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Transposição/transmutação/transfiguração Arquitetura rural Portugal>Brasil>Portugal Neide Marcondes Miguel Monteiro Manoel Bellotto Julho/2007 A imagem, a transfiguração, o retorno, a representação, o labirinto, o desenrolar dos nós, o fim da meada é perceber o desdobramento da identidade em identidades sucessivas. Importar, traduzir, construir o próprio. Tudo se desloca no espaço. Desenraizam-se as imagens dos lugares, o passado e o presente estão nos cantos do mundo. O homem transforma-se em portador de idéias e objetos; o local e o global mesclam-se; surgem as particularidades e re-universalidades. As realidades e os imaginários lançam-se em outros mundos; as identidades embaralham-se e se multiplicam em identificações. Na idéia do filósofo francês Marc Auge: quem é o outro? Na questão da sociedade colonizada, ainda ligada à distância da metrópole, é possível indagar, entre os brasileiros (Brasil) e o mundo colonizador (Portugal), que é o outro? O mundo global, territorial pode modular-se internacional, nacional ou regionalmente. Em lugar de módulos/idéias hierarquizadas, há a presença do descentramento. A revolução produz-se quando se reconhece a perda do centro, a ausência da ordem original e o desestabilizar da idéia de influência. Desmorona-se a visão de imposição e enseja-se a erupção, o ressurgimento de estilos e idéias, resultado da transculturação, provocando identificações sócio-locais sucessivas. “... Desvia-se e transfere-se. É a escala termométrica do instinto antropofágico...” (Manifesto Antropófago. Oswald de Andrade, 1928). “O Brasil é definitivamente o país da diversidade cultural e étnica, na procura do tempo em que se dignifiquem os Estados pela dimensão do heterogêneo e do que de particular têm os povos que os integram.” (Monteiro, 2005, p.167). A explosão do movimento de emigração maciça, da Europa para o Brasil, ocorreu no século XIX, a partir, em princípio, de 1880. Países como Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Inglaterra, Rússia, Polônia e, mais tardiamente, Japão, entre outros como escandinavos e árabes, tiveram suas composições sociais alteradas pelo deslocamento de grandes contingentes populacionais para a América Ibérica e Inglesa, com vistas à perspectiva promissora de empregos. Miguel Monteiro, em ensaio de sua autoria denominado Representações materiais do “brasileiro” e construção simbólica do retorno , publicado em 2005 no livro Turbulência Cultural em Cenários de Transição. O século XIX Ibero-Americano, lançado pela EDUSP, Editora da Universidade de

Transposição/transmutação/transfiguração Arquitetura rural … internacional... · “O Brasil é definitivamente o país da diversidade cultural e étnica, na procura do tempo

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Transposição/transmutação/transfiguração

Arquitetura rural Portugal>Brasil>Portugal

Neide Marcondes

Miguel Monteiro

Manoel Bellotto

Julho/2007

A imagem, a transfiguração, o retorno, a representação, o labirinto, o

desenrolar dos nós, o fim da meada é perceber o desdobramento da

identidade em identidades sucessivas.

Importar, traduzir, construir o próprio. Tudo se desloca no espaço.

Desenraizam-se as imagens dos lugares, o passado e o presente estão nos

cantos do mundo.

O homem transforma-se em portador de idéias e objetos; o local e o global

mesclam-se; surgem as particularidades e re-universalidades.

As realidades e os imaginários lançam-se em outros mundos; as identidades

embaralham-se e se multiplicam em identificações. Na idéia do filósofo

francês Marc Auge: quem é o outro? Na questão da sociedade colonizada,

ainda ligada à distância da metrópole, é possível indagar, entre os

brasileiros (Brasil) e o mundo colonizador (Portugal), que é o outro?

O mundo global, territorial pode modular-se internacional, nacional ou

regionalmente. Em lugar de módulos/idéias hierarquizadas, há a presença

do descentramento. A revolução produz-se quando se reconhece a perda do

centro, a ausência da ordem original e o desestabilizar da idéia de

influência. Desmorona-se a visão de imposição e enseja-se a erupção, o

ressurgimento de estilos e idéias, resultado da transculturação, provocando

identificações sócio-locais sucessivas.

“... Desvia-se e transfere-se. É a escala termométrica do instinto

antropofágico...” (Manifesto Antropófago. Oswald de Andrade, 1928).

“O Brasil é definitivamente o país da diversidade cultural e étnica, na

procura do tempo em que se dignifiquem os Estados pela dimensão do

heterogêneo e do que de particular têm os povos que os integram.”

(Monteiro, 2005, p.167).

A explosão do movimento de emigração maciça, da Europa para o Brasil,

ocorreu no século XIX, a partir, em princípio, de 1880. Países como

Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Inglaterra, Rússia, Polônia e,

mais tardiamente, Japão, entre outros como escandinavos e árabes, tiveram

suas composições sociais alteradas pelo deslocamento de grandes

contingentes populacionais para a América Ibérica e Inglesa, com vistas à

perspectiva promissora de empregos.

Miguel Monteiro, em ensaio de sua autoria denominado Representações

materiais do “brasileiro” e construção simbólica do retorno, publicado em

2005 no livro Turbulência Cultural em Cenários de Transição. O século

XIX Ibero-Americano, lançado pela EDUSP, Editora da Universidade de

São Paulo-USP, ressalta a emigração portuguesa para o Brasil, integrada

por indivíduos de condições sócio-econômicas desfavoráveis; destaca

também a situação dos chamados “Brasileiros”, os Torna-viagem, que, em

parte do século XIX e no início do século XX, regressavam especialmente

ao Norte de Portugal para o exercício de importante função econômica, o

que promovia o progresso agrícola, e para o desempenho de funções

políticas de destaque. Como afirma Monteiro, a casa do “Brasileiro de

torna-viagem” constituiu uma das representações mais evidentes do

retorno, quer na estrutura e fachada das edificações, quer nas novas

demarcações internas, dividindo espaços e pessoas, evidenciando novas

hierarquias e novas fronteiras sociais.

A Região Norte de Portugal recebeu as marcas do retorno, especialmente

nas formas arquitetônicas urbanas e rurais. Brasil foi o lugar propício para a

acumulação de fortuna e, como laboratório, para o estudo de ereção de

solares típicos do Minho, construção de novas vilas e ampliação de cidades.

Pesquisas anteriores sobre arquitetura rural brasileira, especificamente a

paulista, realizadas e publicadas por Neide Marcondes, foram estímulo para

que a Autora tomasse conhecimento, in loco, das formas arquitetônicas do

Norte de Portugal, especialmente na região de Fafe, o que a levou à

constatação das semelhanças e formas arquitetônicas transpostas,

registradas na documentação fotográfica de sua autoria.

(Fig. 1 Fazenda União, Capivari, São Paulo, Brasil)

A associação dos índices descritivos das construções indica o processo de

transposição e ajustamento, adaptação e semantização da arquitetura. A

riqueza de variedades, especialmente na arquitetura rural, sua tipologia, a

mão-de-obra têm significativo valor vernacular, quando então soluções

construtivas se perpetuam ao longo de muitas gerações, em processo lento

de mutação. Um exemplo, a Casa das Cortes, possivelmente datada do

século XVIII, localizada em Armil, região de Fafe, pertence a José de

Barros da Rocha Carneiro. O solar, de grande dignidade, caracteriza-se por

uma arquitetura plasticamente limpa e simples, tal como a paisagem em

que está inserido. Suas aberturas, portas e janelas, apresentam-se em linhas

retas. O granito circunda as aberturas, assim como o cunhal entre as

paredes. Segundo depoimento do proprietário, a escadaria deve ser

posterior à data de construção do solar. O acesso original seria próximo do

cunhal sudoeste da fachada poente.

(Figuras 2, 3 e 4 Casa das Cortes, Fafe, Portugal)

A propriedade conta com uma fonte, que apresenta um brasão destacando

as figuras da genealogia da Casa das Cortes. O imóvel foi classificado de

Valor Concelhio, por proposta da Câmara Municipal de Fafe, empenhada

na política de reconhecimento do seu Patrimônio Cultural.

(Fig.5 fonte brasonada)

Uma pequena capela alpendrada, datada de 1666, homenageando São

Pedro, integra o programa da propriedade.

(Fig.6 capela alpendrada)

No texto Imagem e Transfiguração: de Alpendres e Telhados (1999), Neide

Marcondes descreve e interpreta o alpendre como abrigo e proteção a um

acesso. É um teto suspenso, suportado por pilastras ou colunas, sobre

portas e aberturas. Alpendrar é de proveniência eminentemente ibérica. Sua

função específica é a de selecionar pessoas ou atividades. Vários exemplos

são encontrados no Brasil, como a Casa do Padre Ignácio, em Cotia, São

Paulo, e as capelas do Sítio Santo Antônio, em São Roque, São Paulo, e a

de Cachoeira, Bahia.

A imagem, no caso a forma arquitetônica, na sucessão dos estilos artísticos,

transfigura-se muitas vezes pela sensibilidade afetual e privilegia-se de

aspectos existenciais locais. A transposição das formas e a transfiguração

das imagens consagram, para Michel Maffesoli (1995), uma completa

realização na dionisíaca vida cotidiana e encontra nos objetos a modulação

da realidade individual ou coletiva; o estar-junto assume forma.

(Fig.7 os Autores do trabalho e os Proprietários no salão nobre do solar

Casa das Cortes)

O interior do solar apresenta salão nobre, com teto em madeira talhada, e

duas alcovas, entre elas um móvel com um pequeno altar, em madeira

talhada. As janelas do solar apresentam bancos chamados

“conversadeiras”, forma também muito comum nas igrejas e casas do

Brasil Colonial.

(Fig.8 os Autores do trabalho junto ao acesso de uma alcova, na Casa das

Cortes)

(Fig.9 janela do salão nobre do solar, com “conversadeiras”)

A morada possui contadores indo-portugueses e armários do século XVII,

assim como louças portuguesas e chinesas, preciosos elementos, como

afirma Monteiro, para o estudo da vida cotidiana dos fidalgos do Baixo

Minho.

(Fig.10 contador indo-português do salão nobre)

A imagem, resultado da cultura, é cultura, faz cultura, nomeia a divindade

do lar rural, o santo local da cidade, constitui a memória e exprime os

comportamentos humanos, em função de determinado meio, ao mesmo

tempo em que modela esse meio.

(Fig.11 nicho religioso, pintado por artistas da escola de Itu, Fazenda Porto

Feliz, São Paulo)

Cabe indagar como a produção do orbe ibérico peninsular foi divulgada nas

novas terras e como ocorreu a transposição para a América Portuguesa,

imperial na sua estrutura política dos Oitocentos e cercada por Nações-

Estados hispano-americanos, desconhecendo-se uns aos outros e voltados,

todos, para a Europa.

Desvia-se e transfere-se? A riqueza de variedade da arquitetura rural, sua

tipologia e a desconhecida mão-de-obra artesanal transferem-se de geração

a geração. O estilo cotidiano, com nada funcionando na lógica do “deve-

ser”, apóia-se no social e no local.

(Fig. 12, 13 aspectos da vida rural na região de Fafe)

Os povos galegos, na Idade Média, construíram uma arquitetura de

trabalho, denominada horreo, comum na maioria das propriedades rurais de

parte da atual Espanha. Trata-se de pequenos edifícios, que servem como

sequeiros e espigueiros, verdadeiros templetes apoiados sobre pilares e

pedra redonda, com a função de impedir o assalto de animais roedores que,

ao escalar as colunas, visavam o acesso ao cereal ali armazenado. Com

características semelhantes, existem os horreos asturianos, os

santanderinos, os dos Países Bascos, os de Navarra e os de regiões do Norte

de Portugal.

(Fig.14, 15, 16,17 sequeiros da região rural de Fafe)

De Portugal, referida arquitetura de trabalho é transposta e adaptada,

segundo materiais e mão-de-obra locais, a propriedades rurais brasileiras,

especialmente em fins do século XIX, como se observa na Fazenda São

José, em Piracicaba, São Paulo, Brasil.

(Fig.18, 19 sequeiro e planta de elaboração, Piracicaba, São Paulo)

O homem transforma-se em portador de objetos nômades; o local e o

global mesclam-se e surgem as particularidades e re-universalidades. As

realidades e os imaginários lançam-se em outros mundos; as identidades

embaralham-se e multiplicam-se em identificações.

Referências Bibliográficas

BELLOTTO, M. Emigração e transmigração cultural européia para o

Brasil no século XIX: a vertente paulista. In: Turbulência cultural

em cenários de transição. O século XIX ibero-americano. São

Paulo: Editora da USP, 2000

BELLOTTO, M. O desembocar em nós, outros. Transpor a nós, outros. In:

Labirintos e Nós: Imagem Ibérica em terras da América. São Paulo:

Editora Unesp, 1999

MAFFESOLI, M. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Editora

Artes & Ofício, 1995

MARCONDES, N. Entre Ville e Fazendas. São Paulo: Editora Arte &

Ciência, 1996

MARCONDES, N. Imagem e transfiguração: de alpendres e telhados,

a Teresa de Jesus e a João da Cruz. In: Labirintos e Nós: Imagem

Ibérica em terras da América. São Paulo: Editora da Unesp, 1999

MONTEIRO, M. Representações materiais do “brasileiro” e construção

simbólica do retorno. In: Turbulência cultural em cenários de

transição. O século XIX ibero-americano. São Paulo: Editora da

USP, 2000