IMAGINAÇÃO, SUSPENSÃO E TRANSMUTAÇÃO: RECONTEXTUALIZANDO TECNOLOGIAS EDUCACIONAIS E VIDEOGAMES PEDAGÓGICOS

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    IMAGINAO, SUSPENSO E TRANSMUTAO: RECONTEXTUALIZANDOTECNOLOGIAS EDUCACIONAIS E VIDEOGAMES PEDAGGICOS1

    Tiago da Mota e Silva2

    Resumo:Em uma escola particular de So Paulo, jogos eletrnicos so inseridos no cotidiano das salasdo primeiro ano do Ensino Fundamental desde o primeiro semestre de 2014. Trata-se de um

    plano pedaggico que introduz tablets a todos os ciclos de ensino. O artigo se volta apropriao da tecnologia engendrada pelas crianas: enquanto brinquedo. Argumenta-se que

    estas concebem trs esforos de maneira complexa e difusa: os esforos de imaginao, desuspenso e de transmutao. Chega-se ao trio aps observaes em cinco salas com, aotodo, 142 alunos , grupos de discusso com as crianas e com professoras e 101 desenhosfeitos pelos estudantes sobre aquilo que associavam ao aparelho. Evoca-se o conceito de

    brinquedo de Walter Benjamin, bem como os pensadores da cultura Johan Huizinga e IvanBystrina.

    Palavras-chave:Comunicao. Tecnologias Educacionais. Jogos Eletrnicos. GamesPedaggicos. Ambientes Comunicacionais.

    Introduo: O projeto pedaggico com tablets

    Desde o incio do ano letivo de 2014, estudantes do primeiro ano do Ensino

    Fundamental de uma escola particular de So Paulo3contam com um recurso tecnolgico

    com crescente capilaridade na educao4: o tablet. Trata-se de um projeto tecnolgico-

    pedaggico em vigor desde 2011, cujo planejamento consiste em disp-los gradativamente

    para todos os ciclos de ensino.

    Diferentemente do praticado com adolescentes no Ensino Mdio5, os alunos do

    primeiro ano do Ensino Fundamental tm acesso aos aparelhos somente durante o curso das

    1Trabalho apresentado ao 11 Interprogramas de Mestrado, realizado na Faculdade Csper Lbero, entre os dias6 e 7 de Novembro de 2015.2Mestrando no Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Semitica da Pontifcia Universidade Catlicade So Paulo (PPGCOS/PUC-SP). E-mail: [email protected] O colgio em questo preferiu no ter seu nome e o nome de seus funcionrios divulgados em quaisquer

    publicaes subsequentes da pesquisa. Em 2014, 227 alunos estavam matriculados nas 14 turmas (A-N) doprimeiro ano do ensino fundamental. Naquele mesmo ano, a mensalidade do referido colgio para o EnsinoFundamental I estava em torno de R$ 1.900,00. Em 2015, um reajuste elevou-a ao custo de R$ 2.100,00.4

    Em 15 colgios particulares da cidade em faixa de preo semelhante, 10 aplicam tablets nas salas de aula empelo menos um ciclo de ensino. Doze dispem dos aparelhos para ao menos professores e funcionrios.5Para o estudante do Ensino Mdio, o tablet passa a estar sob o cuidado do adolescente, podendo este lev-lo

    para sua casa. Esto disponibilizados nos aparelhos, para estes casos, tarefas e atividades complementares

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    aulas, em dias e horrios agendados pelas professoras e pela coordenao. A hora do tablet,

    como as crianas costumam dizer, inserida no perodo de atividades rotativas: os alunos so

    divididos em dois ou trs grupos, cada qual com algum tipo de atividade, como lies de

    portugus ou matemtica, jogos analgicos e/ou o uso do tablet, entre outras. De meia em

    meia hora, aproximadamente, os grupos trocam de atividades entre si.

    Destaca-se a aplicao em sala de jogos para fins pedaggicos. Alguns destes

    aplicativos podem no ser considerados como pedaggicos por finalidade. o caso de Cut

    The Rope,um game comercial muito popular entre as crianas. Todavia, h outros games

    desenvolvidos e distribudos com fins pedaggicos, como com o jogo O Mistrio dos

    Sonhos, da empresa Xmile Learning.

    Mas h algo que um projeto pedaggico ou um game design no podem prever: a

    apropriao que as crianas fazem do aparelho. Tampouco passvel de previso o modo

    como esta apropriao alterar o ambiente comunicacional de seu entorno. Esta pesquisa 6se

    debruou na observao desses modos de apropriao e, em uma perspectiva ecolgica de

    comunicao, atentou-se para a ambincia comunicacional e suas peculariedades quando da

    introduo deste outro elemento miditico em sala, o tablet.

    A pesquisa concentrou as observaes em torno da criana que toma o tablet para si.

    Destas observaes, chegou-se a um comum da apropriao; ou ainda, chegou-se a um

    arcaico dos modos de apropriao: o brincar. As crianas fundamentalmente brincam com os

    tablets, tornando-os brinquedos. A partir desta chave de interpretao do fenmeno, d-se a

    compreenso daquilo que configura esta ambincia. Argumenta-se que este tipo de

    apropriao pelo brincar engendra trs esforos que, difusos e correlacionados, criam um

    constante fator de transformaes da sala de aula: os esforos de suspenso, imaginao e

    desenvolvidas pelos respectivos professores. Todavia, por meio de um software de monitoramento, o colgiotem conhecimento dos contedos acessados pelos alunos bem como o tempo dos acessos.6Foram aproximadamente dois meses de visitas escola, de 06 de Outubro de 2014 a 03 de dezembro daquelemesmo ano, totalizando em torno de 44 horas de observaes. Rotineiramente, frequentou-se a escola pelasmanhs de segunda, quarta e sexta-feira em cinco diferentes salas: as turmas B (30 alunos), C (29), F (30), G(25) e H (28), com, ao todo, 142 estudantes. Complementando o contedo recolhido dos eventos observados todos registrados em um dirio de pesquisa , tambm se recorreu prtica de grupos focais com as crianas.Em cada uma das salas, separaram-se os alunos em grupos menores para que eles conversassem sobre o tablet eatividade com aparelhos. O pesquisador assumiu o papel de mediador, levantando tpicos para que as crianasdiscutissem sobre. Estratgia metodolgica semelhante tambm foi adotada para um grupo focal com as

    professoras das salas citadas, com durao de aproximadamente 40 minutos. Foram coletados tambm 101desenhos das crianas sobre o seu cotidiano na escola e com o tablet.

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    transmutao. Este estudo tambm amparado na categoria de anlise de crculo mgico,

    introduzida por Johan Huizinga (2010, p. 16).

    Tablet, um brinquedo?

    Em trabalhos anteriores (SILVA, 2014a; 2014b) houve a oportunidade de explanar

    sobre a relao arcaica do ldico com as tecnologias, em geral, a partir dos conceitos de

    brinquedo, de jogo e de aparelho em Vilm Flusser (2008). Nesta ocasio, porm, voltar-se-

    o estudo criana e seus modos de apropriao.

    Em um primeiro instante, dizer que o tablet um brinquedo nas mos da crianaaparenta ser uma constatao bvia. A excitao geral com que elas recebem o aparelho,

    geralmente associada com sinais de divertimento, e a facilidade intuitiva com a qual o

    manipulam levam a crer que, para elas, a atividade com tablets no passa de uma brincadeira.

    Todavia, esconde-se por baixo disso uma complexa e arcaica fora, a fora primordial do

    ldico, que, para Ivan Bystrina (1990, p.1), uma das estruturas fundamentais da cultura.

    Segundo o semioticista, o jogo que, para este contexto, pode ser entendido tambm como

    brincadeirafaz parte das motivaes da natura humana pela busca do novo, inicialmentecomo uma forma mimtica de apreender o mundo na qual o humano atrado por uma fora

    mgica (BYSTRINA, 1990, p. 1), mas se desenvolve em expresses culturais mais

    complexas, como o ritual, a mscara e a arte. J Huizinga (2010) argumenta ser a espcie

    humana essencialmente ldica, e que, pelas estruturas do jogo, esta capaz de criar e dar

    novos significados ao mundo em seu redor o que o autor chama de funo significante

    (HUIZINGA, 2010, p. 4) do ldico; isto , sempre h algo em jogo (in-lusio) que encerra

    em si determinados significados.

    Ambas estas interpretaes de Huizinga e Bystrina so confirmadas pela etologia,

    conforme desenvolve Boris Cyrulnik (1997). Segundo a ideia filogentica, a evoluo das

    espcies estabelece um processo de separao-individualizao (CYRULNIK, 1997, p.

    227). Conforme o organismo se desprende de um contexto imediato na sua relao com o

    ambiente, percebe-se a formao de um mundo interiorizado. A gordura em espcies

    evoludas j permite que guardem energia, no precisando consumir alimentos h todo tempo,

    e a homeotermia permite a certos organismos manter a temperatura corporal mesmo quando a

    do ambiente varia. Assim, as espcies que desenvolvem formas de separar-se do imediato

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    passam a segregar sono rpido, a dormir, e, com isso, conseguem manter em si a memria da

    espcie e de sua prpria formao em seus sonhos. O lbulo pr-frontal permite a elas

    desenvolver representaes sem relao com a situao presente, e o sonho as esboa em

    imagens e emoes. Posteriormente, o jogo desempenha seu papel em animais cujo sistema

    nervoso desenvolve circuitos do prazer e da descontextualizao (CYRULNIK, 1997, p. 228).

    Enquanto o sonho interioriza o mundo, o jogo pe na realidade exterior o prazer da

    aprendizagem e da familiarizao (CYRULNIK, 1997, p. 232). Portanto, Cyrulnik associa

    sonho e jogo e os descreve em processos de aprendizagem. So os animais mais brincalhes

    os capazes de ter sonhos mais durveis: o gato fabrica 200 minutos de sonhos por 24 horas de

    sono paradoxal, por fragmentos de seis minutos, e o homem segrega 100 minutos por dia em

    segmentos de 20 minutos de sonhos. Para o etlogo, o jogo age sobre o mundo externo para

    ajustar o mundo interno (CYRULNIK, 1997, p. 233). Brincar ou jogar conecta, assim, esses

    dois mundos, externa desejos ainda no conscientes e d prazer a motivaes internas,

    tornando-as tangveis.

    Chega-se a um dos pontos cruciais da compreenso do tablet como brinquedo: no se

    trata to somente de uma estratgia de diverso por parte das crianas, mas de um arcaico

    modo de familiarizao daquele novo mundo que o tablet e dos mundos abstratos que sua

    tela permite visualizar enquanto janela (BAITELLO, 2012). Neste sentido, a apropriao da

    tecnologia como brinquedo se revela, ao contrrio do que indica o senso comum,

    profundamente sria. Entende-se, ento, que para pensar a insero de tecnologias para

    crianas, especialmente no ambiente escolar, necessria a compreenso da forma de

    apropriao de mundo que a infncia engendra. Em especfico, a faixa etria das crianas que

    participaram desta pesquisa, entre 6 e 7 anos, corresponde frtil etapa de comportamentos

    mimticos que os estudiosos classificam por idade do brincar (BERGER, 2003). Brincandoe, portanto, exercendo suas capacidades mimticas, a criana desta poca se desenvolve nos

    mbitos biossocial, cognitivo e psicossocial apropria-se do mundo. Tambm nesta fase de

    alfabetizao, constitui-se o chamado brincar simblico (SABOIA, 2011), ou o brincar da

    representaoo como se.

    Mas tambm ao dizer que a criana brinca com seu tablet ou com outro aparato de sua

    gerao, esconde-se, no senso comum, certa inteno depreciadora que visa desqualificar no

    o aparelho, mas os usos que a infncia faz deste. Pois, neste senso comum, o brincar e os

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    brinquedos pertencem a um campo de atividades e objetos tidos como no-srios, em

    oposio seriedade do trabalho. Assim, o mundo da criana, o infantil, o no-maduro, se

    coloca em oposio ao mundo adulto, maduro e srio. Sobre esta falsa oposio, Baitello

    (1999, p. 56-57) argumenta que a percepo binria e dicotmica do mundo a mesma que

    tambm ope um universo infantil da brincadeira e um universo adulto, um no-srio e o

    outro da seriedade. Por esta razo, o discurso do brincar com tablet pode , a depender de

    quem o propaga, sugerir que o uso feito das coisas pelas crianas no pode ser levado a

    srio. A mesma raiz desta percepo binria pode levar a outro caminho perigoso na

    educao miditica e tecnolgica das crianas: a de impor a elas um mundo adulto. Isso

    implicaria na pressuposio de que a funo da escola ao inserir os tablets em sala seria a de

    ensinar o conjunto de habilidades tcnicas para manuse-lo: a criana brinca com o tablet

    agora para aprender a trabalhar com o ele no futuro.Foi Dietmar Kamper (1998) quem

    discutiu esta relao entre brincadeira e trabalho. Kamper defende que os entendimentos do

    brinquedo, das brincadeiras e dos jogos como preparatrios para a vida adulta, ou

    preparatrios para o trabalho, so definies que apenas apreendem de forma muito

    secundria o que realmente est acontecendo na atividade ldica (KAMPER, 1998, p. 28).

    Apontam, tambm, que o avano do trabalho enquanto culto na cultura reduz e homogeneza

    a experincia simblica humana que, em grande parte, vem enraizada em estruturas ldicas.

    Aqui se alcana outro ponto deste estudo: o brinquedo um confronto; logo, o tablet

    como brinquedo em sala de aula tambm confronto. Sobretudo, confronto entre este mundo

    infantil e do brincar com o mundo adulto do trabalho. Baitello (1999) traz como exemplo

    disso a exposio de bonecos de militares com uniformes nazistas do museu do brinquedo de

    Copenhagen. A partir destas figuras, o autor indaga: so os adultos que imaginam as crianas

    e lhes impem valores nos brinquedos que desenham e produzem, ou so as crianas queimaginam os adultos por meio dos brinquedos? Para ele, o brinquedo se torna parte de um

    procedimento da dicotomia adulto-infantil que pretende encurtar a passagem entre os lados

    comumente entendidos enquanto opostos: para deixar o faz-de conta e chegar ao para-

    valer (BAITELLO, 1999, p. 54). Esta imposio do mundo adulto se apresenta nos

    brinquedos comerciais: laptops infantis, cozinhas cor-de-rosa, etc.

    Mas criana no necessariamente aceita esta imposio do imaginrio adulto, e neste

    aspecto que se d o confronto. Ela, a criana, capaz de encontrar suas prprias formas de,

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    brincando, subverter uma determinada ordem de coisas em prol de suas motivaes ldicas e

    essencialmente fruitivas. Ela capaz de, em um processo complexo e difuso, projetar o seu

    mundo e, tambm, o seu imaginrio sobre os objetos. D-se, assim, o confronto entre aquilo

    que o adulto impe criana em objetos e o uso imaginativo que estas os do. Deste modo, o

    que define um brinquedo est menos na inteno e mais no uso que lhe dadoe este outro

    ponto crucial. Para a Comunicao, isto implicar tambm na importante diferenciao entre

    os mediae os usos dos media.

    Em seus ensaios sobre a infncia, Walter Benjamin (2014) defende ser a criana o

    agente capaz de tornar algo um brinquedo, projetando sobre um objeto uma inteno ldica.

    Hoje talvez se possa esperar uma superao efetiva daquele equvoco bsico queacreditava ser a brincadeira da criana determinada pelo contedo imaginrio dobrinquedo quando, na verdade, d-se o contrrio. A criana quer puxar alguma coisa etornar-se cavalo, quer brincar com areia e torna-se padeiro, quer esconder-se e torna-se bandido ou guarda. (BENJAMIN, 2014, p. 93)

    Por exemplo, o uso de um cabo de vassoura qualquer no foi planejado com a inteno

    da brincadeira, mas pode ser apropriado para se tornar cavalo ou espada. A apropriao que

    torna algo brinquedo no , portanto, funcional, mas fruitiva. Continuando este raciocnio,

    Benjamin conclui:

    [..] h algo que no pode ser esquecido: jamais so adultos que executam a correomais eficaz dos brinquedossejam eles pedagogos, fabricantes ou literatos , mas ascrianas mesmas, no prprio ato de brincar. Uma vez extraviada, quebrada econsertada, mesmo a boneca mais principesca transforma-se numa eficiente camaradaproletria na comuna ldica das crianas. (BENJAMIN, 2014, p. 87)

    Ainda resta compreender o processo que torna o objeto um brinquedo. Este passa pela

    convergncia, enfim, dos trs esforos do brincar j citados: imaginao, suspenso e

    transmutao. Chamamos-os de esforos por no seremdados, por exigirem uma inteno

    daquele que brinca. A formulao destes esforos neste artigo foi inspirada pela leitura de

    Benjamin bem como de outros tericos do ldico, como Huizinga e Caillois (1990), Salen &

    Zimmerman (2004), Frasca (2007), Juul (2011), Suits (2005) e Sutton-Smith (2001). No

    exemplo da criana que puxa para si um cabo de vassoura para mont-lo como cavalo, a

    apropriao da vara uma ao hipottica em que se podem notar todos trs esforos. Em um

    esforo de imaginao, a criana imagina o cavalo, com todo o seu repertrio imaginrio de

    cavalo, que carrega sobre si no s a aparncia do animal, mas o contedo simblico arcaico

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    dessa imagem. A imagem projetada sobre a madeira, dando-se o processo da transmutao,

    que torna uma coisa em outra; no caso, tornar o cabo de vassoura em cavalo e o cabo de

    vassoura cavalo. Por fim, o esforo de suspenso aquele capaz de ignorar o tangvel ou a

    aparente realidade para imergir no universo daquela situao imaginada. No importa se

    aquilo um cabo de vassoura e no um cavalo de verdade, no importa se o quintal de casa

    no seja um vasto campo de verdade: a criana voluntariamente suspende uma ordem de

    coisas para embarcar em outra ordem de coisas. Assim, percebe-se outro ponto importante

    para pensar o tablet como brinquedo: mais do que um objeto, neste processo o brinquedo

    imagem. E, finalmente, esses esforos todos passam por um agir do corpo: preciso que a

    criana puxe, agarre, monte e aja sobre o cabo para que seu movimento o faa tornar-se

    cavalo (WULF, 2005).Conforme as observaes feitas pela pesquisa, a apropriao das

    crianas em termos gerais, pois estes so elementos comuns de todas as turmas carrega

    estes pontos aqui descritos. Por meio de uma explorao fruitiva das potencialidades do

    aparelho, as crianas desmontram suas capacidades mimticas de incorpor-las ao seu mundo

    A escola impe a presena do tablet em sala, e j aqui se d uma forma de confronto,

    explicitado em momentos em que uma criana no quer usar o aparelho. Em uma ocasio

    especfica, uma delas, uma garota, recusou-se a abrir o jogo O Mistrio dos Sonhos ou

    qualquer outro app durante o uso. Depois de muita insistncia, a professora lhe deu uma

    bronca e decretou, como castigo, que a pequena no participaria da hora do parquinho com os

    colegasironicamente, ela ficaria na sala, com o tablet.

    Alm disso, fala-se de um modelo de aparelho comercial, fabricado por uma grande

    fabricante, e no pensada para o uso infantil. Neste sentido, o tablet se encontra, hoje, no

    limiar entre os dois universos, adulto e infantil, da brincadeira e do trabalho, e se coloca,

    enquanto brinquedo nas mos das crianas, como o ponto de confronto em sala de aula: de umlado, as professores tentam impor um tipo de uso que ora aceito pelas crianas aquele

    sentado em carteiras, em silncio , mas tambm , na maioria das vezes, negado e

    ressignificado por elasem grupos e em algazarra.

    Imaginao, Suspenso e Transmutao

    Johan Huizinga fundamental para o entendimento deste trio graas ao seu conceito

    de crculo mgico. Este parte da concepo de que o jogo e a brincadeira lanam sobre ns

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    um feitio (HUIZINGA, 2010, p. 13), algo fascinante e cativante. Para Huizinga (2010, p.

    13), Reina dentro do domnio do jogo uma ordem especfica e absoluta. E aqui chegamos a

    sua outra caracterstica, mais positiva ainda: ele cria ordem e ordem. Neste trecho est

    parte central da concepo dos crculos mgicos. Trata-se, sobretudo, de lugares sagrados

    (HUIZINGA, 2010, p. 13), o que aproxima, segundo Huizinga, o ldico do culto. Este crculo

    demarcado em espao e em tempo (HUIZINGA 2010, p. 12-13) e as regras que o regem

    (HUIZINGA, 2010, p. 14) ainda que flexveis e negociveis, no caso das brincadeiras

    infantis, ou rgidas e inegociveis, no caso do culto so capazes de criar uma determinada

    ordem de coisas, e ser ordem, de modo a formar uma evaso da vida real (HUIZINGA,

    2010, p. 11). Esta outra ordem de coisas capaz de [...] a qualquer momento, de absorver

    inteiramente o jogador (HUIZINGA, 2010, p. 11). Caillois ir acrescentar a esta concepo

    uma noo de fico, ou de a brincadeira ser atividade fictcia, acompanhada de uma

    conscincia especfica de uma realidade outra (CAILLOIS, 1990, p. 30).

    Por crculos mgicos,o medievalista Huzinga faz referncia s prticas pags que

    ainda exercem influncia em religies neopags, como a Wicca. O crculo mgico , nestes

    contextos, o espao delimitado pelo feiticeiro para realizar magia, sendo desenhado no cho

    com giz ou feito com o movimento das mos. Seu objetivo o de manter espritos ou, como

    o caso Wicca, manter a energia de um ritual. O crculo mgico de Huizinga , portanto, o

    espao do ritual, que encontra no ldico sua estrutura fundamental. Pois, na brincadeira ou no

    jogo, demarca-se o espao onde se d um ato mgicocomo o campo de futebol ou o quintal

    da casa. Na cultura, o ato mgico aquele que imagina coisas abstratas (nomes, nmeros,

    labirintos, criaturas mitolgicas) e as traz ou pretende traz-las a uma realidade, em forma de

    poderosas imagens (WULF, 2005, p. 133), e, assim, tornam objetos, animais e outros

    elementos em relquias e bestas do imaginrio. De tal forma, a transmutao de cabo devassoura para cavalo um ato mgico, que traz para uma realidade uma poderosa imagem,

    projetando-a sobre um objeto, intenao tambm presente no crculo mgico pago.

    Para entender o principio de transmutaoe complementando o conceito de crculo

    mgico, preciso tambm recorrer, ainda que brevemente, ao conhecimento alqumico o

    qual no era estranho para Huizinga. Do latim transmutattio, o princpio da transmutao ,

    para os alquimistas, o de lidar com metais para transform-los em ouro. Como para os

    alquimistas o material indissocivel do espiritual, a transmutao de materias tornou-se,

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    simbolicamente, tambm a transmutao do esprito, o seu aprimoramento para entrar em

    harmonia com o cosmo (LIMA; SILVA, 2003). Neste sentido, o ato mgico e a transmutao

    so expresses culturalmente prximas, se no semelhantes: tornam uma coisa em outra coisa.

    A alquimia tem o seu prprio crculo mgico, a Mesa Alqumica, o local para operar as

    transmutaes.

    Logo, os crculos mgicos de Huizinga so compreensveis como o lugares

    demarcados onde, ao brincarmos ou jogarmos, poderosas imagens so projetadas de modo a

    transmutar a realidade aparente e torn-la uma realidade suspensa. Por suspenso, enfim,

    entende-se que aquele indivduo imerso no crculo engendra um esforo que o suspende da

    realidade que lhe externa, no sendo mais aquela primeira realidade, por assim dizer, de seu

    interesse perceptivo e simblico. Dentro do crculo h uma ordem prpria, regida por

    determinadas regrasde modo que, ao romper com a suspenso ou ao no aceitar tais regras

    como reais, rompe-se com o crculo. Assim, compreendem-se os trs esforos: imaginao,

    transmutao e suspenso.

    Sobre um objeto qualquer, estes trs esforos engendram um processo capaz de torn-

    lo brinquedo. No estranho pensar que tal processo ocorre com o tablet em sala de aula. A

    comear pela prpria escola, uma expresso institucional de um crculo mgico: dentro de um

    espao e tempo bem demarcadoso prdio da escola e suas salas, os perodos de aula, reina

    uma ordem prpria, regida por regras prprias, que se coloca como paralela ordem de coisas

    que lhe so externa graas um estado especfico de mente, como sugere Frasca (2007, p. 52)

    na sua interpretao do conceito de crculo mgico. Assim, comea-se a entender a escola,

    primeiro, como formadora de suspenso. Porm, com os tablets, h outro estado da mente que

    continha elementos incomuns ao cotidiano da sala. Isto foi notado, principalmente, a partir do

    contraste comparativo que havia entre os grupos de alunos com tablets e os demais grupos daatividade rotativa. Outras atividades pressupunham uma ateno maior das professoras aos

    alunos, seja lies de portugus ou matemtica ou, em diferente grau, jogos e brinquedos

    analgicos. Os grupos com tablets no recebiam a mesma ateno. De um lado, as professoras

    parecem no sentir a necessidade de dar ateno aos alunos com aparelhos durante as aulas.

    Algumas chegaram a afirmar que, nestas circunstncias, os alunos simplesmente no precisam

    delas. Na ocasio em que todas as crianas usaram tablet ao memso tempo, fora das

    atividades rotativas, uma professora comentou: Eu mesentia um pouco intil, sabe?. Outra,

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    sobre a mesma ocasio, afirmou: como se no houvesse crianas na sala, tamanho o

    silncio. Raramente as professoras vo at as crianas com tablets para acompanh-las. E,

    por outro lado, raramente as crianas com tablets procuram pelas professoras. Eles s vm

    quando esto com dificuldades no login [no jogo O Mistrio dos Sonhos] ou quando o tablet

    pifa, comenta uma educadora.

    Em um dos dias de visita, uma criana passou mal e vomitou em sala. Rapidamente,

    criou-se uma confuso: as demais colegas se levantaram, ameaaram golfar tambm. Todas

    com exceo do grupo ao tablet: atentos ao jogo, com olhos enfeitiados pelas telas e ouvidos

    selados por fones, estes demoraram a perceber a movimentao em sala. S levantaram suas

    cabeas para ver o que acontecia quando o incmodo odor subiu pelas suas narinas. A

    interpretao para um acontecimento como este parte da compreenso de uma suspenso,

    primeiramente, sensorial o tablet monopoliza o interesse perceptivo das crianas,

    principalmente pela viso. Nos grupos focais com elas, perguntou-se em todas as ocasies a

    simples questo: vocs preferem brincar com tablet em casa ou na escola?7 As respostas

    variavam entre as opes, mas no dependiam tanto das caractersticas do ambiente casa, em

    si, ou do ambiente escola, em si. Prefiro em casa porque l tem mais jogos, disse uma

    criana. Prefiro na escola porque aqui tem O Mistrio dos Sonhos, disse outra. A resposta

    dependia mais dos tipos de jogos que elas disponham em cada situao. Este um indcio de

    que, a partir de uma suspenso sensorial, h no uso do tablet um potencial de suspender, para

    a criana, todo ambiente em seu entorno, dando-se o esforo de suspenso, que pressupe um

    querer suspender-se. Tal indcio passou a ser confirmado por desenhos como este:

    7Destacando que todas as crianas das turmas, sem exceo, ou tm um tablets em casa para seu uso prprio ouusam, em seus lares, os aparelhos de familiares.

    Figura 1: Criana desenha a si prpria usando tablet.

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    Na figura acima, a ideia de um esforo de suspenso se evidencia neste imaginrio do

    tablet externalizado pela criana em seu desenho: ela, com fones e sentada, se encontra,

    sorrindo, jogando em um vazio. De modo impressionante, h diversos outros exemplos

    similares a este.

    A suspenso do espao conduz a outra percepo dos efeitos do tablet tambm em seu

    esforo de transmutao. O espao e tempo da sala de aula se transmuta em espao e tempo

    do tablet. Primeiro porque o tablet centrazila trs de seus sentidos (viso, audio e tato), o

    que diminui consideravelmente a percepo do espao. Isso leva a uma reduo da sala, de

    modo que cada criana se volta ao seu crculo mgico com tablet ou, quando muito, ao crculo

    mgico formado por um grupo de crianas. Necessariamente, a formao desses crculos

    mgicos pode anular, por assim dizer, o grande crculo que a prpria sala ou a escola, e isso

    fica mais evidente no papel da professora nesta nova configurao: ela no mais detm a

    ateno dos alunos ao ponto de, como visto no depoimento anterior, se sentir desnecessria. E

    este tempo do uso do tablet reconfigura, tambm, a percepo da passagem de tempo das

    crianas, como uma forma de tempo outro e separado do cotidiano das aulas. Esses trinta

    minutos de uso do tablet correspondem, ento, a hora do tablet, que sincroniza o cotidiano

    daquele dia e cuja percepo aparenta abreviar a passagem do tempo a criana solta a

    pergunta j acabou?!. Mas, ainda que tempo e espao estejam relacionados, no que tange a

    questo do tempo se mostraria necessria uma pesquisa emprica especfica para confirmar

    tais hipteses.

    Todavia, h indcios para afirmar haver um esforo de transmutao tambm no

    campo do imaginrio, estando tambm intimamente ligado ao esforo de imaginao tantoquanto ao de suspenso. Como citado, o ato da imaginao enquanto ato mgico aquele

    que projeta poderosas imagens e as coloca em fluxo entre endgeno e exgeno. Em

    depoimentos das crianas, indcios de atos imaginativos em relao ao tablet se davam

    quando elas descreviam os avatares do jogo pedaggico O Mistrio dos Sonhos.Um deles

    comentou: nome do meu guardio [o avatar] Tuti. Ele tem uma cabea de frutas porque

    descendente das frutas. Curioso, o pesquisador foi at o jogo para descobrir mais sobre Tuti.

    Conforme enredo dado pelo jogo, o personagem faz parte de uma tribo de membros muito

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    parecidos fisicamente e, para se distinguirem, cada um usa um capacete feito de frutas

    diferentes. No era nada daquilo que o menino havia descrito, mas no mais importa.

    Exemplos como esse se repetem, no drago verdinho, no pompom ou na bailarina que

    pula com um pauzinho. So indcios de que as crianas so capazes de reelaborar as imagens

    exgenas recebidas pela tela do tablet e projetar ainda outras imagens sobre estas a partir de

    seu contedo imagtico interior, em um entre o exgeno e o endgeno. No entanto, mais uma

    vez, tal esforo ficou evidente nos desenhos, dos quais o seguinte:

    Na figura acima, uma criana desenha uma verso para o personagem do jogo O

    Mistrio dos Sonhos, o Blurp, um polvinho roxo e sorridente. Nesta outra roupagem, Blurp

    ganha armas ensanguentadas, e, segundo a prpria criana, uma calda com lminas afiadas.

    Acima dele, um fantasma, ambos sorridentes, em contraste com a violncia da imagem. H

    muito o que dizer sobre este desenho, ao ponto de este merecer um artigo inteiro para si. Por

    ora, percebeu-se nele trs grandes aspectos: a presena de imaginrio do regime norturno

    (DURRAND, 2012), um carter fbico arcacaico das imagens com o qual a criana est em

    contato (BAITELLO, 2005) e, ainda, um complexo jogo entre ameaa e desmontagem daameaa flagrado pelos sorrisos dos personagens. Todavia, nesta oportunidade, volta-se apenas

    capacidade do ato imaginativo desta criana. Diferentemente de outros desenhos, em que

    apenas foram reproduzidos os padres e formatos vindos da tela do tablet, este externaliza um

    repertrio imagtico interior da criana em questo, que, por sua vez, passa a tambm ser

    influenciado pelo repertrio imagtico exgeno adivindo das telas dos aparelhos. Deste fluxo

    entre e exgeno e endgeno, apresenta-se o aqui chamado esforo de imaginao, que, neste

    caso, em um ato mgico, trouxe para a presena um Blurp violento e sanguinolento. Esta

    Figura 2: Criana reinterpreta em desenho

    personagens do jogo O Mistrio dos Sonhos.

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    violncia explcita da figura , sem dvida, desconcertante.Pode indiciar, porm, que este

    aluno est muito mais em contato com o arcaico das imagens do que seus colegas, podendo,

    assim, reinterpret-las. Da perspectiva do imaginrio, este poderoso ato imaginativo tambm

    engendra um poderoso esforo de transmutao, em que personagens de jogos passam a ser

    coisas outras. Neste esforo, at mesmo o tablet se transmuta: ele no to somente um

    instrumento de trabalho, mas um aparelho que abriga monstros e fantasmas.

    Consideraes Finais

    Na escola onde se d a pesquisa que originou este artigo, notou-se que, muito embora

    haja um esforo em integrar tecnologias da informao no cotidiano das aulas, o projeto

    tecnolgico-pedaggico ainda precisa se inclinar para dar ateno aos usos que as crianas

    fazem dos tablets. O mesmo, talvez, valha para outros projetos semelhantes. Tendo o trio

    imaginao-suspenso-transmutao como chave de anlise para o uso do aparelho

    engendrada por este grupo de crianas, descobre-se ser a criana a principal agente desta

    apropriao. Sendo o tablet um brinquedo, importa menos o uso que a escola busca impor ou

    mesmo o tipo de uso que o prprio aparelho incentiva com seu design. Importa mais o uso

    que a criana prope a estas tecnologias.

    Posto isto, levantam-se questes problemticas quanto implementao dos aparelhos

    em sala de aula, cada qual relacionada a um dos trs esforos supracitados, que, por sua vez,

    esto correlacionados entre si. Sobre a suspenso, resta questionar se esta forma de suspender-

    se , sempre, propicia para o desenvolvimento da criana, especialmente na faixa etria

    pesquisada, em que se desenvolve, mimeticamente, os mecanismo de. Com os tablets, corre-

    se o risco de limitar o interesse perceptivo da criana ao ponto de o crculo mgico ali

    formado excluir seus semelhantes. Neste sentido, a separao da hora do tablet interessante, pois no mantm os estudantes em perodos longos de suspenso. Por outro lado,

    a escola pode reforar a suspenso graas sua configurao tradicional: alunos sentados,

    enfileirados em carteiras. Nesta posio, a suspenso sensorial e perceptiva somente se

    intensifica, pois o corpo sentado se inclina para o tablet, torna-se um corpo sedado

    (BAITELLO, 2012). Mais uma vez, preciso estar atento aos usos que os pequenos propem:

    em vez de em carteiras, muitas vezes eles preferem ir ao cho, e l, quando no so

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    reprimidos pelas professoras, se ajuntam em grupos e dividem as experincias, abrindo-se

    para o outro.

    A maneira pela qual se apropria do aparelho em sala pode estar transmutando os

    significados do que , para a criana, a escola. Isto no , a princpio, algo bom ou ruim. Mas

    pede que educadores estejam atentos a que novos significados so estes. Estas transmutaes

    se encontram invariavelmente relacionadas fora imaginativa da criana. Tendo o

    conhecimento do esforo de imaginao envolvido neste modo de apropriao, faz-se

    necessrios estudos sobre o impacto das imagens exgenas pululantes advindas das telas no

    imaginrio das crianas e em suas prprias capacidades imaginativas; ou seja, a capacidade de

    reelaborar imagens exgenas a partir do repertrio imagtico endgeno, colocando-as em

    fluxo. Se, por um lado, houve exemplos em desenhos de impressionante capacidade

    imaginativa, aparecem, tambm, desenhos em que, aparentemente, tal capacidade

    prejudicada: em vez de reelaborar, algumas crianas apenas imitam formas e padres do

    tablet, repetem figuras retangulares. comum, inclusive, desenhos quase idnticos feitos por

    crianas diferentes de salas diferentes, indiciando um imaginrio sedimentado.

    Por fim, h de se repensar alguns conceitos e termos to amplamente invocados nestes

    contextos. O principal deles sendo o conceito de nativo digital, que designa uma gerao

    habituadas s tecnologias da informao desde o bero e que, portanto, demonstram usos mais

    intuitivos dos aparelhos. Mais do que uma questo geracional, deve-se partir do trio como

    uma perspectiva arqueolgica, capaz de compreender o arcaico das apropriaes.

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