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7/23/2019 IMAGINAO, SUSPENSO E TRANSMUTAO: RECONTEXTUALIZANDO TECNOLOGIAS EDUCACIONAIS E VIDEOGAME
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IMAGINAO, SUSPENSO E TRANSMUTAO: RECONTEXTUALIZANDOTECNOLOGIAS EDUCACIONAIS E VIDEOGAMES PEDAGGICOS1
Tiago da Mota e Silva2
Resumo:Em uma escola particular de So Paulo, jogos eletrnicos so inseridos no cotidiano das salasdo primeiro ano do Ensino Fundamental desde o primeiro semestre de 2014. Trata-se de um
plano pedaggico que introduz tablets a todos os ciclos de ensino. O artigo se volta apropriao da tecnologia engendrada pelas crianas: enquanto brinquedo. Argumenta-se que
estas concebem trs esforos de maneira complexa e difusa: os esforos de imaginao, desuspenso e de transmutao. Chega-se ao trio aps observaes em cinco salas com, aotodo, 142 alunos , grupos de discusso com as crianas e com professoras e 101 desenhosfeitos pelos estudantes sobre aquilo que associavam ao aparelho. Evoca-se o conceito de
brinquedo de Walter Benjamin, bem como os pensadores da cultura Johan Huizinga e IvanBystrina.
Palavras-chave:Comunicao. Tecnologias Educacionais. Jogos Eletrnicos. GamesPedaggicos. Ambientes Comunicacionais.
Introduo: O projeto pedaggico com tablets
Desde o incio do ano letivo de 2014, estudantes do primeiro ano do Ensino
Fundamental de uma escola particular de So Paulo3contam com um recurso tecnolgico
com crescente capilaridade na educao4: o tablet. Trata-se de um projeto tecnolgico-
pedaggico em vigor desde 2011, cujo planejamento consiste em disp-los gradativamente
para todos os ciclos de ensino.
Diferentemente do praticado com adolescentes no Ensino Mdio5, os alunos do
primeiro ano do Ensino Fundamental tm acesso aos aparelhos somente durante o curso das
1Trabalho apresentado ao 11 Interprogramas de Mestrado, realizado na Faculdade Csper Lbero, entre os dias6 e 7 de Novembro de 2015.2Mestrando no Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Semitica da Pontifcia Universidade Catlicade So Paulo (PPGCOS/PUC-SP). E-mail: [email protected] O colgio em questo preferiu no ter seu nome e o nome de seus funcionrios divulgados em quaisquer
publicaes subsequentes da pesquisa. Em 2014, 227 alunos estavam matriculados nas 14 turmas (A-N) doprimeiro ano do ensino fundamental. Naquele mesmo ano, a mensalidade do referido colgio para o EnsinoFundamental I estava em torno de R$ 1.900,00. Em 2015, um reajuste elevou-a ao custo de R$ 2.100,00.4
Em 15 colgios particulares da cidade em faixa de preo semelhante, 10 aplicam tablets nas salas de aula empelo menos um ciclo de ensino. Doze dispem dos aparelhos para ao menos professores e funcionrios.5Para o estudante do Ensino Mdio, o tablet passa a estar sob o cuidado do adolescente, podendo este lev-lo
para sua casa. Esto disponibilizados nos aparelhos, para estes casos, tarefas e atividades complementares
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aulas, em dias e horrios agendados pelas professoras e pela coordenao. A hora do tablet,
como as crianas costumam dizer, inserida no perodo de atividades rotativas: os alunos so
divididos em dois ou trs grupos, cada qual com algum tipo de atividade, como lies de
portugus ou matemtica, jogos analgicos e/ou o uso do tablet, entre outras. De meia em
meia hora, aproximadamente, os grupos trocam de atividades entre si.
Destaca-se a aplicao em sala de jogos para fins pedaggicos. Alguns destes
aplicativos podem no ser considerados como pedaggicos por finalidade. o caso de Cut
The Rope,um game comercial muito popular entre as crianas. Todavia, h outros games
desenvolvidos e distribudos com fins pedaggicos, como com o jogo O Mistrio dos
Sonhos, da empresa Xmile Learning.
Mas h algo que um projeto pedaggico ou um game design no podem prever: a
apropriao que as crianas fazem do aparelho. Tampouco passvel de previso o modo
como esta apropriao alterar o ambiente comunicacional de seu entorno. Esta pesquisa 6se
debruou na observao desses modos de apropriao e, em uma perspectiva ecolgica de
comunicao, atentou-se para a ambincia comunicacional e suas peculariedades quando da
introduo deste outro elemento miditico em sala, o tablet.
A pesquisa concentrou as observaes em torno da criana que toma o tablet para si.
Destas observaes, chegou-se a um comum da apropriao; ou ainda, chegou-se a um
arcaico dos modos de apropriao: o brincar. As crianas fundamentalmente brincam com os
tablets, tornando-os brinquedos. A partir desta chave de interpretao do fenmeno, d-se a
compreenso daquilo que configura esta ambincia. Argumenta-se que este tipo de
apropriao pelo brincar engendra trs esforos que, difusos e correlacionados, criam um
constante fator de transformaes da sala de aula: os esforos de suspenso, imaginao e
desenvolvidas pelos respectivos professores. Todavia, por meio de um software de monitoramento, o colgiotem conhecimento dos contedos acessados pelos alunos bem como o tempo dos acessos.6Foram aproximadamente dois meses de visitas escola, de 06 de Outubro de 2014 a 03 de dezembro daquelemesmo ano, totalizando em torno de 44 horas de observaes. Rotineiramente, frequentou-se a escola pelasmanhs de segunda, quarta e sexta-feira em cinco diferentes salas: as turmas B (30 alunos), C (29), F (30), G(25) e H (28), com, ao todo, 142 estudantes. Complementando o contedo recolhido dos eventos observados todos registrados em um dirio de pesquisa , tambm se recorreu prtica de grupos focais com as crianas.Em cada uma das salas, separaram-se os alunos em grupos menores para que eles conversassem sobre o tablet eatividade com aparelhos. O pesquisador assumiu o papel de mediador, levantando tpicos para que as crianasdiscutissem sobre. Estratgia metodolgica semelhante tambm foi adotada para um grupo focal com as
professoras das salas citadas, com durao de aproximadamente 40 minutos. Foram coletados tambm 101desenhos das crianas sobre o seu cotidiano na escola e com o tablet.
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transmutao. Este estudo tambm amparado na categoria de anlise de crculo mgico,
introduzida por Johan Huizinga (2010, p. 16).
Tablet, um brinquedo?
Em trabalhos anteriores (SILVA, 2014a; 2014b) houve a oportunidade de explanar
sobre a relao arcaica do ldico com as tecnologias, em geral, a partir dos conceitos de
brinquedo, de jogo e de aparelho em Vilm Flusser (2008). Nesta ocasio, porm, voltar-se-
o estudo criana e seus modos de apropriao.
Em um primeiro instante, dizer que o tablet um brinquedo nas mos da crianaaparenta ser uma constatao bvia. A excitao geral com que elas recebem o aparelho,
geralmente associada com sinais de divertimento, e a facilidade intuitiva com a qual o
manipulam levam a crer que, para elas, a atividade com tablets no passa de uma brincadeira.
Todavia, esconde-se por baixo disso uma complexa e arcaica fora, a fora primordial do
ldico, que, para Ivan Bystrina (1990, p.1), uma das estruturas fundamentais da cultura.
Segundo o semioticista, o jogo que, para este contexto, pode ser entendido tambm como
brincadeirafaz parte das motivaes da natura humana pela busca do novo, inicialmentecomo uma forma mimtica de apreender o mundo na qual o humano atrado por uma fora
mgica (BYSTRINA, 1990, p. 1), mas se desenvolve em expresses culturais mais
complexas, como o ritual, a mscara e a arte. J Huizinga (2010) argumenta ser a espcie
humana essencialmente ldica, e que, pelas estruturas do jogo, esta capaz de criar e dar
novos significados ao mundo em seu redor o que o autor chama de funo significante
(HUIZINGA, 2010, p. 4) do ldico; isto , sempre h algo em jogo (in-lusio) que encerra
em si determinados significados.
Ambas estas interpretaes de Huizinga e Bystrina so confirmadas pela etologia,
conforme desenvolve Boris Cyrulnik (1997). Segundo a ideia filogentica, a evoluo das
espcies estabelece um processo de separao-individualizao (CYRULNIK, 1997, p.
227). Conforme o organismo se desprende de um contexto imediato na sua relao com o
ambiente, percebe-se a formao de um mundo interiorizado. A gordura em espcies
evoludas j permite que guardem energia, no precisando consumir alimentos h todo tempo,
e a homeotermia permite a certos organismos manter a temperatura corporal mesmo quando a
do ambiente varia. Assim, as espcies que desenvolvem formas de separar-se do imediato
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passam a segregar sono rpido, a dormir, e, com isso, conseguem manter em si a memria da
espcie e de sua prpria formao em seus sonhos. O lbulo pr-frontal permite a elas
desenvolver representaes sem relao com a situao presente, e o sonho as esboa em
imagens e emoes. Posteriormente, o jogo desempenha seu papel em animais cujo sistema
nervoso desenvolve circuitos do prazer e da descontextualizao (CYRULNIK, 1997, p. 228).
Enquanto o sonho interioriza o mundo, o jogo pe na realidade exterior o prazer da
aprendizagem e da familiarizao (CYRULNIK, 1997, p. 232). Portanto, Cyrulnik associa
sonho e jogo e os descreve em processos de aprendizagem. So os animais mais brincalhes
os capazes de ter sonhos mais durveis: o gato fabrica 200 minutos de sonhos por 24 horas de
sono paradoxal, por fragmentos de seis minutos, e o homem segrega 100 minutos por dia em
segmentos de 20 minutos de sonhos. Para o etlogo, o jogo age sobre o mundo externo para
ajustar o mundo interno (CYRULNIK, 1997, p. 233). Brincar ou jogar conecta, assim, esses
dois mundos, externa desejos ainda no conscientes e d prazer a motivaes internas,
tornando-as tangveis.
Chega-se a um dos pontos cruciais da compreenso do tablet como brinquedo: no se
trata to somente de uma estratgia de diverso por parte das crianas, mas de um arcaico
modo de familiarizao daquele novo mundo que o tablet e dos mundos abstratos que sua
tela permite visualizar enquanto janela (BAITELLO, 2012). Neste sentido, a apropriao da
tecnologia como brinquedo se revela, ao contrrio do que indica o senso comum,
profundamente sria. Entende-se, ento, que para pensar a insero de tecnologias para
crianas, especialmente no ambiente escolar, necessria a compreenso da forma de
apropriao de mundo que a infncia engendra. Em especfico, a faixa etria das crianas que
participaram desta pesquisa, entre 6 e 7 anos, corresponde frtil etapa de comportamentos
mimticos que os estudiosos classificam por idade do brincar (BERGER, 2003). Brincandoe, portanto, exercendo suas capacidades mimticas, a criana desta poca se desenvolve nos
mbitos biossocial, cognitivo e psicossocial apropria-se do mundo. Tambm nesta fase de
alfabetizao, constitui-se o chamado brincar simblico (SABOIA, 2011), ou o brincar da
representaoo como se.
Mas tambm ao dizer que a criana brinca com seu tablet ou com outro aparato de sua
gerao, esconde-se, no senso comum, certa inteno depreciadora que visa desqualificar no
o aparelho, mas os usos que a infncia faz deste. Pois, neste senso comum, o brincar e os
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brinquedos pertencem a um campo de atividades e objetos tidos como no-srios, em
oposio seriedade do trabalho. Assim, o mundo da criana, o infantil, o no-maduro, se
coloca em oposio ao mundo adulto, maduro e srio. Sobre esta falsa oposio, Baitello
(1999, p. 56-57) argumenta que a percepo binria e dicotmica do mundo a mesma que
tambm ope um universo infantil da brincadeira e um universo adulto, um no-srio e o
outro da seriedade. Por esta razo, o discurso do brincar com tablet pode , a depender de
quem o propaga, sugerir que o uso feito das coisas pelas crianas no pode ser levado a
srio. A mesma raiz desta percepo binria pode levar a outro caminho perigoso na
educao miditica e tecnolgica das crianas: a de impor a elas um mundo adulto. Isso
implicaria na pressuposio de que a funo da escola ao inserir os tablets em sala seria a de
ensinar o conjunto de habilidades tcnicas para manuse-lo: a criana brinca com o tablet
agora para aprender a trabalhar com o ele no futuro.Foi Dietmar Kamper (1998) quem
discutiu esta relao entre brincadeira e trabalho. Kamper defende que os entendimentos do
brinquedo, das brincadeiras e dos jogos como preparatrios para a vida adulta, ou
preparatrios para o trabalho, so definies que apenas apreendem de forma muito
secundria o que realmente est acontecendo na atividade ldica (KAMPER, 1998, p. 28).
Apontam, tambm, que o avano do trabalho enquanto culto na cultura reduz e homogeneza
a experincia simblica humana que, em grande parte, vem enraizada em estruturas ldicas.
Aqui se alcana outro ponto deste estudo: o brinquedo um confronto; logo, o tablet
como brinquedo em sala de aula tambm confronto. Sobretudo, confronto entre este mundo
infantil e do brincar com o mundo adulto do trabalho. Baitello (1999) traz como exemplo
disso a exposio de bonecos de militares com uniformes nazistas do museu do brinquedo de
Copenhagen. A partir destas figuras, o autor indaga: so os adultos que imaginam as crianas
e lhes impem valores nos brinquedos que desenham e produzem, ou so as crianas queimaginam os adultos por meio dos brinquedos? Para ele, o brinquedo se torna parte de um
procedimento da dicotomia adulto-infantil que pretende encurtar a passagem entre os lados
comumente entendidos enquanto opostos: para deixar o faz-de conta e chegar ao para-
valer (BAITELLO, 1999, p. 54). Esta imposio do mundo adulto se apresenta nos
brinquedos comerciais: laptops infantis, cozinhas cor-de-rosa, etc.
Mas criana no necessariamente aceita esta imposio do imaginrio adulto, e neste
aspecto que se d o confronto. Ela, a criana, capaz de encontrar suas prprias formas de,
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brincando, subverter uma determinada ordem de coisas em prol de suas motivaes ldicas e
essencialmente fruitivas. Ela capaz de, em um processo complexo e difuso, projetar o seu
mundo e, tambm, o seu imaginrio sobre os objetos. D-se, assim, o confronto entre aquilo
que o adulto impe criana em objetos e o uso imaginativo que estas os do. Deste modo, o
que define um brinquedo est menos na inteno e mais no uso que lhe dadoe este outro
ponto crucial. Para a Comunicao, isto implicar tambm na importante diferenciao entre
os mediae os usos dos media.
Em seus ensaios sobre a infncia, Walter Benjamin (2014) defende ser a criana o
agente capaz de tornar algo um brinquedo, projetando sobre um objeto uma inteno ldica.
Hoje talvez se possa esperar uma superao efetiva daquele equvoco bsico queacreditava ser a brincadeira da criana determinada pelo contedo imaginrio dobrinquedo quando, na verdade, d-se o contrrio. A criana quer puxar alguma coisa etornar-se cavalo, quer brincar com areia e torna-se padeiro, quer esconder-se e torna-se bandido ou guarda. (BENJAMIN, 2014, p. 93)
Por exemplo, o uso de um cabo de vassoura qualquer no foi planejado com a inteno
da brincadeira, mas pode ser apropriado para se tornar cavalo ou espada. A apropriao que
torna algo brinquedo no , portanto, funcional, mas fruitiva. Continuando este raciocnio,
Benjamin conclui:
[..] h algo que no pode ser esquecido: jamais so adultos que executam a correomais eficaz dos brinquedossejam eles pedagogos, fabricantes ou literatos , mas ascrianas mesmas, no prprio ato de brincar. Uma vez extraviada, quebrada econsertada, mesmo a boneca mais principesca transforma-se numa eficiente camaradaproletria na comuna ldica das crianas. (BENJAMIN, 2014, p. 87)
Ainda resta compreender o processo que torna o objeto um brinquedo. Este passa pela
convergncia, enfim, dos trs esforos do brincar j citados: imaginao, suspenso e
transmutao. Chamamos-os de esforos por no seremdados, por exigirem uma inteno
daquele que brinca. A formulao destes esforos neste artigo foi inspirada pela leitura de
Benjamin bem como de outros tericos do ldico, como Huizinga e Caillois (1990), Salen &
Zimmerman (2004), Frasca (2007), Juul (2011), Suits (2005) e Sutton-Smith (2001). No
exemplo da criana que puxa para si um cabo de vassoura para mont-lo como cavalo, a
apropriao da vara uma ao hipottica em que se podem notar todos trs esforos. Em um
esforo de imaginao, a criana imagina o cavalo, com todo o seu repertrio imaginrio de
cavalo, que carrega sobre si no s a aparncia do animal, mas o contedo simblico arcaico
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dessa imagem. A imagem projetada sobre a madeira, dando-se o processo da transmutao,
que torna uma coisa em outra; no caso, tornar o cabo de vassoura em cavalo e o cabo de
vassoura cavalo. Por fim, o esforo de suspenso aquele capaz de ignorar o tangvel ou a
aparente realidade para imergir no universo daquela situao imaginada. No importa se
aquilo um cabo de vassoura e no um cavalo de verdade, no importa se o quintal de casa
no seja um vasto campo de verdade: a criana voluntariamente suspende uma ordem de
coisas para embarcar em outra ordem de coisas. Assim, percebe-se outro ponto importante
para pensar o tablet como brinquedo: mais do que um objeto, neste processo o brinquedo
imagem. E, finalmente, esses esforos todos passam por um agir do corpo: preciso que a
criana puxe, agarre, monte e aja sobre o cabo para que seu movimento o faa tornar-se
cavalo (WULF, 2005).Conforme as observaes feitas pela pesquisa, a apropriao das
crianas em termos gerais, pois estes so elementos comuns de todas as turmas carrega
estes pontos aqui descritos. Por meio de uma explorao fruitiva das potencialidades do
aparelho, as crianas desmontram suas capacidades mimticas de incorpor-las ao seu mundo
A escola impe a presena do tablet em sala, e j aqui se d uma forma de confronto,
explicitado em momentos em que uma criana no quer usar o aparelho. Em uma ocasio
especfica, uma delas, uma garota, recusou-se a abrir o jogo O Mistrio dos Sonhos ou
qualquer outro app durante o uso. Depois de muita insistncia, a professora lhe deu uma
bronca e decretou, como castigo, que a pequena no participaria da hora do parquinho com os
colegasironicamente, ela ficaria na sala, com o tablet.
Alm disso, fala-se de um modelo de aparelho comercial, fabricado por uma grande
fabricante, e no pensada para o uso infantil. Neste sentido, o tablet se encontra, hoje, no
limiar entre os dois universos, adulto e infantil, da brincadeira e do trabalho, e se coloca,
enquanto brinquedo nas mos das crianas, como o ponto de confronto em sala de aula: de umlado, as professores tentam impor um tipo de uso que ora aceito pelas crianas aquele
sentado em carteiras, em silncio , mas tambm , na maioria das vezes, negado e
ressignificado por elasem grupos e em algazarra.
Imaginao, Suspenso e Transmutao
Johan Huizinga fundamental para o entendimento deste trio graas ao seu conceito
de crculo mgico. Este parte da concepo de que o jogo e a brincadeira lanam sobre ns
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um feitio (HUIZINGA, 2010, p. 13), algo fascinante e cativante. Para Huizinga (2010, p.
13), Reina dentro do domnio do jogo uma ordem especfica e absoluta. E aqui chegamos a
sua outra caracterstica, mais positiva ainda: ele cria ordem e ordem. Neste trecho est
parte central da concepo dos crculos mgicos. Trata-se, sobretudo, de lugares sagrados
(HUIZINGA, 2010, p. 13), o que aproxima, segundo Huizinga, o ldico do culto. Este crculo
demarcado em espao e em tempo (HUIZINGA 2010, p. 12-13) e as regras que o regem
(HUIZINGA, 2010, p. 14) ainda que flexveis e negociveis, no caso das brincadeiras
infantis, ou rgidas e inegociveis, no caso do culto so capazes de criar uma determinada
ordem de coisas, e ser ordem, de modo a formar uma evaso da vida real (HUIZINGA,
2010, p. 11). Esta outra ordem de coisas capaz de [...] a qualquer momento, de absorver
inteiramente o jogador (HUIZINGA, 2010, p. 11). Caillois ir acrescentar a esta concepo
uma noo de fico, ou de a brincadeira ser atividade fictcia, acompanhada de uma
conscincia especfica de uma realidade outra (CAILLOIS, 1990, p. 30).
Por crculos mgicos,o medievalista Huzinga faz referncia s prticas pags que
ainda exercem influncia em religies neopags, como a Wicca. O crculo mgico , nestes
contextos, o espao delimitado pelo feiticeiro para realizar magia, sendo desenhado no cho
com giz ou feito com o movimento das mos. Seu objetivo o de manter espritos ou, como
o caso Wicca, manter a energia de um ritual. O crculo mgico de Huizinga , portanto, o
espao do ritual, que encontra no ldico sua estrutura fundamental. Pois, na brincadeira ou no
jogo, demarca-se o espao onde se d um ato mgicocomo o campo de futebol ou o quintal
da casa. Na cultura, o ato mgico aquele que imagina coisas abstratas (nomes, nmeros,
labirintos, criaturas mitolgicas) e as traz ou pretende traz-las a uma realidade, em forma de
poderosas imagens (WULF, 2005, p. 133), e, assim, tornam objetos, animais e outros
elementos em relquias e bestas do imaginrio. De tal forma, a transmutao de cabo devassoura para cavalo um ato mgico, que traz para uma realidade uma poderosa imagem,
projetando-a sobre um objeto, intenao tambm presente no crculo mgico pago.
Para entender o principio de transmutaoe complementando o conceito de crculo
mgico, preciso tambm recorrer, ainda que brevemente, ao conhecimento alqumico o
qual no era estranho para Huizinga. Do latim transmutattio, o princpio da transmutao ,
para os alquimistas, o de lidar com metais para transform-los em ouro. Como para os
alquimistas o material indissocivel do espiritual, a transmutao de materias tornou-se,
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simbolicamente, tambm a transmutao do esprito, o seu aprimoramento para entrar em
harmonia com o cosmo (LIMA; SILVA, 2003). Neste sentido, o ato mgico e a transmutao
so expresses culturalmente prximas, se no semelhantes: tornam uma coisa em outra coisa.
A alquimia tem o seu prprio crculo mgico, a Mesa Alqumica, o local para operar as
transmutaes.
Logo, os crculos mgicos de Huizinga so compreensveis como o lugares
demarcados onde, ao brincarmos ou jogarmos, poderosas imagens so projetadas de modo a
transmutar a realidade aparente e torn-la uma realidade suspensa. Por suspenso, enfim,
entende-se que aquele indivduo imerso no crculo engendra um esforo que o suspende da
realidade que lhe externa, no sendo mais aquela primeira realidade, por assim dizer, de seu
interesse perceptivo e simblico. Dentro do crculo h uma ordem prpria, regida por
determinadas regrasde modo que, ao romper com a suspenso ou ao no aceitar tais regras
como reais, rompe-se com o crculo. Assim, compreendem-se os trs esforos: imaginao,
transmutao e suspenso.
Sobre um objeto qualquer, estes trs esforos engendram um processo capaz de torn-
lo brinquedo. No estranho pensar que tal processo ocorre com o tablet em sala de aula. A
comear pela prpria escola, uma expresso institucional de um crculo mgico: dentro de um
espao e tempo bem demarcadoso prdio da escola e suas salas, os perodos de aula, reina
uma ordem prpria, regida por regras prprias, que se coloca como paralela ordem de coisas
que lhe so externa graas um estado especfico de mente, como sugere Frasca (2007, p. 52)
na sua interpretao do conceito de crculo mgico. Assim, comea-se a entender a escola,
primeiro, como formadora de suspenso. Porm, com os tablets, h outro estado da mente que
continha elementos incomuns ao cotidiano da sala. Isto foi notado, principalmente, a partir do
contraste comparativo que havia entre os grupos de alunos com tablets e os demais grupos daatividade rotativa. Outras atividades pressupunham uma ateno maior das professoras aos
alunos, seja lies de portugus ou matemtica ou, em diferente grau, jogos e brinquedos
analgicos. Os grupos com tablets no recebiam a mesma ateno. De um lado, as professoras
parecem no sentir a necessidade de dar ateno aos alunos com aparelhos durante as aulas.
Algumas chegaram a afirmar que, nestas circunstncias, os alunos simplesmente no precisam
delas. Na ocasio em que todas as crianas usaram tablet ao memso tempo, fora das
atividades rotativas, uma professora comentou: Eu mesentia um pouco intil, sabe?. Outra,
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sobre a mesma ocasio, afirmou: como se no houvesse crianas na sala, tamanho o
silncio. Raramente as professoras vo at as crianas com tablets para acompanh-las. E,
por outro lado, raramente as crianas com tablets procuram pelas professoras. Eles s vm
quando esto com dificuldades no login [no jogo O Mistrio dos Sonhos] ou quando o tablet
pifa, comenta uma educadora.
Em um dos dias de visita, uma criana passou mal e vomitou em sala. Rapidamente,
criou-se uma confuso: as demais colegas se levantaram, ameaaram golfar tambm. Todas
com exceo do grupo ao tablet: atentos ao jogo, com olhos enfeitiados pelas telas e ouvidos
selados por fones, estes demoraram a perceber a movimentao em sala. S levantaram suas
cabeas para ver o que acontecia quando o incmodo odor subiu pelas suas narinas. A
interpretao para um acontecimento como este parte da compreenso de uma suspenso,
primeiramente, sensorial o tablet monopoliza o interesse perceptivo das crianas,
principalmente pela viso. Nos grupos focais com elas, perguntou-se em todas as ocasies a
simples questo: vocs preferem brincar com tablet em casa ou na escola?7 As respostas
variavam entre as opes, mas no dependiam tanto das caractersticas do ambiente casa, em
si, ou do ambiente escola, em si. Prefiro em casa porque l tem mais jogos, disse uma
criana. Prefiro na escola porque aqui tem O Mistrio dos Sonhos, disse outra. A resposta
dependia mais dos tipos de jogos que elas disponham em cada situao. Este um indcio de
que, a partir de uma suspenso sensorial, h no uso do tablet um potencial de suspender, para
a criana, todo ambiente em seu entorno, dando-se o esforo de suspenso, que pressupe um
querer suspender-se. Tal indcio passou a ser confirmado por desenhos como este:
7Destacando que todas as crianas das turmas, sem exceo, ou tm um tablets em casa para seu uso prprio ouusam, em seus lares, os aparelhos de familiares.
Figura 1: Criana desenha a si prpria usando tablet.
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Na figura acima, a ideia de um esforo de suspenso se evidencia neste imaginrio do
tablet externalizado pela criana em seu desenho: ela, com fones e sentada, se encontra,
sorrindo, jogando em um vazio. De modo impressionante, h diversos outros exemplos
similares a este.
A suspenso do espao conduz a outra percepo dos efeitos do tablet tambm em seu
esforo de transmutao. O espao e tempo da sala de aula se transmuta em espao e tempo
do tablet. Primeiro porque o tablet centrazila trs de seus sentidos (viso, audio e tato), o
que diminui consideravelmente a percepo do espao. Isso leva a uma reduo da sala, de
modo que cada criana se volta ao seu crculo mgico com tablet ou, quando muito, ao crculo
mgico formado por um grupo de crianas. Necessariamente, a formao desses crculos
mgicos pode anular, por assim dizer, o grande crculo que a prpria sala ou a escola, e isso
fica mais evidente no papel da professora nesta nova configurao: ela no mais detm a
ateno dos alunos ao ponto de, como visto no depoimento anterior, se sentir desnecessria. E
este tempo do uso do tablet reconfigura, tambm, a percepo da passagem de tempo das
crianas, como uma forma de tempo outro e separado do cotidiano das aulas. Esses trinta
minutos de uso do tablet correspondem, ento, a hora do tablet, que sincroniza o cotidiano
daquele dia e cuja percepo aparenta abreviar a passagem do tempo a criana solta a
pergunta j acabou?!. Mas, ainda que tempo e espao estejam relacionados, no que tange a
questo do tempo se mostraria necessria uma pesquisa emprica especfica para confirmar
tais hipteses.
Todavia, h indcios para afirmar haver um esforo de transmutao tambm no
campo do imaginrio, estando tambm intimamente ligado ao esforo de imaginao tantoquanto ao de suspenso. Como citado, o ato da imaginao enquanto ato mgico aquele
que projeta poderosas imagens e as coloca em fluxo entre endgeno e exgeno. Em
depoimentos das crianas, indcios de atos imaginativos em relao ao tablet se davam
quando elas descreviam os avatares do jogo pedaggico O Mistrio dos Sonhos.Um deles
comentou: nome do meu guardio [o avatar] Tuti. Ele tem uma cabea de frutas porque
descendente das frutas. Curioso, o pesquisador foi at o jogo para descobrir mais sobre Tuti.
Conforme enredo dado pelo jogo, o personagem faz parte de uma tribo de membros muito
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parecidos fisicamente e, para se distinguirem, cada um usa um capacete feito de frutas
diferentes. No era nada daquilo que o menino havia descrito, mas no mais importa.
Exemplos como esse se repetem, no drago verdinho, no pompom ou na bailarina que
pula com um pauzinho. So indcios de que as crianas so capazes de reelaborar as imagens
exgenas recebidas pela tela do tablet e projetar ainda outras imagens sobre estas a partir de
seu contedo imagtico interior, em um entre o exgeno e o endgeno. No entanto, mais uma
vez, tal esforo ficou evidente nos desenhos, dos quais o seguinte:
Na figura acima, uma criana desenha uma verso para o personagem do jogo O
Mistrio dos Sonhos, o Blurp, um polvinho roxo e sorridente. Nesta outra roupagem, Blurp
ganha armas ensanguentadas, e, segundo a prpria criana, uma calda com lminas afiadas.
Acima dele, um fantasma, ambos sorridentes, em contraste com a violncia da imagem. H
muito o que dizer sobre este desenho, ao ponto de este merecer um artigo inteiro para si. Por
ora, percebeu-se nele trs grandes aspectos: a presena de imaginrio do regime norturno
(DURRAND, 2012), um carter fbico arcacaico das imagens com o qual a criana est em
contato (BAITELLO, 2005) e, ainda, um complexo jogo entre ameaa e desmontagem daameaa flagrado pelos sorrisos dos personagens. Todavia, nesta oportunidade, volta-se apenas
capacidade do ato imaginativo desta criana. Diferentemente de outros desenhos, em que
apenas foram reproduzidos os padres e formatos vindos da tela do tablet, este externaliza um
repertrio imagtico interior da criana em questo, que, por sua vez, passa a tambm ser
influenciado pelo repertrio imagtico exgeno adivindo das telas dos aparelhos. Deste fluxo
entre e exgeno e endgeno, apresenta-se o aqui chamado esforo de imaginao, que, neste
caso, em um ato mgico, trouxe para a presena um Blurp violento e sanguinolento. Esta
Figura 2: Criana reinterpreta em desenho
personagens do jogo O Mistrio dos Sonhos.
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violncia explcita da figura , sem dvida, desconcertante.Pode indiciar, porm, que este
aluno est muito mais em contato com o arcaico das imagens do que seus colegas, podendo,
assim, reinterpret-las. Da perspectiva do imaginrio, este poderoso ato imaginativo tambm
engendra um poderoso esforo de transmutao, em que personagens de jogos passam a ser
coisas outras. Neste esforo, at mesmo o tablet se transmuta: ele no to somente um
instrumento de trabalho, mas um aparelho que abriga monstros e fantasmas.
Consideraes Finais
Na escola onde se d a pesquisa que originou este artigo, notou-se que, muito embora
haja um esforo em integrar tecnologias da informao no cotidiano das aulas, o projeto
tecnolgico-pedaggico ainda precisa se inclinar para dar ateno aos usos que as crianas
fazem dos tablets. O mesmo, talvez, valha para outros projetos semelhantes. Tendo o trio
imaginao-suspenso-transmutao como chave de anlise para o uso do aparelho
engendrada por este grupo de crianas, descobre-se ser a criana a principal agente desta
apropriao. Sendo o tablet um brinquedo, importa menos o uso que a escola busca impor ou
mesmo o tipo de uso que o prprio aparelho incentiva com seu design. Importa mais o uso
que a criana prope a estas tecnologias.
Posto isto, levantam-se questes problemticas quanto implementao dos aparelhos
em sala de aula, cada qual relacionada a um dos trs esforos supracitados, que, por sua vez,
esto correlacionados entre si. Sobre a suspenso, resta questionar se esta forma de suspender-
se , sempre, propicia para o desenvolvimento da criana, especialmente na faixa etria
pesquisada, em que se desenvolve, mimeticamente, os mecanismo de. Com os tablets, corre-
se o risco de limitar o interesse perceptivo da criana ao ponto de o crculo mgico ali
formado excluir seus semelhantes. Neste sentido, a separao da hora do tablet interessante, pois no mantm os estudantes em perodos longos de suspenso. Por outro lado,
a escola pode reforar a suspenso graas sua configurao tradicional: alunos sentados,
enfileirados em carteiras. Nesta posio, a suspenso sensorial e perceptiva somente se
intensifica, pois o corpo sentado se inclina para o tablet, torna-se um corpo sedado
(BAITELLO, 2012). Mais uma vez, preciso estar atento aos usos que os pequenos propem:
em vez de em carteiras, muitas vezes eles preferem ir ao cho, e l, quando no so
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reprimidos pelas professoras, se ajuntam em grupos e dividem as experincias, abrindo-se
para o outro.
A maneira pela qual se apropria do aparelho em sala pode estar transmutando os
significados do que , para a criana, a escola. Isto no , a princpio, algo bom ou ruim. Mas
pede que educadores estejam atentos a que novos significados so estes. Estas transmutaes
se encontram invariavelmente relacionadas fora imaginativa da criana. Tendo o
conhecimento do esforo de imaginao envolvido neste modo de apropriao, faz-se
necessrios estudos sobre o impacto das imagens exgenas pululantes advindas das telas no
imaginrio das crianas e em suas prprias capacidades imaginativas; ou seja, a capacidade de
reelaborar imagens exgenas a partir do repertrio imagtico endgeno, colocando-as em
fluxo. Se, por um lado, houve exemplos em desenhos de impressionante capacidade
imaginativa, aparecem, tambm, desenhos em que, aparentemente, tal capacidade
prejudicada: em vez de reelaborar, algumas crianas apenas imitam formas e padres do
tablet, repetem figuras retangulares. comum, inclusive, desenhos quase idnticos feitos por
crianas diferentes de salas diferentes, indiciando um imaginrio sedimentado.
Por fim, h de se repensar alguns conceitos e termos to amplamente invocados nestes
contextos. O principal deles sendo o conceito de nativo digital, que designa uma gerao
habituadas s tecnologias da informao desde o bero e que, portanto, demonstram usos mais
intuitivos dos aparelhos. Mais do que uma questo geracional, deve-se partir do trio como
uma perspectiva arqueolgica, capaz de compreender o arcaico das apropriaes.
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