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ARQUITETURA COMO FATO CULTURAL

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ARQUITETURA COMO FATO CULTURAL

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ARQUITETURA COMO FATO CULTURAL

Roberto Ghione

Palestra ministrada no 19º Congresso Brasileiro de Arquitetos, Recife, junho de 2010

Produzir arquitetura na circunstancia cultural contemporânea.Fazer arquitetura, desde meu ponto de vista e com um conceito de produção cultural, significa traçar marcas na paisagem urbana e na paisagem rural, marcas que vão permanecer por um tempo relativamente longo.

Uma das características que identificam à arquitetura é sua condição de permanência: quando estou elaborando um projeto, jamais passa pela minha cabeça a idéia de que a construção resultante dele possa algum dia ser demolida, nem sequer modificada. Quando estou projetando, o faço com a consciência plena que a marca que vou traçar na paisagem vai permanecer no tempo e no espaço.

Outra característica da arquitetura, derivada de sua condição de permanência, é sua condição de transcendência. Podemos definir a transcendência como a consagração da permanência: quando um edifício assume os valores culturais de uma sociedade, ou quando desafia esses valores para elevá-los até um novo patamar de valoração, a própria sociedade acaba adotando esse edifício e incorporando-o ao seu acervo cultural. O edifício passa a constituir parte do patrimônio arquitetônico da cidade, circunstancia que revela a consagração da arquitetura e a consagração do arquiteto.

Quando produzimos arquitetura com o sentido de cultura estamos fazendo uma oferta ao patrimônio da cidade. Estamos aqui definindo um conceito alternativo de patrimônio, no qual o patrimônio é considerado não só como herança, como aquele bem que recebemos do passado e que nos sentimos com o compromisso de preservar, conservar, re-utilizar, integrar com nova arquitetura e todas as operações que implicam o trabalho com edifícios históricos, mas também como legado, como bem a ser construído, como oferta à cultura da cidade. Neste ponto, as noções de arquitetura e de patrimônio unificam se na sua definição.

Neste contexto, o arquiteto atua como agente de cultura, possuidor de um instrumento essencial: o conhecimento, que aplicado com inteligência e sensibilidade, permitirá integrar novas peças à complexa trama de objetos culturais que compõem a cidade. O arquiteto vira articulador entre passado e futuro, entre herança e legado, tendo a oportunidade de sua obra se transformar no patrimônio do futuro.

Por tanto a arquitetura, na sua condição de permanência e de transcendência, constitui a testemunha cultural mais genuína. E quando falamos em arquitetura, estamos falando naturalmente de cidade, considerando que a cidade é a conjunção organizada de todas as arquiteturas, a obra cultual por excelência. Fazer arquitetura significa, antes que nada, fazer cidade. Esta é uma lição que a pos-modernidade nos deixou e que precisa ser revisitada diante da fragmentação e exclusão que propõe o modelo da cidade neoliberal.

A cidade é um livro aberto, onde resulta possível ler a cultura da sociedade que a habita, assim como a cultura das sociedades que a habitaram em tempos passados. A história das civilizações pode ser lida nos seus vestígios urbanos. O homem, habitando em sociedade, expressa suas grandezas e suas misérias na construção do espaço urbano: seus valores, desejos, auto-estima, angustias, contradições. A cidade constitui o termômetro fiel da sensibilidade social materializado nos seus edifícios e no seu espaço urbano.

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Este congresso propõe o conceito da transição para explicar à atual circunstancia de desenvolvimento da arquitetura e do urbanismo. Transição significa estar em transito, estar em caminho, ter saído de um ponto e estar na direção de um destino mais ou menos definido. Quando o destino é conhecido, o caminho resulta claro, seguro, previsível. Quando o destino é impreciso, o caminho torna se inseguro, imprevisível.

Eu tenho uma idéia ambígua em relação à transição: quando me coloco como projetista (e eu passo minha vida projetando e construindo), a transição resulta clara, transparente, previsível. Porque a própria arquitetura é uma constante transição, a própria arquitetura é um constante aprendizado, a própria arquitetura é um caminho que se faz ao andar. Quem em arquitetura diz que já sabe tudo, está declarando que não sabe de nada. Quem já tem a receita pronta para os problemas da nossa disciplina, não é arquiteto: é burocrata. A magia da arquitetura está nesse constante re começar perante cada novo desafio.

Quando me coloco como crítico, a situação é bem diferente. Quando vejo a degradação urbana das nossas cidades, quando vejo o crescimento das periferias sem critérios de desenvolvimento urbano, quando vejo a especulação imobiliária tomando conta da imagem das nossas cidades e das políticas urbanas, quando vejo a cidade fragmentada e excludente que propõe o modelo neoliberal, quando vejo a destruição ou o descaso com o patrimônio cultural, quando vejo as agressões ao ambiente natural, quando vejo a enorme quantidade de m² de construção e ao mesmo tempo a dificuldade de encontrar obras que representem os valores transcendentes da arquitetura, quando vejo a perda do rumo disciplinar de alguns colegas, quando vejo o festival de barbaridades que se constroem nos condomínios residenciais pelo Brasil afora, quando vejo o provincianismo de algumas cidades nordestinas que copiam a decadente arquitetura neoclássica paulista, quando vejo a submissão às imagens da arquitetura dos países mais avançados e ao mesmo tempo um grande desconhecimento da produção dos nossos vizinhos latino americanos, quando vejo os princípios da chamada escola pernambucana serem sacrificados pelas imposições das leis de mercado, sinto que a transição é difícil, que a transição é incerta, que a atual circunstancia exige dedicação e sabedoria para promover uma produção de arquitetura que assuma os valores transcendentes da disciplina e os valores genuínos da rica cultura brasileira e latino americana.

Produzir arquitetura como fato cultural numa época de transição implica analisar as causas que a determinam, marcada por condicionantes que hoje assumem uma especial complexidade.

A circunstancia cultural contemporânea oferece uma serie de fatores que merecem consideração para interpretar o significado de produzir arquitetura hoje, no nosso contexto. Esses fatores determinam os desafios que temos pela frente se queremos assumir uma atitude profissional comprometida com uma produção de transcendência e significado cultural.

1- Novos paradigmas

Ao longo da historia existiram o que podemos chamar de processos culturais consolidados, que atuavam como referencia e determinavam a produção de arquitetura, alternados com períodos de transição. O último processo cultural de referencia foi (do meu ponto de vista) o da modernidade, iniciado no Século XVIII e cujo apogeu foi atingido na primeira metade do Século XX, e seu paradigma a arquitetura produzida pelo Movimento Moderno. Aquela arquitetura, a chamada “dos maestros”, com pretensões heróicas e universais, transformou-se num modelo que serviu como referência para a produção em nossos contextos até finais do Século XX.

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Hoje, após a crise desse modelo cultural, novos paradigmas oferecem uma diversidade de correntes e pensamentos referidos à arquitetura e à cidade, de caráter mais critico do que propositivo. Aquele momento de transformações e proposições foi trocado por dúvidas e incertezas após a explosão demográfica universal, a enorme produção de construções de duvidoso valor arquitetônico e a crise ecológica e ambiental que hoje ocupa o centro do debate internacional.

Os questionamentos ao modelo urbano do Movimento Moderno, que resultou na re-valorização da estrutura urbana tradicional, assim como à sua intenção de universalidade, que resultou na valorização das inúmeras culturas locais, provocaram a fragmentação e dissolução de uma consciência disciplinar unidirecional.

Kate Nesbitt, em Uma nova Agenda para a arquitetura, considera as respostas da arquitetura à crise do modernismo, definindo uma serie de paradigmas que orientaram a prática disciplinar no fim do Século XX e inícios do XXI, que passam pela fenomenologia, a estética do sublime, as teorias lingüísticas até os regionalismos.

A arquitetura reflete os valores e paradigmas de uma sociedade. Hoje, esses valores são globalizados e estão em crise. Só 20 anos atrás (período ínfimo em termos de tempos históricos) a humanidade assistia perplexa e eufórica á queda do muro de Berlim e a dissolução da URSS. Os paradigmas da produção, do capitalismo e do estado do bem estar pareciam consagrados. Poucos anos depois, o planeta agonizante e as crises financeiras dos países mais ricos de ocidente, obrigam a formular novos paradigmas. A arquitetura encontra se na encruzilhada do fascinante desenvolvimento tecnológico e a reconsideração das condicionantes naturais, que exigem projetos mais amáveis com o ambiente natural, com o clima e com a preservação dos recursos.

Neste contexto, os desafios contemporâneos passam por estabelecer linhas de ação que integrem os valores universais da arquitetura, com o atual desenvolvimento tecnológico, com as condicionantes do ambiente natural e, fundamentalmente, com os valores culturais do lugar de atuação.

2- Condição de periferia

A condição de periferia é a circunstancia histórica de América Latina. O novo mundo, conquistado por europeus que dizimaram as culturas pré-existentes e impuseram, no processo de colonização, um modelo à imagem de sua cultura de origem, foi construído com a intenção de imitar as referencias trazidas por seus novos ocupantes. Iniciou-se assim um processo de mimese no qual o valor da produção local foi sempre medido em função do grau de aproximação ao modelo de origem. Nunca foram consideradas as circunstâncias locais na produção de arquitetura e cidade, nem as condições de mestiçagem com os restos das culturas sobreviventes.

A condição ancestral de periferia persiste até hoje numa dupla consciência: a dos arquitetos de Latino América, que continuam percorrendo o caminho da mimese (com exceção de um pequeno setor da crítica e da produção que valoriza a circunstancia local na produção de arquitetura) e a da crítica internacional, que continua a considerar a produção latino-americana como sub-valuada em relação ao padrão internacional, ou como simples curiosidade regional.

A esta condição histórica, agrega-se a consciência de submissão latino-americana. Em todos os âmbitos da cultura e da vida social denota-se uma persistente tendência a consagrar os valores da civilização ocidental, ainda ao custo de sacrificar autenticas expressões locais, que passam a atuar como manifestações de resistência.

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O escritor mexicano Octavio Paz definiu “a tradição anti-moderna de América Latina” onde descreve os processos culturais que determinaram a consciência histórica do continente, particularmente a ansiedade por recuperar o tempo perdido de séculos de anti-modernidade e que levam a adotar imagens de modernidade, em muitos casos carentes do sustento conceitual. Este processo, no campo da arquitetura, resulta amplamente verificável e vem motivando, nas últimas duas décadas, a consciência de arquitetos latino-americanos, que constituem um pequeno grupo de resistência a fim de valorizar as condicionantes locais nos processos de produção de arquitetura. Conceitos como “outra modernidade” do arquiteto chileno Enrique Browne, ou de “modernidade apropriada” do também chileno Christian Fernandez Cox, formulados nos grupos de resistência de fins do Século XX, ainda merecem consideração e possuem plena vigência nos processos de produção contemporâneos.

A condição periférica se manifesta nos processos de organização e de produção da arquitetura. A velocidade do crescimento demográfico, a desvalorização social da disciplina, a persistência de modelos de organização profissional superados, a derivação do rol dos arquitetos para situações descomprometidas ou intranscendentes são, entre outros, indicadores da necessidade de uma nova consciência disciplinar e de que tentar produzir arquitetura com significado cultural resulta, no nosso continente, uma missão heróica.

A consciência de arquitetos latino-americanos, que persistem em copiar modelos europeus e americanos sem perceber as peculiaridades e riquezas do nosso contexto, perduram a condição periférica das nossas sociedades. Superar a consciência de periferia é, em minha opinião, o ponto de partida substancial para a produção de arquitetura com sentido de transcendência e significado cultural. Transferir a noção de centro para nós mesmos, aprender da nossa cultura, saber ver e valorizar o que temos nas mãos é o caminho a seguir para obter uma produção singular, autentica e diferenciada, independente das contaminações externas. Acredito que este é o maior desafio da arquitetura brasileira e latino americana para fazer arquitetura com sentido de produção cultural.

3- Acelerada velocidade dos acontecimentos

A realidade contemporânea está sujeita aos processos da impressionante evolução cientifica e tecnológica que caracteriza a nossa época. O mundo começou a evoluir e acelerar seus processos de conhecimento e produção a partir da Revolução Industrial, até o ponto de estarmos inseridos hoje num turbilhão de acontecimentos, onde temos perdido a capacidade de surpreender-nos. Basta olhar para trás, já não décadas ou anos, mas só meses, para verificar este processo.

Neste contexto, a arquitetura deve assumir transformações como nunca aconteceram na historia da humanidade, afetando seus processos de assimilação de conhecimentos e técnicas de produção. Muitos desses processos não conseguem atingir um adequado período de decantação, ficando como experiências mais ou menos sucedidas que afetam o desenvolvimento das cidades e a ocupação dos territórios.

Neste contexto, um fenômeno instalou se em nossa experiência cotidiana: os processos de obsolescência, determinados pela própria evolução tecnológica, que faz os objetos ficarem obsoletos ainda em condições de funcionamento, assim como pela imposição do paradigma econômico baseado no constante processo de produção e consumo. Os objetos de consumo hoje vem com obsolescência programada, com vida útil limitada seja em relação ao próprio funcionamento, quanto às mudanças de imagem, estratégias da mercadologia contemporânea destinadas a estimular o consumo. Estes processos marcam a grande contradição do paradigma de desenvolvimento: estimula se o consumo para promover a produção, para fazer a economia girar, ao mesmo tempo em que estimula se a produção de

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lixo (e com ele os processos de reciclagem) e o desgaste acelerado dos recursos naturais. As perspectivas deste modelo são limitadas (o planeta está advertindo cotidianamente) e as propostas implicam mudar radicalmente determinadas pautas de comportamentos sociais, tal vez uma era de post-consumismo?

Este fenômeno da obsolescência acompanha se com a precariedade e volatilidade de processos de pensamentos, afetando a consideração de valores que se consideram permanentes.

Neste ponto, cabe a seguinte reflexão: se foi definido que a arquitetura caracteriza se por seus valores de permanência e de transcendência, como se compatibilizam os processos de obsolescência física e de volatilidade de idéias e pensamentos com aquelas características ideais da arquitetura? Até onde os processos de produção de arquitetura, baseados nas leis de ordem e harmonia que conduzem a padrões de beleza assumidos e clássicos, decantados ao longo da nossa civilização ocidental, conciliam se com as aceleradas mudanças do nosso tempo? Qual é a arquitetura de transcendência que podemos elaborar nos acelerados processos de produção em que somos obrigados a atuar?

4- Retração disciplinar

A arquitetura moderna, paradigma da geração que nos antecede, propunha uma transformação radical das cidades e das condições de habitabilidade, assumindo problemáticas historicamente alheias às incumbências da profissão. Gropius entendia, ensinava e difundia a arquitetura não só como um movimento, mas como uma verdadeira causa transformadora da realidade social e cultural, espelho da nova era industrial que se consolidava nos inícios do Século XX. Os arquitetos, que anteriormente só construíam os “grandes edifícios”, passaram a assumir a integralidade do habitat. Problemáticas nunca antes consideradas, como habitações populares, urbanismo, novas técnicas construtivas, móveis e utensílios domésticos começaram a fazer parte do conhecimento disciplinar.

A crise do modelo do Movimento Moderno, associado à acelerada velocidade dos acontecimentos e às complexidades dos programas de projetos, determinou um retração da disciplina. Decisões que estavam no campo da arquitetura foram cedendo terreno a outras especialidades que determinam acerca das condições de habitação e desenvolvimento das cidades. Hoje, a disciplina tem perdido aquele caráter transformador e tem que lidar com uma multiplicidade de assessores que tomam conta dos empreendimentos de grande porte. A multidisciplinaridade é hoje o modo em que tendem a desenvolver se os projetos eliminando se cada vez mais a imagem do arquiteto criador, dominador da integralidade do projeto. A imagem de atelier é substituída pela imagem de empresa e os produtos de arquitetura tendem à satisfação de funcionalidade e de relação custo-benefício, deixando os valores de transcendência e significado cultural num segundo plano. Ao mesmo tempo, determinadas temáticas como a habitação de interesse social ou a grande produção de arquitetura para o mercado imobiliário são hoje consideradas uma subcategoria, sujeitas aos “padrões de mercado”, alheias ao caráter de fato cultural, embora constituam o maior volume construído e as que definem a imagem das cidades.

5- Cidades fragmentadas e excludentes

O atual paradigma econômico reflete se na imagem e no uso das nossas cidades. Elas viraram cidades fragmentadas e excludentes, fruto da sociedade neoliberal, que segrega grupos sociais e promove condutas individualistas. O uso do espaço público limita-se ao trânsito entre unidades autônomas e as diferencias sociais tornam-se cada vez mais evidentes e perigosas.

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A apropriação dos espaços de convivência e de encontros sociais nas cidades tendem a desaparecer, só utilizáveis em grandes eventos. A cidade tradicional, cidades de espaços definidos pela arquitetura que celebrava a vida social, foi substituída pela cidade de objetos, de edifícios cada dia mais auto-suficientes, que promovem a segregação dos grupos humanos e acentuam as diferencias sociais. O conceito “tantos itens de lazer” que hoje preenchem a publicidade dos empreendimentos imobiliários, definem o modelo de comportamento social e de cidade que estamos construindo. Os shoppings centers, talvez os maiores representantes do modelo neoliberal, transformaram se nas catedrais das nossas grandes cidades latino-americanas: local de passeio, convívio, encontro, lazer, diversão e, naturalmente, consumo. Nossos centros históricos, cujas estruturas de espaços urbanos favorecem os encontros e a vivencia urbana, transformam se a cada dia em shoppings a céu aberto para consumo de turistas.

A cidade, expressão cultural por excelência, hoje está sujeita a duas forças que atuam na sua definição: uma de caráter técnico, proveniente do planejamento urbano, e a outra de caráter artístico, proveniente da arquitetura.

O planejamento urbano, originalmente destinado a orientar o desenvolvimento das cidades, nos nossos contextos tende a perder aquele caráter e a atuar como simples contenção da especulação imobiliária, sem um modelo de cidade pré-estabelecido. Sua visão de cidade é genérica e abstrata: genérica porque oferece padrões de homogeneidade para uma realidade que é complexa e heterogenia, e abstrata porque baseia se em indicadores numéricos que muitas vezes não são condizentes com a realidade física do fato urbano.

A arquitetura atua modelando a cidade. Seu caráter é concreto e específico: trabalha com um terreno real, com todas suas particularidades e condicionamentos. Sua proposição modelística, a partir das reais circunstancias do lugar, entra em conflito muitas vezes com a visão generalizante e abstrata do planejamento urbano. O conceito de design urbano é aquele que tende a conciliar as duas visões. Da conciliação dessas duas forças, surge a forma das cidades que habitamos e que testemunham nossos valores culturais.

Estes conceitos promovem estes desafios: Vamos a continuar consolidando nossas cidades com edifícios cercados por muros e guaritas de segurança? Qual é a idéia de cidade que devemos discutir? Vamos a transformar nossos centros históricos em shoppings ao ar livre para o consumo de turistas? Vamos a continuar utilizando o espaço público só como local de transito do condomínio ao shopping, do shopping ao clube, do clube ao empresarial? Vamos a deixar tugurizar às áreas centrais das cidades só para a população de baixa renda? Vamos a continuar entupindo de carros as ruas das nossas cidades? Vamos a continuar fomentando a cidade fragmentada e excludente em nome da segurança? Qual é o modelo de cidade que devemos propor, que atenda às circunstancias contemporâneas e represente os valores da cultura social?

6- Globalização

A globalização é o fenômeno do nosso tempo. A consciência da pequenez da Terra a partir da conquista do espaço e o surpreendente avanço tecnológico acercaram e integraram as áreas mais distantes do planeta, num processo em que as periferias tendem a se desvanecer.O processo de globalização possui dois aspectos que influenciam na produção de arquitetura como fato cultural: um que podemos considerar negativo, que é a tendência a universalizar e uniformizar culturas e processos de produção e de conhecimento, e outro que podemos considerar positivo, que é a possibilidade de remarcar e valorizar as diversidades sociais, culturais e geográficas no contexto igualitário de oportunidades de divulgação que nos oferece a tecnologia contemporânea. Nesta situação, a consciência disciplinar flutua entre a

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alienação e assimilação de critérios de homologação e os desafios de pesquisar e se aprofundar nas características que marcam as particularidades culturais de cada lugar para integrá-las numa universalidade de meios de difusão e conhecimento.

7- Aquecimento global

O aquecimento global é a conseqüência do modelo de desenvolvimento baseado na insustentabilidade e no consumo ilimitado dos recursos naturais. Os resultados são tão graves que o debate contemporâneo está sendo orientado, em caráter de emergência, para novos modelos de cidades que considerem a sustentabilidade em relação aos seus assentamentos (as eco-metrópolis) e para uma arquitetura que incorpore as condicionantes climáticas, das que foi afastada na confiança ilimitada nos meios de conforto artificial.

O informe final do último Congresso da UIA em Torino, destaca que o modelo de desenvolvimento aplicado universalmente ao longo do Século XX provocou a maior expansão demográfica, urbana e econômica da historia, ao ponto de quebrar o ciclo bio-climático e o ecossistema planetário.

Neste contexto o conceito de sustentabilidade, assentado no desenvolvimento econômico com justiça social e preservação ambiental, torna se prioritário para corrigir as conseqüências de tal modelo: explosão demográfica, mega-cidades, destruição do patrimônio histórico, uniformização cultural e “ecocidio” planetário. Neste ponto, os desafios que partem da arquitetura e do urbanismo para reivindicar o planeta passam por assumir projetos em simbiose com a natureza, promover soluções com energias renováveis e gerar uma consciência cultural que inclua os direitos às diversidades estéticas, éticas e políticas.

No relativo à produção de arquitetura, o conceito de sustentabilidade torna-se prioritário. Existem dois critérios de sustentabilidade: um técnico e outro conceitual. O primeiro depende de recursos fornecidos pela evolução tecnológica, que aperfeiçoa e preserva o consumo dos recursos naturais. O segundo, (o conceitual) parte da própria arquitetura. Um bom projeto é, por natureza, sustentável. Adaptar os projetos aos requerimentos climáticos faz parte dos fundamentos da disciplina. Assumir a sustentabilidade conceitual é obrigação da nossa profissão. Não existem mais as desculpas para confiar a solução dos problemas de conforto na arquitetura exclusivamente nos meios artificiais.

8- Arquitetura-cultura e arquitetura-negocio

O modelo de desenvolvimento atual baseia se na economia de mercado, de base capitalista e objetivo consumista. A arquitetura, assim como as demais expressões artísticas, deixam de ser simples manifestações culturais e assumem a condição de objetos de consumo. Nos processos de projeto e de produção, os valores monetários e a relação custo – beneficio, tornam se prioridades que relegam outras condições próprias da disciplina a um afastado segundo plano.

As obras de arquitetura passam a ser apetecíveis objetos de consumo e de prestigio social, além das suas condições de manifestação cultural. A arquitetura como bem de cambio, objeto de negociação, investimento seguro, domina grande parte das construções que dão forma a nossas cidades. A conciliação dos interesses econômicos com as oportunidades de manifestação dos valores da nossa cultura constitui um dos maiores desafios da prática profissional.

Na conjunção da arquitetura negocio com a acelerada velocidade dos acontecimentos, com a retração disciplinar, com a condição de periferia, com as condições uniformizantes da

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globalização, com a visão generalizante e abstrata do planejamento urbano e com uma persistente injustiça social, podem encontrar se as causas dos conflitos e das crises que vivem nossas cidades.

9- Essências e aparências

A arquitetura possui uma forma conceitual, essencial, derivada das condições culturais e tipológicas; e uma forma física, aparente, derivada da sua materialização. A reflexão acerca da forma conceitual constitui o suporte para uma arquitetura de proposição, assentada em valores consagrados e com objetivos de transcendência e de significado cultural.

Nos acelerados processos de produção contemporâneos, a reflexão acerca da essência da arquitetura é comumente deixada de lado e a definição dos projetos é feita a partir de imagens pré-concebidas, invertendo o processo de conhecimento para atingir um resultado. A cultura das aparências tem substituído a cultura das essências na maior parte dos projetos, resultando mais importante a utilização de convincentes imagens de venda do que um aprofundamento nas pesquisas disciplinares. Nas obras construídas, as imagens valem mais do que a própria forma e uso da arquitetura, contrariando princípios universais e transcendentes do ato de projetar. Numa era midiática, os fotógrafos jogam um rol fundamental. As obras são recortadas e difundidas por revistas especializadas em excelentes composições fotográficas, esquecendo muitas vezes o rol social e cultural da arquitetura. No atual processo de retração disciplinar, os projetos são re-lidos por assessores de mercado, consultores imobiliários, programadores visuais, transformando idéias e propostas com intenções culturais em mercadorias de consumo imediato.

Na produção arquitetônica contemporânea, as imagens substituem os conceitos e a informação substitui o conhecimento. O resultado deste processo verifica se na degradação urbana das mega cidades, no valor efêmero de muitas construções e na persistência ou renascimento de estilos arquitetônicos ultrapassados convenientemente midiatizados e consagrados pela cultura do consumo.

Estas considerações que estou oferecendo surgem da própria experiência profissional, de anos de dedicação a projetar e construir. Vocês podem compartilhar, contrariar ou acrescentar outros fatores derivados da experiência de cada um de vocês. Do que sim tenho certeza é que o panorama contemporâneo é complexo e que o conceito de arquitetura como fato cultural tem que ser trabalhado, valorizado, difundido para esclarecer o verdadeiro significado que possui a arquitetura no contexto da produção cultural da humanidade.