre duas pessoas que não se

conhecem pairasse sobre nós. Era melhor que ele

dormisse.

Eu o ouvi dar um ronco silencioso, fraco,

seguida de um suspiro abafado. O que eu podia ver

com a claridade que vinha de fora era que o garoto

era moreno – muito moreno. Do tipo que se via no

Rio de Janeiro, não ali no meio da Serra

Catarinense. Ele era tão moreno que parecia ter

dormido no sol e acordado com um bronzeado

fantástico. Seus cabelos eram bem escuros e ele

aparentemente era imune aos poderes mágicos do

clima da cidade mais fria do país. Porque ele vestia

apenas uma camiseta, uma bermuda e um par de

tênis.

Eu estava sentada, olhando distraidamente

para o garoto estranho na fileira ao lado, quando

ouvi passos do lado de fora e virei a cabeça tão

rápido na direção da porta que meu pescoço

estalou. Vi a cabeça de Pablo aparecendo e não

pensei duas vezes antes de me sair por baixo da

carteira numa manobra dolorida e me agachar no

chão, atrás das carteiras e das mochilas.

Pablo abriu a porta e acendeu a luz. Eu não

estava nem olhando pra que não houvesse a menor

chance de ele me ver quando o escutei dizendo,

com a voz desanimada:

- Ah, desculpe.

- Tudo bem, cara. – uma outra voz, grave e

masculina, tão masculina que me deixou arrepiada,

disse. Só percebi que se tratava da voz do garoto

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estranho quando me lembrei de que não havia mais

ninguém na sala.

- Uma garota de cabelo castanho passou por

aqui? – Pablo perguntou. Eu esperei, ansiosa, pelo

momento em que o garoto diria que não. Ele

sequer tinha me visto.

- Ah, sim, ela se escondeu atrás da carteira.

– falou, contudo.

Fiquei paralisada por um segundo ou dois, e

logo eu só senti meu rosto ficando vermelho,

milhares de xingamentos me vindo à cabeça. Que

filho da mãe.

Sem escapatória, me levantei. Pablo estava

olhando para mim, parecendo cada vez mais

desolado. Sequer olhei para o lado, onde o garoto

estranho parecia assistir a tudo.

- Se não queria falar comigo, só precisava

falar. – Pablo me disse. Eu tentei ir até ele, mas

bati o joelho na carteira. Tinha esquecido onde eu

estava.

- Pablo, não é isso. – falei, em vão. Era

exatamente isso – Por favor, não dificulte as

coisas.

- Laura, não tem que ser assim! – exclamou,

na sua voz chorosa, e veio até mim, ficando a

apenas uma carteira de distância – A gente se gosta

tanto!

- Pablo, não é que eu não goste de você, é só

que... não é mais a mesma coisa.

- Então me diz o que eu posso fazer pra que

seja de novo a mesma coisa. Eu faço qualquer

coisa que você pedir.

Eu queria chorar e sair correndo, queria

poder fazer algum tipo de lavagem cerebral nele

pra que Pablo entendesse que não tinha mais jeito.

Ao invés disso, eu estava ali parada, me sentindo

completamente indefesa, sem coragem de dizer

mais uma só palavra, ainda tendo que agüentar

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uma platéia que emitia um som muito parecido

com... risadas.

Lancei ao garoto um olhar fulminante. Ele

não pôde ver. Estava ocupado demais com o rosto

entre as mãos, se acabando de dar risada de mim.

- Nunca mais vai ser a mesma coisa. – eu

declarei, com a voz rouca – Me desculpe, Pablo.

Você é muito especial pra mim, mas o nosso

namoro acabou.

- Laura... – começou a dizer, mas eu o

interrompi dando as costas a ele.

- Acabou.

O sinal tocou, e logo a sala começou a se

encher de gente. Pablo se sentou, e eu também o

fiz. O garoto ainda ria, mesmo quando o professor

entrou em sala.

Capítulo 2

- Ei, calma! Ta tudo bem!

Keyla tentava me acalmar havia quinze

minutos. Depois que a aula acabou, Pablo me

lançou um olhar tão magoado e pesaroso que

parecia que ele tinha me cortado no meio. Quando

ele saiu, fui invadida por uma onda de alívio, que

acabou no instante em que eu vi a nuca do garoto

estranho saindo da sala.

- Não, não está tudo bem, Keyla! – eu

exclamava, pela décima vez naquela tarde.

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Eram duas horas da tarde e nós estávamos

sentadas no chão do quarto dela, com a cabeça

encostada na cama. Eu estava chorando e não fazia

a menor idéia por que exatamente.

- Eu sei que você está se sentindo péssima

por estar fazendo o Pablo sofrer, mas no fundo

você sabe que é melhor desse jeito. – Keyla

insistiu, passando a mão na minha cabeça.

- Eu nem sei se é só por isso que eu estou

chorando. – falei, com a voz embargada pelas

lágrimas. Minha amiga tirou uma caixa de lenços

da gaveta do seu criado mudo e me passou.

- O que é, então? – perguntou – Fale, você

vai se sentir melhor. Falar pode não resolver nada

às vezes, mas alivia a nossa alma quando está

pesada demais.

- É só que... o jeito como aconteceu, sabe?

Eu queria que tivesse sido diferente, eu não tive

tato. Eu meio que fui... forçada a fazer tudo errado.

- Forçada?

- Eu voltei pra sala na hora do intervalo, se

lembra? – ela concordou – Aquele garoto novo da

nossa sala estava lá, dormindo. Quando eu vi o

Pablo, me escondi atrás das carteiras, e o garoto

simplesmente... me dedurou.

- Olha, eu sei que isso não vai ajudar em

nada... – Keyla respirou fundo e mordeu o lábio –

Mas você não devia tê-lo evitado, Laura. A gente

não foge dos problemas. A gente enfrenta antes

que eles fiquem maiores e mais complicados.

- Eu sei, Keyla... – solucei – Mas eu achava

que se eu segurasse a onda até depois da escola a

gente poderia conversar melhor. Aquele garoto

disse ao Pablo onde eu estava, e eu fui forçada a

falar tudo o que eu não queria dizer. Eu não soube

lidar com a situação.

- Eu sinto muito, Laura. Me dói muito ver

você desse jeito e eu gostaria de melhorar as

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coisas, se eu pudesse. – ela me abraçou, e só de me

apoiar no ombro dela eu já me senti em paz – Mas

já passou. O que está feito, está feito.

- Você tem razão. – dei um suspiro longo,

que pareceu tirar um grande peso de dentro de mim

– Já está feito. O Pablo vai entender, com o tempo.

- Vai sim.

Mas ele não entendeu. A primeira semana de

aula se passou, e o que eu percebi foi que ele não

estava entendendo e certamente não iria entender

nada tão facilmente.

Na escola, Pablo mudou de lugar. Deixou de

se sentar atrás de mim e foi parar do outro lado da

sala. Durante a hora do intervalo, eu não tinha nem

coragem de sair de dentro da sala, porque eu sabia

que ele ia ficar me encarando até eu ter vontade de

chorar.

Quando eu chegava em casa, uma infinidade

de emails se acumulavam na minha caixa de

entrada, com horários de envio variando da meia-

noite até as duas da manhã. Todos sem assunto. Eu

os deletava sem me atrever a abrir, para não piorar

as coisas.

E como se tudo não bastasse, vinham as

ligações.

Inúmeras. Eu reconhecia o número que eu

havia levado tanto tempo pra decorar e muitas

vezes não atendia. Durante aquela semana, mais de

uma vez minha mãe reclamou de que estavam

passando trotes pra nossa casa; ligações que ela

atendia e ninguém dizia nada do outro lado da

linha.

Eu não sabia mais o que fazer. Quando

chegou a segunda semana de aula, eu já não estava

mais agüentando. Keyla me dizia pra lidar com

tudo do modo mais calmo e adulto que eu pudesse,

que eu tinha que simplesmente relevar e deixar

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passar. Não demonstrar fraqueza ou raiva, porque

seria pior. Mas estava ficando difícil.

Simplesmente estar no mesmo ambiente que ele já

me deixava com a consciência pesada.

E, pela primeira vez, meus livros não

estavam me ajudando em nada. Nem Crepúsculo

era capaz de tirar da minha cabeça o peso de estar

magoando Pablo daquele jeito, ainda que fosse

melhor assim.

Na quarta-feira, eu estava a ponto de

explodir. Keyla foi comigo até a escola, como

sempre, mas obedeceu à minha vontade de ficar

sozinha mesmo sem eu dizer uma só palavra.

Faltavam ainda vinte minutos pra começar a aula,

então eu simplesmente entrei no prédio e comecei

a andar.

Fui andando pelos corredores que eu já

conhecia até chegar ao auditório. A única sala

cujas portas estavam sempre abertas, como se

esperassem por mim. Lá dentro estava escuro – as

cortinas estavam fechadas – e quentinho. Me

acomodei numa cadeira qualquer e joguei minha

mochila na cadeira da frente.

Quando eu era pequena, adorava vir ao

auditório pra assistir apresentações ou festas da

escola. Lembro que uma vez os alunos do Ensino

Médio haviam montado uma apresentação de Dia

das Crianças, e que eu tinha ficado tão encantada

que tinha decidido ser atriz. Viver grandes

aventuras impossíveis, viver o inimaginável –

mesmo que só de faz-de-conta.

Então eu cresci, o sonho morreu, e eu

afoguei a vontade de conhecer coisas incríveis nos

livros. Nos grandes amores e nos momentos de

vida ou morte, nas decisões mais simples que

alteravam uma vida inteira, nos amores fadados ao

destino. Sempre acreditando que fosse ser real um

dia, sempre achando que um dia seria a minha vez.

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Mas quando eu acordei, eu estava presa a

um namoro infeliz com um garoto que eu não

amava, e o conto de fadas tinha virado um novelo

de lã bem grosso e cheio de nós, onde eu ia

precisar cortar algumas linhas – e corações – pra

poder me soltar.

Funguei, pra só então perceber que eu estava

chorando. Me senti idiota, mas ainda assim

levantei as pernas, apoiando os pés na cadeira da

frente, e abracei os joelhos. Apoiei a cabeça ali e

pisquei os olhos pra espantar mais uma dose de

lágrimas.

Tomei um susto ao perceber que não estava

sozinha.

Estava escuro, mas dava pra ver os olhos

estreitos e até o traçado do rosto. Me olhava com

curiosidade, e tão logo eu percebi sua presença,

meu coração disparou. Tentei me levantar e só fiz

tropeçar nas cadeiras. Quase caí, mas uma mão

forte, firme e quente me segurou pelo braço.

Puxei o braço assim que retomei o equilíbrio

e já me apressei em limpar as lágrimas e tentar

parar de fungar, me afastando depressa, recuando

de costas em direção à porta.

- Por que você está chorando?

A voz era calma, curiosa, e tão cheia de tons

que chegava a me deixar confusa. Ainda assim, era

familiar. Eu só não sabia de onde eu a conhecia.

- Porque eu tenho vontade. – respondi,

petulante, e tentando não demonstrar a minha

curiosidade súbita. Ouvi uma risada que parecia

um latido.

- E por que tem vontade? – insistiu. Eu dei

de ombros, embora soubesse que meu estranho

acompanhante não pudesse me ver.

- Tenho as minhas razões.

- Hunf... – bufou, como se tentasse segurar o

riso – Vocês são estranhos.

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- Vocês?

- É. Garotas. – seu tom de voz me fez

duvidar que fosse essa sua resposta verdadeira à

minha pergunta. Ainda assim, deixei passar.

Lá fora, o sinal tocou, indicando que a

primeira aula iria começar. Eu olhei para trás, em

direção à porta, quando isso aconteceu, por puro

reflexo. Contudo, não me mexi.

- Não vai para a aula? – o tal guri me

perguntou. Forcei meus olhos para tentar enxergar

alguma coisa além dos seus olhos, mas era como se

a voz viesse do nada.

- Você não vai? – indaguei em resposta.

Mais um riso.

- Talvez. – considerou. Houve uma pausa, e

então um suspiro – Ouvi dizer que não é muito

educado deixar donzelas em apuros.

- Não estou em apuros. – não me atrevi a

retirar o “donzela”. O elogio me fizera enrubescer

– Não preciso de ajuda.

- Como quiser.

No segundo seguinte, fui levemente

empurrada para o lado pelo que pareceu ser uma

onda de vento, e a porta do auditório se abriu e se

fechou. Logo, eu estava sozinha de novo.

Peguei minhas coisas e fui embora dali em

direção à minha sala, com o coração pulsando ao

som da adrenalina que corria nas minhas veias.

Tive que ficar de fora da primeira aula do

dia, mas não me importei. Meus batimentos

custavam a desacelerar enquanto eu inspirava

fundo e soltava o ar devagar. Por alguma razão,

tudo me parecera simplesmente tão irreal. Eu já

nem sabia mais por que estava chorando.

E aquela voz... quem seria? Não havia tanta

gente assim no Paradigma que eu não conhecesse.

E ainda assim, que grande idiota eu tinha sido. Por

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que não simplesmente perguntara quem era?

Facilitaria muito a minha vida.

Abri ao acaso meu exemplar de Crepúsculo

que levava comigo na mochila, tentando tirar da

cabeça aquela voz e ao mesmo tempo me

perguntando se eu voltaria a ouvir aquela voz.

- Onde você estava?

A pergunta no tom preocupado e

desconfiado veio logo que o sinal soou anunciando

o intervalo. Eu estava completamente distraída,

incapaz sequer de prestar atenção se Pablo estava

ou não me encarando com ares de quem queria me

matar (ou se matar).

Keyla me deu um susto quando pegou no

meu braço e me fez essa pergunta. Só ai eu me dei

conta de que a sala estava quase toda vazia –

exceto pelo guri novo, que só pra variar estava

dormindo, debruçado sobre a sua mesa. Ele dormia

tanto que eu sequer me lembrava de ter visto o seu

rosto naquelas quase duas semanas de aula.

- Onde eu o quê? – perguntei de volta,

balançando a cabeça, com uma expressão perdida

pendurada no rosto – Han?

- Durante a primeira aula! – Keyla

exclamou, franzindo a testa – Nós viemos juntas,

mas aí você foi não sei pra onde e não entrou pra

aula...

- Ah, sim, eu estava... – hesitei. Lancei um

olhar para o garoto que dormia, e decidi que era

melhor não dizer nada na presença dele, mesmo

que aparentemente ele estivesse dormido. Eu já

havia pagado por esse erro uma vez.

Assim sendo, me levantei e puxei Keyla

junto comigo para o corredor. Me certifiquei de

que não havia ninguém por perto para escutar a

loucura que eu ia dizer, e então respirei fundo.

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- Eu estava no auditório. – falei, baixinho.

As sobrancelhas de Keyla se juntaram ainda mais,

deixando várias rugas na sua testa.

- Fazendo o quê? – quis saber. Senti o rosto

corar um pouco enquanto admitia mais um

momento de fraqueza.

- Eu estava chorando. – respondi, mas assim

que ela abriu a boca para dizer alguma coisa,

interrompi – Mas não é isso o que eu quero contar.

Tinha alguém comigo lá, Keyla.

- Alguém com você no... – Keyla hesitou,

pôs a mão na testa, então prosseguiu – No

auditório?

- É. E eu não sei quem é, mas era um garoto.

Não dava pra ver o rosto, mas a voz era de homem.

- Certo.

- Foi muito... estranho. Quem mais fica no

auditório antes de começar a aula?

- Eu não sei. Realmente não sei.

Um momento de silêncio. Finalmente decidi

ir comprar alguma coisa para comer, e Keyla me

acompanhou. Eu sentia um arrepio na espinha só

de lembrar dos poucos minutos daquela manhã

onde eu falara sobre nada em especial com um

estranho.

Talvez, pensei, eu devesse apenas deixar de

lado. Uma curiosidade sem sentido, um esbarrar ao

acaso de duas pessoas que estudavam na mesma

escola. Com que freqüência isso acontecia? Eu ia

trombar e ouvir a voz de mais um monte de

pessoas naquele mesmo dia, e eu não ficaria

cismada com isso.

Mas fosse a voz, ou o lugar, os olhos

estreitos e curiosos, fosse a estranheza da situação

ou o jorro de adrenalina bombardeado pelo meu

coração naquele momento, alguma coisa me

impedia de tirar isso da cabeça.

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Assim sendo, naquela noite, enquanto eu

tentava dormir e ignorar o fato de que Loren estava

no computador, digitando insistentemente e

fazendo o som das teclas entrar fundo na minha

cabeça, decidi que aquela não seria a última vez

que eu ouviria aquela voz. Amanhã eu voltaria ao

auditório e esperaria só pra ver se ele ia aparecer.

Keyla obviamente reprovou a idéia. Certo,

talvez “reprovar” não seja a palavra certa. Mas ela

não me deu nenhum tipo de suporte moral como

era esperado, contando o fato de que ela é a minha

melhor amiga.

Quando contei a ela os meus planos na

manhã seguinte, ela apenas me lançou um olhar

desacreditado e começou a rir. Não uma risada

irônica, duvidosa. Uma risada inconformada.

- Você não pode estar falando sério, Laura. –

me disse, entre risos. Eu olhei pra ela, mais séria

ainda do que antes.

- E por que não? – indaguei. Ela riu mais um

pouco, e então suspirou.

- Porque isso não tem o menor cabimento! –

exclamou em resposta – Ainda porque, o que te

garante que ele vai estar lá?

- Não estou dizendo que ele vai estar lá. –

bufei – Se ele não estiver, paciência. Eu vou pra

aula e assunto encerrado.

- Eu acho que você está seriamente fora de

si. Perder aula por causa de uma voz misteriosa?

- Não é só uma... – desisti no meio da frase e

deixei a voz morrer. Keyla não iria entender. Não

tinha sido ela quem escutara a voz misteriosa,

afinal de contas – Esqueça. Além do mais, é só

uma aula. E talvez eu nem perca a aula. Estamos

chegando bem cedo.

- Você é impossível...

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Já na escola, eu não pensei duas vezes antes

de sair de perto de Keyla e ir decidida em direção

ao auditório. Pude sentir que havia um olhar nas

minhas costas, um olhar pesado – o olhar de Pablo.

Mas pela primeira vez, aquilo não me incomodou.

Ele que ficasse com a sua raiva e os seus

ressentimentos sobre mim. Eu tinha feito tudo o

que pude fazer. Não cabia a mim aceitar isso.

Meu coração começou a disparar tão logo

alcancei o corredor escuro, cheio de portas de salas

de aula. Fui olhando por cima do ombro pra ver se

havia alguém por ali, mas tive a sorte de não

avistar ninguém. Parei em frente à porta do

auditório e pus uma mão sobre a madeira e a outra

na maçaneta, respirando fundo.

Então entrei.

Tudo estava exatamente como no dia

anterior. Escuro, fechado. Entrei lentamente, como

se caminhasse em câmera lenta, dentro de um

filme ou debaixo da água. Fechei a porta com

cuidado e me aproximei das cadeiras. Pus minha

mochila em uma, e então me sentei.

Esperei por um minuto ou dois, mas estava

tão tensa que não podia parar quieta. Nos minutos

que se seguiram, troquei umas dez vezes de

posição: cruzava as pernas, então descruzava,

apoiava os pés nas cadeiras da frente e voltava a

baixá-los, batia com as mãos nas pernas num

batuque irregular para tentar ficar sob controle.

Mas à minha volta, tudo estava tão

silencioso e parado como devia estar. Sem voz

misteriosa. Sem feições quase invisíveis na

penumbra. Sem nada.

Dei um suspiro derrotado e percebi que

Keyla devia estar certa. Nada me garantia que ele,

quem quer que fosse, iria aparecer ali hoje. Talvez

tivesse sido só uma coincidência o fato de estarmos

os dois dentro do auditório. Embora eu realmente

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não achasse provável. Admiti lentamente que eu

estava sendo ridícula, e peguei minha mochila, me

levantando para ir embora.

Mas quando virei em direção à porta, fui

surpreendida quando o par de olhos surgiu do

nada, bem à minha frente, tão mais real agora que

estava próximo o suficiente para ser tocado. Eu

não podia ver muito mais do que havia visto na

manhã anterior, mas podia sentir um calor

irracional irradiando do seu corpo (ou seria do

meu?) e o ar saindo da sua respiração.

Fiquei sem ação, travada. Meus braços,

meus olhos, minha voz, tudo estava paralisado. E

de repente o coração começou a bater depressa e

eu fiquei toda arrepiada, e ele se afastou. Seus

olhos pareciam me estudar, mas eu não tinha

certeza. Só queria poder ver o rosto dele.

- Você de novo. – aquela voz tão curiosa e

inigualável disse, num tom que dançava entre a

pergunta e a afirmação.

- E você também. – falei em seguida. Minha

voz parecia estranha até para mim, rouca e dura de

sair.

- Você é mesmo muito estranha. – houve

uma longa pausa, e senti ele se movendo, se

afastando de mim, os olhos se fechando como se

de algum modo ele tentasse enxergar o que havia

sob a minha pele – Por que veio?

- Eu não sei. – confessei, tentando recuperar

o ar que de repente me escapara dos pulmões.

- Isso não faz sentido.

- Eu estava... – respirei fundo – Curiosa.

Ele não disse nada. Apenas ficou olhando

para mim, e eu pude entender a razão. Ele

provavelmente devia achar que eu era louca.

Naquele instante, até eu me achava louca.

- E por que você está aqui? – perguntei, para

quebrar o silêncio e tentar dar mais razão às

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minhas atitudes – Ontem eu vim aqui para me

esconder, mas e você?

- Se esconder de quê? – ele quis saber – Ou

de quem?

- Não importa. – desconversei, me sentindo

corar – E não fuja da minha pergunta.

- Que pergunta? – ele deu uma risadinha –

Se não importa pra mim de quem você fugia,

também não importa a você o que eu estava

fazendo aqui. Nem o que estou fazendo agora.

- Se eu te disser... – falei, com cuidado –

Você me conta por que estava aqui?

- Posso tentar.

- Certo. – hesitei, então resolvi ir em frente.

Minha vontade de saber era tamanha que eu não

me importava o quão ridículo os meus motivos

pudessem ser – Eu estava fugindo do meu ex-

namorado.

- Por quê? Ele é algum tipo de maníaco?

- Não, mas eu não consigo mais olhar pra

ele, porque toda vez que eu olho eu... – parei. Eu já

tinha dado a minha resposta, não fazia sentido

continuar a soltar meus dramas pra cima de um

guri misterioso – Deixa pra lá. Sua vez.

- Não, não, continue.

- Você só quer fugir da resposta.

- Hm, também, mas não só por isso. – ele riu

– Eu gosto de escutar histórias.

- Não é uma história, é a minha vida! –

exclamei, ofendida. Depois, me arrependi – É uma

história longa.

- Ainda faltam 7 minutos pra começar a

primeira aula, e praticamente uma hora até o

começo da segunda. Nós temos tempo.

Encarei aqueles olhos tão desafiadores e

curiosos, e me vi encurralada. Depois, pensei

melhor e vi que não faria mal nenhum dizer a ele o

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que se passava. Não é como se ele fosse sair por aí

contando pra alguém. Quem se interessaria, afinal?

Então eu me sentei, e o ouvi sentando-se

numa cadeira na fileira logo atrás de mim. Respirei

fundo e comecei a contar a história sem sentido

que o meu namoro com Pablo havia se tornado.

Quando terminei, tudo parecia menor e mais

irreal pra mim. Pablo, meu sofrimento, tudo o que

eu passara para proteger seus sentimentos, tudo

tinha se tornado repentinamente patético. E eu me

senti completamente exposta e boba, como se fosse

uma guriazinha confessando uma brincadeira de

mal gosto a um estranho completo. O silêncio que

se seguiu só confirmou as minhas expectativas. Eu

tinha a sensação de que o meu amigo misterioso ia

começar a rir a qualquer instante.

Mas ao invés disso, ele bufou.

- Deve ter sido complicado. – ele disse –

Quero dizer, o cara... qual é mesmo o nome dele?

- Pablo. – respondi, segurando um riso que

eu nem sabia de onde tinha vindo.

- Esse Pablo não facilitou nada pra você. Ele

parece bem chato.

- Ele é uma boa pessoa.

- Um chato... – eu ri quando ele falou, e

então completei.

- Mas ainda assim uma boa pessoa. –

suspirei – Muito bem, eu já te dei as minhas

razões. Vai me dar as suas?

- Ahn, sim e não.

Franzi o cenho. Ele pareceu ter visto, e pude

jurar ver um pedaço de sorriso se espalhando pelo

seu rosto obscurecido.

- O que isso quer dizer? – perguntei.

- Quer dizer que eu vou te dar uma razão,

mas que você não vai acreditar nela. – respondeu-

me. Eu dei de ombros, sem ter certeza de que ele

podia ver.

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- Não custa tentar.

Houve uma pausa, então. Ouvi um barulho,

mas me mantive parada, com medo de saber de

onde vinha, sem saber se devia ou não seguir seus

movimentos com meus olhos.

- Eu vivo aqui. – o ouvi dizer, enfim.

E o meu riso saiu meio engasgado,

descrente.

- Você o quê? – indaguei, ainda rindo – Ah,

fala sério! Me diga a verdade.

- Essa é a verdade! – insistiu – Eu sou

assombro esse lugar. Nunca te contaram do

fantasma do auditório?

- Fantasmas não deveriam ser espectros? –

desafiei. Ele riu, e logo vi que estava bem diante de

mim.

- Como você tem tanta certeza de que eu sou

sólido?

- Porque eu...

Então estiquei a mão e o toquei.

Fui de encontro a um antebraço nu, liso, e

surpreendentemente quente. Talvez eu estivesse

gelada, mas definitivamente me parecia que ele

estava em chamas. Eu ia dizer “porque eu consigo

sentir quando você se move”, mas agora isso já não

fazia o menor sentido pra mim.

De repente, ele tirou seu braço de perto de

mim, e ficamos nos encarando por longos

segundos. Então, sem mais nem menos, a porta se

abriu e ele havia desaparecido.

Keyla me lançou olhares preocupados

durante toda a segunda aula, quando eu entrei. Ao

meu lado, o guri novo dormia em paz e

profundamente, incapaz de acordar nem mesmo se

o teto da escola de repente desabasse. Atrás de

mim, Pablo parecia tentar furar a minha nuca com

um olhar laser.

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Mas me descobri tão incrivelmente

despreocupada quanto a tudo isso que a aula

passou rapidamente diante de mim. Eu não

prestava a menor atenção a nada. Tentava só

descobrir de onde eu conhecia aquela voz, onde eu

já poderia ter visto aqueles olhos, quem era

realmente o garoto que estava me deixando

maluca.

Como já era de se esperar, minha melhor

amiga me cercou na hora do intervalo.

- E ai, o que aconteceu? – ela perguntou.

Não tinha ares de curiosidade, apenas de pura

preocupação.

- Ele estava lá. – respondi, tentando não

demonstrar o quanto eu estava fervendo por dentro

– E nós conversamos bastante.

- Sobre o quê?

- Ele queria saber por que eu estava lá

ontem, então eu contei. – dei risada, então – E ele

tentou me convencer de que ele era o “fantasma do

auditório”.

Entre risos, olhei para Keyla. Sua testa

estava enrugada, e por um instante, achei que ela

acreditasse em fantasma. Então apenas ri de novo e

me convenci de que nem ela seria capaz de engolir

uma coisa dessas.

- Ele não te disse quem ele é? – Keyla me

perguntou, então. Eu mordi o lábio.

- Não. – bufei – Mas se serve de consolo, ele

também não sabe quem eu sou.

- Eu aposto como sabe. – murmurou. Eu

ergui uma sobrancelha.

- Como? – indaguei, embora tivesse ouvido

muito bem. Keyla torceu o nariz.

- Olha, você vai achar que eu estou

exagerando, mas esse guri... eu não sei, Laura.

Estou com uma sensação ruim sobre isso.

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- Você e as suas sensações ruins! Não há do

que ter medo!

- Não é medo. É só que quando eu tenho

esses pressentimentos, eu geralmente estou certa

sobre eles. Você sabe disso.

- A velha história do “eu te disse”. –

suspirei. Keyla já havia me dado tantos conselhos

que eu ignorara erroneamente que não podia nem

mais contar. Numa coisa ela estava certa: ela nunca

errava quando se tratava de pressentimentos.

Mas por mais que ela me aconselhasse e

tentasse me proteger à sua maneira, eu nunca dava

ouvidos. Eu preferia errar e escutar o famoso “eu te

disse” do que deixar de fazer alguma coisa por

saber que ia dar errado. E nesse caso, era

praticamente a mesma coisa.

Exceto pelo fato de que eu não estava

apenas considerando a hipótese de que Keyla

estivesse certa. Alguma coisa dentro de mim me

dizia que ela estava coberta de razão e que eu ia

me dar muito mal caso não a escutasse. Um

instinto estranho que eu nunca sentira antes.

Mas eu simplesmente não podia parar. Então

apenas disse a Keyla que ia ficar tudo bem, que eu

ia repensar o assunto, e fiz de conta de que não

tinha sentido nada a respeito.

Na manhã seguinte, eu voltei.

Ele estava lá de novo. Dessa vez, ele estava

me esperando. Eu podia ouvir sua respiração

ritmada, e escutei seus passos lentos na minha

direção quando eu fechei a porta atrás de mim.

Seus olhos estavam fixos nos meus, e eu ainda

tremia quando chegava perto demais.

- Achei que você não viria hoje. – ele me

disse, calmamente. Meu rosto pareceu estar em

brasa.

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- E eu achei que você não estaria aqui. –

afirmei em resposta, e ele sorriu, fazendo seus

dentes brancos brilharem no escuro.

- Eu estou sempre aqui. Eu te disse que sou

o fantasma do auditório.

- E eu já deixei bem claro que não vou

comprar essa história.

- Tudo bem, então.

O silêncio caiu sobre nós, então. A pergunta

que eu queria fazer estava na ponta da língua, mas

eu não conseguia fazer com que ela saísse.

- Você quer me perguntar alguma coisa. – o

guri sugeriu. Eu sorri, surpresa pelo modo como

ele parecia ter lido a minha mente.

- Eu quero. – confirmei, e hesitei de novo.

Respirei fundo, e então continuei – Eu conheço

você? Fora daqui, quero dizer.

- Você me vê todos os dias. – respondeu-me,

me deixando ainda mais confusa.

- Nós já nos falamos alguma vez?

- Hm... – ele pensou um pouco – Não

diretamente, eu acho. Mas tenho certeza de que

você já escutou a minha voz.

- Isso não ajuda em nada.

Ele riu.

- Nós só nos conhecemos há três dias, e você

já quer ver o meu rosto. – ele comentou, como se o

meu desejo fosse algo extremamente absurdo. Eu

dei um risinho sarcástico.

- Nós não nos conhecemos, esse é todo o

ponto. – contrapus. Ele riu.

- O que muda se você não souber quem eu

sou?

- O que muda se eu souber? – cruzei os

braços – Eu já te falei sobre problemas meus e nem

sei o seu nome ainda.

- São meros detalhes...

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- Por que você não quer que eu te conheça

de verdade?

A pergunta pairou no ar. Eu o ouvia respirar

e estava consciente de que minha mão pairava a

poucos centímetros da sua pele, já sentindo o calor

e ansiando por tocá-lo. Por fim, ele me deu as

costas.

- Por motivo nenhum. – ele disse, então.

Virou-se de novo e me olhou tão profundamente

que parecia enxergar minha alma – Então...

O sinal tocou, anunciando a primeira aula.

Ele pareceu sorrir.

- Não queremos perder uma aula, não é? –

ele começou a se afastar em direção à porta – Me

encontre na frente da sua sala durante o intervalo.

Ele se foi antes que eu pudesse responder.

Eu me sentia tão tensa que nem reparei

direito que o guri novo estava acordado pela

primeira vez em todas aquelas semanas de aula. Eu

só podia ver a cabeça dele e a sua óbvia falta de

sensibilidade para o clima – embora estivesse

fazendo apenas treze graus naquela manhã, ele

estava de camiseta e bermuda.

Teimando comigo, o tempo custou a passar.

Cada uma das três aulas que precediam o intervalo

pareceram durar milênios, e eu não conseguia

evitar olhar o relógio de cinco em cinco minutos,

exatamente. Nenhuma matéria conseguia prender a

minha atenção, não importava o quão totalmente

necessária ela fosse. Minha mente estava em outro

lugar.

E cada vez que eu pensava nisso, meu corpo

tremia. Tremia porque eu queria ver seu rosto,

completar o enigma que seus olhos e seu sorriso

haviam formado na minha mente. Eu queria saber

que ele era real, palpável, que estava ao meu

alcance, que nada daquilo tinha sido imaginado.

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Quando o sinal tocou para, finalmente,

anunciar o intervalo, meu coração martelava tão

forte que achei que alguém poderia ver meu peito

se mexendo ao ritmo dos batimentos. Keyla me

olhou, mas entendeu quando eu lhe lancei o olhar

de “depois eu te conto”, indo embora logo em

seguida.

Esperei até que a sala estivesse totalmente

vazia pra sair. Eu não fazia idéia do que esperar do

lado de fora. Não sabia se era um rosto conhecido

que me aguardava, ou se apenas uma grande

decepção. Mas em três dias, que grande imagem eu

poderia ter criado sobre ele? Não havia como se

decepcionar com alguém que você mal conhecia.

Hesitei já na porta da sala, com aquele

instinto protetor ridículo soando na minha cabeça

como se fosse um apito, alto e claro. Ele não queria

que eu saísse. Queria que eu ficasse ali dentro e

não descobrisse quem o guri era, porque isso me

traria problemas.

Mas eu o tinha ignorado antes. Podia fazer o

mesmo agora.

Abri a porta e saí.

Apoiado na parede oposta à porta da minha

sala, estava ele, com seu cabelo escuro, a pele

intensamente morena e a cabeça baixa, apenas de

camiseta e bermuda.

Capítulo 3

Então era ele.

Três dias intrigada com um mistério para, no

final das contas, ser ele. O guri novo. O mesmo

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guri que nunca acordava durante aula nenhuma e

que havia me forçado a terminar com o Pablo no

momento e de forma errada.

Por dentro, eu estava borbulhando de raiva,

enquanto eu ia até ele e parava em sua frente. Ele

não ergueu a cabeça, mas eu sabia que ele estava

me olhando, de certo modo. Já àquela distância eu

conseguia sentir o calor que vinha dele, e fiquei

transtornada por isso ter me causado arrepios

quando o que eu queria mesmo era dizer umas

boas verdades a ele.

- É você então? – foi o que eu disse, soando

mais estridente do que eu gostaria.

Ele respirou fundo e se ajeitou. Quando se

desencostou da parede e arrumou sua postura, a

primeira coisa que eu percebi era que ele era alto –

bem alto. Tipo um metro e uns bons 90

centímetros. Alto o suficiente pra fazer com que

eu, nos meus 1,68 metros me sentisse uma anã.

E a segunda coisa que eu não pude deixar de

notar foi o seu rosto. Os olhos e os traços que eu

vira no escuro estavam ali, e agora que o enigma

do seu rosto estava completo, eu estava sem ar. Ele

era lindo, de um jeito único e perigoso. Os olhos

eram pequenos, estreitos, a testa parecia

constantemente enrugada como se ele sempre

tivesse algo em mente, a boca não era nem fina

nem larga demais.

- Sou eu. – ele disse. Sua voz me causou

ondas de arrepios inexplicáveis e eu tive que

desviar o olhar porque simplesmente não estava

agüentando.

O que eu estava pensando mesmo? Antes de

encarar o rosto dele, quero dizer. Eu não conseguia

mais me lembrar.

- Você... – fechei os olhos com força e lhe

dei as costas, esperando que isso aliviasse a

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confusão na minha cabeça de alguma maneira –

Você... é o cara novo da minha sala!

- Sou. – ele respondeu, apenas.

- E você é o mesmo cara que contou pro

Pablo onde eu estava e me forçou a terminar com

ele! – concluí, como se tivesse descoberto a

América. Então eu dei risada, ainda sem me virar –

E eu me abrindo com você, reclamando disso pra

você.

Ele não respondeu. Quando achei que ele

tivesse ficado sem palavras, me virei de novo para

encará-lo. Ele parecia confuso, e havia cruzado

dois braços enormes na altura do peito.

- Eu achei que estivesse te ajudando. – falou,

pensativo.

- Você é um hipócrita! – exclamei, sem

poder acreditar como cabia tanto cinismo em

alguém tão bonito – Sabia de tudo, sabia quem eu

era o tempo todo e ainda assim fez de conta que

não sabia de nada. É por sua causa que eu estava

chorando naquele dia.

- Achei que fosse por causa do Pablo.

- Argh!

Avancei nele, mas ele não se moveu. Desisti

logo em seguida, vermelha de raiva e de vergonha.

Bufando, sai de perto dele e entrei no banheiro

feminino.

Abri a torneira e molhei o rosto com as

mãos, a fim de tirar um pouco da vermelhidão.

Quando olhei no espelho, ele estava atrás de mim.

- O que você está fazendo aqui? – perguntei,

assustada e me virando – Não pode entrar aqui, é o

banheiro das meninas!

- Ah. – fez, parecendo só então perceber -

Desculpe.

Na hora, ele saiu, mas ficou parado na porta,

um pé dentro e um pé fora.

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- O que é um hipócrita? – ele perguntou de

lá. Eu franzi cenho.

- Um guri que diz uma coisa e faz outra. –

respondi, sem ter certeza se aquele era o real

significado da palavra. Eu nem sabia de onde havia

tirado aquilo quando resolvi xingá-lo.

- Certo. Então... me desculpe por ser um

hipócrita.

Olhei pra ele, sem acreditar no que havia

escutado. Parecia quase ensaiado, e ainda assim

meio que de coração. Aquilo me deu a sensação de

que ele estava se esforçando muito pra dizer

aquelas palavras.

- Ta. Tudo bem. – respirei fundo – Pode...

ah... me esperar lá fora?

Ele assentiu e foi. Fiquei olhando enquanto

ele sumia, sem saber o que fazer, presa ao chão e

ao que acabara de acontecer.

Naquele momento, tudo o que eu queria era

Keyla. Queria que ela se materializasse de repente

na porta do banheiro e me dissesse o que fazer,

porque eu mesma não sabia. Tudo aquilo tinha me

pegado tão de surpresa que minhas emoções e

meus pensamentos estavam misturados num bolo

irreconhecível, e se ela não viesse conversar

comigo, eu...

- Laura?

Quando ela me chamou, levei um susto tão

grande que gritei e pulei pra trás. Então vi Keyla

parada na porta, me olhando com uma preocupação

tão típica dela que não me surpreendia que ela

tivesse simplesmente adivinhado que eu estava

precisando. Quando conseguia respirar, fui até ela

e a puxei pelo braço para dentro do banheiro.

- Eu descobri quem ele é. – falei, de repente,

e Keyla pareceu ainda mais preocupada e até um

pouco assustada.

- E aí? – indagou. Eu respirei fundo de novo.

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- E aí que ele é o guri novo, Keyla. –

respondi, dando risada de mim mesma sem nem

saber por que – E ele é absurdamente bonito.

- Não é a toa que eu estava tão cismada. Era

a mesma coisa que eu sentia quando olhava pra ele.

- Você é cismada com tudo, Keyla.

- Não, Laura, é diferente. E você sabe que eu

não estou errada. No fundo, você sabe.

Olhei pra ela, série, então. Keyla procurava

no meu rosto a confirmação para as suas certezas, a

certeza de que eu estava tão cismada com ele

quanto ela própria. E embora eu soubesse que ela

estava certa, embora cada pedacinho racional do

meu cérebro gritasse pra eu pular fora, o que eu fiz

a seguir foi bem diferente.

- Não há nada com o que se preocupar. –

declarei, fingindo um ar de despreocupação que

não combinava com o que no fundo eu sentia –

Não há nada de errado com ele. Ele é só...

- Um tremendo enigma! – Keyla revirou os

olhos – Laura, você sequer sabe o nome dele? Sabe

de onde ele vem, como ele chegou aqui?

- Eu o conheço a três dias e acabei de vê-lo

pela primeira vez! – justifiquei, ainda que as

perguntas que ela me fizera fossem as mesmas que

eu fazia a mim mesma no fundo da minha mente –

Eu vou descobrir assim que sair daqui e ir falar

com ele.

- Laura, por favor. – Keyla me deteve

enquanto eu tentava sair, me olhando de um jeito

tão profundo que me fazia querer gritar pra ela o

que eu estava realmente sentindo e pensando –

Quantas vezes eu já estive errada?

Mas, pela primeira vez desde sempre, eu

ignorei a vontade de soltar a verdade e apenas

balancei a cabeça, dizendo:

- Pra tudo tem uma primeira vez.

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Sai do banheiro e deixei minha melhor

amiga falando sozinha. De algum modo, escutar as

verdades de Keyla me limpara a mente de modo

totalmente contrário. No fundo, eu esperava

desistir. Esperava voltar atrás e simplesmente

abandonar a idéia de falar com ele, saber mais,

mesmo sem fazer a menor idéia do que eu estava

procurando ou no que eu estava me metendo.

Contudo, o que eu conseguira fora apenas vontade

para dar as costas aos conselhos e ignorar meus

instintos indo atrás do perigo.

Então porque ainda que parecesse tão

errado, aquilo me fazia sentir tão bem?

Enquanto chegava ao pátio, me lembrei de

que Bella não havia desistido de descobrir o

mistério por trás de Edward só porque ele parecia

relutante em ceder. Afinal, se ela nunca tivesse

corrido atrás e descoberto tudo, não haveria

história a ser contada.

Foi pensando nisso que fui de encontro a ele

num canto que todo mundo parecia evitar. Como

antes, ele estava apoiado numa parece, de cabeça

baixa. Meu corpo pareceu entrar em curto-circuito

só de lembrar da visão do seu rosto.

Parei em frente a ele e fiquei em silêncio,

com o corpo tão rígido que chegava a doer. Esperei

até que ele me olhasse e me dirigisse a palavra,

primeiro porque eu não sabia o que falar e,

segundo, porque não conseguia sequer abrir a

boca.

Quando ele ergueu a cabeça, seus olhos

encontraram os meus por um átimo de segundo

antes que ele desviasse o olhar de modo

desinteressando para outra direção. Naquele

milésimo de segundo, pude jurar ver alguma coisa

ali, no fundo dos seus olhos, inundando sua íris

com uma luz obscura por um breve instante, para

então desaparecer.

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Ele me pegou de surpresa quando limpou a

garganta, olhando para algum ponto além de mim,

e disse:

- Então...

Meu coração acelerou e eu olhei pra trás,

procurando o foco da sua atenção. Além de todos

os alunos e seus rostos conhecidos, pude

facilmente identificar o rosto cheio de preocupação

de Keyla, nos observando do outro lado do pátio,

com a testa enrugada e os braços cruzados. Quando

voltei a olhá-lo, ele parecia curioso.

- Quem é aquela que está olhando com uma

cara estranha pra cá? – quis saber. Senti um

momento de vergonha por admitir que ela estava

nos observando como uma forma de proteção

bizarra típica dela; Keyla fazia exatamente a

mesma coisa comigo e Pablo nos meses em que

havíamos namorado, embora de maneira mais sutil.

- Uma amiga. – respondi, vagamente, como

se não houvesse nada de interessante no fato de ela

estar realmente nos encarando sem parar –

Mudando de assunto...

Ele então me olhou. Parecia que era a

primeira vez que realmente o fazia, como se não

tivesse percebido que eu estava ali antes, falando

com ele, ou mesmo como se nunca tivesse me visto

na vida. Isso me fez ter vontade de estalar meus

dedos na frente dele e dizer “alô, lembra de mim?”

Ao invés disso, eu apenas sustentei o seu

olhar e prossegui:

- Eu te desculpo. Por essa bagunça toda,

sabe? E me desculpe por ter te chamado de

hipócrita.

- Não tem problema. – ele concordou, com

um breve sorriso de tirar o fôlego. Notei que, mais

uma vez, ele lançou os olhos para o ponto onde eu

sabia que Keyla se encontrava, e eu me detive de

acompanhar seu olhar outra vez.

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- Na verdade, eu nem sei direito o que

significa. – afirmei, sem saber que outra coisa

dizer.

Só aí ele finalmente olhou pra mim. Digo,

olhou, de verdade, como costumava fazer quando

estávamos no auditório. Olhou de um jeito tão

intenso e curioso que os cantos da sua boca

subiram num sorriso que ia e vinha como se tivesse

vontade própria. Meu coração disparou outra vez e

senti que ia ter um ataque cardíaco se não

respirasse fundo.

- Você é estranha. – declarou, com um jeito

de quem saboreia a palavra. Pelo que dava pra

perceber, ser estranha era algo muito bom na

concepção dele – Não era bem o que eu esperava.

– completou.

- Não? – me ouvi dizendo, com um sorriso

incontrolável se abrindo – E o que você estava

esperando?

Então o sinal tocou e o intervalo acabou. Os

alunos começaram a se espalhar no seu trajeto para

suas respectivas salas de aula, e tudo o que eu

tinha, então, era o seu olhar tão fixo no meu que

parecia colado com Super Bonder. Mas ele nada

me disse. Apenas deixou seu sorriso e seus olhos

misteriosos me encararem por mais um instante

antes de me dar um pequeno aceno de cabeça e

começar a andar em direção à sala.

Cheguei em casa com um misto de excitação

e frustração que me fizeram jogar as coisas no sofá

da sala e deitar de barriga pra baixo, afundando o

rosto numa das almofadas.

Depois de vários minutos inerte, decidi que

precisava fazer alguma coisa útil. Me estiquei e

peguei meu Crepúsculo, abrindo-o na página e

localizando rapidamente o trecho em que eu