99
  CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE JUIZ DE FORA CÉLIA MÁRCIA PEREIRA A REPRESENTAÇÃO SOCIAL EM MORTE E VIDA SEVERINA Juiz de Fora 2011

A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA

Embed Size (px)

Citation preview

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 1/99

 

 

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE JUIZ DE FORACÉLIA MÁRCIA PEREIRA

A REPRESENTAÇÃO SOCIAL EM MORTE E 

VIDA SEVERINA

Juiz de Fora2011

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 2/99

 

 

CÉLIA MÁRCIA PEREIRA

A REPRESENTAÇÃO SOCIAL EM MORTE E 

VIDA SEVERINA

Dissertação apresentada ao Centro deEnsino Superior de Juiz de Fora, comorequisito parcial para a conclusão doCurso de Mestrado em Letras, Área deConcentração: Literatura Brasileira.Linha de Pesquisa: Literatura Brasileira:tradição e ruptura

Orientador: Nícea Helena Nogueira

Juiz de Fora2011

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 3/99

 

 

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca – CES/JFBibliotecária: Áurea Almeida Vespasiano – crb6 2224

PEREIRA, Célia Márcia 

A representação social em Morte e Vida Severina / CéliaMárcia Pereira. – Juiz de Fora: Centro de Ensino Superior de Juizde Fora, 2011.

97 f.

Dissertação (Mestrado em Letras) – Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (MG).

Orientador Prof. Nícea Helena Nogueira.

1. Literatura. 2. Sociedade. 3. Modernismo. 4. Morte e VidaSeverina. 5. João Cabral de Melo Neto. I. Centro de EnsinoSuperior de Juiz de Fora. II. Título.

CDD – B869.3

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 4/99

 

 

FOLHA DE APROVAÇÃO

PEREIRA, Célia Márcia. A representaçãosocial em Morte e vida severina.Dissertação apresentada como requisitoparcial à conclusão do curso de Mestradoem Letras, área de concentraçãoLiteratura Brasileira, do Centro de EnsinoSuperior de Juiz de Fora, realizada no 2°semestre de 2011.

BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Nícea Helena de Almeida NogueiraOrientadora

Prof. Dr. Anderson Pires da Silva – CES/JFMembro convidado 1

Prof. Darlan de Oliveira Gusmão Lula - UFJFMembro convidado 2

Examinado(a) em: ____/____/______.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 5/99

 

 

Dedico este trabalho a todos queacreditam na literatura como forma deconscientização a respeito do mundo.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 6/99

 

 

AGRADECIMENTOS

Especialmente à minha orientadora, professora Doutora Nícea Helena Nogueira.Aos professores e funcionários do CES/JF, em especial ao secretário do mestrado,

Senhor Carlos Fernando.

Agradeço aos professores que colaboraram para a realização deste trabalho de

pesquisa: Professor Doutor William Redmond (CES/JF), Professor Doutor Anderson

Pires da Silva (CES/JF) e Professora Doutora Thereza Domingues (CES/F) pelas

vezes que me atenderam.

Ao Professor Doutor Marcos Rogério Cordeiro (UFMG) e ao Professor Doutor AndréMonteiro Pires (UFJF).

À minha família e ao incentivo dos amigos e colegas de trabalho.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 7/99

 

 

O poeta é um fingidor Fernando Pessoa 

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 8/99

 

 

RESUMO

PEREIRA, Célia Márcia. A representação social em Morte e vida severina. 97 f.Dissertação (Mestrado em Letras). Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Juizde Fora, 2011.

Esta dissertação interpreta, dentro de uma perspectiva da crítica sociológica,

a função de engajamento social, ou relação entre o literário e o social na obra Morte

e vida severina, do escritor João Cabral de Melo Neto. No decurso da análise,

destaca-se a forma de representação social na peça. Buscou-se mostrar como o

contexto histórico e o literário influenciaram a construção literária da obra queprivilegiou a abordagem do tema das minorias sociais. O personagem Severino,

retirante nordestino, é representado com suas dificuldades de sobrevivência naquele

meio social. Para a construção do texto, o autor realizou uma pesquisa em que

apresenta aspectos da tradição literária aliados a traços de ruptura com a estética

passadista.  O poeta aproveitou as conquistas do modernismo nos aspectos

relacionados à linguagem e ao conteúdo social da obra. Estabelece, assim, uma

relação entre literatura e sociedade construída por um processo de composição

pensado através de pesquisas estéticas.

Palavras chaves: Literatura. Sociedade. Modernismo. Morte e vida severina. JoãoCabral de Melo Neto.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 9/99

 

 

ABSTRACT

This dissertation interprets, within a perspective of sociological criticism, the functionof social engagement or the relationship between the literary and the social in Morte

e vida severina by João Cabral de Melo Neto. In the course of the analysis, there is

a main point of the form of social representation in the play. It searches to show how

the literary and historical context influenced the literary construction of this work that

privileged the theme of social minorities. The character Severino, a migratory and

northeast person is represented with his difficulties of surviving in that social

environment. For the construction of the text the author carried out a survey in whichhe presents aspects of literary tradition combined with traces of rupture with the

aesthetic passive approach.  The poet took the achievements of Modernism in the

aspects related with the language and social content of the work. He establishes a

relationship between literature and society produced by a process of composition

minded through aesthetic researches.

Keywords: Literature. Society, Modernism. Morte e vida severina, João Cabral de

Melo Neto. 

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 10/99

 

 

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................. 09

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................... 11

2 LITERATURA E VISÃO DE MUNDO......................................................... 15

3 A FUNÇÃO DE ENGAJAMENTO.............................................................. 24

4 O LEGADO MODERNISTA NA LITERATURA: TRADIÇÃO E

RUPTURA DE VALORES ESTÉTICOS NO BRASIL................................ 29

5 O ESTILO POÉTICO DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO..................... 45

6 FORTUNA CRÍTICA DE MORTE E VIDA SEVERINA............................... 52

7 MORTE E VIDA SEVERINA: UMA OBRA ENGAJADA............................ 57

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ 92

REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 93

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 11/99

 

9

APRESENTAÇÃO

Sou professora de Língua Portuguesa e de Literatura Brasileira, mestranda

em Letras (Centro

de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF), pós-graduada em Interseção no

Ensino: Linguagem Literatura e História pela Universidade Vale do Rio Doce

(UNIVALE) e graduada em Letras, na mesma Universidade (UNIVALE), tendo sido

monitora de vários projetos desenvolvidos nesta Instituição. Efetiva como professora

de Língua Portuguesa na Rede Pública Estadual de Minas Gerais, atuo como

Formadora do Programa Gestar II e multiplicadora do Projeto Acelerar para Vencer 

da Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais. Fui premiada com o Diploma

Paulo Freire de Criatividade, por sua criatividade, dedicação, emprenho e

compromisso com a Educação em Governador Valadares no ano de 2007.

Sou pesquisadora da relação entre o literário e o social desde 2003, tendo

realizado monografia de graduação e de pós-graduação sobre a mesma obra,

orientada pelo Doutor Marcos Rogério Cordeiro, atualmente, professor da UFMG.

Tenho como meta realizar o trabalho de professora e pesquisadora, baseando-meem pesquisas acadêmicas e trocas de experiências pedagógicas.

Esta dissertação está inserida na Linha de Pesquisa “Literatura Brasileira:

tradição e ruptura”, do Programa de Mestrado em Letras do Centro de Ensino

Superior de Juiz de Fora.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 12/99

 

10

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho de pesquisa intitulado representação social em Morte e

vida severina investiga como foi construído o processo de representação do

homem e da natureza, destacando os fatores que influenciaram na composição da

obra Morte e vida severina (1956) de João Cabral de Melo Neto (1920-1999).

Pretende-se pesquisar a função de engajamento social na obra, por ser esta

função uma proposta evidenciada no contexto literário da época. Seu autor, João

Cabral de Melo Neto, considerado um dos nomes mais importantes da literatura

brasileira, percebe esta tendência e a emprega na realização desta obra. Muito

respeitado pelos intelectuais do seu tempo histórico, foi diplomata e fez parte da

Academia Brasileira de Letras.

O objeto de pesquisa deste trabalho, Morte e vida severina, foi premiado no

festival de Nancy na França, apresentando como tema a questão do retirante

nordestino que parte para o litoral em busca de melhores condições de vida. Por se

tratar de um refinado escritor literário, com obras relevantes no acervo da literatura

brasileira, estudos sobre João Cabral enriquecem a cultura brasileira, despertando ointeresse do povo em preservar nossos valores culturais.

Sendo assim, torna-se relevante investigar aspectos do emprego de temáticas

que envolvem grupos minoritários na literatura, realizada a partir de conhecimentos

estéticos, visando formar a representação social desses grupos, como o fez João

Cabral de Melo Neto ao representar o retirante nordestino. Na verdade, Morte e

vida severina não se trata de uma obra apenas regionalista, mas universalizada,

posto que tematiza a questão do sofrimento humano. Assim, realizar pesquisas quepossam revelar o contexto literário de tensões entre a tradição e ruptura de valores,

colaboram para um estudo mais aprofundado de uma obra.

Pretende-se, por meio de uma revisão bibliográfica, pesquisar o contexto

histórico e literário, tendo como pressuposto teórico os autores que pesquisam a

relação entre literatura e sociedade e, dessa forma, chegar a novos dados sobre a

estética literária empregada em Morte e vida severina, oferecendo uma nova leitura

que contribua para uma melhor compreensão da forma de representação do homem

e da natureza feita por este escritor.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 13/99

 

11

Na peça, há uma preocupação em retratar a vida do homem nordestino,

aparecendo uma visão critica da sociedade que exclui o homem da terra em

detrimento dos seus interesses pessoais que são desprestigiados no sistema de

governo do qual fazem parte, o que leva a perceber a influência da função de

engajamento social nesta obra.

Interessante se pensar que os artistas como os poetas, por exemplo,

apresentam novas interpretações da realidade a partir de suas obras. Uma maneira

diferente de ver o mundo é apresentada pelos olhos do artista, influenciado por seu

contexto, ao mesmo tempo em que colabora por modificá-lo. Principalmente, após o

movimento modernista passou-se a dar voz a diferentes classes sociais para que

estas fossem representadas. É importante ter claro que a arte é um tipo de visão do

mundo e não deve ser confundido com dados objetivos sobre a realidade.

Em se tratando da obra Morte e vida severina, que constitui um poema

dramático, baseado em raízes populares, esta apresenta o excluído compreendido

em sua essência sofrida. Retrata a difícil vida de uma fração do povo brasileiro que,

por não ter condições de permanecer em seu habitat de nascimento, sai em retirada

em busca de melhores condições de vida e trabalho. Foi dividido em 18 cenas, todas

explicadas. Nesta divisão, a temática da morte é trabalhada nas 12 primeiras cenase a questão da vida fica reservada para o final do auto em 6 cenas poéticas. Seu

autor é considerado como um poeta moderno, crítico e consciente que soube

observar os andamentos da modernidade e empregá-los com criatividade e

erudição, retratando uma região e seu povo de forma ética e poética.

Supõe-se que se trata de uma obra engajada por representar as dificuldades

do povo nordestino marcadas por uma pesquisa poética feita por João Cabral de

Melo Neto. Apresenta traços das tensões da época marcados pela tradição e rupturade aspectos da estética literária. Percebe-se, também, que aspectos da linguagem

da nova estética modernista são usados para construir o conteúdo social, criando a

imagem de um povo excluído de seus direitos sociais a quem o autor dá voz: a

oralidade é explorada na construção do jeito de falar do nordestino. A temática é

abordada de maneira diferente das praticadas anteriormente: a escolha da fôrma e

da forma de representação são marcas da ruptura estética.

O texto Morte e vida severina de João Cabral de Melo Neto tem em seu

conteúdo as tensões oriundas dos vários contextos da obra, principalmente o

histórico e o literário, ordem difícil de ser colocada neste trabalho, visto que uma

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 14/99

 

12

interfere, modifica e até constrói a outra. Percebe-se a presença de tensões sociais

importantes daquela época histórica em que o texto foi escrito.

Para a realização desta pesquisa científica, faz-se necessário uma ampla

leitura de autores que já estudaram a relação entre a literatura e a sociedade;

verificar o contexto literário da obra; conhecer a fortuna crítica do escritor e outras

produções literárias do autor; assim, analisar dados sobre a sua estética; e proceder 

a leitura e interpretação da obra Morte e vida severina.

Dentre os elementos usados nesta pesquisa, constam trabalhos científicos e

pesquisas de teóricas de literatura brasileira e outras literaturas que tenham algo a

informar sobre a construção da obra estudada por este projeto de pesquisa literária.

Assim, sob a luz do referencial teórico, este estudo será realizado, tendo

como principais autores Antonio Candido, Lucien Goldmann, Terry Eagleton, João

Luis Lafetá, Jean Paul Sartre, Denis Benoit, e outros. Para a compreensão das

técnicas de escritas de Morte e vida severina, buscou-se um estudo das obras de

pesquisadores que se dedicaram ao estudo do escritor literário João Cabral de Melo

Neto, como João Alexandre Barbosa, Antônio Carlos Secchin, Haroldo de Campos,

dentre outros.

Este trabalho de pesquisa está dividido em sete capítulos. O primeiro traz a

introdução da dissertação; o segundo trata da relação entre literatura e sociedade; o

terceiro esclarece sobre a função de engajamento social em literatura; o quarto

apresenta o legado modernista na literatura tratando da tradição e ruptura de valores

estéticos no Brasil; o quinto capítulo refere-se ao estilo poético de João Cabral de

Melo Neto; já o sexto tratará de uma coleta sobre a fortuna crítica da obra Morte e

vida severina;  e o sétimo faz uma interpretação do engajamento social na obra

Morte e vida severina e se propõe a uma analise sobre a construção estética dafunção de engajamento social na obra.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 15/99

 

13

2 LITERATURA E VISÃO DE MUNDO

Ao iniciar o estudo da obra Morte e vida severina (1954-1955), publicada em

1956, de autoria do escritor por João Cabral de Melo Neto, faz-se necessário,

primeiramente, uma apresentação que enfoque os seus contextos de produção,

sendo os mais relevantes para esta pesquisa: o histórico/social e o literário, sendo, a

reflexão sobre tais questões, a base deste estudo.

O homem expressa sua visão de mundo de diferentes formas e uma delas é a

literatura. Em distintas épocas, a maneira de se revelar (dizer) o mundo pode se

alterar, mostrando que a forma de concebê-lo influencia na linguagem que o traduz e

vice versa. Na arte literária, a representação do mundo ocorre pelos olhos do

escritor, que o capta, cabendo a ele, o manuseio da palavra poética que dá a forma

ficcional de vê-lo. Quando atento, pesquisa a linguagem, adequando-a ao que

deseja comunicar. Mas há questionamento quanto à capacidade de representação

objetiva do real na escrita, visto que o escritor tem sua própria percepção da

realidade, a chamada subjetividade.

Theodor Adorno (2003) que afirma que a própria linguagem é algo duplo e apartir de sua configuração, se molda inteiramente aos impulsos subjetivos. Dessa

forma, segundo o teórico, a linguagem estabelece a mediação entre lírica e

sociedade no que há de mais intrínseco (p.74). Para ele: “a linguagem fala por si

mesma apenas quando deixa de falar como algo alheio e se torna a própria voz do

sujeito.” (p. 75). O artista revela a sociedade por meio de sua arte, através da

linguagem, ficando a cargo do leitor a interpretação da obra, sua adesão ou não às

idéias marcadas pelo artista no texto dependerá de suas concepções de mundo.Interessante é refletir sobre essa capacidade que a linguagem tem de

provocar as pessoas. Revista por seus autores (ou ainda outros) e reconstruída,

conforme as visões de mundo de tempos históricos diferentes, uma obra de arte

literária pode emocionar durante séculos seguidos de maneira diferente,

dependendo do contexto em que ela é apresentada, ou da forma como é composta

por seus idealizadores e apresentada ao público.

A arte, de maneira geral, apresenta esta intrigante capacidade de mexer com

as pessoas, especialmente, por mostrar o mundo de uma forma diferente, com o

molde do artista ou grupo de artista que a produz. Desde os primórdios, representa

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 16/99

 

14

temáticas do cotidiano, cativando, assim, o público. É, talvez, o que responde pela

quantidade enorme de pessoas que lotam os cinemas para assistirem a filmes como

é o caso de “Carandiru”, “Tropa de elite”, “Cidade de Deus”, cujo tema é a violência

urbana.

Citam-se as obras cinematográficas como exemplo de apresentação que

reúne um público grande, e nelas, podemos acompanhar seus comentários e

observar a reação de muitas pessoas ao mesmo tempo, diante da presença da obra

que mostrou um fato social que as incomoda. Acontece que, como nas outras

formas de arte, em literatura a construção da realidade é dependente da linguagem

estética para que lhe seja determinado o seu valor.

Outras modalidades de arte representam eventos modernos, como é o caso

da violência urbana, por exemplo, que atinge a sociedade atual de forma

devastadora. O importante é observar que a composição do conteúdo da obra

passou pela visão subjetiva dos seus autores e que vai suscitar, ainda, várias

interpretações do ponto de vista do leitor/ouvinte.

A literatura apresenta registros de sentimentos e emoções de um tempo

histórico. Talvez, conhecer as emoções dos personagens criados em determinada

época, seja uma das principais razões estimuladoras de pesquisas. Assim, fazer reflexões sobre a realidade vivida pelo personagem, analisando eventos realizados

em outros tempos, constitui uma forma de avaliar se o homem está ou não evoluindo

para viver de forma plena suas emoções mais saudáveis como o amor. Da mesma

forma, verificar se ele tem aprendido a lidar, também, com seus medos e conflitos

como a traição, o descaso. Tais sentimentos podem ser observados em obras

literárias de tempos históricos diferentes. Sendo assim, a forma como autor registra

os fatos sociais em sua obra está relacionada ao contexto em que vive.Em Morte e vida severina estão presentes vários aspectos da vivência do

seu autor em relação ao seu contexto. Pode-se dizer, com certeza, que o conteúdo

deste texto literário se nutre de aspectos da tensão daquela época. Quanto mais

capaz é o artista, mais sabiamente apresenta as questões do seu tempo histórico. O

leitor há de ser capaz de descobrir, nas entrelinhas de um texto, a ideologia do

artista expressa na forma como construiu os detalhes da obra. Para muitos,

passarão despercebidos vários pontos levantados pelo artista a respeito do mundo

em que vive. Para alguns, decodificar as questões internas da obra é um deleite

intelectual.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 17/99

 

15

Alfredo Bosi, em sua obra: Dialética da colonização (1992, p. 343-344),

aponta como são ricas as produções em que o artista soube aproveitar das tensões

do seu tempo histórico e repassá-las artisticamente para a obra, fazendo com que

refletissem as questões sociais de determinado contexto. Segundo ele, fica incluído

no conteúdo das obras a vivência cotidiana de determinado povo. Assim, nas

palavras do autor:

[...] a obra é tanto mais rica e densa e duradoura quanto mais intensamenteo criador participar da dialética que está vivendo a sua própria cultura,também ela dilacerada entre instâncias altas, internacionalizantes e

instâncias populares. Obras-primas como Macunaíma de Mario de Andrade,Vidas secas de Graciliano Ramos, Grande sertão: veredas de GuimarãesRosa e Morte e vida severina de João Cabral de Melo Neto nunca poderiamter-se produzido sem que seus autores tivessem atravessado longa epenosamente as barreiras ideológica e psicológicas que os separavam docotidiano ou do imaginário popular. [...] A arte tem seus modos próprios derealizar os fins mais altos da socialização humana, como a autoconsciência,a comunhão com o outro, a comunhão com a natureza, a busca datranscendência no coração da imanência. (BOSI, 1992, p.343-344).

É necessário lembrar que a maneira de representar a sociedade obedece,

também, a interesses de determinados grupos sociais que detêm o poder, ou que

dele querem se apossar. Dessa forma, observa-se que conforme os detentores do

poder, algumas formas literárias vão ser prestigiadas ou não. Até mesmo a

linguagem que lhes daria forma pode ser ou não escolhida por pressões de ordem

política e social. Selma Rodrigues Calassans (1988) lembra em sua obra, O

fantástico, que a realidade se refaz em signos e que na literatura são palavras, e

signos são convenções sociais. Então a literatura se elabora por convenções que

variam conforme a época (p.18-19). As escolhas lexicais podem conter intenções

múltiplas que só uma interpretação minuciosa pode, em alguns casos, revelar. As

interpretações da autora estão relacionadas às variáveis que interferem nas

produções literárias em determinado tempo histórico.

Como ressaltado em outro momento, os temas eleitos pela classe dos artistas

e a forma de expressá-los seguem o pensamento de uma determinada época e seus

valores. Os artistas, muitas vezes, pretendem quebrar ou reverenciar padrões de

uma época. É do interesse do autor, ou ainda, de vários escritores de uma mesma

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 18/99

 

16

época, se juntarem para negar ou reafirmar a proposta de alguns grupos dominantes

de determinado período.

William Valentine Redmond (2000), em sua obra O processo poético

segundo T. S. Eliot, conclui, ao analisar críticos como John Dryden, que no

Renascimento era necessário que o autor usasse a “inteligência para perceber e

descrever a natureza humana (imagem justa) e habilidade artística para apresentá-la

em arte (imagem vivida)”. Tudo era motivado pela valorização das ciências na Época

da Razão (p. 22). A poesia, nessa época, imitava o mundo (p. 23).

No Romantismo, ainda no estudo de Redmond (2000), é apontado que a

poesia inglesa passa por mudanças depois da Revolução Francesa. Explica-se esse

momento destacando Wordworth que afirmava que a poesia tem a função de

“sacudir as pessoas de sua indiferença emocional, fazendo-as compreender a

natureza e o mistério do mundo.” (p. 27), porque para os poetas românticos a

finalidade da poesia é moral, apesar da confusão existente a respeito da natureza da

moral (p. 28).

Estudos como o de Redmond (2000) corroboram a ideia da relação entre

literatura e sociedade, pois apontam processos políticos e econômicos influenciando

a composição poética das escolas literárias em diferentes tempos históricos.Conclui-se que a realidade de um tempo provoca alternâncias na maneira de

construir o belo e também de reconhecê-lo através da crítica especializada.

A interferência do social sobre a obra de arte é também discutida por Lucien

Goldmann, na obra Dialética e cultura (1979). Nela, o crítico afirma que “os

verdadeiros valores espirituais não se destacam da realidade econômica e social”,

sendo por ela fortemente influenciados, determinando, muitas vezes, o que é dito e

como se diz (p.72).A literatura tem em seu conteúdo as nuances de uma sociedade e nela

podemos pesquisar vestígios das transformações de um período histórico para outro

e até alternância de poder político num mesmo período. Tais questões podem estar 

explícitas, ou implicitamente empregadas em traços da construção de determinadas

obras. É possível ao leitor crítico compreender nas entrelinhas de um texto novas

ideologias que se apresentam através dele. Porém, para um leitor despercebido,

muitos dos detalhes podem não ser, como já dito, compreendidos por falta de

preparo intelectual.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 19/99

 

17

É necessário compreender a obra literária em sua significação própria e julgá-

la no plano estético, defende Lucien Goldmann (1979), pois literatura é expressão de

visão de mundo e visões de mundo não são fatos individuais, mas sim fatos sociais.

Para o crítico o que julgamos é um universo de seres e coisas criado pelo escritor e

“o escritor é um homem que encontra uma forma adequada para criar e expressar 

êste universo” (p. 75). O crítico aponta que a obra literária se explica por si mesma:

“Quanto mais a obra é importante, mais vive e se compreende por si mesma e mais

pode ser explicada diretamente pela análise do pensamento das diferentes classes

sociais” (p. 77). Para Goldmann (1979), o estudo da bibliografia do autor também

pode conter explicações sobre o conteúdo da obra, mas que é somente um fator 

parcial ou secundário (p.73 -74), sendo importante, para ele, o estudo dos vários

contextos da obra.

Então, ficar atento aos vários contextos de uma obra é garantir uma

interpretação inteligente do texto literário, porque é na construção deste que

podemos enxergar o fato social, e o que engrandece o fato literário é quando o fato

social está expresso nas entrelinhas, sugerido, através de uma boa articulação do

artista da palavra.

Um dos mais importantes nomes da literatura brasileira e da teoria literária,Gilberto Mendonça Teles (2005), concorda com Goldmann, pois afirma em sua obra

teórica Vanguarda européia e o modernismo brasileiro que antes de se estudar 

uma obra literária é importante analisá-la em seus vários contextos, porque a

linguagem tem vínculo com o mundo e com a vida e, sendo uma produção humana,

está relacionada com as outras obras produzidas em determinada época. (TELES,

2005, p. 25).

Da mesma forma que a arte é influenciada pelo contexto, alguns autoresacreditam que ela também influencia o contexto. Dante Tringali (1994) expõe o

pensamento de alguns críticos ligados ao realismo socialista, afirmando que para

eles “a arte vem a ser uma forma especial de refletir a realidade”. Cita também

outros teóricos como: A. Gramsci, que conceberia o conhecimento como atividade

criadora; G. della Volpe acredita que a arte difere da ciência apenas pelo modo

pessoal de expor; R. Geraudy teria a arte como uma criação livre do espírito.

(TRINGALI, 1994, p. 220-221). Como se pode notar, então, a arte pode ser 

concebida de várias formas, com funções sociais influenciadas, também, pelo

contexto em que são criadas.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 20/99

 

18

Aponta T. S. Elliot (1989), em sua obra Ensaios, no capítulo que trata da

tradição e talento individual, que: ”Cada nação, cada raça, tem não apenas sua

tendência criadora, mas também sua tendência crítica de pensar” (p. 37). Regiões

diferentes têm uma forma de se posicionar criticamente e isto influencia sua

produção intelectual. Nesse sentido, a própria teoria da literatura sofreria influência

de determinados grupos em tempos históricos diferentes. Conforme o pensamento

de um grupo social, este, também, exigirá das produções intelectuais modificações

que atenda a sua tendência de pensamento.

A teoria da literatura apresenta uma tendência a modificar-se conforme os

anos, já que tanto o texto quanto a teoria que os interpreta sofre, também,

transformações. Na atualidade, tem sido prestigiada a teoria do jogo do texto. Para o

pesquisador Wolfgang Iser (2002), que procura explicar as relações de interpretação

de um texto: “o autor, o texto e o leitor são intimamente interconectados” o que

coloca em conflito direto com a noção tradicional de representação, isto devido a

atividade performativa, bastante valorizada nas últimas décadas: “há uma tendência

clara em privilegiar-se o aspecto performativo da relação autor-texto-leitor (p. 105).

Dessa forma, haveria uma relação de subjetividade no autor e no leitor.

Observa-se que dentro do jogo do texto, o leitor precisa dispor de elementosnecessários à interpretação. Acredita-se, hoje em dia, que a educação escolar é

uma das maneiras de uma sociedade preparar os seus leitores para que sejam

cidadãos com capacidade interpretativa e posicionamento crítico. Além disso,

colabora para a preservação de cultura viva. Quanto à literatura, neste contexto, há

um maior empenho em valorizá-la, democratizando o direito ao acesso às suas

produções e defesa dos direitos legais dos escritores e, incentivando

financeiramente os escritores, tanto maior será seu acervo de obras e valorização dacultura, pois terão recursos financeiros para empregar em seu ofício de escritor.

A forma como uma sociedade se expressa aos membros vai determinar o

modo como os sujeitos a apreendem, ou ainda, pode servir para esconder atrás de

uma máscara, ocultando-a em função do interesse de alguns. Jean Paul Sartre

(1999), no prefácio da obra Que é a literatura?, examina a arte de escrever e

declara: “O fato é que se lê mal, afoitamente, e se julga antes de compreender”

(p.7).

A obra de Jean Paul Sartre é datada de 1948; apesar de já se ter passado

muitos anos (de um século ao outro), ainda se pode considerar a sua informação

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 21/99

 

19

como pertinente para muitos leitores, já que alguns, como ele afirma: julgam antes

de compreender (SARTRE,1999, p. 7). Tudo isso está aliado à formação dos

leitores. Esta pode ocorrer desde a mais tenra idade, quando se oferece o acesso à

cultura para as crianças, através da formação familiar e comunitária. 

Diante disso, compreende-se que o sujeito social deixa de desenvolver sua

função crítica sobre a obra por falta de acesso aos meios de formação, assim como

poderá fazer uma leitura pouco inteligente da realidade. Tem-se, ainda, os casos

dos que não detêm a habilidade de ler, decodificar as palavras, os analfabetos. Para

eles, a interpretação se torna mais difícil, estando submetidos à leitura de outro, pois

não têm a formação escolar adequada ao seu entendimento, tratando-se dos

códigos da literatura escrita.

A questão levantada por Sartre (1999) é esclarecida pelo teórico Theodor 

Adorno (2003) em seu texto Notas de literatura. No capítulo Palestra sobre lírica e

sociedade, é apresentada a exaltação da importância da instrução intelectual ser 

ampliada para todos, pois o acesso a ela, como já defendido, faz uma diferença no

campo da literatura de uma nação. Nas palavras do teórico:

Não apenas o sujeito lírico incorpora de modo decisivo o todo, quanto maisadequadamente se manifesta, mas antes a própria subjetividade poéticadeve sua existência ao privilégio: somente a pouquíssimos homens, devidoàs pressões da sobrevivência, foi dado apreender o universal no mergulhoem si mesmos, ou foi permitido que se desenvolvessem com sujeitosautônomos, capazes de se expressar livremente. Os outros, contudo,aqueles que não apenas se encontram alienados, como se fossem objetos,diante do desconcertado sujeito poético, mas que também foram rebaixadosliteralmente à condição de objetos da história, têm tanto ou mais direito detatear em busca da própria voz, na qual se enlaçam o sofrimento e o sonho.(ADORNO, 2003, p. 76).

A literatura é construída pela capacidade que cada artista tem de articular 

com a linguagem ao ponto de criar um mundo novo e, através de uma descrição

nova, a imagem é criada, realizando, dessa forma, a obra literária. E ao leitor cabe a

capacidade de abstrair ideias a partir das obras de arte, sendo um exercício de

raciocínio construir uma interpretação eficiente. Tal exercício leva a uma sensação

de fruição no indivíduo, levando-o a um crescimento individual.

O sujeito da criação literária expressa o mundo e, também, se expressa ao

mundo. A realidade vai ser moldada através dos olhos do escritor, enquanto é

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 22/99

 

20

oferecida ao leitor, que a decodifica e absorve. Para Theodor Adorno (2003), “a

composição lírica tem a esperança de extrair, da mais irrestrita individualização, o

universal” (p. 66). Afirma o autor que a universalidade do teor lírico da obra de arte é

social, irá depender do leitor e suas concepções. O teórico afirma a importância da

interpretação do leitor ao proclamar: “Só entende aquilo que o poema diz quem

escuta, em sua solidão, a voz da humanidade” e declara, ainda, que “Conceitos

sociais não devem ser trazidos de fora às composições líricas, mas sim devem surgir 

da rigorosa intuição delas mesmas” (p. 67), sendo, portanto, da análise da obra que

devem surgir teorias sobre a forma de representação da realidade na mesma obra.

O eu-‘poético teria perdido sua unidade com a natureza e agora se

empenharia em restabelecê-la pelo mergulho no próprio eu e anuncia, assim,

Adorno: “Somente através da humanização há de ser devolvido à natureza o direito

que lhe foi tirado pela dominação humana da natureza.” Percebe-se que o crítico

observa uma nova roupagem do eu lírico. Deveria estar em sintonia com a natureza,

declara então que “as mais altas composições conhecidas por nossa língua devem

sua dignidade justamente à força com que nelas o eu desperta a aparência da

natureza, escapando à alienação.” (p. 70-71).

Tais comentários podem ser observados no rigor formal empregado na obrade João Cabral para construir a imagem da sociedade que o poeta escolheu como

objeto de sua escrita literária. Há, em toda a extensão de sua obra poética, uma

inteira sintonia com as questões sociais e a integração do eu lírico com a natureza.

Este expressa em sua poesia a presença marcante da relação entre natureza física

e natureza social. Cabe ao leitor perceber a existência de tais elementos.

Portanto, estabelecer as relações entre literatura e visão de mundo nas obras

literárias são possíveis se seus consumidores forem capazes de decodificar asquestões históricas e sociais presentes na obra, o que exigirá deles uma formação

crítica, que os permita construir e reconstruir o sentido da obra, levando em

consideração os seus vários contextos de produção. A literatura ganha sentido

quando o leitor a interpreta realizando, assim, o processo de erudição.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 23/99

 

21

3 A FUNÇAO DE ENGAJAMENTO

João Cabral de Melo Neto pratica, em suas obras, a função de engajamento

social. Emprega a temática do excluído social através de técnicas de construção

poética que classificam sua obra como sendo portadora de qualidade literária, assim

sendo, engajada. Antonio Carlos Secchin (1999, p. 321-322), ao tratar da temática

desenvolvida em alguns de seus poemas (da sua infância), aponta que teria havido

uma proibição de que o menino Cabral lesse a literatura de cordel para os

trabalhadores. Analisa o pesquisador que a “proibição de falar levou-o a falar da

proibição”, o poeta passa a assumir a condição “de auto-falante, tentando dizer-se

nesse arco de linguagem estendido entre a Casa-grande e a ‘senzala’.”(p. 322). Mas

defende o pesquisador que não se encontram em seus textos incitações aos

miseráveis do Nordeste (p. 305). A avaliação das “convocações bibliográficas da

família”, para o pesquisador, “iluminam uma nova leitura da poesia de Cabral” no

sentido de trazer “à tona um tenso processo de aprendizagem discursiva de que

conhecíamos apenas o resultado – a obra _, mas não a árdua elaboração na

confluência da trama tecida entre sangue e texto” (SECCHIN, 1999, p. 322). Assim,pode-se dizer que a construção poética de Cabral vai muito além de detalhes

bibliográficos, como afirma Secchin (1999), o que leva para uma análise que vise o

contexto literário.

Analisar as marcas da poesia de João Cabral conduz as teorias que ajudam

a desvendar a sua poética. Contudo, é importante levar em consideração que a

proposta de emprego do conteúdo social em textos literários era, naquele momento

histórico em que a obra foi redigida (1954-1955), uma espécie de palavra de ordempara uma séria de poetas no Brasil e no exterior, principalmente, na Europa.

João Alexandre Barbosa (2001, p. 10) declara que a realidade, para João

Cabral, “parece ser tanto a da própria poesia, como a sua história e a sua linguagem

[...] e a reflexão sobre elas no corpo do próprio poema que está sendo escrito,

quanto a da sua região de origem”, com a sua história e linguagem. E a tensão entre

as duas “vai estar no núcleo da sua poética”. Barbosa (1986, p. 109) afirma que

“João Cabral não se desfaz, um só momento, de uma intensa historicidade”. A sua

poesia está sempre “apontando para dois espaços fundamentais, isto é, o de sua

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 24/99

 

22

circunstância social e histórica e o da história da própria linguagem com que o

nomeia”.

Secchin (1999) ao questionar se a poesia de Cabral teria deixado sucessores,

cita os poetas do CPCs, projeto de poesia popular dos anos 60, e argumenta:

“palanque de conteudismo explícito” e acrescenta sobre eles: “muitas vezes é com a

melhor das intenções que se faz a pior das literaturas”. Dessa forma, o crítico

descreve: “Poesias ditada pelo clamor cívico do momento, poesia datada pelo

naufrágio estético dos poemas e pelo naufrágio político da esquerda”. Mas defende

claramente a presença de Cabral no movimento concretista, e afirma ser “sem

dúvida no concretismo que a ascendência cabralina se faz convocar” (p. 310).

Porém alerta que “seria equivocado maximizar os traços formais que aproximam

Cabral e concretos em detrimento do imenso fosso ideológico que os distingue”. (p.

311).

Esta relação entre o literário e o social ganhou espaço nas discussões

intelectuais, tornando-se muito efetivada nas produções literárias daquele período

em que Cabral escreve Morte e vida severina. Este poeta era contemporâneo de

uma estética que valorizava a relação das obras literárias com a realidade, sendo

motivada por discussões ocorridas em muitos lugares do mundo. A seguir serádescrito o percurso da função de engajamento e a motivação para tantos adeptos

em literatura.

Após meados do século XIX, a literatura obteve uma autonomia para a

criação de suas obras e os escritores puderam aproveitar as conquistas da

modernidade, em termos de liberdade, para fazer suas composições de forma mais

livre (BENOIT, 2002). No século XX, exatamente no período entre guerras, os

intelectuais europeus são contagiados por uma forma nova de se pensar literatura.Queriam alguns pensadores, elevar a literatura e outras artes a ter uma função

maior na sociedade, desenvolvendo-se, nesta fase, a prática da função de

engajamento social nas obras. O incentivo era para que a arte levasse em conta

aspectos do social e os incorporasse, buscando convencer as pessoas de propostas

políticas de alguns grupos de pensadores. Essa visão sobre a literatura seria

defendida, principalmente, por Jean Paul Sartre e divulgada, posteriormente, na obra

Que é a literatura? de 1948. O autor se refere a essa função literária e faz várias

considerações sobre o ato de escrever na modernidade. Para Sartre (1999) o

“escritor pode dirigir o leitor e, se descreve um casebre, mostrar nele o símbolo das

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 25/99

 

23

injustiças sociais, provocar nossa indignação” (p. 12). Este teórico acreditava que a

melhor forma de se engajar seria expressando-se em palavras Já que a matéria das

outras artes: as “notas, as cores, as formas não são signos, não remetem a nada

que lhes seja exterior”, afirma que se pode conferir-lhes, por convenção, valor de

signos (p. 10).

Ao mesmo tempo em que faz argumentações que apontam para um potencial

maior das letras construírem um engajamento mais eficiente, Sartre (1999) comenta

o quadro de Picasso: O massacre de Guernica, reafirmando-o como obra prima,

interroga sobre a obra: “alguém acredita que ela tenha conquistado um só coração à

causa espanhola?”. Em seguida defende a importância desta obra para a

conscientização das pessoas, afirmando: “Contudo, alguma coisa foi dita que não se

poderá jamais ouvir e que exigiria uma infinidade de palavras para expressar” (p.12).

O teórico continua a interrogar para construir o seu conceito de engajamento: “Não

se pintam significados, não se transformam significados em música; sendo assim,

quem ousaria exigir do pintor ou do músico que se engajem? Para ele o escritor “ao

contrário, lida com os significados” e distingue que “o império dos signos é a prosa; a

poesia está lado a lado com a pintura, a escultura, a música”.

Para Sartre (1999) a poesia apesar de se servir de palavras como a prosanão seria apropriada, como esta, para o engajamento social, porque, segundo o

teórico a poesia “não o faz da mesma maneira, na verdade, a poesia não se serve 

de palavras, eu diria antes que elas a serve [...] não se deve imaginar que os poetas

pretendam discernir o verdadeiro, ou dá-lo a conhecer” (p. 13). O poeta considera as

palavras “como uma armadilha para capturar uma realidade fugaz; em suma, a

linguagem inteira é, para ele, o Espelho do mundo”. O teórico explica que “sua

sonoridade, sua expressão, suas desinências masculina ou feminina, seu aspectovisual, tudo isso junto compõe para ele um rosto carnal, que antes representa do

que expressa o significado”. O poeta realiza as metáforas que deseja criar através

da “atitude poética” (p. 15). A palavra poética é considerada, pelo autor, como um

“microcosmo” (p. 16).

Apesar do gênero escolhido pelo autor ter sido a prosa, percebe-se que a

poesia tem sido utilizada como forma de expressão literária do engajamento social.

Muitos dos escritores poéticos do modernismo, como é o caso de citar Manuel

Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mario de Andrade, Oswald de Andrade e o

próprio João Cabral de Melo Neto incluíram, em sua poesia, conteúdo social, ou

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 26/99

 

24

seja, relacionaram temas da realidade em que viviam em suas poesias, por isso

podem ser objetos de pesquisa da função de engajamento social. João Cabral, em

obra Morte e vida severina, construiu seu texto de forma híbrida, possuindo o texto

característica da poesia, da prosa e do drama, melhor explicado no capítulo da

análise da obra. Sendo, portanto, construída também em prosa encontra-se de

acordo com a forma escolhida por seu grande defensor.

A proposta dessa função defendida por Sartre visava o envolvimento dos

intelectuais com a realidade em que viviam e a naquele momento histórico passou a

fazer parte das intenções de escritores e de críticos defendê-la. Definido por Denis

Benoit (2002), em seu texto sobre engajamento, o sentido de a palavra engajar,

verbo, é “dar a palavra em penhor” e em literatura “significa as relações entre o

literário e o social, quer dizer, a função que a sociedade atribui à literatura e o papel

que esta última admite aí representar” (BENOIT, 2002, p. 31). Para os seus

defensores, a atitude que deveria tomar o escritor literário é a de dar a palavra em

penhor de uma causa social. Seria, portanto, o ato de relacionar a obra ao contexto

social realizada pelo artista, pretendendo, com isto, contribuir com a sociedade,

emprestando-lhe a palavra poética em defesa de uma causa social.

Segundo Jean Paul Sartre (1999), “falar é agir” e o escritor engajado “sabeque a palavra é ação” ele desvenda o mundo e “especialmente o homem para os

outros homens”. Defende que: “a função do escritor é fazer com que ninguém possa

ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele”. Sartre, filósofo e crítico

literário, deixa claro a importância de se ter o domínio da linguagem para se dizer o

que pensa do mundo no nível da arte literária, “uma vez engajado no universo da

linguagem” daria sua contribuição ao mundo. Afirma que: “Ninguém é escritor por 

haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinadomodo.” E esse modo seria o que visasse transformar a realidade. Cada escritor 

desenvolve os temas e estes não só sugerem o estilo, mas os comanda (SARTRE,

1999, p. 20-23).

Em outras palavras, para traduzir o tema, por exemplo, do excluído social, os

arranjos literários seriam escolhidos de forma que espelhassem, na obra, a

expressão desejada. É a palavra sendo utilizada para construir a vivência do objeto

literário. Dessa forma, o leitor seria convidado a conhecer uma realidade que não é a

sua e o escritor seria responsável por mostrá-la. Para Sartre (1999): “a função do

escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 27/99

 

25

diante dele” (p. 22) e a literatura na visão deste teórico “é, por essência, a

subjetividade de uma sociedade em revolução permanente”, esta “manifesta tanto

melhor a subjetividade do indivíduo quanto mais profundamente traduz as

exigências coletivas” e a “sua finalidade é apelar à liberdade dos homens para que

realizem e mantenham o reino da liberdade humana” (p. 120).

As idéias sobre a função de engajamento em literatura não cessaram. Nos

primeiros anos do século XX, aparecem marcas de um progresso sensível na

educação e a escolarização atinge a classe dos menos favorecidos e a classe

média, havendo, também, o desenvolvimento da mídia. Naquele tempo, apesar de

se continuar lendo uma literatura com concepções burguesas, e esta ser a mais

consagrada, começou a surgir um novo grupo de leitores. Vale ressaltar que esta

função era praticada em rodas das classes detentoras de conhecimento escolar (

intelectuais).

Explica Denis Benoit (2002) na obra Literatura e engajamento que a

expansão da imprensa popular fazia um longo apelo à imagem e em particular à

fotografia. Aparece o cinema, o telégrafo, o rádio e toda essa mídia faz surgir uma

nova classe numerosa, a que os estudiosos chamaram de “massa”, constituindo-se

público dessa nova modalidade de arte. Segundo o crítico, foi, justamente, a“massa” que passou a ser uma nova forma de pressão sobre o poder. Representada

pelo proletariado, foi nela que os políticos investiram seus propósitos. Paralelamente

a esse desenvolvimento técnico – cinema, rádio, telégrafo - seguia, também, o

desenvolvimento da escrita literária.

Nesse contexto, os autores discutiam uma forma de atingir o grande público

consumidor, a chamada “massa”, visando os assuntos que envolviam o homem e a

sociedade. Para os intelectuais adeptos dessa função, “o escritor engajado situa suaobra socialmente, politicamente e ideologicamente na medida em que essa eleição

do púbico determina os fins, os temas e os meios de seu empreendimento”

(BENOIT, 2002, p. 61). O escritor passa a ser aquele com capacidade de mudar o

mundo.

Vale ressaltar que a literatura almejada pelos escritores desta época já era

praticada antes, uma vez que encontramos, em obras anteriores, a representação

das mazelas sociais. Porém, a tendência a esse modelo de literatura, neste período,

foi bem maior. A função de engajamento era palavra de ordem daquele contexto

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 28/99

 

26

literário: escolher assuntos associados às práticas políticas sociais e discuti-las nas

obras estava em voga naqueles anos de mudanças sociais frequentes.

Para Jean Paul Sartre (1999), o escritor teria que observar o seu tempo

histórico e fazer a diferença no século XX. Esta tendência foi seguida por muitos

escritores e outros artistas. Uma análise de um conjunto de obras da época pode

revelar interdisciplinaridade nas artes realizadas naquele momento histórico. Fato

comum em qualquer época. Mas a relação entre as artes e os problemas sociais

neste período foi absolutamente marcante em muitos países do mundo. A função de

engajamento social era muito bem vista entre os intelectuais.

Aponta Denoit (2002) que o escritor engajado seria aquele que se preocuparia

em relatar em seus textos as questões ligadas à sociedade de seu tempo. O povo

deveria ser representado em suas dificuldades sociais. O crítico explica que engajar,

em literatura, é fazer com que a literatura sirva para alertar sobre a realidade vivida.

Dessa maneira, o escritor opta por representar a sua realidade em seu texto literário

e faz uma escolha ao tratar de assuntos como: política, sociedade, religião e outros.

Engajar-se “tem relevância de uma decisão de ordem moral” (p. 33). Isto porque a

obra,“no ato da escrita”, não pode bastar-se somente a fatores estéticos e descartar 

o conteúdo ideológico: “que a subentende e justifica” (p. 34). Assim, o estéticoconstrói o ideológico.

Para os defensores da literatura engajada, é nos debates sociais que estão os

valores da eternidade que a literatura consagrada, até então, defendia que

devessem ser captados pelos escritores. Assim sendo, seria função do escritor,

relatar na obra as suas convicções sobre a realidade, sob o olhar de quem o lê. Os

estudiosos da função de engajamento se preocupavam em afirmar que os fatos da

realidade são empregados na obra com o comando da visão de mundo do escritor,sendo narrados sob influência da subjetividade do artista.

Torna-se importante apresentar, neste ponto, a definição de literatura

militante. Esta modalidade é, desde o início, política, aponta Denis Benoit (2002).

Sua preocupação é, exatamente, com aspectos políticos. Diferente do escritor 

engajado que quase nunca é filiado a um partido político, não se propõe a ser porta-

voz de doutrinas políticas. A política aparece nos textos do escritor engajado, pois, é

nela que se encerram as questões do homem na sociedade, afirma o crítico.

Portanto o escritor engajado deveria escrever para o seu tempo histórico,

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 29/99

 

27

procurando melhorar de alguma forma a realidade do seu tempo, ele tem

consciência de sua historicidade.

A respeito dessa função, Antonio Candido (1985), na obra Literatura e

sociedade, alerta os pesquisadores literários que no estudo da relação de uma obra

e seu condicionamento social é necessário observar que ”a análise estética precede

considerações de outra ordem” que só podemos compreender uma obra “fundindo

texto e contexto numa “interpretação dialeticamente integral”  (p. 3). E  a análise

crítica de uma obra é basicamente ”a procura dos elementos responsáveis pelo

aspecto e o significado da obra, unificados para formar um todo indissolúvel” (p. 5).

Deve-se dar importância à análise das dimensões históricas, pois são

importantes no enfrentamento dos problemas contemporâneos. Antonio Candido

(1985) defende a concepção da obra como “organismo” que permite “levar em conta

e variar o jogo dos fatores que a condicionam e motivam” permitindo, assim, uma

análise mais segura da obra, pois avalia os diversos fatores que envolvem o seu

processo de composição (p. 15).

No caso do Brasil, compreende-se que os escritores engajados se

movimentaram em torno da composição de obras que servissem às exigências da

arte moderna e esta deveria falar de novos temas, de novos grupos sociais, deveriamostrar a cara de um país que buscava sua identidade cultural. Desta forma,

provaria que a linguagem e o pensamento são indissociáveis. A mudança de um

exibe a mudança do outro. Sobre a questão, Maria Elisa Cevasco (2009) afirma que

a linguagem expressa o conteúdo na medida em que dá-lhe forma, no momento em

que define a expressão. Dessa forma, a poesia engajada deveria ser realizada

através da linguagem poética, no que concordam Antonio Candido (1985) e outros.

Tringali faz um balanço sobre o realismo socialista, apresentando-o comouma forma de engajamento social, muito forte, principalmente na Europa, afirmando

que como escola apresentou um saldo positivo, mas também apresenta saldo

negativo e faz dentre outras a seguinte reflexão:

Acontece que os problemas que deram origem ao realismo socialistapermanecem e continuam prementes. A injustiça social, a exploração dohomem não desapareceram. Ainda urge transformar o mundo. Aresponsabilidade do escritor fica de pé [...] Tanto o poderoso como o fracodevem ter direito ao seu discurso. (TRINGALI, 1994, p. 226-227).

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 30/99

 

28

Observa-se, nas palavras do crítico, que até hoje tratar das questões sociais

com empenho seria uma proposta importante para fazer parte do conteúdo da

literatura contemporânea.

Antonio Candido em seus estudos sobre a literatura brasileira trata da

consciência do subdesenvolvimento que se manifestou depois da Segunda Guerra

Mundial por volta de 1950. Desde 1930, a ficção regionalista já apresentava esta

orientação: “Ela abandona, então, a amenidade e curiosidade, pressentindo ou

percebendo o que havia de mascaramento no encanto pitoresco, ou no

cavalheirismo ornamental, com que antes se abordava o homem rústico” (CANDIDO,

2000, p. 142).

A função de engajamento em literatura efervescente, nas primeiras décadas

do século XX, continua em voga nos dias atuais e ainda conquista muitos leitores e

a apreciação da crítica especializada. O interessante é avaliar se o conteúdo

engajado na obra foi construído com qualidade, para que seja classificada como

literatura. Da maneira mais eficiente o pesquisador não pode se deixar levar por 

interpretação superficial da obra. É no contexto histórico/social e literário que poderá

encontrar as respostas mais contundentes sobre o seu sentido.

Para compreender Morte e vida severina, faz-se necessário conhecer o seucontexto de criação. Ao fazê-lo, percebe-se que o texto tem em seu conteúdo a

influência do período em que foi escrita. Compreende-se que a construção do

objeto poético reflete o momento histórico em que foi escrita a obra. Além de conter 

outras questões de outros contextos na forma de composição do artista.

É grande o equívoco de querer considerá-la como fonte histórica, já apontado

por outros pesquisadores, por causa da questão da subjetividade que o mantém ao

nível da literatura e esta é uma disciplina que tem por objetivo máximo criar ummundo ficcional, ligado ao mundo da imaginação, mesmo aparecendo, em seu

conteúdo, elementos que imitam a realidade, por ser ela uma obra engajada.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 31/99

 

29

4 O LEGADO MODERNISTA NA LITERATURA: TRADIÇÃO E RUPTURA DE

VALORES ESTÉTICOS NO BRASIL

O movimento modernista surgiu na Europa em meio a várias mudanças

políticas, econômicas e sociais ocorridas no mundo. Surgiram grupos que

anunciaram, através de manifestos, mudanças na maneira de se fazer arte e que

ficaram conhecidas como correntes de vanguardas modernistas, entre elas: o

futurismo, o expressionismo, o cubismo e o dadaísmo, cujas propostas influenciaram

a escrita literária de muitos artistas no mundo e também no Brasil. As novas ideias

propostas pelas correntes de vanguarda literária introduziram na literaturacaracterísticas que acabaram por transformar a forma de se fazer arte. Cada uma

das propostas das correntes de vanguarda gerou uma inovação técnica na estética

modernista.

Antonio Candido (2000), em sua obra A educação pela noite, declara que os

modernistas tinham uma consciência de literatura como arte e não como documento

e uma capacidade “por vezes” excepcional de realização poética (p. 152). Os seus

representantes se inspiraram nas ocorrências literárias do exterior: o movimento

modernista brasileiro “deixou clara a fonte francesa onde todos beberam” (p.153). As

vanguardas do decênio de 1920 marcaram a libertação dos meios expressivos e nos

prepararam para as mudanças nos temas da literatura conforme a consciência de

cada escritor (p. 154).

Na verdade, a um desavisado, pode parecer que não haja significado em

determinada técnica de realização literária deste período. Todavia, os traços

estéticos ganham significado quando estudados dentro de uma visão global do

movimento. O quadro social brasileiro passava por mudanças e havia várias tensões

que se manifestavam no país. Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918),

surgiram novas classes sociais e outras apenas se alternaram. Pesquisas revelam

que a vida urbana tornava-se mais intensa naquele período histórico. A

industrialização se multiplicava cada dia e surgia a classe proletária, que lutava por 

melhores condições de vida. A arte era, naquele momento, uma forma importante de

expressão de novas concepções de mundo.

Antonio Candido (1985), em sua obra Literatura e sociedade, afirma que a

evolução de nossa vida espiritual pode ser considerada regida pela dialética do

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 32/99

 

30

“localismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos”. Nesse

sentido, a obra resultaria “num compromisso mais ou menos feliz da expressão com

o padrão universal”. Destaca os nomes de escritores como Machado de Assis, Mario

de Andrade, Gonçalves Dias e Joaquim Nabuco como representantes desse

equilíbrio ideal entre as duas tendências. O crítico afirma este processo dialético tem

“consistido numa integração progressiva de experiência literária e espiritual”. Tal fato

se dá “por meio de tensão entre o dado local (que se expressa como substância da

expressão) e os moldes herdados da tradição européia (que se apresentam como

forma da expressão” (CANDIDO, 1985, p. 109-110).

Observa-se que a nossa literatura se renova conforme as ocorrências dos

lugares de onde o Brasil recebe influência cultural. O crítico trata desse esboço de

fermento de renovação literária ocorrida no Brasil e aponta a Semana de Arte

Moderna de 1922 como o catalisador das novas tendências capazes de renovar a

poesia, o ensaio a música e as artes plásticas. Candido cita nomes de artista

brasileiros que, após tomar contato com as inovações, introduziram-nas em suas

produções: Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho, Menotti del Picchia , Cassiano

Ricardo, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Sergio Buarque de Holanda, Sérgio

Milliet e Graça Aranha (CANDIDO, 1985, p. 118).A respeito do princípio desta renovação das técnicas literárias ocorridas a

partir dos moldes herdados da tradição europeia, Gilberto Mendonça Teles (2005, p.

27) explica que nomes como “Poe, Whitman, Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud e

Mallarmé assinalam, na poética ocidental, os pontos de ruptura estética e temática”

e declara, ainda, “que somados ou desenvolvidos, motivaram o aparecimento de

vários grupos de vanguarda na poesia européia” do início do século XX. A cidade de

Paris, “com a enorme repercussão do seu simbolismo”, se tornou o centro cultural demaior evidência na Europa e paralelamente,“como um sistema de equilíbrio” surge,

neste contexto,uma valorização das tradições culturais da latinidade.

As idéias filosóficas e sociológicas, bem como o desenvolvimento científicoe técnico da época, contribuíram para a inquietação espiritual e intelectualdos escritores, divididos entre as forças negativas do passado e astendências ordenadoras do futuro, que afinal predominaram, motivando uma

pluralidade de investigações em todos os campos da arte e transformandoos primeiros anos deste século no laboratório das mais avançadasconcepções da arte e da literatura.” (TELES, 2005, p. 27).

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 33/99

 

31

As descobertas da ciência trouxeram as novidades técnicas que modificaram,

de forma significativa, a vida do homem. Tais transformações alteraram a maneira

de pensar dos intelectuais que começaram a manifestar atitudes de mudanças do

pensamento, e estas refletiram na forma de se fazer arte naquele determinado

momento histórico. Teles (2005, p. 29) aponta o aparecimento das vanguardas

européias, como tendências organizadoras de uma nova estrutura estética e social.

Representavam, assim, “a mudança de crenças experimentadas no pensamento e

na arte do mundo ocidental”, desde o início do século XX (TELES, 2005, p. 82).

Estas novidades ocorridas na Europa influenciaram a maneira de pensar 

literatura, também, no Brasil. O que alguns teóricos pesquisadores da poesia de

João Cabral de Melo Neto observaram é que há traços herdados das correntes de

vanguarda européia, como é o caso da presença do surrealismo em alguns de seus

textos, principalmente, na primeira fase de sua poesia. Pode-se observar 

características da presença desta corrente citada acima em trechos, também, da

poesia Morte e vida severina, especificamente apontada na análise da obra.

Nas interpretações dos estudos de críticos como João Luiz Lafetá (2000), em

sua obra: 1930: crítica e modernismo, as mudanças político-sociais ocorridas no

Brasil explicam as mudanças na linguagem literária. Inicia seu estudo, afirmandoque esta nova proposta estética deve ser avaliada: enquanto projeto estético ligado

às modificações operadas na linguagem, e enquanto projeto ideológico, expressão

da visão de mundo da época (p. 20). Argumenta o escritor que o projeto estético já

tem em si seu projeto ideológico, mas os distingue, afirmando ser o projeto estético

a renovação dos meios e a ruptura da linguagem tradicional e o ideológico revela a

busca da formação da consciência do país, desejo de uma expressão artística

nacional (p. 21).Pensar a relação de transição de concepções, no caso do Brasil, é ainda mais

interessante, porque tem-se aqui uma tradição da ruptura. Este fato é tratado no

texto de Emir Rodrigues Monegal (1979), na obra América latina em sua literatura

em que o crítico avalia a tradição e renovação da literatura latina, explicando que, se

de um lado a crise rompe com uma tradição, escava no passado para legitimar sua

revolta (p. 131). O modernismo brasileiro propunha-se não somente romper os

vínculos com a dicção e retórica portuguesa e por em dia a literatura brasileira

através do contado com a literatura europeia, mas também efetuar um

descobrimento e uma interpretação do Brasil para realizar esta proposta. O anseio

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 34/99

 

32

de descobrir o país levou os poetas a buscarem pesquisar um objeto literário dentro

da realidade brasileira.

Este descobrimento utilizava o caminho da linguagem, dos mitos, da criaçãopoética para realizar-se. Embora fosse logo superado por outro movimentode raízes mais nacionalistas (o da ficção nordestina) o modernismobrasileiro havia de deixar na obra de Oswald de Andrade e, sobretudo, deMario de Andrade, um valioso testemunho de sua vitalidade. (MONEGAL,1979, p. 132).

Interessante é que Monegal (1979) separa a ficção nordestina do movimento

modernista do qual faz parte Mario e Oswald. Construir uma nova expressão para

este novo olhar sobre o país é que se constituía em qualidade literária para os

representantes mais relevantes desta nova estética, contando para isso, ter uma

capacidade de articular com a linguagem. Para modernizar as letras seria

necessário buscar nas tradições. Dessa forma, segundo o autor: “não pode haver 

ruptura senão de uma coisa, como só pode haver renovação de alguma coisa, e

para criar em direção ao futuro é preciso voltar-se para o passado, para a tradição”.

Logo em seguida, o crítico afirma que as letras latino-americanas assumiram, desde

as origens na Independência, a tradição da ruptura e abre parêntese para ressaltar 

que está falando mesmo é da literatura escrita na América Latina (MONEGAL, 1979,

p. 137).

Antonio Candido (1985) explica que o modernismo atuou em sua fase heróica

como uma libertação de uma série de “recalques” históricos, sociais, étnicos, que

passam a ser discutidos nos textos literários. O regionalismo desde o início do nosso

romance constituiu uma forma de auto-definição da consciência local. E a grande

contribuição a esse momento foi a publicação de Os sertões de Euclides da Cunha,

em 1902, assim como a divulgação de estudos etnográficos e folclóricos (p.114). De

1900 a 1920, o caboclo passou por um processo de idealização e Mario de Andrade,

em Macunaíma incorporou lendas, ditados populares, mostrando que a tradição

popular poderia ser conteúdo da literatura face aos padrões europeus (p. 119-120).

Descobriram um tipo ao mesmo tempo local e universal de expressão:

“reencontrando a influência européia por um mergulho no detalhe brasileiro.”Procurava-se redefinir a nossa cultura à luz de uma nova avaliação dos seus fatores.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 35/99

 

33

Destaque para a capacidade inventiva de Oswald de Andrade em Memórias

sentimentais de João Miramar . Esta obra é denominada “Prosa telegráfica e

sintética” (CANDIDO, 1985, p. 121-123). A Oswald, dentro do contexto literário do

modernismo brasileiro, dedicaram-se vários estudos nos últimos anos devido à sua

importância no movimento. É o que aponta o pesquisador Anderson Pires Silva

(2009 a) que o vê como uma “uma história privada do modernismo” ao lado de Mario

de Andrade.

Segundo Candido (1985), ao lado da ficção, o ensaio histórico-sociológico é

destaque no período com trabalhos como o de Sérgio Buarque de Holanda (Raízes

do Brasil) e Gilberto Freyre (Casa grande e senzala, Sobrados e mocambos,

Nordeste) e trabalhos de Caio Prado Junior (Formação do Brasil contemporâneo,História econômica do Brasil) (p. 124). Este foi um período de intensa pesquisa e

interpretação do Brasil. Candido (1985) refere-se a Mário de Andrade e Oswald de

Andrade como sendo grandes expressões da construção da história da literatura

nesse período.

Como já tratado, neste estudo, não se pode pesquisar um escritor deste

período sem valorizar devidamente os novos percursos da poética dos mais

relevantes escritores ícones da evolução literária brasileira do modernismo e,

seguramente, estes dois nomes estão na lista dos que mais se destacaram por sua

colaboração à literatura do seu tempo histórico, trazendo novas ideias de suas

viagens ao exterior, ou até traduzindo obras importantes e fazendo estudos que

acrescentassem ao acervo brasileiro o resgate da cultura, como é o caso de Mario

de Andrade.

Em sua obra Dialética da colonização, Afredo Bosi (1992) define cultura

como: “o conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos valores que se

devem transmitir às novas gerações para garantir a reprodução de um estado de

coexistência social” (p. 16). Naquele período histórico, esta consciência social foi

repassada a muitas obras, através de técnicas de construção inspiradas no modelo

estético modernista e na nova maneira de se pensar literatura no Brasil. Este fato

deu à literatura novos temas e tornou-a bem mais interessante no que diz respeito à

questão da nacionalidade literária, pois agora as diferentes faces do Brasil eram

interpretadas pelos olhos dos artistas.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 36/99

 

34

Anderson Pires da Silva (2009), ao tratar do legado modernista, em sua obra

Mário e Oswald: uma história privada do modernismo, afirma:

A mistura entre culto e popular irá definir um legado modernista, ao mesmotempo crítico em relação às hierarquizações intelectuais e instrumento decriação de uma consciência nacional. Este pensamento situa o folclorecomo fonte privilegiada para inteligência modernista. (SILVA, 2009, p.56 a)

A valorização do popular era uma característica estética. Escolher um povo ou

região e pesquisá-los era uma atitude intelectualmente visitada pelos representantes

da escrita. Afirma Anderson Pires da Silva (2009) que “O folclore aliado à literatura

de vanguarda permitiria a coesão nacional no campo de uma nova produção

literária”, sendo proposta dos pensadores nutrirem a cultura brasileira do que era

popular (SILVA, 2009, p. 159 a). João Cabral de Melo Neto, ao eleger o Nordeste

como seu objeto literário, buscou uma educação poética para conseguir representá-

lo na poesia.

Os escritores literários do início do século XX tiveram ao seu dispor umacaracterística que outros não dispunham que é o desenvolvimento da imprensa. Tal

fato facilitou a divulgação de obras e a democratização da cultura, pelo menos em

tese, porque na verdade nunca foi fácil democratizar a cultura. É fato que um público

maior passou a ter acesso às obras de arte e a educação faz surgir novos leitores.

Há um aumento no número das casas editoriais e acontece a formação de “novos

laços entre escritor e público”. Era necessário criar um sistema expressivo que

ligasse o passado ao futuro da escrita literária (CANDIDO, 1985, p. 137).Não é garantido que esses leitores tivessem um eficaz entendimento da

proposta das novas obras. Naquele contexto, o que fazia sucesso entre os novos

leitores comuns eram as obras do romantismo e a escolarização era garantida para

poucos. Alguns escritores e intelectuais representantes do modernismo não foram

bem recebidos em suas apresentações na Semana de Arte Moderna, conforme

relatos de obras que tratam desse evento, nem suas obras foram devidamente

valorizadas naquela época. Alguns teóricos revelam que até mesmo a propostaliterária de Oswald foi mal compreendida por alguns intelectuais da época. Mas não

se pode negar que os artistas envolvidos no movimento fizeram a diferença no

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 37/99

 

35

contexto em que estavam inseridos. Segundo Anderson Pires da Silva, devido ao

processo de industrialização, São Paulo foi a cidade mais representativa do

movimento (SILVA, 2009, p.17a). Havia manifestações teatrais significativas que

reuniam a sociedade brasileira nos grandes centros para tomar conhecimento da

cultura.

Aponta Décio de Almeida Prado (PIERUCCI, 1995), na obra O Brasil

republicano, o teatro era uma espécie de cinema-teatro e ficava no centro da

cidade, sendo dividido aparentemente de forma democrática: “platéia, balcão,

galeria” uma divisão que correspondia, assim, à hierarquia social, dando a todos o

acesso ao espetáculo (p. 528). Importante ícone da escrita modernista no teatro foi

Oswald de Andrade com suas sátiras e dentre as peças deste escritor estão: O reida vela de 1933 e O homem e o cavalo de 1934 (p. 536).

Afirma Prado (In PIERUCCI,1995) que era comum neste escritor questionar a

burguesia paulista de que tinha conhecimento íntimo (p. 537). Em destaque nos

teatros da época, temos Mario de Andrade. Sua participação como artista engajado

é carregada de erudição nas várias obras de conteúdo social. Deu sua contribuição

ao movimento literário da época. Mario escreveu a ópera Café que teria o artista

“ruminado” de 1933 a 1942. Tratava da “crise da superprodução, o paradoxo daqueima de café coincidindo com o desemprego e a miséria rural (p. 537). Em tais

obras teatrais aparecem questionamentos sobre a vida em sociedade,

principalmente se critica: perturbações de ordem social ou moral, conflitos familiares

(p. 540). Fez uso da Hipérbole: “só que o exagero de Mário [...] jamais atinge a

perversidade de que Oswald se mostra capaz.” (p. 538). O balanço da década de

1930 não é favorável. O teatro comercial não realizara seus intentos estéticos ou

suas obrigações históricas. Não soubera incorporar as novas tendências. Nem asóperas de Mario de Andrade, nem as peças de Oswald foram encenadas em vida

destes autores (p. 540).

Os decênios de 1920 e 1930 são reconhecidos pelo convívio harmonioso

entre literatura e estudos sociais. O Modernismo teria facilitado o desenvolvimento

da sociologia, história social, da etnologia, do folclore, da teoria educacional e da

teoria política. Os trabalhos intelectuais exibiam as massas como elemento

constitutivo da sociedade e esta consciência dos problemas populares passaram a

ser tema em vários segmentos da vida intelectual, pressionando, muitas vezes,

mudanças sociais no país.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 38/99

 

36

Muito do que se escreveu na fase heróica do modernismo foi baseado em

pesquisas etnográficas e históricas. A releitura do passado fez parte do conteúdo

das melhores produções de vários intelectuais das letras como é o caso de Mario de

Andrade, importante pesquisador da cultura e do folclore brasileiro do início do

século XX.

Modernizar as letras no Brasil passava, principalmente, pela análise do

passado, pois a intenção era construir uma sociedade técnica e modernizar as

instituições arcaicas para compreender esse novo contexto social que se instalava.

Esta discussão a respeito de modernização e a construção de um futuro melhor está

presente em quase todos os teóricos que procuram explicar este movimento, cujo

papel principal era expressar o questionamento sobre as arraigadas estruturas de

poder.

Emir Rodrigues Monegal (1972) afirma ser necessário “começar pelo resgate

de formas literárias esquecidas porque elas mostram até que ponto a

experimentação significa também uma volta ao passado, uma operação de

reavaliação e de resgate”. (MONEGAL, 1972, p. 138). Este foi um processo

executado pelos melhores nomes da literatura brasileira e entre eles o destaque

especial é de João Cabral de Melo Neto por pesquisar em todo o decurso de suaarte até chegar a uma poesia de qualidade reconhecida pelos críticos.

Segundo os estudos do crítico João Luis Lafetá (2000), o movimento

modernista buscava refletir um novo tempo da história brasileira. No Brasil, as novas

ideias aprendidas com as vanguardas europeias foram acrescidas do folclore

brasileiro e da literatura popular (p. 22). A convergência do projeto estético com o

projeto ideológico daria nas obras mais radicais e mais tipicamente modernistas (p.

25).Ao tratar do Modernismo Brasileiro, Gilberto Mendonça Teles (2005, p. 277),

afirma que a “Semana da Arte Moderna foi um duplo vértice histórico; convergência

de idéias estéticas do passado, apuradas e substituídas pelas novas teorias

européias”. O teórico resumir a contribuição da revolução literária de 1922 em dois

aspectos, a saber: abertura e dinamização dos elementos culturais, incentivando a

pesquisa formal (linguagem) e a ampliação do ângulo óptico em relação aos temas

da realidade nacional, tal ampliação se deu “mais exatamente na linguagem,

elevando-se o nível coloquial da fala brasileira à categoria de valor literário”

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 39/99

 

37

O movimento modernista foi capaz de introduzir na cultura brasileira uma

nova forma de se pensar literatura. É claro que isto causou uma certa resistência de

alguns artistas, isto em virtude de ter intenções de mudanças nas várias esferas da

sociedade, principalmente, nas instituições governamentais.

Segundo Lafetá (2000), a experimentação da linguagem exigiu o uso de um

“novo léxico, novos torneios sintáticos, imagens surpreendentes, temas diferentes”

que, ao mesmo tempo em que permite, acaba por obrigar a uma ruptura com as

antigas formas de linguagem. O modernismo brasileiro foi tomar das vanguardas

européias sua concepção de arte e as bases de sua linguagem: a deformação do

natural como fator construtivo, o popular e o grotesco como contrapeso, ao falso

refinamento academicista, a cotidianidade como recusa à idealização do real, o fluxo

da consciência como processo desmascarador da linguagem tradicional (p. 22).

Para realizar a nova estética alguns modernistas foram buscar inspiração,

grande parte, nos procedimentos técnicos da arte primitiva, aliando-os à tradição

artística de que provinham e, por essa via, transformando-as. Dessa forma: “A

ruptura da linguagem literária correspondia ao instante em que o curso da história

propiciava um reajustamento da vida nacional” (p. 25).

O problema da aceitação da nova arte entre os intelectuais e os própriosrepresentante da escrita é um fato descrito por quase todos que se debruçam sobre

os estudos literários dessa fase. Entre outras disciplinas também o novo traz sinais

de aversão entre alguns. Ao que parece uma nova estética é sempre difícil de ser 

assimilada.

William Valentine Redmond (2000, p. 15), em sua obra O processo poético

segundo T. S. Eliot, aponta a existência na literatura inglesa de uma tradição,

desde a época da Renascença, de grandes poetas que são também críticos, decriarem uma aceitação de sua poesia ao fazer uma nova avaliação do passado.

Segundo o autor, dessa forma aprendem as técnicas da poesia nova mediante uma

crítica sagaz e penetrante dos poetas anteriores. Esta seria a característica mais

marcante dos textos brasileiros dos melhores modernistas.

Surgiram obras novas com a expressão da tendência estética do

modernismo. Muito do que se escreveu e do que se realizou nesta época não foi

apreciado pelos críticos contemporâneos dos artistas autores e algumas formas até

foram rejeitadas na época da Semana de Arte Moderna. É que o padrão de

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 40/99

 

38

  julgamento da época não estava preparado para algumas mudanças estéticas que

ocorreram e que, de certa forma, influenciaram as várias artes e outros segmentos.

O próprio João Cabral de Melo Neto, escritor respeitado pelos seus

contemporâneos, argumenta na tese sobre poesia e composição que a crítica que

insiste em empregar um padrão de julgamento é, muitas vezes, incapaz de apreciar 

algumas obras, fazendo apenas com uma parte das que se publicam: “aquele em

que esses padrões possam ter alguma validade” (TELES, 2005, p. 379).

Percebe-se que o trabalho da crítica precisa estar apontado para as

mudanças na estética ocorridas com a história dos povos. Tradição e ruptura de

aspectos estéticos são consumidos pela cultura de uma mesma época, apesar de

alguns não estarem preparados para entender as mudanças sociais, elas inspiram

mudanças de padrão estético.

Muitas vezes, certas mudanças podem ser percebidas na estética empregada

em diversos segmentos das artes, havendo uma relação entre elas. Ocorre, dessa

forma, a interdisciplinaridade entre as artes, sendo uma tendência da arte moderna.

Uma mesma vanguarda, como o cubismo, influenciou tanto as letras, quanto a

pintura e até outras disciplinas (TELES, 2005). Os escritores, então, podiam sofrer 

influência de artistas de outros segmentos das artes. Marta de Senna (1980, p.140-141) afirma que Cabral era influenciado pelos pintores: Miró, Mondrian e Dubuffet e

outros teóricos como Ivo Barbieri (1997) também apontam esta interdisciplinaridade

na arte de Cabral, percebidas em detalhes da sua poesia.

Modismo, novidade, intelectualismo, seja como for, tanto em Cabral quanto

em outros escritores, a denúncia das estruturas arcaicas de poder ocorreram em

larga escala e acabaram por formar uma corrente de artista com propósitos em

comum, executar uma arte inovada que fizesse uma nova leitura do Brasil e suasinstituições ultrapassadas. Ao compararmos a poesia desenvolvida pelos artistas da

primeira metade do Século XX é fácil perceber que, entre os representantes do

modernismo, a palavra de ordem era fazer uma grande crítica social através da

palavra literária.

As pesquisas de João Luis Lafetá (2000) revelam que enquanto na primeira

fase - a heróica – realiza-se, principalmente, mudanças na linguagem literária: “se há

denúncias das más condições de vida do povo, não existe todavia consciência da

possibilidade ou da necessidade de uma revolução proletária”, na segunda fase, a

do decênio de 30, existe, especialmente, consciência de luta das classes e de

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 41/99

 

39

alguma forma, vai penetrar em todos os lugares – na literatura, inclusive, causando

transformações importantes (p. 28). Os escritores e intelectuais esquerdistas

mostraram a figura do proletário e do camponês como forma de mexer com as

estruturas que os mantém em estado de sub-humanidade (p. 30).

Era uma fase de debates em torno dos rumos a serem tomados no Brasil que

se modernizava e passava a compreender uma sociedade técnica que aprendia a

exigir os seus direitos sociais, através de movimentos políticos que eram

organizados a todo momento. Tudo isso também influenciava na estética literária

como descreve o pesquisador:

A revolução de 30, com a grande abertura que traz, propicia – e pede odebate em torno da história nacional, da situação de vida do povo no campoe na cidade, do drama das secas, etc. O real conhecimento do país faz–sesentir como uma necessidade urgente e os artistas são bastantesensibilizados por essa exigência (LAFETÁ, 2000, p.32).

As duas gerações modernistas tiveram grande interesse em alertar sobre

política. Destaca-se, entre elas, a geração de 30 que tendia para o ensaio e seusautores priorizavam a análise em seus textos, tentando uma síntese e procurando

explicações sobre o país, conforme esclarece Antonio Candido (1985, p. 123).

Vários segmentos da sociedade passam a ser introduzidos como temas da

literatura em muitos escritores e os lugares do Brasil são incorporados aos textos de

obras como as de Raul Bopp, Graça Aranha, Antônio de Alcântara Machado, Manuel

Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, e muitos outros que souberam explorar os

lugares e o povo brasileiro e transformar em literatura.

A prosa se desenvolve no romance e no conto e os dois vivem uma fase rica

na literatura. O romance é marcado pelo neonaturalismo de inspiração popular,

mostrando os dramas característicos do país. Assim, a literatura volta-se para os

assuntos históricos e sociais. Os temas da geração de 30 enfocam o homem e seus

problemas individuais refletidos no contexto social da época. Dessa forma, surgem

obras que mostram vários ângulos, ainda não explorados pelos escritores brasileiros

das gerações passadas (CANDIDO, 1985, p. 125).

Antonio Candido (1985) afirma que depois dos anos 1940 surge um período

novo. O que tinha sido de grande valor nos decênios de 20 e de 20 em que houve

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 42/99

 

40

um “admirável esforço de construir uma literatura universalmente válida (pela sua

participação nos problemas gerais do momento, pela nossa crescente intergração

nestes problemas) por meio de uma intransigente fidelidade ao local”. A forma

modernista de tratar o regionalismo, folclórico, libertino e populista se diminui. Os

escritores revelam preocupações com a forma e menos com o conteúdo social. É,

nesse contexto, e apesar muitos terem abandonado a linha modernista, lado a lado

com estas novas preocupações com aspectos formais que desprestigiava a

presença de conteúdo social, que vai surgir importantes obras regionalistas como:

Fogo morto de José Lins do Rego, Terras do sem-fim de Jorge Amado (1943) e

Sentimentos do mundo e Rosa do povo de Carlos Drummond de Andrade (1940 e

1946).

Portanto, como explica Candido (1985, p. 126). O que acontece, nesta fase, é

uma separação “abrupta” entre a preocupação estética e a político-social, sendo que

a união desses elementos havia sido destaque nas produções de 1930. Os

escritores políticos tornaram-se especialistas na “direção propagandística e

panfletária”, enquanto os escritores voltados a questões estéticas se afastaram de

fatos da realidade social: “Vivemos uma fase crítica, demasiado refinada nuns,

demasiado grosseira noutros; em todo caso, pouco criadora, embora muitoengenhosa.” Assim o crítico analisa aquele contexto literário:

A partir de 1940, mais ou menos, assistiremos, [...] a um certo repúdio dolocal, reputado apenas pitoresco e extralingüístico; e um novo anseiogeneralizador, procurando fazer da expressão literária um problema deinteligência formal e de pesquisa interior [...] os novos manifestaram poucointeresse pela literatura ideológica de esquerda e de direita, e os que tinhamvocação política desleixaram não raro a literatura, passando diretamente à

militância. Desenvolve-se, desse modo, o que parece constituir um dostraços salientes dessa fase: a separação abrupta entre preocupaçãoestética e a preocupação político-socia.” (CANDIDO, 1985, p. 126-127).

Segundo Antonio Candido (1985), os melhores representantes da poesia

continuam sendo os destaques de anos anteriores: Vinícius de Moraes, Henriqueta

Lisboa, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. No

romance, o crítico destaca José Geraldo Vieira e Clarice Lispector. Na poesia mais

recente, destacam-se Bueno de Rivera, Wilson Figueiredo e João Cabral de Melo

Neto. Este é sempre apontado entre os melhores na poesia produzida naqueles

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 43/99

 

41

anos. O destaque é devido à qualidade deste poeta em manejar forma e conteúdo

na construção de suas poesias.

O historiador Décio de Almeida Prado (PIERUCCI, 1995) aponta, ao se referir 

ao teatro, uma mudança de perspectiva motivada por fatos políticos da época. Os

gêneros das artes sofreram em igual proporção os entraves de um tempo que

mudanças sociais afetavam claramente o conteúdo e a forma de apresentação das

produções artísticas, chegando a ter censura sobre o que era expressado em

diversos segmentos:

A pequena abertura ensaiada logo após 1930 desaparecera. Caíra sobre onosso palco, tão acostumado à censura em seu penoso calvário histórico,um dos mais pesados regimes censórios que ele já conheceu. Durantealguns intermináveis anos tudo seria proibido, até referências à guerra deque então o Brasil já participava.Talvez por isso, talvez pelo mornoambiente moral e intelectual imperante, de conformismo em face doinevitável conflito internacional, inclinava-se a dramaturgia brasileira paraoutros gêneros , menos comprometidos e menos comprometedores.(PRADO, 1995, apud PIERUCCI, et al., 1995, p. 538-539)

Surge, na poesia, um grupo de poetas denominado “Geração de 45” e, sobreesta formação, muitos críticos se ocuparam em defendê-los ou criticá-los

barbaramente. Expô-los, neste trabalho, é importante devido à sua ligação em

algumas obras teóricas ao poeta João Cabral. Segundo Anderson Pires da Silva

(2009), os escritores dessa geração queriam uma volta do formalismo literário (p.71),

sendo sua proposta baseada no retorno ao metro e às formas clássicas. (p.109).

Estariam interessados na forma estética da literatura e negaram algumas conquistas

das gerações modernistas, principalmente a chamada “Geração de 22”.Concorda com Silva (2009), José Guilherme Merquior (1965, p. 33) quando

declara que o programa desta geração “Ainda que não tenha sido formalizado,

sempre consistiu num antimodernismo”, sendo uma reação contra a chamada

“Geração de 22”. Para o crítico, uma seriedade difusa se espalhou pelo verso e

sobre a presença de João Cabral nesse rol de poetas, afirma:

Não sabemos se é por ingenuidade ou malícia que se situa João Cabral deMelo Neto entre os autores dessa geração. Deve ser por uma tola misturade ambas as coisas. Mas sua subtração do grupo é obrigatória. Sua atitude

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 44/99

 

42

de rigor, de concentração é tôda conseqüente e penetrante: nada tem a ver com as camisas-de-fôrça parnasianas desses senhores. Seu verso curto étambém único. Seu realismo está a quilômetros de distância das pobresfantasias dessa versalhada; e a coragem singular, grandiosa e áspera nasua virilidade, com que enfrentou e venceu a tarefa da poesia social

brasileira fazem dele um cavaleiro solitário entre esses ilustres conformistas.Há portanto, entre um e outros, apenas uma incômoda convergênciacronológica. Incômoda, decerto, porque João Cabral é simplesmente o quea geração de 45 poderia ter feito e não fez. (MERQUIOR, 1965, p. 39-40)

Sobre a famigerada “Geração de 45”, Haroldo de Campos (1992) declara que

ela não pode ser reconhecida como: “instituidora de uma nova ordem poética” a não

ser que se confunda “forma” com “fôrma”. Para este importante crítico, esta geração

teria tentado restaurar o cânone na Literatura, buscando o uso de palavras eruditas.

Campos (1992) acrescenta que João Cabral de Melo Neto é arrolado, nesta

geração, somente por uma questão cronológica. É o que defende o próprio poeta na

obra João Cabral: a poesia do menos de Antônio Carlos Secchin (1999) em que é

inserida uma entrevista com João Cabral de Melo Neto e nela o poeta responde

sobre tal questionamento:

Pertencer a uma geração é um fenômeno biológico, não se pode mudar oano de nascimento. Mas alguns reduzem uma geração à idéia de escolaliterária, nessa perspectiva, nada tenho a ver com o seu ideário estético,formulado, aliás, por um grupo pequeno” (Melo Neto apud SECCHIN, 1999,p. 325)

Os pesquisadores apontam que os representantes da chamada “Geração de

45” criticavam as conquistas do modernismo como o poema-piada e o verso livre

(PIRES, 2009, p.71). Alfredo Bosi sobre a “Geração de 45” esclarece:

Mas o que caracteriza – e limita – o formalismo do grupo é a redução detodo o universo da linguagem lírica a algumas cadências intencionalmente estéticas que pretendem, por força de certas opções literárias, definir opoético, e, em conseqüência, o prosaico ou não poético. (BOSI, 1997, p.521).

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 45/99

 

43

Concorda-se, neste trabalho, com os teóricos que defendem a ideia da

existência de apenas duas fases do modernismo: a fase de mudanças na linguagem

(Geração de 22, também, ideológica) e a fase preocupada com o conteúdo social

(Geração de 30, literatura engajada). Assim, a “Geração de 45” seria, então, uma

fase da literatura da época, que compreenderia alguns poetas, porém não seria uma

fase do modernismo.

Antonio Candido (1985), defensor da poesia social, afirma ser uma constante

não desmentida da nossa evolução literária, que: “a verdadeira poesia só se realiza,

no Brasil, quando sentimos na sua mensagem uma certa presença dos homens, das

coisas, dos lugares do país.”(p. 128-129), é o que Cabral empregou em suas

poesias do início ao fim de sua carreira como escritor, sendo difícil classificá-lo em

apenas um rol de poetas.

Considera-se para este estudo, que o importante é saber que João Cabral de

Melo Neto é um poeta que tem preocupações tanto com a forma (linguagem) quanto

com o conteúdo em sua poesia, um constrói o outro. Cabral é lembrado por vários

críticos como um escritor moderno, crítico e capaz de produzir uma poesia refinada,

por isto, tem seu nome lembrado como um dos mais representativos da poesia

brasileira de todos os tempos. Antonio Candido (1985) destaca João Cabral de MeloNeto como “mais bem dotado” (p. 128) ao compará-lo a outros escritores de sua

época, capaz de realizar uma poesia com qualidade literária.

Antônio Carlos Secchin (1999) comenta em sua obra, João Cabral: a poesia

do menos sobre o jeito único deste autor fazer poesia. Segundo este crítico:

Não há, portanto, na poesia brasileira, uma linhagem ostensiva ondecomodamente se possa instalar a obra de João Cabral de Melo Neto. Essaespécie de orfandade, que faz dele um autor-ilha, não implica, insistimos,um processo criador isento da História, inclusive porque uma ilha só sepercebe por oposição ao continente. [...] Autor situado no tempo, mas nãositiado por ele, capaz, portanto, de grafar-lhe as marcas da recusa, danegação, da dissonância” (SECCHIN, 1999, p. 309-310).

De acordo com João Alexandre Barbosa (1986), os poemas de João Cabral

passaram pelo crivo de uma longa e conquistada poética: a do rigor, que o identifica

na literatura brasileira pós-modernista (p. 131).

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 46/99

 

44

T. S. Eliot (1989), no capítulo Tradição e talento individual presente nos

seus Ensaios, analisa a questão da essência peculiar do homem escritor. Para ele a

que sobressai, deixando o pesquisador que a descobriu com satisfação, é a

diferença que ele apresenta em relação aos seus antecessores. Seria algo que o

distingue em relação às características dos outros poetas (p. 38). Eliot (1989)

também afirma que não se pode estimar em si o valor de um poeta, sendo

necessário situá-lo e contrastá-lo com os seus antecessores mortos (p. 39). Não

desconsidera que o passado deve modificar o presente e também orientá-lo (p. 40).

Analisando João Cabral sob o ponto de vista de Eliot (1989), tem-se que o

rigor e a criatividade são apontados por quase todos que se detêm em pesquisas

sobre suas obras, sendo, por todos, destacado por sua educação poética e pela

pesquisa da forma que é uma característica primordial deste artista da palavra

poética. Para Eliot (1989) “A evolução de um artista é um contínuo auto sacrifício,

uma contínua extinção da personalidade” (p. 42).

A busca de resposta sobre as implicações ideológicas do movimento

modernista, ainda não se esgotou e as possibilidades de interpretação de seus

rumos estão em documentos e na arte desse período. Aponta Gilberto Mendonça

Teles (2005) que: ”A sua estrutura histórica ainda não foi devidamente depreendida”e continua: “As fontes históricas não estão ainda completamente levantadas”. Há

revistas e jornais da época que ainda não foram estudados e que, segundo ele,

devem ser levados em conta no estudo da literatura brasileira. Dessa forma, muita

coisa ainda está sem resposta precisa. (p. 27).

Diante do exposto, pode-se dizer, então, que buscar uma interpretação de

uma obra como a de João Cabral de Melo Neto é também uma busca de sua

identidade literária, já que ele viveu em um tempo de grandes modificações nestaarte. Sua busca por uma poética que o individualize em relação aos seus pares era

incessante. Suas escolhas literárias dentro das escolas que tinha ao seu dispor,

foram as melhores possíveis. Cabral foi beber na água dos grandes nomes da

literatura da época e em seus antecessores; fez buscas em outras literaturas de

países diferentes, como França, Espanha e Portugal, e ainda outras influências que

esta pesquisa não detectou para construir suas obras carregadas de uma relação

entre o regional e o universal. Nelas o homem e o meio natural figuram como o

principal personagem.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 47/99

 

45

5 O ESTILO POÉTICO DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO

João Cabral de Melo Neto é um dos nomes mais representativos da poesia

na literatura brasileira. Pernambucano, conhecido por seu refinado trato com a

poesia, tornou-se respeitado nos meios acadêmicos. Sua produção poética

encontra-se situada entre os anos 1940 e 1990 e, entre outras marcas, aparecem os

aspectos característicos da região Nordeste. Foi um eterno aprendiz do fazer 

poético. Seu percurso literário é marcado pela busca de uma poética articulada entre

o dizer e os processos de composição. Sua obra é marcada pelos aspectos

característicos da região Nordeste. O sertão nasce para anunciar a morte, natureza

devastada, bichos, homem e rios em retirada, sendo que é “nesse jogo entre

devastação e resistência que a poesia de morte e de vida cabralina vai tentar 

traduzir o sertão.” (SECCHIN, 1999, p. 300).

Mas para uma análise literária, o crítico João Alexandre Barbosa (1986), em

As ilusões da modernidade, avisa que sua obra “vale mais pelo tratamento dado

aos temas e por seus procedimentos poéticos do que simplesmente como fonte de

documentação regional”. Alerta o crítico que é, inclusive, um grande perigo para oleitor se deixar levar pelos aspectos regionais, recebendo-os como fonte histórica (p.

107). O que Cabral faz é literatura. Este escritor consegue uma articulação entre o

dizer e o fazer e nas palavras do crítico:

Como toda poesia realizada, a obra de João Cabral deve ser fisgada nosmomentos em que a comunicação e a arte estabelecem um delicado e sutil

  jogo de interdependência. [...] a leitura da realidade feita pelo poeta, pelalinguagem do poeta, foi permitindo um cada vez mais alargamento dosespaços de significado sobre os quais a sua obra se foi alicerçando. [...] háuma espécie de educação em toda a sua obra, que se manifesta em termosde uma singular imitação: aprendendo com os objetos, coisas, situações,pessoas, paisagens, etc., a sua linguagem foi, aos poucos, montando umanova forma de ver (BARBOSA, 1986, p. 108).

O poeta João Cabral adquiriu com o tempo um aprendizado da sua própria

poética e montando uma nova forma de ver o objeto poético “jamais permitindo-se a

facilidade de um dizer didático, desde que sempre dependente do fazer poético”. O

crítico aponta uma “educação paradoxal” porque a sua obra “ensina mais

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 48/99

 

46

radicalmente, [...] pela raiz das coisas em que são procuradas as significações mais

entranhadas. (BARBOSA, 1986, p. 108)

José Guilherme Merquior (SENNA, 1980, XIII) apresenta-o como um pós-

modernista e afirma que ele é exemplar por sua “vasta, valiosa e necessária

dessacralização da literatura” e que sua obra é um “paraíso” da crítica: pela sua

“consistência formal e simbólica”.

Seu potencial técnico é atestado pelos nomes mais representativos da critica

brasileira. Em 1945 ingressou na carreira diplomática; entre os lugares onde serviu,

a Espanha é o destaque como terra estrangeira a que o poeta vinculou-se. Foi eleito

por unanimidade para a Academia Brasileira de Letras em 1968. É situado, ao lado

de Carlos Drummond de Andrade, como ponto culminante da poesia brasileira do

século passado. (SECCHIN, 1997, p. 7).

Demonstra em seus textos uma impessoalidade intencional por meio de uma

poesia consciente feita com um trabalho racional usado na composição e por isso a

comparação com o engenheiro. Ele fala sobre sua própria poesia, praticando o ato

de poetar, reflete sobre a composição poética. É justamente a “metapoesia” que o

consagra como poeta crítico. É um poeta que reflete o mundo na poesia e usa uma

linguagem seca para representar este mesmo mundo. (STEFENS, 2007, p. 63).Cabral foi um eterno aprendiz do fazer poético e do uso adequado da

linguagem e passou sua vida envolvido em decodificar esta arte, como sinônimo de

aprendizado constante, tendo sido um dos melhores artesãos da linguagem de

nossa literatura. Tal fato é defendido por importantes críticos que debruçaram sobre

sua obra. Fez uma releitura das tradições poéticas no corpo do poema, refletindo a

realidade do seu tempo. Uma das explicações para o estilo de João Cabral de Melo

Neto é que o autor entende que “Traduzir o sertão é traduzir-se nele”, sendo omesmo que “deixar-se conduzir com palavras” num modelo ético e poético e para

captá-lo é preciso dominar o discurso que o traduz. (SECCHIN, 1999, p. 300).

A preocupação com a forma perseguiu-o em seu percurso como escritor,

pois procurou articular o dizer e o fazer poético, deixando que a palavra poética

representasse o objeto. A respeito da metalinguagem em seus poemas, é possível

falar de uma poesia eminentemente metalingüística “não uma poesia sobre a poesia,

mas uma poesia que empresta a linguagem a seus objetos para com ela construir o

poema” (BARBOSA, 1986, p.108).

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 49/99

 

47

De acordo com Marly Oliveira (2000, p.15-16), Cabral é um autor sempre em

processo de criação, pois procura se educar através da busca do domínio da

linguagem literária, refletindo o fazer dos grandes escritores e dos artistas plásticos

apelando, ainda, para a inteligência do leitor. Grande é a influência do cubismo e do

construtivismo em sua obra, bem como a busca da objetividade em suas criações.

João Cabral pesquisava a cultura que decidia representar na poesia e

aplicava em seus poemas como forma de torná-los mais criativos. É um poeta que

usa os sentidos para construir as imagens na sua poesia e entre eles: “a visão, que,

 juntamente com o tato, é o sentido privilegiado na obra de Cabral” (SENNA, 1980, p.

17).

Entre seus mais elogiados poemas está O engenheiro de 1945, sendo

também um dos mais importantes da literatura brasileira. É dedicado a seu amigo

Carlos Drummond de Andrade. Para Marta de Senna (1980, p. 6) o propósito do livro

é: “atingir a emoção por via da precisão e não do vago, que poesia tem como

finalidade a emoção, mas deve ser construída com o mesmo rigor com que se

constroem os objetos técnicos” e, segundo a autora, é a guinada fundamental na

evolução poética do escritor.

Para escrever O rio (1953), o autor teria feito pesquisas sobre a geografia doseu percurso. Estaria, assim, aplicando uma tendência herdada dos modernistas de

1922, que gostavam de fazer pesquisas etnográficas para compor suas obras e

criticar a sociedade através delas.

O crítico Ivo Barbiere (1997) analisa João Cabral de Melo Neto como um

projetista-construtor que mantém sob estrito controle os impulsos da invenção, tendo

como marcas: escassez, carência e privação. Conhecido como poeta engenheiro,

ele lida com a matéria verbal à maneira do escultor, perseguindo a forma apurada,compondo seus versos de forma concisa com palavras secas (p. 11-12).

A poesia de João Cabral caracteriza-se pela supremacia do pensamento e

da razão, sobre o sentimento e a emoção. Os textos que o poeta pernambucano

produziu, em quase meio século de produção literária, se inscrevem naquela

vertente da modernidade que faz da invenção campo de pesquisa e auto reflexão.

Assim, o fundamento do mundo representado é a linguagem pensada e pesada

segundo critérios de rigor formal e precisão de significado, sempre usando de uma

postura ética indissociável dos atos de criação do poema (BARBIERI, 1997, p. 27-

35).

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 50/99

 

48

Barbieri (1997, p.49) observa que nas obras de João Cabral aparece a

comunicação com outras formas de arte como: a arquitetura, a pintura e o trabalho

do engenheiro e do toureiro. Lúcida objetivação da imaginação projetista, a obra do

antipoeta, ao se afirmar como representação do mundo com imagens antilíricas,

nega o subjetivismo que domina amplamente o cenário da poesia brasileira. Por 

isso, este poeta, ao mesmo tempo em que se constitui como “escândalo”, altera

também o percurso da poesia contemporânea brasileira (p. 50).

Para Modesto Carone (1983, p. 165), João Cabral de Melo Neto foi o primeiro

a elaborar, no interior de um poema a realidade nordestina. Sua trajetória começa

num surrealismo despojado, passa pelo ardor da construção e da lucidez, discute a

pureza da poesia antilírica.

A relação entre as artes, interdisciplinaridade entre elas é uma tendência da

arte moderna, uma mesma vanguarda como o cubismo influenciou tanto as letras

como a pintura e até outras disciplinas (TELES, 2005). Analisando tal fato na obra

de Cabral, teóricos como Marta de Senna (1980, p. 140-141), afirmam que este era

influenciado pelos pintores como Miró, Mondrian e Dubuffet.

Quanto à classificação de Cabral em um movimento literário, Haroldo de

Campos (1992) afirma que este escritor costuma ser arrolado entre os integrantesda chamada Geração de 45 que, sucedendo às de 22 e de 30, teria representado,

de certa forma, uma reação contra a “indisciplina”  modernista. Ressalta o crítico,

que a poesia está do lado oposto das preocupações da poética de 45, pois se

prende a uma constante estilística que pode ser puxada desde 22. Como já descrito

neste estudo, em depoimento escrito em 1952 sobre a geração de 45, o poeta João

Cabral afirma que o critério de aglutinação entre ele e a dita geração é meramente

cronológico (CAMPOS, 1992, p. 77-79).Aponta Haroldo de Campos (1992) que é comum, em sua obra, o

despojamento, o gosto pela imagem visual e certo humor seco, servido por uma ágil

manipulação de sintagmas extraídos diretamente do coloquial e postos em contraste

com outras áreas mais “puras” de seu vocabulário: “aquele efeito de choque ou

dialético – que sempre o interessou – entre poesia e prosa [...] poeta crítico por 

excelência” (p.80). O crítico afirma que ela “é hoje sem dúvida a que mantém maior 

unidade e coerência de produção, dentro de um alto gabarito, na poesia brasileira”

(p. 88).

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 51/99

 

49

João Alexandre Barbosa (1986) aponta que nos textos de João Cabral há

uma grande tensão “em que o dizer e o fazer estão de modo articulado” e a leitura

da realidade é feita pelo poeta través da linguagem, havendo uma espécie de

educação em sua obra que se manifesta em termos de uma singular imitação. O

poeta aprende com os objetos e coisas, situação, pessoas e paisagens, dentre

outros (BARBOSA, 1986, p.107-108).

Quanto à questão da historicidade, João Alexandre Barbosa assim a define:

a obra de João Cabral não se desfaz, um só momento, de uma intensahistoricidade. Ler a realidade pelo poema é sempre refazer a história deleituras anteriores da poesia. Por isso, metalinguagem e história em suaobra, interpenetram-se tão fecundamente: a historicidade de sua poesiaestá sempre apontando para dois espaços fundamentais, isto é, o de suacircunstância social e histórica e o da história da própria linguagem como oque o nomeia. A sua poesia é histórica na medida mesmo em que, cada vezmais, põe em xeque o sentido de sua linguagem. (1986, p.109)

Pode-se notar, então, que existe na poesia de João Cabral uma relação

intrínseca entre linguagem e história, que se articulam para montar o cenário e

dinâmica dos atores sugeridos pelo poeta. Importante é antes de tudo pensar queCabral faz literatura, e literatura é, sobretudo, subjetividade. A pesquisadora Marta

de Senna (1980, p.47,48) aponta “uma espécie de fixação de Cabral na questão da

fidelidade da arte ao real”, mas a seguir afirma: “A representação do real pode ser (e

frequentemente é) traiçoeira.”

João Cabral de Melo Neto iniciou-se com Pedra do sono (1941) livro

apontado como tendo características surrealistas, depois de Os três mal- amados,

poema em prosa (1943), escreveu O engenheiro (1945) em que emprega um idealde rigor. Rigor esse que o torna conhecido e respeitado pelos seus contemporâneos

e pela crítica dos últimos anos. Depois escreve Psicologia da composição texto da

linha da metalingüística (1947) e O cão sem plumas (1950) poema que descreve a

passagem do rio Capibaribe por Recife, com alta concentração imagística, neste

poema “o enfoque da pobreza nordestina escapa do tom panfletário a que tantas

vezes o social foi submetido”. No poema O rio (1953), o poeta cede a voz ao rio

Capibaribe que narra seu percurso com característica da prosa popular do Nordeste.Daí o poeta se ocupa da realidade humana do Nordeste, então dá voz ao herói

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 52/99

 

50

Severino. No auto Morte e vida severina “registra um combate entre as forças vitais

e o impulso à destruição” (SECCHIN, 1999, p. 8).

Afirma Barbosa (1986) que João Cabral de Melo Neto escrevia textos de

recusa da poética da época, muitas vezes, irônicos, buscando sempre um

aprendizado poético. Para o poeta, a nomeação da realidade resulta da

dependência da linguagem utilizada, sendo assim, a realidade carente e pobre,

mendiga exige o verso pobre, capaz de intensificá-la. Dessa forma, tanto em O rio

quanto em Morte e vida severina os melhores momentos destes textos são aqueles

em que aquela interdependência é assegurada. (BARBOSA, 1986, p.120)

Em João Cabral, a crítica da realidade é dependente da crítica da linguagem.

Este escritor, sem recusar o difícil, instaura o antilirismo como horizonte de uma

sintaxe complexa da realidade, sendo um poeta que rearticula a história no espaço

do poema (BARBOSA, 1986, p.126, 131). Este poeta reflete a linguagem no corpo

do próprio poema. (BARBOSA, 2001, p.10).

Vários pesquisadores se ocupam em análises sobre a poesia de João Cabral

de Melo Neto. Uma delas é Ana Boff de Godoy que aponta o equilíbrio entre

inspiração e trabalho de arte na obra deste escritor. Afirma que Cabral alia o

trabalho de ourives à sua necessidade de expressar-se, sendo, por este trabalhominucioso, valorizado pela crítica literária. (GODOY, 2003).

O emprego do trabalho racional na composição dos poemas deste escritor é

apontado pela pesquisadora Adriana Inês Martos Stefens que afirma que Cabral

produz uma nova lírica: “rompe com o tradicionalismo poético ao propor uma nova

concepção de poesia, de lirismo e de poeta.” Realiza desta forma uma poesia critica.

(STEFENS, 2006, p. 69).

De acordo com Marta de Senna (1980), na maioria dos “metapoemas”, Cabral“discute uma poética, isto é, uma teoria da poesia enquanto concepção” (p. 152).

Diria que ele está sempre discutindo a composição poética em quase tudo que

escreveu. Explicitamente ou implicitamente está apresentando uma nova visão

sobre a escrita literária em seus textos. E em vários poemas apresenta explicações

do que diz (p.153).

André Monteiro (2009), em um artigo sobre a construção do cânone de

nacionalidade na literatura brasileira, apresenta os comentários dos irmãos Campos

e Decio Pignatari que citam João Cabral ao lado de Oswald de Andrade como “ as

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 53/99

 

51

únicas presenças nacionais compreendidas como dignas de um estatuto de

invenção.” (p. 218).

Portanto, pode-se dizer, então, que João Cabral de Melo Neto é um poeta que

se fez depois da revolução modernista, desta forma, pode absorver, criticamente, a

evolução literária desta fase. Como cidadão viajado, intelectual atento, soube

relacionar o local ao universal em sua poesia e, assim, conseguiu criar uma poética

de valor literário. Poeta valorizador de técnicas mundialmente consideradas viu em

Mallarmé, Valéry e em outros poetas europeus e brasileiros, fonte de conhecimentos

a serem observados e catalisados para sua poesia.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 54/99

 

52

6 FORTUNA CRÍTICA DE MORTE E VIDA SEVERINA

Este capítulo tem por finalidade apresentar outras pesquisas que

antecederam esta análise e foram de grande contribuição para o desenvolvimento

crítico acerca da obra escolhida, sendo que, em muitos momentos, serão retomados

para dar suporte a argumentos desenvolvidos no capítulo seguinte.

A obra Morte e vida severina é denominada por seu autor, João Cabral de

Melo Neto, como Auto de natal pernambucano. Constitui-se em um poema

dramático, baseado em raízes populares, escrito entre 1954-1955 e publicado pela

primeira vez em 1956. É a mais difundida entre as obras do autor, sobretudo,

depois de ser encenada no teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

com música de Chico Buarque de Holanda, versão vencedora de diversos prêmios,

dentre eles o Festival de Nancy na França. Segundo Alfredo Bosi, é “o seu poema

longo mais equilibrado entre rigor formal e temática participante”. (BOSI, 1997,

p.526). Escrita sob pedido de Maria Clara Machado é descrita pelo seu autor como a

mais relaxada que ele já fez. Surgiu depois de várias pesquisas que o autor diz ter 

realizado. (SECCHIN, 1999, p. 330). Apresenta-se como descendente do autopastoril da tradição ibérica: “é teatro didático, cuja destinação não se esgota com o

nascimento do Severino/Jesus das últimas cenas.” (BARBOSA, 2001, p. 46,47).

Para Modesto Carone, Cabral assume a partir de Morte e vida severina, o

“lado sujo da miséria do Nordeste” (1983, p.116). Na batida pesada do poema,

Cabral dá voz àqueles “homens de calada condição”, os severinos. Seu nome,

através da “linguagem de pedra” do poeta, vira substantivo comum e adjetivo. E a

este homem de difícil sobrevivência, vai se opor a figura do “comendador”, grandedetentor de poder na região.

Modesto Carone (1983) avalia um otimismo social  na fala final do Mestre

Carpina construído por trás do seu desapreço por uma situação concreta a que

Cabral soube dar dimensão poética, valorizando a critica e a consciência ética.

(CARONE,1983, p. 168 -169).

A poesia Morte e vida severina foi publicada pela primeira vez na coletânea

de 1956, sendo denominada por seu autor, Duas águas. O título é significativo no

sentido de que divide a obra em duas fases distintas: uma que privilegia seus

procedimentos poéticos e outra, com poemas voltados ao conteúdo social, faz

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 55/99

 

53

referência a um tipo de telhado muito comum nas casas simples do Nordeste

(CAMPOS,1992, p. 84-85).

Tal nomeação sugeriria uma divisão da obra em duas vertentes, uma

dedicada aos poemas voltados para o estado onírico e de vigília, correspondendo às

obras publicadas até 1947, com Psicologia da composição e a da poesia social

com O cão sem plumas e Morte e vida severina. Nem a primeira vertente (água)

está esvaziada das preocupações sociais e históricas, nem a segunda pode ser 

apreciada sem as tensões entre o dizer e o fazer (BARBOSA, 2001, p. 9-10).

O cão sem plumas é uma poesia em que se pode pesquisar a função de

engajamento social. Com toda certeza, pesquisadores encontrarão traduzido em

técnicas da escrita literárias, desenvolvidas por seu autor, muitas características

desta função. Para efeito deste trabalho, escolheu-se Morte e vida severina, como

objeto de pesquisa e as características do engajamento de João Cabral serão

coletados apenas nesta obra.

Afirma César Guilhermino (1995) que “João Cabral de Melo Neto [...],

invariável na lucidez, foi o primeiro a reconhecer – no ordenamento de Duas águas

  – que sua poesia se biparte, claramente, entre o realismo social e a modelagem

intemporal das coisas e sensações.” (PIERUCC, 1995, p. 429).Ao mesmo tempo em que “localiza” a poesia num espaço regional, o

Nordeste, cria uma forma para que esse regional seja apreendido de uma forma

mais crítica, universal, usando seu estilo poético próprio e procurando adequar a

linguagem à realidade que buscou representar. (BARBOSA, 2001, p. 10). Assim, o

poeta passou a vida buscando um aprendizado que o levasse a traduzir o objeto

lírico, através de procedimentos técnicos capazes de representá-lo esteticamente.

Em Morte e vida Severina, o poeta utilizou seus conhecimentos delinguagem para mostrar o povo que resolveu representar em literatura, sendo

através dela que molda este objeto lírico e Severino é seu ícone. Pela linguagem,

perpassam essas tensões da poética daquele tempo histórico.

João Alexandre Barbosa (2001, p. 11) avisa que no período em que publica

Duas águas, havia, principalmente, duas fontes de tensão para os poetas dos anos

40 e João Cabral se mostrou capaz de resolvê-las através de sua capacidade

literária. Da primeira fonte de pressão se fez “uma poesia de imitação diluidora”

refutando algumas conquistas do modernismo de 1922, como por exemplo: “o humor 

e o veio coloquial e irônico” aprendidos, principalmente com Mario e Oswald e até o

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 56/99

 

54

aproveitamento de aspectos da prosa na realização de seus poemas. Explica

Barbosa (2001) que alguns poetas passaram a privilegiar a sabedoria do verso. “O

resultado era uma poética de raridades, mais chegada às abstrações de uma lírica

da subjetividade do que ao concreto da realidade”. Alguns poetas privilegiaram,

então, a sabedoria técnica do verso e o retorno programático a formas tradicionais

do poema. Esse foi o caminho tomado pelos poetas que constituíram a chamada

“Geração de 45”, a que os mais conceituados críticos têm o cuidado de destacar que

“somente por um acidente cronológico se tem juntado o nome de João Cabral” (p.

11). Para essa fonte de pressão, Cabral atua escrevendo o poema “Antiode”, em

que discute a relação entre poesia e imagem, e que foi incluída no livro Psicologia

da composição (p. 12).

Já a segunda fonte de pressão foi resolvida por alguns poetas, colocando em

suas produções uma “excessiva folclorização, tendendo ao exotismo regional” e, às

vezes, a uma imitação grotesca de falares regionais. Muitos teriam realizado uma

poesia caipira ou sertaneja, e não teriam expressado a verdadeira poética que

poderia se extrair da cultura popular. João Cabral escreve, então, o poema O cão

sem plumas, cuja temática regional é tratada pelo verso rigoroso, o que parece ser 

uma dupla resposta a essas duas pressões (BARBOSA, 2001, p. 13). Aparece naobra de Cabral uma dualidade entre o popular e o erudito o que o acompanhará em

seu trajeto de poeta, segundo Secchin (1999, p. 321). Em Morte e vida severina há

uma relação entre linguagem e conteúdo social na visão do autor.

Morte e vida severina tem como lição ideológica a questão de que os dois

termos do percurso de morte e vida estão igualados pela mesma estrutura social

(BARBOSA, 2001, p. 48). O Nordeste é o objeto lírico de João Cabral e o ambiente

da peça pode ser o Estado de Pernambuco e da Paraíba e, na busca de uma formapoética de representar, passa pela pesquisa sobre a forma de prosear (SECCHIN,

1999).

Para Secchin (1999, p. 117) “se privilegia a concretude referencial do

universo Severino” e as figuras retóricas dessa paisagem irão reforçá-la ainda mais,

na medida em que literalidade e imagem são construídas sob o comando comum

dos “signos do concreto”. O poeta procura, dessa forma, apreender o objeto em toda

a sua concretude, através da linguagem poética, colocando o objeto à mostra,

através dos procedimentos literários.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 57/99

 

55

Afirma Guilhermino César (apud PIERUCC, 1995, p. 436): “A literatura

brasileira, considerada no seu todo orgânico, interessam principalmente as obras

que, daí até hoje, vieram enriquecê-la” e Morte e vida severina, com certeza, está

entre elas.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 58/99

 

56

7 MORTE E VIDA SEVERINA: UMA OBRA ENGAJADA

Neste capítulo, propõe-se fazer uma análise de como ocorre a função de

engajamento social na obra Morte e vida severina. Para este procedimento, faz-se

necessário, recorrer aos capítulos teóricos sobre o movimento modernista, o qual

exerceu uma importância muito grande sobre todas as produções deste poeta, por 

ser uma proposta de mudança na linguagem literária vigente e por discutir ideologias

no conteúdo do seu texto.

Em Morte e vida severina há uma preocupação em retratar a vida do homem

nordestino, aparecendo uma visão crítica da sociedade que exclui o homem da terra

em detrimento dos seus interesses capitalistas. João Cabral procurou legitimar o seu

compromisso social, estabelecendo uma busca de aprimoramentos da sua arte. O

poeta reconhece que para se classificar uma obra no nível da literatura é necessário

que ela apresente as técnicas e qualidades para que seja enquadrada nesta

disciplina. Reconhecia que o poeta deve trabalhar muito, transpirar, para que sua

obra atenda às exigências canônicas.Assim, é uma obra composta através de técnicas extraídas de pesquisas

literárias feitas pelo poeta. Por estar contida na chamada “segunda água” de sua

poesia, (poesia de conteúdo social, engajada) entende-se que Cabral quer alcançar 

um público maior, auditórios mais largos, então cria a figura alegórica de Severino a

contar a sua história de vida, como uma forma de representar toda forma de

sofrimento vivida pelos povos menos favorecidos. Dessa forma, absorvendo a

maneira de prosear daquele povo, o autor aproxima o objeto literário representado eo seu correlato na sociedade, colocando-o para falar, usando a sua linguagem

própria.

Contar a história do sofrimento daquele povo necessitava de uma vasta

pesquisa literária para melhor representá-lo. O gênero escolhido foi o auto, e este foi

dividido em 18 cenas poéticas. Nesta divisão, a temática da morte é trabalhada nas

12 primeiras cenas e a questão da vida fica reservada para o final do auto em 6

cenas poéticas. No aspecto gráfico da composição, fez marcações da cena antes detodas as seqüências da peça: ”O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 59/99

 

57

QUE VAI”. Estas marcações resumem, de certa forma o que se vai ler, organizam a

execução da peça ao ser encenada. A obra inicia-se com a apresentação do

retirante e logo se observa a estrutura social daquele povo constituída a partir de

aspectos históricos evidentes nos detalhes da apresentação daquele personagem:

O meu nome é Severino,não tenho outro de pia.Como há muitos Severinos,que é santo de romaria,deram então de me chamar Severino de Maria;como há muitos Severinos

com mães chamadas Maria,fiquei sendo o da Mariado finado Zacarias.Mas isso ainda diz pouco:há muitos na freguesia,por causa de um coronelque se chamou Zacariase que foi o mais antigosenhor dessas sesmarias.(MELO NETO, 1997, p. 84)1 

Desde a nomeação, o personagem de Cabral é elaborado de forma aparecer com tantos outros de mesma realidade: “Mais isso ainda diz pouco:/ se ao

menos mais cinco havia / com nomes de Severino/ filhos de tantas Marias”. Como já

apontados por outros pesquisadores, tais como: João Alexandre Barbosa (2001, p.

47) e Antonio Carlos Secchin (1999, p. 107), a nomeação do personagem Severino,

inicialmente, já aponta para traços de sofrimento e mais, revelam que esse fato é

partilhado por outros da região. Os Severinos representados pelo personagem

criado por João Cabral parecem fadados a um destino de sofrimento da maneira queo autor vai construindo a história e encaixando-os num processo de exclusão.

Enquanto caminha, o retirante é acompanhado pelo rio Capibaribe e, ao

andar, vai encontrando com a pobreza e a morte que o seguem pelo caminho.

Compara as dificuldades de cada local que passa com a forma como a natureza se

apresenta e tira suas conclusões. No texto, a morte e a vida estão igualadas pela

mesma estrutura social, tanto no plano da vida quanto da morte. Mesmo assim, o

poeta expressa a confiança na vitória da vida sobre a morte. Severino, apesar de

1 As citações dessa obra serão indicadas pela observação MVS, seguida pelo número da página.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 60/99

 

58

morrer um pouco a cada dia por causa das dificuldades que enfrenta, acaba por não

desistir da vida e é agraciado pela esperança da vida, observada na forma como a

natureza se renova em cada ser que nasce.

O tema do excluído social é traçado por João Cabral através da figura de

Severino, um representante do sofrimento das massas menos ouvidas. É um

personagem que busca encontrar melhores condições de vida, rumando para o

litoral. Enquanto caminha, trava diálogos com as pessoas com as quais encontra e o

poeta, dessa forma, mostra sua visão sobre a região nordestina que sofreu as

conseqüências do passado histórico. Não se trata de “ruralismo idílico”, pois aponta

um homem do campo diferente e lutador que conhece sua realidade, mas não

encontra uma forma de resolver a sua situação e a de seu povo. 2 

A escolha temática mostra Cabral como herdeiro de indagações sobre a

pátria, demonstrando possuir um compromisso social com a nação, tão reivindicado

durante todas as manifestações do modernismo. Na verdade, questões relacionadas

ao país eram o tema mais discutido nos circuitos da esfera social. Era um período

em que a industrialização estava a pleno vapor e acontecia, no Brasil, a entrada das

multinacionais. Havia muitas pressões estrangeiras sobre o governo; e estas, eram

repassadas ao povo em forma de arrochos salariais e menos programas sociais.Principalmente os menos favorecidos eram atingidos pelos planos de governos

injustos. Muitos intelectuais da época se preocupavam com o destino da nação

naqueles anos de grande desenvolvimento da sociedade técnica.

O literário e o social vão se construindo numa relação dialética que reflete a

realidade, sendo o fio condutor da composição poética de João Cabral de Melo Neto

em toda a sua obra. Em Morte e vida severina, o leitor é convocado a atentar para

aquela situação e o eu lírico a este se dirige em um monólogo inicial, posto que falaconsigo mesmo, mas na tentativa de dialogar com o leitor. Parece haver, à primeira

vista, um exagero na representação da pobreza, quando se observa as imagens

criadas pelo autor para expressar a figura do personagem: “na mesma cabeça

grande / que a custo é que se equilibra, / no mesmo ventre crescido/sobre as

mesmas pernas finas”. O autor descreve a seu modo, a imagem que constrói do

homem nordestino personagem de sua obra.

2 A expressão: “ruralismo idílico” aparece citada na obra de PIERUCCI et al. (1995, p. 356).

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 61/99

 

59

Não se sabe ao certo até que ponto o artista exacerbou os traços do

retirante para que melhor fosse passada a idéia que o poeta queria que fosse

recebida pelo leitor. Mas o fato é que, segundo Linda Hutcheon (2000, p. 224) na

obra Teoria política da ironia, a figura de linguagem hipérbole representa uma

sinalização irônica e está entre as melhores formas de se fazer uma crítica social.

Nada como exagerar para se fazer ouvir. O leitor entra em contato com uma

realidade que pode não ser a sua, porém, sente-se provocado pela dor do outro e

com isto reflete sobre o seu estar no mundo.

A liberdade de criação exigida pelos representantes do Movimento

Modernista deu à arte literária, esta visão de abertura para um fazer poético livre das

imposições ao estilo. A estética agora defende a criatividade, uma identidade nova,

capaz de absorver a realidade e recriá-la ao modo do artista, através de uma

linguagem nova moldada para representar esta forma de ver o universo. Esse

elemento novo traduzido para a obra em aspectos como a imagem criada para o

sertanejo de vida inglória é um forte elemento usado para a criação do belo.

Antonio Candido (1985, p. 3) ao explicar sobre o estudo da obra em relação

ao seu condicionamento social declara: “nada mais importante para chamar a

atenção sobre uma verdade do que exagerá-la.” Mas logo em seguida adverte:“nada mais perigoso” do que tal processo. Pode levar a interpretações fantasiosas.

Está o teórico tratando da análise da relação entre o literário e o social. Candido

(1985) assegura que a interpretação sociológica está em voga, atualmente, por 

contribuir de forma eficiente com a interpretação de obras literárias, agora bem mais

amadurecida pelos seus usuários. Resolve a questão concluindo que a análise

estética precede considerações de outra ordem. As relações devem ser feitas em

busca do significado da obra.O exagero na construção do personagem está inteiramente relacionado à

estética do artista, suas escolhas de linguagem para sua poética. As pistas

encontradas nas entrelinhas das obras de Cabral reluzem o universo simbólico do

seu fazer poético, seus pesquisadores contribuem com os estudos do conhecimento

artístico.

O Interessante é perceber, nos detalhes da composição, uma busca poética

que equilibra aspectos da tradição literária com emprego de características da prosa

sertaneja, associada à poesia e ao drama, conseguindo dar vivacidade à obra,

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 62/99

 

60

atualizando-a. Ao mesmo tempo dá-lhe sentido e realiza, assim, a função de

engajamento na literatura que pratica.

As respostas às indagações provocadas pelo texto induzem o leitor a

processos mentais que levam à erudição, também responsável pelo crescimento

humano. É a partir do contato com o outro imaginado, que processos mentais são

acionados tanto no autor quanto no leitor ao receber a obra finalizada. A literatura

tem a característica de participar, nesse momento, do processo de crescimento

intelectual da sociedade, assim, junto com as outras disciplinas, faz com que o

homem possa ascender a uma escala de desenvolvimento superior que muitos não

puderam consumir. Daí a importância dessa modalidade de escrita.

O personagem de Cabral, Severino, é um sujeito da sua história, o foco

poético é dado ao retirante que conta sua própria narrativa de vida. Ele segue em

busca de melhores condições e percebe o seu caminho e o seu caminhar. Ao

procurar entender a sua natureza física, humana e social é ativo no seu estar no

mundo. O sujeito lírico da peça incorpora o todo através da forma como seu autor o

concebeu.

As diferentes concepções do mundo são apresentadas nas obras de arte.

Em sua obra, Cabral escolheu apresentar dentre outras visões, a do retirantenordestino e sua trajetória em busca da continuação da vida; por sua capacidade de

educar-se na sua poética, buscando a melhor forma de expressar a que melhor 

representasse a sua maneira subjetiva de olhar aquele povo ao qual se dedicou a

revelar. Foi capaz de elaborar um poema que cativa por sua humanidade expressa

na construção de seus personagens e espaço físico. Assim, o discurso do excluído

ganha voz na literatura de João Cabral. Dessa forma, a obra discute a realidade do

país, aproveitando, assim, o legado da Geração de 1930. A situação de vida dohomem do campo: falta de água provocada pela seca, a terra enfraquecida pela

agricultura não racionalizada, a falta de uma reforma agrária efetivada e a

desigualdade social ficam registradas na perspectiva do artista, cabendo ao leitor o

deleite estético tirado daquela realidade construída em uma poesia engajada.

Na obra Morte e vida severina, o autor demonstra participar das dialéticas

daquele período histórico em detalhes da construção do objeto literário. Mostra

tensões presentes nos contextos da obra, ao traduzir a vida do retirante nordestino.

Demonstra uma comunhão com o homem e a natureza, ao exibir, na forma de

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 63/99

 

61

representá-lo, um modo pessoal de ver e refletir aquele povo associando-o através

das imagens que cria comparando-o com a natureza do lugar.

A terra e seus habitantes foram muito castigados pela dominação de

determinados grupos políticos e latifundiários que lá atuaram, oprimindo esse povo

miseravelmente castigado. A gente escolhida é representada com muitas

dificuldades: a falta de água, a ausência de trabalho, desigualdade social, a terra

enfraquecida e a reforma agrária. Homem e rio são associados: os dois têm

dificuldades e lutam por sobrevivência na região. Juntos, seu destino é o litoral:

“Recife, onde o rio some/ e esta minha viagem fina.” O destino de um cruza o

destino do outro e o dos dois é repleto de dificuldades. Entre uma comparação e

outra, os aspectos da natureza física, natureza humana e natureza social daquele

povo se vêem expressados pelo escritor em uma literatura leve e repleta de

heranças culturais. Utiliza repetições de palavras e de versos inteiros.

A obra constrói imagens fortes da natureza, agora traduzida com uma outra

estética que ao passo que recupera antigas tradições, faz-lhe uma nova leitura.

Percebe-se a preocupação do autor em colocar como conteúdo do seu fazer literário

aquela realidade injusta. Tudo construído pela linguagem com a experiência de uma

longa pesquisa para construir o objeto literário.João Alexandre Barbosa (1986, p. 120) afirma sobre o autor: “João Cabral

aprendeu que a pior alienação é aquela que, buscando acusar uma condição

miserável, não sabe fazer da linguagem um recurso mínimo de nomeação”. Na

verdade, em Morte e vida severina é constante a afirmação de que se trata do

poema com “menor rigor formal”, mas é igualmente constante a afirmação de que se

trata de uma obra relevante pela forma como seu autor trabalhou com a “temática

participante”.É uma poesia que incorporou várias técnicas da escrita moderna como a

valorização de aspectos coloquiais, liberdade de criação em relação à linguagem

dos personagens, mistura de várias literaturas, escolha do tema dos excluídos. As

propostas de mudanças na forma de composição da literatura faziam parte da

estética literária revelada pelos representantes do Movimento Modernista. Tal fato

estava em voga naquele contexto e realizar este tipo de obra era uma constante

daqueles escritores e os tornava mais considerados em seus grupos de convivência

social, garantindo-lhes prêmios de reconhecimento. Tudo isto foi parar em traços

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 64/99

 

62

observados no interior de obras daquele período histórico e alguns deles são

declarados nesta análise.

As andanças de Severino pelo estado são o fio condutor da narrativa. O que

ele vê e reflete são conteúdos principais da obra. O personagem parte para

comprovar a existência de múltiplos Severinos, de vida inglória no Nordeste. O leitor 

é convidado a assistir a uma peça que mostra a apresentação de um excluído. O

nome é apresentado como comum no Nordeste, assim como seus habitantes têm,

em comum, o sofrimento, a necessidade de assistência social: “Como há muitos

Severinos/ há muitos na freguesia”.

Grupos econômicos do passado, motivados pelo lucro, comprometeram a

vida daquele povo. Deixaram para trás as preocupações com a vida daqueles que ali

se estabeleciam e tal fato estaria vinculado, principalmente, ao Período Colonial,

como afirma Alfredo Bosi:

a formação colonial no Brasil vinculou-se: economicamente, aos interessesdos mercadores de escravos, de açúcar, de ouro; politicamente, aoabsolutismo reinol e ao mandonismo rural, que engendrou um estilo deconvivência patriarcal e estamental entre os poderosos, escravista oudependente entre os subalternos. (1992, p. 25)

Dessa forma, o povo comum de algumas regiões do Brasil sofreu as

questões históricas, o que o levaria a uma dificuldade de sobrevivência econômica

nos meados do século passado. Em épocas de pleno desenvolvimento do Brasil

ainda amargavam o subdesenvolvimento em vários sentidos. Para Bosi (1992, p. 27)

o assenhoramento e a violência marcaram a história da colonização. Tal fato pode

ser observado por meio da maneira como o autor desenvolveu a temática do

excluído. Para a composição da poesia, o poeta escolheu um léxico significativo,

gerando uma leitura de aspectos sociais e históricos interessante. Assim, dentre

outros: “coronel”, “senhor destas sesmarias”, “severinos”, “emboscada”, “seca”,

“cana-de-açúcar” são termos que apontam para um passado de exploração do

homem e da terra.

Sobre as escolhas lexicais de João Cabral de Melo Neto, Antonio Carlos

Secchin (1999, p. 313) afirma que não faltaram estudiosos a submeter sua obra ao

computador, “à caça de pistas para esse ‘tesouro lexical’ que, no fim das contas,

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 65/99

 

63

está ali, à flor do texto”. Tal extrato, ao ser analisado, colabora na construção do

sentido de sua obra poética. Pode-se notar que o léxico de Morte vida severina faz

referência à cultura e aos valores do povo que Cabral resolveu representar.

Observa-se no trecho: “não tenho outro de pia” em que o termo “pia” faz parte do

campo semântico da religião. Está relacionado à questão do batismo da Igreja

Católica, cuja importância é atestada no contexto histórico, por seu papel primordial

como mantenedora das tradições daquela região.

Segundo Beozzo (1995), no final do século XIX e início do século XX, muitos

senhores de engenho do Nordeste ficam arruinados pela abolição da escravatura e

a igreja perde o seu poder “baseado anteriormente numa delegação implícita aos

senhores de escravos que impunham à sua escravaria a religião católica fazendo-a

batizar e participar [..] da missa e das festas católicas” (p. 279). Beozzo afirma que a

igreja teria marcado distância em relação ao povo explorado. Estes se manifestaram

através de revoltas camponesas diante da penetração do capitalismo no campo e da

ruptura das antigas formas de relações de produção e de relações sociais. Como

exemplo tem-se a revolta de Canudos na Bahia (BEOZZO, 1995, p. 277). Para o

pesquisador, devido às dificuldades em se obter o registro civil, durante muito

tempo, muitas pessoas tinham apenas o documento de batismo como únicodocumento de registro (BEOZZO, 1995, p. 281).

Ao longo do poema, a escolha do léxico é uma tática recorrente do escritor 

para representar aquele povo, utilizando o discurso que o traduz. Relacionou, dessa

forma, o momento de vida daquele povo com problemas históricos que datam de

muitos anos atrás e que foram reforçados por ações diversas.

O autor demonstra conhecimento das questões de seu tempo ao ressaltar 

os aspectos do atrofiamento físico do retirante, comparando-o à natureza: ”vivendona mesma serra/ magra e ossuda em que eu vivia”. Cabral parece descrever o

retirante, como em uma pintura. Realiza-o de uma forma que o leitor consegue ver o

sofrimento na aparência do retirante. O objeto lírico é construído com uma imagem

clara do seu estado físico e social, chama atenção para a dor que reflete no físico do

indivíduo, o estereótipo do sofrimento. Essa imagem é construída de forma poética,

com rimas ocasionais dá uma sonoridade e leveza a uma coisa dura.

Marly Oliveira (2000) aponta no poema a presença de humor negro. Tal fato

pode ser percebido quando o autor brinca com o lado trágico do destino do

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 66/99

 

64

nordestino. Torna o texto leve ao passo que a figura de hipérbole dá o tom da função

de engajamento literário, pois exagera para que possa ser percebida pelo leitor.

Somos muitos Severinosiguais em tudo na vida:na mesma cabeça grandeque a custo é que se equilibra,no mesmo ventre crescidosobre as mesmas pernas finas,e iguais também porque o sangueque usamos tem pouca tinta. [...]morremos de morte igual,mesma morte severina:que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,de emboscada antes dos vinte,de fome um pouco por dia [...] ”

(MVS, p. 85)

A hipérbole pode ser notada em trechos em que o autor descreve o físico do

nordestino como muito magro, anêmico, cabeça grande que tem dificuldade em se

equilibrar em cima de um corpo muito magro. O poeta usa o verbo ser na primeira

pessoa do plural: “Somos”, dessa forma, ele se inclui na fala, mostrando que a dor do outro também é sua, pois ele sofre e é sensível à dor Severina, sendo também

nordestino, conhece bem o seu estado. E também, o leitor compartilha dessa dor,

com a pluralização, pois o sentimento da dor é algo universal. E é esse homem que

na presença do leitor vai contar a sua história. Uma narrativa não dos heróis

saldados pela história, mas de um herói que vence a cada dia as dificuldades

impostas por um passado que o esqueceu, tanto a ele quanto ao seu povo:

Mas, para que me conheçammelhor Vossas Senhoriase melhor possam seguir a historia de minha vidapasso a ser o Severinoque em vossa presença emigra.(MELO NETO, 1997, p. 85)

Em muitas passagens do auto, pode-se observar que Severino é uma

metonímia do descaso sofrido pela região. Ele é ícone do abandono e da falta de

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 67/99

 

65

conscientização do resto do país e a voz do poeta o faz “migrar” para qualquer lugar 

onde alguém possa lê-lo e se sensibilizar com sua dor. A hipérbole, que se encontra

presente em muitos trechos da obra, representa, ainda, ´”um dos extremos da

sinalização irônica” (HUTCHEON, 2000, p. 224). Percebe-se mais uma das façanhas

do autor no sentido de fazer conhecer aquela realidade por um ângulo de alerta

sobre a realidade humana vivida por aquele povo de que Severino é um ícone. O

autor constrói o engajamento na obra quando demonstra conhecimento a respeito

das questões do seu tempo ao ressaltar os motivos da morte dos primeiros defuntos

que encontra pelo caminho, homônimo de Severino.

- E de onde que o estais trazendo,irmãos das almas, [...]onde uma terra que não dánem planta brava.-E foi morrida essa morte,irmãos das almas,essa foi morte morridaou foi matada? [...]esta foi morte matada,numa emboscada.-E o que guardava a emboscada,irmãos das almas,

e com que foi que o mataram,com faca ou bala?- Este foi morto de bala,irmãos das almas,mais garantido é de bala,mais longe vara.- E quem foi que o emboscou,irmãos das almas,quem contra ele soltouessa ave-bala?(MELO NETO, 1997, p. 86,87)

Ao ser interrogado sobre os motivos da morte, a resposta é: “_ Até que não

foi morrida,/irmãos das almas,/esta foi morte matada, numa emboscada./ [...] sempre

há uma bala voando/ desocupada.”. A questão das brigas por causa da terra são

apresentadas para serem raciocinadas pelo leitor. Interessante é o que se segue em

trechos posteriores em que aparece questionamento sobre a falta de justiça para os

que matam em nome da ganância por terras:

- E agora o que passará

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 68/99

 

66

irmãos das almas,o que é que acontecerácom a espingarda?- Mais campo tem para soltar,irmãos das almas,

tem mais onde fazer voar as filhas-bala.”(MELO NETO, 1997, p. 88)

O literário vai sendo construído com artifícios que absorvem do popular suas

riquezas. As expressões: “morte morrida” e “morte matada” fazem parte do campo

semântico da cultura popular, pois representam expressões coloquiais da

modalidade oral daquela região. O poeta, através do seu aprendizado sobre o

homem nordestino, deixa-o se expressar em sua própria linguagem e sua forma de

prosear. Sobre esta questão, o teórico Antonio Carlos Secchin (1999) aponta que

para Cabral o “sertão não é unicamente um lugar; é um estilo” e “captá-lo é traduzir-

se nele” o poeta deveria ficar atento a “suas incontáveis configurações, sobretudo as

discursivas” o pesquisador afirma que João Cabral teria aprendido com o tio

sertanejo, além das anedotas, a maneira contá-las (p. 303).

Segundo João Alexandre Barbosa (2001), a lição ideológica de Morte e vida

severina está na “descoberta de que os dois termos do percurso (morte e vida)

estão igualados pela mesma estrutura social” (p.48).

— Ter um hectares de terra,irmão das almas,de pedra e areia lavadaque cultivava. .— Mas que roças que ele tinha,

irmãos das almasque podia ele plantar na pedra avara?— Nos magros lábios de areia,irmão das almas,os intervalos das pedras,plantava palha.

(MVS, p.87 )

Para desenhar a imagem da natureza, o poeta a compara com aspectos

físicos do homem, criando metáforas poéticas: “magros lábios de areia” e “ombros

da serra”. Aparece, substantivo do campo semântico do corpo humano sendo usado

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 69/99

 

67

para caracterizar o espaço físico da natureza: “todas nos ombros da serra”. Procura

mostrar que homem e natureza estão ligados e que sofrem as ações destrutivas,

pois são comparados usando expressões que indicam escassez.

João Cabral é um escritor moderno que conhece as inovações literárias e

ninguém seria inocente de pensar que ele desconhecesse que a função de

engajamento era uma tendência do movimento modernista muito usada no mundo

todo. Emprega, então, conhecimentos do legado modernista de 1922. Assim o faz,

quando aproxima a linguagem do personagem à linguagem daquele povo, sua

maneira de falar. Esta não era desconhecida de Cabral que era nordestino.

O retirante, então, segue o caminho de Recife em busca de melhores

condições de vida. Caminho que percorre seguindo o rio. Pelo caminho só vai

encontrando morte. E quando interroga sobre o defunto, a resposta recebida o

assusta pela expressão de aceitação da situação, como se fosse comum no

cotidiano: “_ A quem estais carregando,/ irmãos das almas,/ embrulhado nessa

rede? [...] _ A um defunto de nada,” e de descaso, como pode ser um “defunto de

nada” (p.86). Por meio do diálogo entre os personagens, observa-se, implicitamente,

a idéia da banalidade da morte. Fica ao leitor atento a chamada de Cabral sobre os

direitos humanos que nem sempre são respeitados de forma justa.O traço de humor negro é apontado por Marly de Oliveira (2000) e pode ser 

percebido em trechos da obra em que o retirante oferece ajuda para carregar o

defunto que encontra indo rumo ao cemitério. Ao se referir ao cansaço de se

carregar um defunto por horas em destino a um cemitério onde possa ser enterrado,

um personagem afirma: “- Mais sorte tem o defunto,/[...]/ pois já não fará na volta/ a

caminhada” (p.89). Como pode um defunto ter sorte? A dor da morte é transfigurada,

tornando-se ato de sorte, o fato de ter sido atingido por ela.As metáforas realizadas por Cabral vão compondo a poesia do texto,

mesmo este sendo construído com um tema que reporta ao sofrimento é um

sofrimento contado com poesia. O homem é associado à questão da terra a todo

instante nas metáforas do poema: “ E onde o levais a enterrar,/ [...] com a semente

de chumbo/ que tem guardada” (p. 88). Semente de chumbo, esta, que nunca

frutifica, somente destrói vidas e deixa com medo os que continuam vivos.

Muitas figurações são usadas para enriquecer o texto poético do autor: “nos

magros lábios de areia” [...] “ave-bala, [...] “tem mais onde fazer voar/ as filhas-bala”

(p.88). Todas denunciam as condições difíceis do homem e da natureza, mostrando

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 70/99

 

68

que, no discurso literário construído através de arranjos estéticos, o poeta

apresenta, de forma implícita, uma denúncia social. O imperativo estético forma o

imperativo ético.

A criação de novos efeitos com a palavra é comum em João Cabral, sendo

apontado em estudos como o de Marta de Senna (1980, p. 143-144). A

pesquisadora mostra as vezes em que há a adjetivação de substantivos na obra do

poeta. Afirma ser um espantoso número de cento e noventa e quatro, em que nem

todos são do mesmo tipo e alguns não são sequer criações do poeta, mas

pertencem ao domínio da língua. No caso do trecho analisado no parágrafo anterior,

as expressões não é adjetivação do substantivo, porém é justaposição de

substantivos. Este é o caso de “ave-bala”, expressando que há, naquela região,

morte através de tiros, o que é uma violência contra a vida humana.

A liberdade de criação modernista solicitada por seus representantes

permitiu criar textos inovadores. Morte e vida severina é um texto híbrido, pois

mistura vários gêneros. É um poema lírico, enquanto exterioriza os sentimentos do

eu poético ao falar de sua dor; é épico, porque narra a história dos retirantes:

apresenta a idéia de tempo, espaço, personagens e outras estruturas narrativas da

história de Severino, representante do povo nordestino; sendo, predominantemente,dramático pelo fato de ser um auto, composto por diálogos para teatro.

Devido ao fato de trabalhar a primeira pessoa e a segunda pessoa do

discurso: “Mas, para que me conheçam/ melhor Vossas Senhorias” (p.85), a peça

pode tanto ser encenada quanto lida. Severino, desde sua apresentação, cativa o

leitor e, de forma eloqüente, convida-o a conhecê-lo. O uso do termo “Vossas

Senhorias” demonstra o tom respeitoso do eu lírico.

O retirante, devido ao corte ou interrupção do curso do rio no verão, mostra-se preocupado ao relacionar o trajeto do rio com o trajeto do homem.

Pensei que seguindo o rioeu jamais me perderia:ele é o caminho mais certo,de todos o melhor guia.Mas como segui-lo agoraque interrompeu a descida?

Vejo que o Capibaribe,como os rios lá de cima,é tão pobre que nem semprepode cumprir a sua sina

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 71/99

 

69

e no verão também corta,com pernas que não caminham.

(MVS, p. 90)

Neste trecho, compara, mais uma vez, o homem com a natureza e mostra

que ambos são vítimas da devastação feita na região. Assim, tanto Severino quanto

o rio encontram-se prejudicados pela degradação do meio ambiente, tornando-se

difícil para os dois chegarem ao litoral, ou cumprir o seu trajeto de vida. Através de

uma figuração “pernas que não caminham” que pode ser considerada como

metonímia já que as pernas estão contidas na idéia de andar e o rio vai parar,

ficando sem a possibilidade de suas águas movimentarem em direção ao mar, por causa das secas. Tudo em Cabral é fruto de uma articulação entre a linguagem e o

conteúdo que deseja representar. E, através das suas construções poéticas,

pode, dessa forma, “poetizar” seu poema.

Aspectos culturais que envolvem a vida dos sertanejos vão sendo

introduzidos no poema, compondo a obra. Essa mistura da cultura popular da

região, resgatadas do passado e empregadas no presente, atualiza os aspectos da

cultura, tornando-os vivos na realidade:

ouço somente a distanciao que parece cantoria.Será novena de santo,Será algum Mês-de-Maria;Quem sabe até se uma festaOu uma dança não seria?

(MVS, p. 91) 

Numa casa em que o retirante chega, estão cantando “excelências” a um

defunto. No trecho a seguir, os rituais da morte são poeticamente apresentados por 

João Cabral que se aproveita de artifícios poéticos, como a paródia, para lembrar a

cultura daquele povo. Segundo Bosi (1992), o termo cultus (us, substantivo) queria

dizer no passado não só o trato da terra, como também o culto dos mortos ( p.13).

Falar da morte é preservar a cultura e o passado de um povo vivo. Neste sentido,

João Cabral renova a cultura da sua região, ao mesmo tempo em que faz críticassociais a respeito da realidade vivida por seu povo.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 72/99

 

70

 _ Finado Severino,quando passares em Jordãoe os demônios te atalharemperguntando o que é que levas ... _Dize que levas cera,

capuz e cordãomais a Virgem da Conceição. _ Finado Severino,etc...

 _Dize que levas somentecoisa de não:fome, cede, privação. _Finado Severino,etc...[..] _Duas excelências ... _...dizendo é a hora da plantação. _ Ajunta os carregadores .... _ Que a terra vai colher a mão.

MVS, p. 91,92)

Antigos discursos da cultura são aproveitados, através de intertexto. Dessa

forma, faz-se uma releitura da realidade, criando-se paródias. Na versão gráfica

desta obra, analisada nesta dissertação, o texto cantado é deixado em itálico e a

paródia fica em versão igual ao do resto do poema, marcando a alínea dos dois

discursos: a cultural da voz dos cantadores e a crítica na voz do personagem

Severino.

A cultura de alimentos é lembrada ao ser comparada à maneira como o

enterro acontece: “que a terra vai colher a mão”. Há, neste trecho, uma inversão na

atividade de colheita, agora é a terra que vai colher o homem que nela colheu a

plantação durante a vida.

Bosi (1992) alerta sobre o termo cultus: “convém amarrar os dois significados

desse nome-verbo que mostra o ser humano preso à terra e nela abrindo covas que

o alimentam vivo e abrigam morto.” (p. 15). Observa-se que o fim pela morte é

associado à fertilização da terra. Fato este explicitamente apontado quando o

enterro é associado à plantação, indicando um novo começo. O próprio ciclo natural

da vida, o movimento: “_Ajunta os carregadores/que o corpo quer ir embora/ [...]

dizendo é a hora da plantação” (p.92).

Já cansado da retirança, o personagem pensa em interromper a viagem e

procura por trabalho:

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 73/99

 

71

 _ Desde que estou retirandosó a morte vejo ativa,só a morte depareie às vezes até festiva;só a morte tem encontrado

quem pensava encontrar vida,e o pouco que não foi mortofoi de vida severina(aquela vida que menosvivida que defendida,e é ainda mais severinapara o homem que retira).(MVS, p. 92)

A relação entre o literário e o social, em outras palavras, a função de

engajamento, tendo como mediador o escritor, fica perfeitamente evidente nos

trechos finais dessa seqüência da obra, pois apresenta de forma humana a difícil

vida daquele povo que emigra: “e é ainda mais severina/ para o homem que retira”.

Os problemas sócio-políticos e econômicos são explicitamente revelados pelo artista

que arrisca um palpite de que a retirança causaria ainda mais sofrimento.

Muitos foram os brasileiros, sertanejos, que seguiram em busca de uma vida

melhor em outras regiões do seu estado e até mesmo em outros estados. Naquele

momento em que a obra foi escrita, 1954-1955, era um período de grande

instabilidade política. O Brasil procurava se estabelecer nas novas políticas

econômicas mundiais.

Em trechos, como o citado a seguir, é observada a questão do trabalho e a

importância do conhecimento da cultura da cerimônia da morte que, segundo o

texto, garantiriam o sustento da moradora nordestina que dialoga com o retirante

nordestino em seu trajeto. E pode-se observar que a mulher, descrita por João

Cabral, é independente a partir do trabalho com a morte. Segundo José Oscar 

Beozzo (1995), as eleições de 1933 serão as primeiras em que a mulher irá votar,

mas somente as desquitadas e divorciadas e as que tinham sua economia própria.

(p.305). A escolha dos adjetivos utilizados pelo personagem Severino para se referir 

à mulher indicam a situação de independência financeira da mulher: “remediada / ou

dona de sua vida”. Marcando características de uma mulher moderna, politicamente

ativa.

Vejo uma mulher na janela,ali, que se não é rica,

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 74/99

 

72

parece remediadaou dona de sua vida:vou saber se de trabalhopoderá me dar noticia.

( MVS, p.,93)

No trecho seguinte, o retirante questiona a mulher a respeito de trabalho

para si naquela região, e diante das respostas, observa que não é fácil encontrar 

trabalho. Ao ouvir sobre o que o retirante sabia fazer, a senhora vai explicando que

aqueles trabalhos não são realizados naquela região onde ele está agora, deixando-

o pensativo sobre a possibilidade de arranjar um emprego ali.

 _ Conheço todas as roçasque nesta chã podem dar:o algodão, a mamona,a pita, o milho, o caroá. _ Esses roçados o banco já não quer financiar;[...] _Em qualquer das cinco tachasde um bangüê sei cozinhar;sei cuidar de uma moenda,de uma casa de purgar.

 _ Com a vinda das usinashá poucos engenhos já;nada mais o retiranteaprendeu a fazer lá? _ Ali ninguém aprendeuoutro oficio, ou aprenderá:mas o sol, de sol a sol,bem se aprende a suportar.[...]

( MVS, p., 94-95)

A falta de qualificação para o trabalho, naquele momento histórico retratadopor João Cabral, era um fator de exclusão social. O retirante não dispunha, ao

chegar em outras terras, de “moeda de troca” para ser inserido no sistema capitalista

que se instalava na nação.

A qualificação é necessária para o trabalho da indústria que se instalara

naquela região e o retirante não a detém. Enfim, encontrar o que fazer para se

sustentar dignamente não é tão fácil e isto ficou registrado nesta obra. Embora

fictícia, contém dados que podem ser encontrados em pesquisas históricas e

sociológicas daquele período histórico.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 75/99

 

73

Depois de longas distorções entre a prática do retirante e as formas de

trabalho daquele local, a mulher, então, fala de sua profissão, afirmando que nela

não falta serviço. Tratava dos afazeres da morte, sendo o ofício que mais emprega.

sabe cantar excelências,defuntos encomendar?sabe tirar ladainhas,sabe mortos enterrar?[...] _ Pois se o compadre soubesserezar ou mesmo cantar,trabalhávamos a meias,que a freguesia bem dá.[...]Só os roçados da morte

Compensam aqui cultivar,e cultivá-los é fácil:simples questão de plantar;não se precisa de limpa,de adubar nem de regar;( MVS, p., 96,97 )

A morte é sempre em vários trechos associada ao plantio, tornando-se tão

freqüente as referências de sua ocorrência em níveis altos que o leitor começa a se

acostumar com aquela realidade. Ou ao contrária, como gostaria um bom escritor 

engajado, esse leitor poderá se compenetrar daquela situação e partir para uma

reação. As pessoas, quando instruídas a respeito das situações que enfrentam

podem se manifestar de forma mais eficiente. E o contrário é danoso.

Pensando de outra forma, as pessoas quando entram em contato com a dor 

do outro, conseguem lidar melhor com a sua própria dor. É possível uma

Interpretação da vida através da obra de arte. A experiência do contato com a

vivência do outro, representada na peça com tanta beleza e riqueza literária,

também confere ao espectador uma oportunidade de fruição.

Aparecem, também, no texto, as marcas da relação entre o literário e o

social, observando a maneira de falar daquele povo.

Deseja mesmo saber o que eu fazia lá?comer quando havia o quêe, havendo ou não, trabalhar. _ Essa vida por aquié coisa familiar; (MVS, p. 96)

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 76/99

 

74

A cultura oral, no contar da história, constrói-se por meio de rimas para que

o texto possa ser memorizado, já que muitas dessas comunidades não detêm a

escrita. O poeta se aproximou da cultura e da linguagem do povo excluído de

direitos para falar das dificuldades, utilizando o discurso desse povo, neste caso, a

rima. Importante é pensar que tal recurso foi utilizado por povos de diversas regiões

do mundo e de outros tempos históricos.

Enfim, a arte é algo importantíssimo em uma sociedade e tem múltiplas

funções, sendo para este trabalho investigada a de engajamento social. Assim,

todos os arranjos pensados pelo artista têm a função de alertar para o conteúdo

social do auto, a vida e morte, a morte e vida, ou ainda, a morte em vida daquele

povo. O sofrimento daquele povo pode, perfeitamente, ser entendido como o de

qualquer povo excluído dos direitos humanos em qualquer lugar da Terra.

Na Zona da Mata, o retirante assiste a um outro enterro. Agora de um

trabalhador a eito. Este é de um morto também franzino que só recebe a terra

devida depois da morte. Em uma composição sonora, construída através de rimas

ocasionais o poeta constrói a visão sobre a reforma agrária, tão solicitada pelos

indivíduos sem terra.

 _Essa cova em que estás,com palmos medida,é a conta menor que tirastes em vida. _É de bom tamanho,nem largo nem fundo,é a parte que te cabedeste latifúndio. _Não é cova grande,é cova medida,

é a terra que queriasver dividida.

 _É uma cova grandepara teu pouco defunto,mais estarás mais anchoque estavas no mundo.[...]

 _ Trabalharás uma terrada qual, além de senhor,serás homem de eito e trator.- Trabalhando nessa terra,tu sozinho tudo empreitas:serás semente adubo, colheita.

(MVS, p. 99,100)

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 77/99

 

75

De forma musical, a construção do poema chama para uma leitura de

memorização fácil do texto. A reforma agrária, discutida, mas pouco realizada na

atuação dos governantes da época, é retratada no poema, sendo um dos seus

pontos poeticamente engajado. Existem muitos outros sentidos mostrados através

de trechos do poema. A leitura dessa passagem mostra uma associação que o

poeta faz sobre a morte como princípio da vida. Interessante notar, também, que o

destino daquele homem, depois da morte, parece menos terrível que o que ele

viveu: “Trabalharás uma terra/ da qual, além de senhor, / serás homem de eito e

trator”. A organização econômica da terra, desfavorável ao homem em vida, fica

evidente nos prognósticos feitos para a sua possível vida depois da morte. O

retirante percebe que mesmo quando a terra é “branda e macia” e “os rios que

correm aqui/ têm a água vitalícia” as dificuldades são as mesmas: “e quer nessa

terra gorda/quer na serra, de caliça,/ a vida arde sempre com/a mesma chama

mortiça” (p. 104).

Alfredo Bosi (1992) analisa a partir do pensador Karl Marx que quando é

aguçado o processo de exploração a curto prazo, implantam-se nas regiões

colonizáveis estilos violentos de interação social, um dos exemplos citados pelo

autor é o engenho do Nordeste brasileiro (p. 20, 21). Sabe-se que a reforma agrárianunca foi efetivada de forma satisfatória no Brasil.

PIERUCCI et ali (1995) quando descreve o tema da reforma agrária cita o

encontro dos Bispos do Vale do São Francisco em 1952 como um meio de deter o

avanço da agitação no meio rural (p. 357). Percebe-se que quase nunca é na

perspectiva do povo e sim dos grupos dominantes que é, sempre, plenamente

controlada por esses grupos. A literatura tem o poder de fazer uma leitura própria

desses conflitos sociais e expressá-los ao leitor, através dos olhos do artista. Este éconvidado a conhecer aquele tema pelos olhos do artista literário.

Ao enterro de um nordestino, acompanhado pelos olhos de Severino,

percebe-se a crítica principalmente ao sistema político que atrasou o processo da

reforma agrária que não se efetivou da maneira que era necessário. Muito

mencionada, mas pouco efetivada, foi e é, ainda, um dos problemas que causam

sofrimento ao homem rural de qualquer local do país, mostrando-se o caráter 

universal da obra de Cabral. Ironicamente, a posse da terra e o fim do sofrimento só

ocorrem na hora do enterro do nordestino, em uma cova de tamanho pequeno,

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 78/99

 

76

medida. Seria um ponto de questionamento a respeito do projeto de reforma agrária

que nunca saiu do papel.

Mesmo que de forma sutil, a questão dos gêneros masculino e feminino

também é retratada no poema em expressões como: “_ Como és homem, a terra lhe

dará chapéu:/ fosses mulher,chalé ou véu” (p. 101). Em todos os aspectos, tradição

e ruptura de valores estão registrados de alguma forma, por meio das marcas

deixadas pelo poeta, ao longo do texto. Nas entrelinhas, pode-se perceber que chalé

e véu representam as vestes femininas de uma sociedade tradicionalista, patriarcal.

Enquanto chapéu é uma marca do homem nesta mesma sociedade citada.

 _ Esse chão te é bem conhecido(bebeu tua força de marido). _ Desse chão és bem conhecido(através de parentes e amigos).[...] _Não tens mais força contigo:deixa-te semear ao comprido. _Já não levas semente viva:teu corpo é a própria maniva. _Não levas rebolo de cana:és o rebolo, e não de caiana.

 _ Não levas semente na mão:és agora o próprio grão.[...] _Despido vieste no caixão,despido também se enterra o grão. _ De tanto te despiu a privaçãoque escapou de teu peito a viração.

(MVS, p. 101,102)

Ao longo do poema, há sempre expressões explicativas entre parentes:

“Esse chão te é bem conhecido/ (bebeu tua força de marido)”. Parece remeter à

sexualidade do homem no casamento que, de tanto sofrer, vai se acabando o

interesse sexual durante a vida. Já no trecho “Desse chão és bem conhecido/

(através de parentes e amigos).” A expressão se soma às tantas que lembram que

morrem muitos naquela região. Nesta sucessão que reafirma que a terra o espera,

que sua morte é fato, temos: “Não tens mais força contigo/ deixa-te semear ao

comprido.” Dessa forma, através de afirmações e exemplificações, ele vai tecendo o

entendimento de que aquele homem vale muito pouco: “_Despido vieste no

caixão,/despido também se enterra o grão.” Seria tão produto capitalista quanto a

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 79/99

 

77

cana. Não é visto com humanidade. É desprovido de sentimento, parece tudo tão

frio, mas poeticamente demonstrado chega a ser musical.

 _ Na mão direita um rosário,milho negro e ressecado _ Na mão direita somenteo rosário, seca semente. _ Na mão direita, de cinza,o rosário, semente maninha. _Na mão direita o rosário,semente inerte e sem salto.”

(MVS, p. 102)

No trecho acima, o autor sugere críticas a um ícone da Igreja, chamando o

rosário de “semente inerte e sem salto”. Talvez pela cobrança a respeito de um

posicionamento mais eficiente a respeito das dificuldades enfrentadas naquele

estado. São várias as instituições que de modo não eficiente tratam do assunto,

porém, não trazem uma resposta coerente com o tamanho dos problemas vividos

pelos habitantes do nordeste.

O retirante apressa o passo para chegar ao Recife e as falas a seguir 

exprimem um resumo do que a vida prepara para os retirantes que, fora dos padrões

modernos de exigência do homem, só lhes resta o sofrimento. O retirante não sente

diferença entre o Agreste e a Caatinga, nem entre a Caatinga e a Zona da Mata:

 _Nunca esperei muita coisa,

digo a Vossas Senhorias.[...]o que apenas busqueifoi defender a minha vida[...]Mas não senti diferençaentre o Agreste e a Caatinga,e entre a Caatinga e aqui a Mataa diferença é a mais mínima.Está apenas em que a terraé por aqui mais macia;está apenas no pavio,ou melhor, na lamparina:

pois é igual o queroseneque em toda parte ilumina,e quer nesta terra gordaquer na serra, de caliça,

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 80/99

 

78

a vida arde sempre coma mesma chama mortiça.(MVS, p. 103,104)

A terra na Zona da Mata é mais macia. E o autor usa uma simbologia

especialíssima para ilustrar a idéia passada pelos pensamentos e reflexões do

retirante: “é igual o querosene”. O sofrimento para as minorias sociais ocorrem em

qualquer lugar: queima em qualquer lugar como o querosene.

O autor aponta a razão da dificuldade de sobrevivência do nordestino que

não é somente por causa da falta de água e da terra fraca, pois, na capital do

Estado, apesar de existir água e terra fértil, também é dura a vida do retirante. Bosi(1992) afirma que barbarização ecológica e populacional acompanhou os

acontecimentos da colonização, tanto na zona canavieira, quanto no sertão,

aconteciam as queimadas, a morte ou a preação dos nativos (p. 22). É que ser 

excluído era garantia de sofrimento em qualquer lugar do país.

Chegando ao Recife, o retirante ouve a conversa de dois coveiros que

explicam a forma de enterrar os mortos nos cemitérios de Casa Amarela e Santo

Amaro. Neste trecho, a morte também é tratada expressando-se a questão da

divisão de classes.

No momento em que o nordeste se industrializa, as lutas por melhores

condições de vida eram freqüentes. O poeta de forma participante leva ao leitor um

momento de reflexão sobre as diferenças sociais que, possivelmente o sistema

econômico construía. Tratando de questões relacionadas ao trabalho, dois coveiros

mostram como fica a divisão de classes no cemitério a partir do poder econômico de

cada pessoa que é enterrada ali:

 _O dia de hoje está difícil;não sei onde vamos parar.Deviam dar um aumento,ao menos aos deste setor de cá.As avenidas do centro são as melhores,mas são para os protegidos:há sempre menos trabalhoe gorjetas pelo serviço;(MVS, p. 104)

[...]As avenidas do centro

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 81/99

 

79

onde se enterra os ricos,são como o porto do mar;não é muito ali o serviço:no máximo um transatlânticochega ali por dia,

coma muita pompa, protocolo,e ainda mais cenografia [...](MVS, p. 105)

[...]Não creio que te mandassepara as belas avenidasonde estão os endereçose o bairro da gente fina:isto é, para o bairro dos usineiros,dos políticos, do banqueiros,e no tempo antigo, dos bangüezeiros(MVS, p.106)

A explicação que se dá, através da associação dos dois cemitérios, pode ser 

bem uma metáfora da vida em sociedade. O autor expõe as classe em ascensão: “e

o bairro da gente fina:/ isto é, para o bairro dos usineiros,/dos políticos, dos

banqueiros,/e no tempo antigo dos bangüezeiros”. Naquele tempo histórico que

processo de desenvolvimento industrial se afirmava, as divisões sociais e a

desigualdade aparecem tão nítidas. As pessoas são tratadas conforme a classesocial. Na poesia Morte e vida severina, o cemitério das classes pobres aparece

com um maior número de ocorrências de mortos sendo enterrados. Ou seja, o

índice de mortalidade é bem maior nas classes menos favorecidas. Analisa o

pesquisador Antonio Carlos Secchin (1999, p. 112) que ao chegar ao Recife nada

altera a “imersão de Severino num espaço saturado da corrosão, e a escuta do

diálogo entre dois coveiros lhe fortalece a intuição de que a retirada foi inútil”. No

sertão a morte é anônima, já na cidade, a pobreza se divide em subníveis nocemitério. Na fala do coveiro, ao se referir aos retirantes, mostra que o número de

enterros destes é maior e que neles são dispensados os rituais de outros enterros

convencionais:

 _É a gente sem instinto,gente de braços devolutos;são os que jamais usam luto

e se enterram sem salvo-conduto. _É a gente dos enterros gratuitosE dos defuntos ininterruptos. _É a gente retirante

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 82/99

 

80

que vem do Sertão de longe.[...]Não têm onde trabalhar e muito menos onde morar.”(MVS, p. 108)

A morte é tema encontrado em outros textos de Cabral, sendo freqüente esta

temática em sua obra. A análise de Marta de Sena (1980) mostra que, em “A cana

dos outros”, de Serial, Cabral utiliza a imagem da morte para representar “o

processo que sofre a cana desde o plantio até a transformação em açúcar” (p.155).

Segundo a pesquisadora, no referido poema aparece uma igualdade entre seres e

objetos. É que o homem nordestino é simbolizado pelo “cassaco de engenho”, dessaforma: “é reduzido ao mesmo estado de coisa a que se reduz a cana dos outros,

depois de ter sido elevada, em nível metafórico, à condição humana” (p. 156).

João Cabral traduz a dificuldade do homem nordestino, trabalhando, em sua

poética, aquilo que lhe pertence como, por exemplo, a exploração da cana de

açúcar. São imagens conhecidas do imaginário coletivo que vão se juntando para

chegar à forma do artista ver aquele povo.

Cabral trata do sofrimento sem reservas. Aponta a seu ver a situação decrise. Divide os cemitérios conforme as classes sociais. Reproduz, com sua forma de

ver, a vivência dessas classes. Mostra o grau de partilha da economia e das

oportunidades sociais que cabem aos pobres. As falas do texto expressam a

quantidade de ocorrência das mortes desta classe, que é bem numerosa e, segundo

a fala do coveiro: “porque parece que a gente/ que se enterra no de Casa Amarela/

está decidida a mudar-se/ toda para debaixo da terra” (p. 105). A morte é um fato

que já não assusta esses seres, personagens do poema de João Cabral.

A obra de João Cabral é feita para fazer o leitor pensar. Na verdade, uma

obra admite diversos leitores com ideologias distintas. Naquele contexto literário,

fazer literatura que expressasse as causas sociais era visto como modernidade.

Havia uma corrente de artistas a fazê-lo.

No caminho percorrido pelo personagem de Morte e vida severina, Severino,

o retirante, aproxima-se de um dos cais do Capibaribe, onde ocorre um desabafo do

personagem. O que ele espera com a retirança é muito pouco, apenas a sua

sobrevivência nesta Terra e se vê desanimado em continuar a caminhada:

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 83/99

 

81

Nunca esperei muita coisa[...]esperei, devo dizer,que ao menos aumentariana quartinha, a água pouca,

dentro da cuia, a farinha,o algodãozinho da camisa,ou meu aluguel com a vida.[...]sem saber desde o Sertão,meu próprio enterro eu seguia.[...]A solução é apressar A morte a que se decida”

(MVS, p. 110,111)

A musicalidade da descrição poética contrasta com o tema desenvolvido e

com a postura expressa pelas palavras do personagem. É um momento do texto em

que o pessimismo do personagem sobressai ao seu desejo de lutar. Observam-se

indicações de que a atitude do ícone sertanejo, Severino, não tem em seu projeto

grandes ilusões, levando a pensar que o texto aponta para uma negação do

processo de retirança do povo de sua terra.

Nessa cena, o retirante decide retirar sua própria vida. As evidências

determinam o seu destino trágico: ”A solução é apressar/ a morte a que se decida”

(p.111). Dessa forma, a peça tem um corte. O personagem representativo do

retirante se vê em um momento decisivo. Alfredo Bosi (1992) afirma: “o morto é, a

um só tempo, o outro absoluto fechado no seu silêncio imutável”. Colocado fora da

luta econômica, vai aparecer como: “aquela imagem familiar que ronda a casa dos

vivos: chamada, poderá dar o consolo bem-vindo nas agruras do presente” (p. 19).

Essas agruras do presente são representadas, poeticamente por João Cabral,

de forma musical, sem deixar de tratar com firmeza crítica tais dificuldades sociais. É

nesse momento da peça, que se aproxima do retirante um dos moradores de um

dos mocambos que existem entre o cais e a água do rio. Trava, então, diálogo com

Seu José, mestre carpina. O retirante é representado como um ser descrente.

Pronto mesmo a encerrar sua vida.

Na voz de Seu José, mestre carpina, o poeta aproveita para comentar sobre o

mal da pobreza e a miséria daquele povo, mas com um olhar novo. A busca por 

movimento de finalização daquele estado de sofrimento. Na conversa dospersonagens, há uma discussão sobre um possível fim da pobreza. Percebe-se

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 84/99

 

82

muitas interrogações do retirante nesta seqüência. Para elas, o interlocutor de

Severino busca dar respostas positivas em acordo com a continuidade da vida.

Nesse momento, o devir começa a lhe ser apresentado com uma característica

nova, a esperança. O movimento da vida passa a lhe afigurar com uma nova forma.

Um conjunto de metáforas construídas a partir da imagem do rio, sendo

usadas para dizer o tamanho da corrosão causada no corpo e na mente daquele

sertanejo sem um lugar de conforto garantido na escala social. Questionado, Seu

José, mestre carpina, responde ao retirante que para cruzar o “rio” de “água grossa

e carnal” sempre usa a ponte. A imagem do rio representando a vida e a da ponte

representando as maneiras de se vencer os “remansos”, os obstáculos. Assim,

usando a ponte pode-se atravessar o rio da vida sem morrer nele.

Mais uma vez o retirante procura se encontrar naquele estado de lamúria,

fazendo novos questionamentos:

Seu José, mestre carpina.E quando ponte não há?Quando os vazios da fomeNão se tem com que cruzar?Quanto esse rios sem águasão grandes braços do mar?

 _ Severino, retirante,O meu amigo é bem moço;Sei que a miséria é mar largo,Não é como qualquer posso:Mas sei que para cruzá-laVale qualquer esforço.[...]Severino, retirante,o mar da nossa conversaprecisa ser combatido,sempre, de qualquer maneira,porque senão ele alagae devasta a terra inteira.

(MVS, p.112)

O “discurso-rio” aparece, fazendo as indagações sobre o que acontece com

os indivíduos que não têm como se sustentar. É Cabral mais uma vez, detentor do

discurso e da melhor linguagem para dizê-lo. Mostra-se engajado com as questões

sociais e afinado com a literatura do seu tempo. Aquela que agora tem como funçãoconstruir através de procedimentos a relação com o social. A apresentação do povo

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 85/99

 

83

escolhido por ele, em sua literatura, deveria ser requintada. Os estudiosos da

poética de João Cabral afirmam que ela é fruto de uma suada pesquisa e de sua

educação literária. A crença no poder de luta e na força da luta é construída nas

palavras do personagem, mestre carpina, sabiamente tecida por Cabral para exaltar 

a confiança na vida.

Severino, retirante,muita diferença fazentre lutar com as mãose abandoná-las para trás,porque ao menos esse mar não pode adiantar-se mais.

[...]Seu José, mestre carpinaque diferença fariase em vez de continuar tomasse a melhor saída:a de saltar, numa noite,fora da ponte e da vida?(MVS, p.113-114).

A universalidade da obra pode ser percebida, neste ponto, em que o

escritor convida, através de seus personagens, a uma reflexão sobre a vida dos

povos excluídos. Seu José, mestre carpina, passa uma mensagem de esperança

bem no momento em que o retirante quer encerrar sua vida. O trecho é de uma

poética de pesquisa da literatura de tradição popular. Como já tratado neste

trabalho, mas oportuno neste ponto das discussões, as rimas facilitam a

memorização, como na literatura de transmissão oral. Os personagens mostram

toda a sua humanidade e, por isso, transcendem a folha de papel para ganharem

vida em nossas cabeças. Digo nossas, por considerar humanamente impossível não

se sensibilizar com um diálogo tão bem construído.

Assim se realiza a literatura de João Cabral, em uma constante busca de

imagens novas para traduzir o seu sertão e o povo que nele vive. O personagem,

Seu José, o mestre carpina, é despertado da conversa com o anúncio de

nascimento do seu filho. Interessante em Morte e vida severina é que, também, foi

intitulada como: Auto de natal pernambucano. O subtítulo remete aos autos da

região ibérica que tinham como tema o nascimento de Cristo, sendo tal fato  justificado, no texto, quando ocorre o nascimento de uma criança. A história neste

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 86/99

 

84

trecho se abre para o mágico, ocorrendo coisas incríveis como a natureza que se

modifica, fantasticamente, para receber a criança que nasce.

Nesse momento, se aproximam da casa algumas pessoas que aparecem

para dar as boas vindas ao recém nascido:

 _Todo o céu e terralhe cantam louvor.Foi por ele que a maréesta noite não baixou.Foi por ele que a maréfez parar o seu motor:a lama ficou cobertae o mau- cheiro não voou. _ E a língua seca de esponjaque tem o vento terralveio enxugar a umidadedo encharcado lamaçal.(MVS, p.114,115)

Ocorre uma espécie de milagre na noite em que o menino nasce. A Terra se

transforma em função daquele novo nascimento. Todo o universo se mobiliza para

receber aquela nova vida. Assim, “a língua seca de esponja /que tem o vento terral”aparece para “enxugar a umidade” do lugar. Acontece, naquele instante, um

processo de renovação do ambiente, um momento místico. O bem triunfa naquele

momento no texto. Até o rio antes cheio de lama de tanto “comer terra” enfeitou-se

de estrelas (p. 115). Através de construções literárias, metáforas encantadoras, o

poeta registra a quebra do pessimismo existente até ali e aborda a esperança com a

criação de imagens do concreto.

É possível detectar a presença de aspectos do surrealismo até mesmo por 

mencionar como o ambiente se transforma de forma surrealista para receber o bebe

que nasceu. Gilberto Mendonça Teles (2005), ao tratar da corrente de vanguarda

surrealista européia mostra que Breton, o seu principal representante, em 1946

reeditou o seu manifesto e nele reafirmou o seu protesto contra a exploração do

homem pelo homem e pelas religiões (p.172). As imagens criadas, na poesia Morte

e vida severina de Cabral, são semelhantes às descritas por Breton, como sendo

imagens surrealistas: “alucinatórias”, “se presta muito naturalmente ao abstrato,

mascara-o de concreto, ou inversamente, seja porque ela implica na negação de

alguma propriedade física elementar, seja porque ela desencadeia o riso” e ainda

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 87/99

 

85

no manifesto de Breton tem-se uma valorização da fauna e da flora, no manifesto,

são descritas como inestimáveis (TELES, 2005, p. 202-203). Neste momento da

poesia.

A palavra cabralina constrói um cenário iluminado e positivo, em tudo

motivado pela vida nova que se inicia. Nesse momento, não há traços de humor. Há,

sobretudo, uma ascensão ao transcendental. O leitor é levado à erudição completa

provocada pela arte da palavra, ou pela palavra artisticamente articulada. Considera-

se que este ponto do auto é o momento sublime da peça, a morte é vencida pela

vida.

O homem é indissociável da natureza na poesia de Cabral e nesta,

aparecem refletidos. A imagem de um compõe a metáfora da imagem do outro e

vice versa. O poeta parece “pintar” uma paisagem em que há um jogo sutil entre

natureza humana e natureza física compondo a harmonia da poesia deste escritor.

Na cena seguinte começam a chegar pessoas que trazem presentes ao

recém-nascido. Neste ponto da peça, na fala dos amigos e vizinhos aparecem

críticas sociais. O estado de pobreza daquele povo narrado pelo autor é intenso.

Não possuem as condições mínimas de sobrevivência.

Cativante é pensar que o autor cria através de sua obra uma situaçãoficcional, porém, verossímil. Através dela, o leitor pode ser participado daquela

realidade possível, a pobreza, o sofrimento, o descaso e outras. Dessa forma, o

leitor tem, nos presentes que a criança ganha no ato do seu nascimento, uma visão

de toda a precariedade que esses grupos sociais enfrentam para sobreviverem. Os

vizinhos de Seu José, mestre carpina, doando o pouco que conseguem, vão dizendo

palavras que mostram dados que apontam a condição social daquele recém

chegado à vida.

Minha pobreza tal éque não trago presente grande:trago para a mãe caranguejospescados por este mangues;mamando leite de lamaconservará o nosso sangue.[...]Minha pobreza tal é

que não tenho presente melhor:trago papel de jornalpara lhe servir de cobertor;cobrindo-se assim de letras

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 88/99

 

86

vai um dia ser doutor.(MVS, p.115,116)

As ironias são freqüentes na seqüência e o autor através de tal artifício da

arte literária consegue fazer com que a sua obra se abra para muitas interpretações.

Afinal é literatura e tem como papel principal sugerir interpretações.

A obra engajada alerta sobre a realidade. Observa-se que, naquele contexto

literário, representar algum tipo social excluído fazia parte da estética vigente, como

 já afirmado neste trabalho. João Cabral o fez, utilizando-se das ironias para alertar 

sobre o futuro daquele povo.

Para esta proposta de análise, é necessário lembrar que este artifício

retórico, sendo ele, passivo de múltiplas interpretações, pode não atingir, da mesma

forma, a todos os leitores. Segundo o estudo da pesquisadora Linda Hutcheon

(2000) intitulado: Teoria política da ironia, não é tão simples, assim, interpretar a

figura de linguagem ironia, já que:

[...] a ironia é uma estratégia discursiva que depende do contexto e daidentidade e da posição de ambos o ironista e o público [...] as comunidadesdiscursivas [...] elas são o tornam a ironia possível, em primeiro lugar [...] Asmuitas comunidades discursivas às quais cada um de nós pertence dediferentes maneiras podem, é claro, ser baseada em coisas como língua,raça, sexo, classe e nacionalidade [...] é quase um milagre que a ironia sejacompreendida como um ironista possa tê-la intencionado: todas as ironias,de fato, são provavelmente ironias instáveis. (HUTCHEON, 2000, p. 274),

A obra Morte e vida severina trata do analfabetismo, usando ironia. Era,

naquele contexto, um tema discutido por representantes das políticas públicas e

instituições de ensino da época. E a obra o apresenta através de artifício literário.

Theodor Adorno, analisando a poesia de Goethe, alega que ”a ironia roça em

silêncio o que há de consolador no poema” (ADORNO, 2003, p. 72). Esta figura de

linguagem é uma das mais eficientes formas de crítica social e, dentre elas, a que

mais exige do leitor capacidade interpretativa. No caso do autor que a realiza em

sua obra, nem sempre sabe se ela será mesmo compreendida como uma ironia.

Antonio Candido (2000, p. 143) afirma que o fenômeno do “analfabetismo não

é sempre razão suficiente para explicar a fraqueza dos outros setores, embora seja

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 89/99

 

87

o traço básico do subdesenvolvimento no terreno cultural”. As intenções do artista ao

tratar de temas daquela sociedade devem ser avaliadas do ponto de vista estético,

como já foi afirmado neste estudo. Sabe-se que cada um que lê a obra vai tirar dela

uma conclusão a partir dos seus conhecimentos de mundo e suas escolhas

políticas. Afirma Linda Hutcheon (2000, p. 36) que “a política da ironia nunca é

simples e nunca está sozinha”. As estratégias discursivas da ironia instalam uma

relação entre ironista e platéias. E muitas até podem não chegar a ser recebidas

como ironia e sim como verdade; o que as torna mais literárias é justamente essa

capacidade de sugerir e não de dizer.

Muitos fatos históricos estão nesta obra relacionados como o analfabetismo

das classes mais baixas que é sugestionado através do prognóstico que o

personagem faz da criança que ao se embrulhar em jornal poderia um dia ser 

doutor. O que se conhece dessa época é que somente um grupo privilegiado

econômica e socialmente é que chegava a adquirir diplomas de cursos superiores

no Brasil.

O trabalho de menor, pertencente a família de baixa renda, as poucas escolas

e a migração dos trabalhadores e famílias, bem como o fenômeno da

incompatibilidade entre o ano agrícola e o ano escolar foi um dos fatoresdeterminantes da evasão escolar das crianças das áreas rurais. (BEISIEGEL, 1995,

p. 406). Observa-se, neste trecho da obra, uma questão que Cabral capturou

daquela realidade e, dessa maneira, pode ser conhecida por quem a lê.

Modismo literário ou não, talvez o Brasil tenha que agradecer aos artistas

que registraram, desde o seu descobrimento, as mazelas sociais e os horrores da

pobreza e do analfabetismo para que sejam lembradas e até, numa estimativa

otimista, extintas da vida social. Apesar de no texto aparecer uma situaçãopreocupante sobre o tema da educação, todavia, existe uma “progressiva extensão

das oportunidades de acesso à escola, em todos os níveis do ensino, para setores

cada vez mais amplos da coletividade” (BEISIEGEL, 1995, p. 383).

A corrente de artistas que privilegiaram a arte engajada mostrou a face de um

Brasil em evolução que apresentava problemas sociais gravíssimos. Apontam dados

históricos, que a legislação em vigor nas décadas de 40 e 50 preservava a antiga

organização que caracterizava-se pela coexistência de um sistema educacional para

o povo em geral e outro para as elites. O processo de industrialização exigiu que se

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 90/99

 

88

desse maior importância à educação que passou a ser instrumento de ascensão

social. Mas era ainda para poucos (BEISIEGEL, 1995, p. 393-396).

Observa-se que no mesmo trecho de Morte e vida severina traços de humor 

podem ser reconhecidos. Pois, enquanto destaca o local de onde vêem os presentes

da criança que nasceu, as culturas (riquezas da terra) da região são exaltadas. O

autor inverte as plantas em relação ao seu fruto, trocando os frutos. Na verdade,

pode estar, mesmo, é tratando de bairros e regiões do Recife quando fala das

plantas. Lá há bairros com esses nomes de plantas frutíferas da região. Consegue,

dessa forma, efeito humorístico:

 _Trago abacaxi de Goiâniae de todo o Estado rolete de cana. _Eis as ostras chegadas agora.apanhadas no cais da Aurora. _Eis tamarindos da JanqueiraE jaca da Tamarineira. _Mangabas do Cajueiroe caju da Mangabeira

(MVS, p.117)

O tema do sofrimento é tratado através de construções leves e criativas que

exploram o imaginário coletivo, pois trabalha com nominações da região. Absorve

tradições da literatura oral (coloquialismo), tornando a peça mais próxima de

grandes auditórios. Cabral abre espaço também, para o profano, quando introduz na

peça a questão das ciganas que lêem a sorte do recém-nascido. Em suas falas, o

destino do menino não lhe reserva riquezas no futuro. Uma vida difícil é observada

na leitura da sua sorte pelas duas ciganas:

A primeira lhe atribui uma educação feita pela observação dos animais

daquele lugar, sendo os animais que rastejam, os escolhidos para a descrição do

roteiro dos primeiros passos da criança:

aprenderá a caminhar na lama, com os goiamuns,e a correr o ensinarãoos anfíbios caranguejos,pelo que será anfíbiocomo a gente daqui mesmo.(MVS, p.117)

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 91/99

 

89

Na leitura da primeira cigana o menino se tornaria um pescador de siris e

camarão. Tal destino é questionado pela segunda cigana que não lhe apresenta,

também, como a outra, grande ascensão social. Ela o vê como trabalhador de

fábrica e afirma que o vê negro de graxa da máquina. O que determina que o

menino, quando adulto, não passará de um trabalhador de setores menos

considerados na sociedade, pois são, igualmente, mal remunerados. Em seguida,

falam os vizinhos e amigos e as pessoas que trazem presentes ao menino. O trecho

é encadeado por João Cabral, usando rimas e jogos de palavras para descrever a

beleza do recém-nascido. Percebe-se mais uma vez características surrealistas na

descrição dos personagens da poesia Morte e vida severina, já que o manifesto de

Breton, apresentado por Gilberto Mendonça Teles (2005), mostra que as imagens

criadas dentro de tal proposta “parecem testemunhar que o espírito está

amadurecido para outra coisa que não sejam as inocentes alegrias que em geral ele

se proporciona” e seriam responsáveis por desconcertar o espírito e este ficaria mais

forte “ao cercear tudo (p.202-203). Assim Cabral criou a imagem do recém nascido

menos favorecido, provocando o leitor a pensar aquela realidade.

 _ De sua formosura já venho dizer:é um menino magro,de muito peso não é,mas tem o peso de homem,de obra de ventre de mulher,[...]E belo porque com o novotodo o velho contagia. _Belo porque corrompecom sangue novo a anemia. _Infecciona a miséria

com a vida nova e sadia. _ Com o oásis, o deserto,com ventos a calmaria.(MVS, p.119,121)

O interlocutor Seu José, mestre carpina, volta-se ao retirante que há pouco

estava decidido a dar cabo de sua vida e completa então, seu pensamento a

respeito dos questionamentos do retirante sobre as dificuldades pelas quais

passava. Nas palavras do personagem muita sabedoria de João Cabral é passada

ao público no enunciado abaixo:

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 92/99

 

90

é difícil defender,só com palavras, a vida,ainda mais quando ela é

esta que vê, severina;mas se responder não pudeà pergunta que fazia,ela, a vida, a respondeucom sua presença viva.[...]E não há melhor respostaque o espetáculo da vida:vê-la desfiar seu fioque também se chama vida,ver a fábrica que ela mesma,teimosamente, se fabrica,vê-la brotar como há pouco

em nova vida explodida;mesmo quando é assim pequenaa explosão, como a ocorrida;mesmo quando é uma explosãocomo a de há pouco, franzina;mesmo quando é a explosãode uma vida severina.(MVS, p.122)

Afirma o poeta ao leitor que a melhor resposta é “o espetáculo da vida”

(p.122). Finaliza o artista, assim, João Cabral de Melo Neto mais uma de suas obras

com requinte na construção do tema que desenvolve. A mensagem é agradável de

se ouvir e fica gravada na mente de forma fácil.

A presença viva da vida que nasce é a melhor resposta que o poeta deixa

ao leitor. Depois de suscitar tantos questionamentos sobre o homem e a vida. O

engajamento social como função literária, torna-se realizado, plenamente, na

representação social do excluído na obra Morte e vida severina .

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 93/99

 

91

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A representação social do homem nordestino excluído dos direitos sociais,

realizada por João Cabral de Melo Neto em Morte e vida severina, consegue

traduzir a vida difícil deste povo, expondo aspectos da cultura para que o leitor 

possa conhecer um pouco mais daquela realidade possível.

O poeta, com sua capacidade técnica para utilizar a linguagem poética,

articula com o popular, a fim de mostrar o homem nordestino, retirante da seca,

colocando-o para falar. Aproveitou-se de seus conhecimentos literários, buscando,

em várias fontes, propiciar a criação de mais uma de suas obras.

Cabral mostrou-se um escritor moderno, ao absorver as questões do seu

tempo de forma crítica. Soube observar a modernidade e se aproveitar das

conquistas da geração modernista para fazer literatura, de forma tal que deixou um

acervo de obras consideráveis para a literatura brasileira. O estudo da literatura de

um determinado tempo histórico do passado é compensador por ser mais uma forma

de analisar as questões que afligem a humanidade e assim, tomar contato, nestas

obras, com traços da tradição e da ruptura de valores sociais que podem nosensinar a compreender melhor o nosso devir.

Deste estudo, pode-se refletir que o engajamento da literatura com as

questões sociais do contexto histórico da obra Morte e vida severina era uma

escola estética realizada pelos artistas. O modernismo, após ter feito as mudanças

na linguagem literária, procurou traduzir a nova sociedade técnica que se instaurava

com o uso de uma nova forma estética, que exigia dos poetas relacionarem o

conteúdo de suas obras às questões sociais que afligiam a sociedade em geral.Assim o fez João Cabral de Melo Neto, escritor moderno, conhecedor das

questões do seu tempo histórico, percebeu logo as fontes de pressão a respeito do

conteúdo da escrita literária e se posicionou no rol dos escritores de qualidade

técnica. Através de um aprendizado poético e a busca de uma excelência nas suas

criações literárias buscou o rigor na escrita e não se deteve diante das dificuldades

impostas pelo período histórico em busca de uma literatura que transcendesse o

trivial.

Empregou em seus textos conhecimentos da tradição poética, sendo que em

Morte e vida severina aparecem marcas das várias literaturas do passado e

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 94/99

 

92

também são evidentes os traços da ruptura estética que marca, a todo tempo, o

social em toda sua extensão de valores: políticos, econômicos, religiosos, dentre

outros que marcam um contexto.

Em Morte e vida severina, Cabral põe o homem para falar, das suas dores e

com sua própria dicção. O autor dá ao personagem Severino, o retirante, uma voz e

um jeito de falar próprio daquele homem sertanejo, ali representado. Sua prosa,

seus problemas são expostos de maneira a cativar o leitor, levando-o a querer 

conhecer aquela realidade.

A tradição pode ser percebida pela construção erudita de seu autor que busca

em seus conhecimentos sobre poética a articulação entre o velho e o novo. O uso

do auto de natal de tradição ibérica, marcando a pesquisa no passado. Já a ruptura

é apresentada na forma híbrida em que misturou os gêneros: lírico, épico e

dramático. É marcada pela composição dos temas da sociedade e pela maneira com

que trata da exploração da natureza e do homem pelos grupos econômicos

dominantes, sendo expressos por uma linguagem nova.

O engajamento seria uma forma de ruptura com antigos valores em diferentes

áreas. Mudança na ideologia suscita mudanças na linguagem (TELES, 2005,

LAFETÁ, 2000, CANDIDO, 1985, GOLDMANN, 1979 e outros). A linguagem literáriamuda para refletir esta mudança de pensamento da sociedade. O engajamento

social na arte da escrita é, então, construído por uma nova estética literária. Falar 

dos excluídos e seus problemas passa a ser palavra de ordem entre os intelectuais,

constituindo, assim, uma fase em que esta função era o alvo a ser atingido pelos

escritores, sempre construída por técnicas literárias.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 95/99

 

93

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In: ______. Notas de

literatura I. 34. ed. São Paulo: Duas Cidades, 2003. p. 65-89.

BARBIERI, Ivo. Geometria da composição: morte e vida da palavra severina. Riode Janeiro: Sette Letras, 1997.

BARBOSA, João Alexandre. As ilusões da modernidade: notas sobre ahistoricidade da lírica moderna. São Paulo: Perspectiva,1986.

 ______. João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Publifolha, 2001.

BEISIEGEL, Celso de Rui. Educação e sociedade no Brasil após 1930. In:PIERUCCI, Antonio Flavio de Oliveira et al. O Brasil republicano: economia ecultura (1930–1964). 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 381-416.

BENJAMIM, Walter. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro,1975.

BENOIT, Denis. Literatura e engajamento. Bauru: EPUSC, 2002.

BEOZZO, José Oscar A igreja entre a revolução de 1930, o estado novo e aredemocratização. In: PIERUCCI, Antonio Flavio de Oliveira et al. O Brasilrepublicano: economia e cultura (1930 – 1964). 3. ed. Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 1995. p. 271-341.

BONNICI, Thomas. Teoria e crítica pós-colonialista. In: BONNICI, T.; ZOLIN, L. O.(Orgs.). Teoria literária. Maringá: EDUEM, 2009. p. 257–285.

 ______. Teorias estruturalistas e pós-estruturalistas. In: BONNICI, T.; ZOLIN, L. O.(Orgs.). Teoria literária. Maringá: EDUEM, 2009. p. 131–157.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3. ed. São Paulo: Cultrix,1997.

 ______. Dialética da colonização. 2. ed. São Paulo:Companhia das Letras,1992.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 96/99

 

94

CALASSANS, Selma Rodrigues. O fantástico. São Paulo: Ática,1988.

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & outras metas: ensaios de teoria crítica

literária. 4. ed. São Paulo: Perspectiva,1992.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 7.ed. São Paulo: Nacional,1985.

 ______. A literatura e subdesenvolvimento. In: ______. A educação pela noite eoutros ensaios. São Paulo: Ática, 2000. p. 140-162.

CARONE, Modesto. Severinos e comendadores. In: SCHWARZ, Roberto (Org.) Ospobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 165-169.

CÉSAR, Guilhermino. Poesia e prosa de ficção. In: PIERUCCI, Antonio Flavio deOliveira et al. O Brasil republicano: economia e cultura (1930 – 1964). 3. ed. Rio deJaneiro: Bertrand Brasil, 1995. p.417- 437.

CEVASCO, Maria Elisa. Literatura e estudos culturais. In: BONNICI, T.; ZOLIN, L. O.(Orgs.). Teoria literária. Maringá: EDUEM, 2009. p. 319-325.

EAGLETON, Terry. Crítica política. In: ______. Teoria da literatura: uma introdução.5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 267-297.

ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In: ______. Ensaios. São Paulo: Art,1989. p. 37-48.

FAIRCLOUGH, Normam. Discurso e mudança social. Trad. Isabel Magalhães.Brasília: Universidade de Brasília, 2001.

FERNANDES, Gisele Manganelli. O Pós-modernismo. In: BONNICI, T.; ZOLIN, L. O.(Orgs.) Teoria Literária. Maringá: EDUEM, 2009. p. 301-315.

FONSECA, Gustavo A. B. da et al.. Livro vermelho dos mamíferos brasileirosameaçados de extinção. Belo Horizonte. Fundação Biodiversidade, 1997

GODOY, Ana Boff de. Psicologia da composição: o verso do verso da poesia deJoão Cabral de Melo Neto. La Salle: revista de educação, ciência e cultura / Centro

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 97/99

 

95

Universitário La Salle. v. 8, n. 1 (out./2003). Canoas: Centro Editorial La Salle, 2003.p. 55-63.

GOLDMANN, Lucien. Dialética e cultura. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1979.

HUTCHEON, Linda. Teoria política da ironia. Belo Horizonte: UFMG, 2000.

ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In: LIMA, Luis Costa. Literatura e o leitor . 2. ed.São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 105-118.

LAFETÁ, João Luiz. 1930: crítica e o modernismo. 34. ed. São Paulo: Duas Cidades,

2000.

MELO NETO, João Cabral. Obra completa: volume único/ João Cabral de MeloNeto. Organização Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

 ______. 1920- Os melhores poemas de João Cabral de Melo/ Seleção de AntonioCarlos Secchin. 5. ed. São Paulo: Global, 1997.

MERQUIOR, José Guilherme. A razão do poema. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1965.

MONEGAL, Emir Rodríguez. Tradição e renovação. In: MORENO, Cezar Fernández.Coord. e Introdução. América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva,1979. p. 131-159.

MONTEIRO, André. Romantismo e Modernismo: a construção do cânone de

nacionalidade na literatura brasileira. Verbo de Minas: Letras, Juiz de Fora, v. 7, n.15, p. 211-223, 2009.

MORICONI, Ítalo. Como e por que ler poesia brasileira do século XX. Rio deJaneiro: Objetiva, 2002.

OLIVEIRA, Marly de. João Cabral de Melo Neto: breve introdução a uma leitura desua obra. In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 2000. p. 16-21.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 98/99

 

96

PASCOLATI, Sonia Aparecida Vido. Operadores de leitura do texto dramático. In:BONNICI, T.; ZOLIN, L. O. (Orgs.). Teoria literária. 3. ed. Maringá: EDUEM, 2009.p. 93-112.

PIERUCCI, Antônio Flávio de Oliveira; SOUZA, Beatriz Muniz de; CAMARGO,Cândido Procópio Ferreira de A. Igreja católica: 1945-1970. In: PIERUCCI, AntonioFlavio de Oliveira et al. O Brasil republicano: economia e cultura (1930 – 1964). 3.ed. Rio de Janerio: Bertrand Brasil, 1995. p. 343-380.

PRADO, Décio de Almeida. Teatro: 1930-1980: ensaio de interpretação. In:PIERUCCI Antonio Flavio de Oliveira et al. O Brasil republicano: economia ecultura (1930-1964). 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 527-555.

REDMOND, William Valentine. O processo poético segundo T. S. Eliot. SãoPaulo: Annablume, 2000.

SARTRE, Jean-Paul. Que é literatura? 3. ed.  São Paulo. Ática, 1999.

SECCHIN, Antônio Carlos. João Cabral: a poesia do menos. São Paulo: DuasCidades, 1999.

  ______. Uma introdução a João Cabral. In: MELO NETO, João Cabral. Osmelhores poemas de João Cabral de Melo. Seleção de Antonio Carlos Secchin. 5.ed. São Paulo: Global, 1997. p. 7-10.

SENNA, Marta de. João Cabral: tempo e memória. Rio de Janeiro: Antares, 1980.

SILVA, Anderson Pires da. Mario e Oswald: uma história privada do modernismo.

Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009.

SILVA, Marisa Corrêa. Critica sociológica. In: BONICCI, T.; ZOLIN, L. O. (Orgs.).Teoria literária. 3. ed. Maringá: EDUEM, 2009. p. 177-188.

SISCAR, Marcos. A desconstrução de Jacques Derrida. In: BONICCI, T.; ZOLIN, L.O. (Orgs.). Teoria literária. Maringá: EDUEM, 2009. p. 201-210.

STEFENS, Adriana Inês Martos. Poesia da poesia: a relação lírica pela palavrapoética em João Cabral de Melo Neto. Diálogos pertinentes, Franca, v. 2, n. 2, p.61-79, jan./dez. 2006.

5/13/2018 A_REPRESENTAÇÃO_SOCIAL_EM_MORTE_E_VIDA_SEVERINA - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/arepresentacaosocialemmorteevidaseverina 99/99

 

97

TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e o modernismo brasileiro:apresentação e crítica dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferênciasvanguardistas de 1857 a 1972. 18. ed. Petropólis: Vozes/MEC, 2005.

TREVISAN, Armindo. A poesia: uma iniciação à leitura poética. Porto Alegre:Uniprom, 2000.

TRIGALI, Dante. Realismo socialista. In ______. Escolas literárias. São Paulo:Musa, 1994. p. 218-227.

ZAPPONE, Mirian Hisae Yaegashi; WIELEWICKI, Vera Helena Gomes. Afinal, o que

é literatura?. In: BONNICI, T.; ZOLIN, L. O. (Orgs.). Teoria literária. 3. ed. Maringá:EDUEM, 2009. p. 19-30.