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Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda do Património Arquitetónico em Cabo Verde Ailton António Ramos Correia M 2019 MESTRADO INTEGRADO ARQUITETURA

ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda ...Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura ... 155 Espingueira, entre o calcário e as dunas 161 Uma aldeia alternativa

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    Cabo Verde

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    Cabo Verde

    Ailton António Ramos Correia

    Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda do Património Arquitetónico em Cabo Verde

    Ailton António Ramos Correia

    M 2019

    M.FA

    UP

    2019

    MESTRADO INTEGRADO

    ARQUITETURA

  • Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda do Património Arquitetónico em Cabo Verde

    Ailton António Ramos Correia

    Dissertação de Mestrado Integrado em ArquitecturaOrientador: Professor Doutor Nuno Valentim LopesCo-orientador: Arquiteto Miguel ToméFaculdade de Arquitectura da Universidade do PortoPorto 2019

  • Nota Prévia

    A presente dissertação encontra-se ao abrigo do novo acordo ortográfico.

  • Em memória do meu avô Leão Lopes e do meu tio Jacinto Lopes.

  • “Do we know why “island” is the unconditional poetic word? It only needs be mentioned from afar and we mobilize everything in us that wishes to flee. From banality to entrancement, from worry to meditation, from terra firma to controlled waters. Before the bird, the angel, the demon, the island is the key term that describes the human essence.”1

    Peter Sloterdijk

    1 THE DRUNKEN ISLE – Peter Sloterdijk in INSULAR INSIGHT – Where Art and Architecture Conspire with Nature – NAOSHIMA, TESHIMA, INUJIMA – Fukutake Foundation, Lars Müller Publishers, 2011. p.33

  • SUMÁRIO

  • Agradecimentos

    Resumo

    Abstract

    INTRODUÇÃO20 Um Território, Várias Motivações 21 Objeto, Objetivos 22 Inquietações e Pertinência 26 Metodologia e Estrutura

    CAPÍTULO 1 – ENQUADRAMENTO30 1.1- Património, Identidade e Valor39 1.2- Cabo Verde, Geografia e Arquitetura Vernacular49 1.3- Temáticas de Salvaguarda do Património Arquitetónico em Cabo Verde 83 1.4- Património, Turismo e Desenvolvimento

    CAPÍTULO 2 – ANÁLISE e INTERPRETAÇÃO95 2.1- Caracterização da Amostra 2.2- Cidade Velha, o impulso para a salvaguarda do património cabo-verdiano99 Da Ribeira Grande à Cidade Velha105 Plano de Recuperação e Transformação119 Salemi versus Cidade Velha

    2.3- Museu da Resistência, o despertar do museu da memória127 Uma colónia penal isolada135 O Museu da Resistência149 Memórias difíceis

    2.4- Spinguera Ecolodge, um modelo alternativo possível155 Espingueira, entre o calcário e as dunas161 Uma aldeia alternativa169 Um continuar inovando

    2.5- Ribeira da Torre, o lugar, a habitação tradicional na atualidade175 Um belo vale181 Um projeto para a comunidade189 De Lagedos para Ribeira da Torre

  • 2.6- Sede do Parque Natural do Fogo, entre a tradição e a inovação193 Um lugar singular197 Da construção tradicional ao edifício contemporâneo207 Centros interpretativos

    CONCLUSÃO217 Contribuições para a Valorização da Identidade Arquitetónica Cabo-verdiana225 Perspetivas

    227 Bibliografia 235 Lista de Imagens 241 Lista de acrónimos

  • AGRADECIMENTOS

    Ao professor Nuno Valentim pela disponibilidade, pertinência e pragmatismo que mostrou ao longo do trabalho, também pelas sábias palavras que partilhou em momentos de algumas inquietações.

    Ao Miguel Tomé pela disponibilidade, pelo interesse, e principalmente pelo apelo a um pensamento crítico sobre o trabalho.

    Aos inúmeros que contribuíram ao longo do trabalho, entre os quais Leão Lopes, Ângelo Lopes, José Paiva, Larissa Lazzari, Ricardo Barbosa Vicente, Jaylson Monteiro, Adalberto Tavares, Egas Vieira, Helena Albuquerque, Ana Filipa Marques, Francisco Moreira e muitos outros.

    Aos que disponibilizaram o seu tempo e aos me acolheram durante as visitas realizadas.

    Aos amigos pelo apoio e a minha família por tudo, especialmente a minha mãe pela constante motivação.

    Ao Lucas e a Inês pela alegria.

  • RESUMO

    A presente dissertação faz uma contextualização histórica da salvaguarda patrimonial no arquipélago de Cabo Verde. Uma reflexão sobre as práticas construtivas contemporâneas no confronto com as tradições culturais e construtivas dos lugares, estimulando o debate em torno dos valores de permanência e transformação.

    Reconhecendo a singularidade da arquitetura vernacular, acentuada pela condição de insularidade, considera-se que esta poderá constituir um importante meio de aprendizagem e de desejado enriquecimento cultural.

    Assim sendo, realiza-se uma análise de algumas caraterísticas das construções de raiz tradicional e vernácula, estabelecendo pontos de relação com cinco casos de estudo, que constituem exemplos de intervenções no construído que materializam programas de turismo cultural associados a ações de salvaguarda patrimonial numa perspetiva de desenvolvimento.

    Esses casos incluem temas de reabilitação, restauro, valores patrimoniais, processos de musealização, tradições construtivas e arquitetura contemporânea.

    A operação de análise destes projetos procura estudar os processos construtivos tradicionais e verificar a forma como esse modus operandi foi retomado nos casos estudados, considerados exemplares e potencial matéria para o enriquecimento disciplinar e para afirmação dos valores da identidade arquitetónica cabo-verdiana.

    Cabo Verde; Arquitetura; Património; Vernacular; Reabilitação; Salvaguarda; Identidade; Musealização;

  • ABSTRACT

    This thesis makes an historical contextualization of the patrimonial protection of Cape Verde’s islands. It’s a reflection on the contemporary practices against the cultural traditions, encouraging the debate around the values of continuity and transformation.

    Recognizing the singularity of traditional architecture, emphasized by the island’s isolation, one can consider that this might be an important way of learning and cultural enrichment.

    Therefore, an analysis of some construction’s characteristics, developed within the traditional and vernacular criteria was made, establishing a connexion between the five case studies. These case studies are examples of interventions that represent tourism programs, linked by patrimonial protection actions in a development perspective.

    The case studies include rehabilitation, renovation, heritage, musealization processes, building traditions and contemporary architecture.

    The analysis of these projects aims to study the traditional building processes and to see how the modus operandi was revived on the case studies, considered an example and a potential source for the subject’s development as well as an affirmation of the identity heritage of Cape Verde architecture.

    Cape Verde; Architecture; Patrimony; Vernacular, Rehabilitation, Protection, Identity, Musealization

  • INTRODUÇÃO

  • 20

    Um Território, Várias Motivação

    Após a independência de Cabo Verde, as elites intelectuais e políticas promoveram um amplo debate em torno de questões ligadas à história e às memórias do seu povo, na tentativa de refundar a sua identidade cultural. Essa inquietação estava já presente durante o período de luta pela descolonização, como se deduz da afirmação de Amílcar Cabral: “No quadro da conquista da Independência Nacional, na perspectiva da construção do progresso económico do povo, o desenvolvimento de uma cultura popular e de todos os valores positivos autóctones é um objectivo a atingir.”2 Para Cabral, este objetivo não se esgotava na exaltação da cultura do seu povo, mas também na redescoberta do passado do país, o que implicava a concretização de políticas de conservação e preservação de vestígios materiais que representassem esse processo histórico.

    A presente dissertação pretende desenvolver uma reflexão em torno da problemática da salvaguarda do património arquitetónico e da identidade arquitetónica em Cabo Verde. Esta temática é, especialmente relevante por duas razões fundamentais: Primeiramente, responde à vontade de conhecer melhor a cultura arquitetónica e as práticas de projeto concretizadas na multiplicidade das paisagens insulares de onde é oriundo o autor do trabalho. Por outro lado, o facto de se tratar de um universo cultural tão distinto, permite um distanciamento em relação ao objeto de estudo, pertinente para consubstanciar uma perspetiva crítica e multicultural relativamente ao confronto dos valores locais e globais que agem naquele território.

    A singularidade da arquitetura vernacular, das tradições construtivas e da utilização dos materiais endógenos, acentuada pela condição de insularidade manifestada no modo de vida, motivou e poderá constituir um importante meio de aprendizagem e de desejado enriquecimento cultural. Nesse sentido, o desenvolvimento desta dissertação constituiu uma oportunidade para redescoberta do arquipélago, das suas paisagens e das suas gentes.

    2 LOPES FILHO, João - Defesa do Património Sócio - Cultural de Cabo Verde, Lisboa: ed. Ribeiro, José A. 1985. p.10

  • 21

    Objeto, Objetivos

    O trabalho foi desenvolvido com base num estudo exploratório sobre a história da salvaguarda patrimonial em Cabo Verde, com particular enfoque em acontecimentos marcantes, assim como nas personalidades que protagonizaram essas ações. Além desta abordagem mais global, foram abordados cinco casos de estudo, exemplares de processos que fomentaram o debate e reflexão sobre a salvaguarda do património arquitetónico cabo-verdiano na contemporaneidade. Foram então selecionados os seguintes projetos: o Plano de Recuperação e Transformação da Cidade Velha, o Museu da Resistência, o projeto de reabilitação e adaptação a hotel da antiga aldeia de Espingueira, o projeto de Valorização Turística do Habitat Tradicional na Ribeira da Torre e o edifício da Sede do Parque Natural do Fogo.

    Tendo como título Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda do Património Arquitetónico em Cabo Verde, a dissertação aponta os seguintes objetivos:

    - estudar casos que concretizem a renovação de tradições construtivas e a integração de valências contemporâneas, nomeadamente ao dos dispositivos formais ou das instalações técnicas, por forma a responder às novas necessidades programáticas;

    - reconhecer processos e metodologias de trabalho fundadas no diálogo entre agentes diversificados, entre os quais se podem identificar instituições locais e atores estrangeiros, portadores de culturas exógenas capazes de induzir o necessário desenvolvimento económico e cultural;

    - identificar de que forma os projetos assinalados promoveram discursos sobre a identidade cultural, qual o impacto na cultura arquitetónica do país e como foram assimilados pela população local;

    - esboçar uma posição crítica em relação a algumas opções de projeto, apontando os aspetos mais interessantes e com possibilidades de aplicação noutros contextos;

    - inferir, a partir da análise dos projetos, também os processos de negociação entre impulsos de transformação e vontades de permanência dos valores identificados.

    - propor comparações com projetos semelhantes a nível de programa, tipologia e contexto.

  • 22

    Inquietações e Pertinência

    A defesa do património e sua reabilitação, em Cabo Verde, são problemáticas complexas que se afirmaram ainda antes da independência, durante a década de vinte de novecentos, momento em que personalidades começaram a demonstrar preocupações com a salvaguarda de edifícios ou de territórios dotados de especial significado coletivo. Sem grandes consequências, a estes movimentos embrionários seguiram-se algumas ações concretas, encetadas pelo governo português nos finais da década de sessenta 3, ainda que circunscritas a um único aglomerado. Em paralelo, o eclodir dos movimentos independentistas, desencadeou uma reflexão, de teor nacionalista, sobre os valores culturais específicos daquele povo, expressos não só nos bens construídos, mas também no património imaterial. Com a independência, a nação depara-se com questões prementes de (re)encontro com os valores identitários desse povo, então entendidos como sendo o resultado da miscigenação orgânica de culturas de raiz europeia e africana 4. A preocupação pela sua preservação, apesar de constantemente invocada pelos vários governos, só ganha efetiva expressão quando alguns representantes da UNESCO visitaram Cabo Verde na década de oitenta 5 e reconheceram o valor especial da Cidade Velha 6, a primeira fundação urbana em Cabo Verde e porto importante nas transações atlânticas na época esclavagista. Data de 1992 a primeira tentativa de candidatura dessa urbe a património da humanidade. Só alguns anos depois, após terem sido criadas condições para a realização do plano de gestão, que envolveu a participação do arquiteto Álvaro Siza no desenvolvimento do projeto de revitalização urbana, trabalho esse que passou pelo envolvimento da população local na definição das premissas gerais. A candidatura foi aceite e a antiga cidade de Ribeira Grande, passou a pertencer à lista do património mundial da humanidade. Como afirma José Manuel Fernandes: “Em termos de património construído, a classificação da Ribeira Grande / Cidade Velha de

    3 AYMERICH, Carlo; PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana – Mindelo”. edarq – Editorial do Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007). p.164 “A nação cabo-verdiana é o resultado da mistura étnica e cultural de portugueses com mais de vinte nações africanas.” Idem, ibidem.5 “Esta primeira missão da UNESCO no campo da preservação dos bens culturais teve como objectivo avaliar os bens de Cabo Verde e formular sugestões para a elaboração de um plano de valorização do mesmo. A missão realizou-se de 27 de Novembro a 27 de Dezembro de 1980 e permaneceu a maior parte do tempo na ilha de Santiago, mas visitou também as ilhas do Fogo (4 dias), de S.Vicente (4 dias), e de Santo Antão (2 dias).” Idem, ibidem.6 “A Ribeira Grande, hoje conhecida como a “Cidade Velha" de Santiago (classificada pela UNESCO como Património da Humanidade), que constituiu a primeira cidade europeia em África, desenvolveu-se a partir do século XV ao longo de uma ribeira escavada entre vales, espaço propicio para protecção e obtenção de água - num território geralmente árido e inóspito.” in FERNANDES, José Manuel - Luso Africana – Arquitecturas e Urbanismo na África Portuguesa, Lisboa: Caleidoscópio, 2015. p.35

  • 23

    Santiago como património mundial / World Heritage pela UNESCO, em 2009, foi sem dúvida um marco de dimensão internacional para a vida cultural do arquipélago 7.” Depois de atingir esse objetivo, tem-se trabalhado de forma mais intensa e abrangente na valorização, preservação e classificação do património nas suas diferentes tipologias (tanto materiais como imateriais), sendo algum destes monumentos recuperados. Um dos exemplos mais recentes é o atual Museu da Resistência, instalado no antigo Campo de Concentração do Tarrafal. Estas ações trazem esperança numa melhor abordagem desse tema, no entanto é possível identificar ainda algumas lacunas, nomeadamente no que se refere a alguns casos de arquitetura vernacular.

    Para além da investigação concretizada no âmbito académico, a administração pública nomeadamente o Instituto do Património Cultural, órgão do ministério da cultura, tem realizado trabalhos de salvaguarda do património arquitetónico cabo-verdiano. Por sua vez, entidades privadas como o Atelier Mar 8 tem trabalhado tanto na sensibilização para o reconhecimento de valores culturais, como na dinamização e preservação de técnicas ligadas a construções tradicionais, artes e ofícios do país. A ONG dispõe de um Centro de Formação na cidade do Mindelo onde forma artesãos oriundos de várias ilhas do país, nas mais variadas tecnologias 9.

    Partindo do reconhecimento da pertinência do tema e das lacunas existentes nos trabalhos que abordam o património arquitetónico cabo-verdiano, a dissertação irá procurar desenvolver os seguintes pontos:

    1- fazer o enquadramento histórico do processo de salvaguarda de bens culturais, apresentando alguns dos seus protagonistas e das suas iniciativas. Procuramos colmatar algumas das lacunas identificadas em trabalhos anteriores da mesma natureza, que restringem a abordagem ao período histórico da colonização portuguesa, pelo que a diacronia contemplada nesta dissertação se

    7 FERNANDES, José Manuel; JANEIRO, Maria de Lurdes; MILHEIRO, Ana Vaz - Cabo Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas, Lisboa, Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA, 2014. p.13 “Em 2013 o governo assinalava, no quadro do património cultural e construído, a existência de cinco urbes classificadas como Património Nacional: O Plateau (núcleo histórico) da Praia, o Mindelo, São Filipe, Ribeira Brava e Nova Sintra (esta reconhecida em Outubro de 2013) – para além dos dois sítios classificados, a Pedra de Lume e o “Campo” do Tarrafal.” Idem, p.138 “O ATELIER MAR - Mais do que recuperar e promover as artes e ofícios de Cabo Verde, o Atelier Mar (onde Leão Lopes é um os mentores desde o seu inicio) desenvolve um trabalho exemplar junto da população mais carenciada, não só de São Vicente mas também na ilha de Santo Antão, no Concelho de Porto Novo, em Lajedos. A formação, integração social, preservação dos recursos hídricos e ambientais e a preservação da cultura e identidade das populações rurais são algumas das iniciativas que esta ONG desenvolve. ‘Atelier Mar – Centro de Artes e Ofícios.” in SILVA, José Carlos de Paiva e - ARTE/desenvolvimento. Porto: FBAUP, 2009. p.1119 Idem, ibidem.

  • 24

    estende até à atualidade 10.

    2 – fundamentar a análise da práxis de intervenção patrimonial anterior ao momento da independência nacional em estudos exemplares, conhecer e analisar os dinamismos anteriores à independência e expor acontecimentos da pós-independência, as dinâmicas e os contributos que guiaram a exaltação da cultura e a preservação do património cabo-verdiano. Investigadores como José Manuel Fernandes, Ana Vaz Milheiro e Vera Mariz têm vindo a desenvolver um vasto trabalho, que engloba temas como o urbanismo e a arquitetura no ultramar, que incluem algum enfoque sobre Cabo Verde 11. Para a fase pós-independência recorreu-se aos inúmeros trabalhos produzidos em contexto académico que focam temas como a arquitetura doméstica, o património monumental e os museus em Cabo Verde 12.

    3- mostrar alguns dos traços da arquitetura vernacular de matriz popular, no sentido de expor as suas características e o seu contributo para a identidade arquitetónica tradicional. Também são exibidos projetos de reabilitação com análises aos métodos utilizados, as tradições recuperadas, as permanências,

    10 Os estudos teóricos desenvolvidos, nomeadamente por intelectuais que, de certa forma, contribuíram para a definição da cultura local e ao mesmo tempo para a valorização patrimonial no arquipélago. A nível teórico é de destacar que existem abordagens diversas de forma a enaltecer os valores da cultura cabo-verdiana. Luís Benavente para além de dirigir dos trabalhos de reabilitação dos monumentos da Cidade Velha na década de sessenta, também produziu alguns trabalhos teóricos acerca dos monumentos e do património cabo-verdiano, por sua vez, Orlando Ribeiro no seu livro “A ilha do Fogo e as suas erupções” deixou um legado importante sobre a cultura e arquitetura da ilha do Fogo, do mesmo modo, o geografo Ilídio Amaral produziu um trabalho de investigação exaustivo sobre a ilha de Santiago reproduzido na monográfica “Santiago de Cabo Verde, A Terra e os Homens” publicado em 1964. Na pós-independência João Lopes Filho, antropólogo cabo-verdiano, contribuiu de forma ativa com a produção de estudos sobre a antropologia cultural e o património sociocultural do arquipélago.11 Exemplos de livros desses autores: - Cidades e Casas da Macaronésia, José Manuel Fernandes (1993) - NOS TRÓPICOS SEM LE CORBUSIER, Ana Vaz Milheiro (2012) - Cabo Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas, José Manuel Fernandes, Maria de Lurdes Janeiro, Ana Vaz Milheiro (2014); - Luso Africana – Arquitecturas e Urbanismo na África Portuguesa, José Manuel Fernandes (2015); - a “memória do império” ou o “império da memória” a salvaguarda do património arquitectónico português ultramarino (1930-1974), Vera Félix Mariz (2015)12 Exemplos de trabalhos académicos: - Construir e Habitar a Casa Tradicional de Cabo Verde na Cidade Velha, Ana Filipa Marques (2001) - Habitação rural em Santo Antão, Catarina Sampaio (2006) - Áreas protegidas e/ou zonas de desenvolvimento turístico em Cabo Verde: o caso da Boa Vista, L. LIMA (2008) - Arte / desENVOLVIMENTO, José Carlos Paiva Silva (2009) - O Museu da Resistência: Museutransnacional, Carlos Mendes (2010) - Reconversão da penitenciária e a sua reinserção urbana: Museu da Resistência, Paulo Alexandre Monteiro Lima (2010) - A prática de uma aprendizagem, Ângelo Lopes (2014) - Uma Proposta de Valorização para o Museu da Resistência do Tarrafal, Claudino Borges (2014)

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    como também as inovações introduzidas.

    4- mostrar como algumas manifestações do turismo cultural podem constituir um caminho alternativo de desenvolvimento e salvaguarda do património arquitetónico, capaz de assegurar a preservação do espírito dos lugares e das suas identidades.

    5- mostrar como as construções contemporâneas ligadas ao turismo, maioritariamente de massas, que, perseguindo modelos globalizados, configuram identidades e imaginários estranhos à essência cultural do arquipélago, podem constituir um entrave à preservação do legado patrimonial, contrariamente às arquiteturas que reinterpretam as características construtivas tradicionais.

  • 26

    Metodologia e Estrutura

    O estudo empírico baseia-se na análise de intervenções arquitetónicas recentes, concretizadas em diversas ínsulas, e considerados exemplares. Para isso foram selecionados cinco casos de estudo, resultantes de projetos com naturezas, programas e modus operandi díspares, têm em comum o facto, em conjunto, materializarem um amplo espectro de questões e um quadro teórico mais abrangente, tais como, a reabilitação urbana, reabilitação de edifício e equipamento, restauro, musealização e construção nova.

    A abordagem aos casos de estudo propõe, numa primeira parte, a exposição descritiva de cada situação, após o que será feita uma reflexão crítica individual, apoiada pelo confronto com outros projetos de natureza similar. Objetivamente, a observação analítica dos casos procura dar a conhecer a geografia, os contextos físicos e sociais e o processo de desenvolvimento dos trabalhos, pela identificação dos intervenientes e das características do projeto. A caraterização social e física do território onde o edifício se insere é estruturada de forma a contemplar questões que vão do macro espaço até à envolvente próxima, procurando transmitir nuances da experiência real dos espaços. A apresentação dos programas de ação é feita através da descrição das motivações e negociações entre atores, mostrando a especificidade de cada situação. A abordagem ao projeto de arquitetura é formulada no sentido analítico da forma, exibindo as opções de projeto, as dificuldades e descortinando os valores promovidos. Nesse sentido, também procura conhecer a fase de construção da obra e, consequentemente, os resultados atingidos. Contudo, a abordagem aos casos de estudo procura expor os contributos para a salvaguarda patrimonial inerentes a cada um, como também verificar possibilidades de uso dos valores reconhecidos na arquitetura contemporânea.

    Neste sentido, o estudo implicou a realização de tarefas distintas, mas complementares, tais como: análise de fontes bibliográficas (monografias e ensaios); abordagem dos casos de estudo, recorrendo a referências monográficas, periódicos, fontes arquivísticas, desenhos técnicos e informações orais; realização de entrevistas aos protagonistas dos casos a analisar, a partir das quais foi possível reunir dados objetivos. Foram ainda recolhidas fontes primárias na investigação de campo com registo dos objetos de estudo através de diferentes meios, tais como, visita às obras, fotografia e desenhos.

    A dissertação está estruturada em quatro partes interdependentes. A primeira faz a exposição das motivações, objeto e objetivos, pertinência e a metodologia do estudo.

    No primeiro capítulo expõe-se o quadro teórico e tenta-se caracterizar os principais conceitos associados às temáticas da dissertação e faz-se o enquadramento histórico da salvaguarda do património em Cabo Verde, a

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    caracterização geográfica do arquipélago e da sua arquitetura vernacular.

    No segundo capítulo será feita a análise e a interpretação de cada um dos casos de estudo, identificando-se alguns modelos que lhes serviram de referências ou que por elas foram informados. Será assim feita uma reflexão sobre o projeto e uma comparação com outros casos, em contexto nacional ou internacional. Em modo de conclusão, a última parte da dissertação expõe uma consideração final e lança algumas perspetivas para futuros trabalhos.

  • CAPÍTULO 1ENQUADRAMENTO

  • 30

    1.1 - Património, Identidade e Valor

    “Pouco ou nada vem do génio ou do acaso. Aquilo que somos é daquilo que fomos construindo ao longo do tempo, e é sempre, inequivocamente, uma construção da história. Em todos os tempos e em todas as épocas, houve sempre quem considerasse que, antes de si o caos…Estultícia apenas, menoridade dos humanos. Os chamados «génios» foram sempre, de um modo geral, os primeiros a reconhecê-lo. E em património, enquanto disciplina, impõe-se desde logo, como estética profissional, uma atitude de humildade e respeito perante o legado que devemos trabalhar.”13

    Elísio Summavielle

    O moderno conceito de património14 cultural, cuja origem remonta aos finais do século XVIII, evoluiu bastante no seu recorte conceptual, ganhando maior abrangência e diversidade. Inicialmente centrado no monumento isolado ou em pequenos setores da sua envolvente, posteriormente passa a integrar conjuntos edificados, espaços urbanos e, por fim, o território, nas suas dimensões material e imaterial.

    As diferentes cartas doutrinárias e convenções internacionais que versam sobre as problemáticas patrimoniais foram contribuindo para a contínua revisão da definição de monumento e das respetivas ferramentas de gestão e salvaguarda15.

    A Carta de Atenas, que fixa as conclusões da Conferência Internacional sobre o Restauro dos Monumentos, realizada em 1931, procurou estabelecer critérios gerais de intervenção no património arquitetónico, de entre os quais se pode destacar o apelo para a importância do uso e da preservação da função do monumento, associadas à sua manutenção regular, de modo a garantir a conservação e assim evitar as tão prejudiciais reconstituições integrais. O apelo ao respeito pela dimensão autoral da obra e pela necessidade de preservar e respeitar o carácter não só do monumento como da sua envolvente. Retomando alguns dos princípios doutrinais de autores consagrados, nomeadamente de Camillo Boito, reconhece-se a pertinência de suprimir partes do edifício que constituam ruídos e ofusquem a sua leitura, ou então de acrescentar novos

    13 SUMMAVIELLE, Elísio - “Memória e identidade”. in Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arquelógico, I,P. - 100 Anos de Património Memória e Identidade. Portugal 1910-2010, Lisboa: IGESPAR, 2010. p.514 “Património (Bem de herança que passa, de acordo com as leis, dos pais e das mães para os filhos). Esta bela e muito antiga palavra estava, na origem, ligada às estruturas familiares, económicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo.” in CHOAY, Françoise – A Alegoria do Património. Lisboa: Edições 70, 2016. p.1115 “A primeira Conferência Internacional para a Conservação dos Monumentos Históricos, realizada em Atenas em 1931, reuniu apenas europeus. Na segunda, realizada em Veneza em 1964, participaram três países não europeus: a Tunísia, o México e o Perú. Quinze anos mais tarde, oitenta países pertencendo aos cinco continentes tinham assinado a Convenção do Património Mundial.” Idem, p.14

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    elementos, mas sempre garantindo a diferenciação entre o novo e a matéria original. No caso de restauros de ruínas preconiza a colocação no primitivo lugar das partes do edifício que estavam derrubadas, através dum processo de anastilose. Para além dessas recomendações especificas e de caráter eminentemente operativo, os técnicos lançaram um apelo generalizado a todos povos para respeitarem e cuidarem dos monumentos 16, numa antevisão do que seria o conceito de património da humanidade.

    Em 1964 teve lugar a segunda conferência internacional, da qual resultou a Carta de Veneza. É de destacar que nesta edição do congresso houve uma ampliação do objeto de estudo relacionado com o património pois a carta refere-se não só a monumentos, mas também a sítios. A própria definição de monumento histórico ganhou maior amplitude, englobando agora todo o “testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de acontecimento histórico”, onde cabem também as obras modestas e anónimas, que tenham adquirido com o tempo um significado cultural. Nesse sentido, ficam abrangidas as arquiteturas vernaculares. Também foram feitos apelos a uma mais cuidada salvaguarda do valor de documento histórico do monumento, convocando diferentes áreas científicas e tecnológicas para participarem no processo de salvaguarda. Quanto à intervenção material, surgiram as seguintes recomendações:

    - proceder a estudos arqueológicos e históricos antes da intervenção;

    - conservar os estilos das diferentes épocas encontradas no edifício;

    - respeitar os materiais originais;

    - estabelecer processos de distinção e reversibilidade, no caso de ser necessário introduzir novos elementos na composição;

    - como também todos os elementos novos têm de respeitar a composição original;

    - cuidar da salvaguardar não só da integridade do edifício isolado, mas igualmente do contexto físico onde se inserem

    - preservar a função do edifício, ou introduzir novos usos, desde que compatíveis, de modo a que este se possa manter útil à sociedade 17.

    Após o encontro de Veneza, aconteceram inúmeros momentos de debate e reflexão sobre a salvaguarda patrimonial, embora se pressinta uma cada vez maior especialização dos assuntos. O reconhecimento do valor das arquiteturas

    16 Carta de Atenas sobre o Restauro de Monumentos , Atenas (Grécia), 1931.17 Carta de Veneza sobre a Conservação e o Restauro de Monumentos e Sítios, Veneza (Itália), 1964.

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    anónimas e, por vezes, da arquitetura popular fora já afirmado no século XIX, por Ruskin que “teorizou a inclusão no património edificado a preservar, dos conjuntos urbanos históricos, da arquitectura anónima que, ao longo de inúmeras gerações, construiu a cidade” 18, essas arquiteturas constituem valores que englobam a identidade, as tradições e as vivências de um povo. Neste sentido, no caso específico deste trabalho, para nos dar uma apreciação dos valores inerentes a arquitetura vernacular poderá ser importante, e tal como foi observado na convenção sobre a arquitetura vernacular no México em outubro de 1999,

    “The built vernacular heritage occupies a central place in the affection and pride of all peoples. It has been accepted as a characteristic and attractive product of society. It appears informal, but nevertheless orderly. It is utilitarian and at the same time possesses interest and beauty. It is a focus of contemporary life and at the same time a record of the history of society. Although it is the work of man it is also the creation of time. It would be unworthy of the heritage of man if care were not taken to conserve these traditional harmonies which constitute the core of man's own existence.”19

    Será ainda de referir a Carta da Cracóvia, publicada no ano 2000, que lança o desafio de se estabelecer planos para a gestão integrada e sustentável dos bens, fundamentada no reconhecimento dos impactos futuros e mudanças de paradigmas de as ações poderão ser objeto, de modo a prever riscos de degradação física ou destruição do significado cultural do património. Para isso, defendem que deve haver maior preocupação com o fator humano, no sentido de garantir a preservação da autenticidade e da identidade culturais. A formação e a educação generalizada da população é fundamental para se assegurar maior envolvimento dos diferentes grupos sociais no processo de atuação. No caso de ser necessária a realização de intervenções, alerta para a importância do conhecimento prévio dos bens a proteger e para a necessidade de mobilizar equipas multidisciplinares ao nível dos processos de avaliação e de reflexão sobre os valores socioculturais e os contextos socioeconómicas dos lugares, para promover a preservação dialética dos diferentes estratos históricos. Também houve um apelo para a necessidade de compreensão e respeito pelo carácter das paisagens nos processos de intervenção, pois “as paisagens reconhecidas como património cultural são o resultado e o reflexo da interacção prolongada nas diferentes sociedades entre o homem, a natureza e o meio ambiente físico. São testemunhos da relação evolutiva das comunidades e dos indivíduos com o seu meio ambiente.”20

    18 AGUIAR, José - Cor e cidade histórica, estudos cromáticos e conservação do património. Porto: FAUP, 2002. p.8119 CHARTER ON THE BUILT VERNACULAR HERITAGE (1999), México20 Carta de Cracóvia sobre os Princípios para Conservação e o Restauro do Património

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    Reportando a um paradigma no qual as identidades demonstram ser importantes, uma das conclusões da conferência afirma que “o objectivo da conservação dos monumentos e dos edifícios com valor histórico, que se localizem em meio urbano ou rural, é o de manter a sua autenticidade e integridade, incluindo os espaços interiores, o mobiliário e a decoração, de acordo com o seu aspecto original.” A conservação pode ser efetuada através de diferentes modalidades operativas diferenciadas e, porventura, complementares, tais como: o controle do meio ambiental, a manutenção, a reparação, o restauro, a renovação e a reabilitação.

    Hoje, é geralmente reconhecido que a atuação sobre o património e o vasto espectro de questões que esta comporta, exige um trabalho consciente, contínuo e pluridisciplinar, em que haja uma permanente atualização de conhecimentos e debate crítico sobre os princípios teóricos. O reconhecimento e a salvaguarda do património, nas suas dimensões material e imaterial, envolvem decisões por parte das entidades reguladoras, tendo em vista não só a conservação dos valores herdados, mas a criação de novos valores para o futuro. Embora complexo, poderá ser a forma mais prudente para informar o trabalho de salvaguarda e preservação desses bens. As questões nunca se esgotam nem existem soluções definitivas, sendo necessário enfrentar constantemente novos desafios, através dum processo contínuo de autorreflexão, de teor coletivo e interdisciplinar. Como afirma Nuno Valentim:“Os problemas do património despertam “…nos nossos dias, um interesse sem precedentes, afectando decisões políticas e grandes correntes culturais”. Este interesse e a perceptível mediatização do tema necessitam de ser acompanhados por reflexão sobre as práticas, investigação e produção de conhecimento.” 21

    Um dos temas que mais tem mobilizado o esforço intelectual é a questão das identidades, num momento em que se assiste a uma mais intensa e rápida metamorfose cultural, por processos globalizados de contaminação, aos que se opõem geralmente reações locais.

    “A questão das identidades – pessoais ou coletivas, sociais, locais ou nacionais – é sem dúvida das mais controversas, levantando problemas filosóficos e epistemológicos demasiadamente mal resolvidos até hoje, na minha opinião, por resvalarem com excessiva frequência para o essencialismo identitário. Foi por isso, creio eu, que a historiografia convencional se manteve cética e mesmo distante perante a questão das identidades.”22

    Construído, Cracóvia (Polónia), 2000.21 LOPES, Nuno Valentim - Projecto, Património Arquitectónico e Regulamentação Contemporânea. Sobre Práticas de Reabilitação do Edificado Corrente. Porto: FAUP, 2016. p.222 CABRAL, Manuel Villaverde - A Identidade Nacional Portuguesa: Conteúdo e Relevância. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2003. p.513

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    Manuel Vilaverde Cabral expõe assim a complexidade que envolve a questão da identidade cultural, apontando o essencialismo identitário como um caminho que leva ao impasse, pois reporta para um entendimento rígido e fixo dos valores em causa. No mesmo sentido, podemos afirmar que “as identidades colectivas nunca são, portanto, nem definitivas nem sempre estáveis (embora muitas vezes estáveis), mas frequentemente, works in progress. São, quase por regra, constitutivamente incompletas: daí a sua plasticidade, o seu dinamismo, a sua contingência, a sua impureza.”23

    Assumir a nossa origem e dizer que pertencemos a um lugar faz parte da nossa identificação, não ter isso faz com que alienemos da realidade 24. Sabendo que a identidade é construída por meio do reconhecimento das semelhanças e da diferença em relação ao outro, nesse sentido, podemos assumir que

    “a identidade é, por isso, um processo dinâmico de negociação radicado no presente, sugerindo a constante construção e reconstrução das suas fronteiras simbólicas […]. A identidade não é, portanto, uma propriedade natural e essencial inscrita nas coisas e nas pessoas. É, antes, algo que os indivíduos ou os grupos decidem voluntária e estrategicamente construir […]. Neste sentido, toda a formulação da identidade é apenas uma versão da mesma, podendo coexistir diversas versões de uma mesma identidade, sendo que toda a versão da identidade é sempre ideológica, pois estabelece uma relação dialéctica entre a realidade, as ideias, os valores e os interesses de quem a propõe e activa.”25

    No caso das identidades culturais e urbanas, onde existe um coletivo a formular as suas identificações, tudo poderá ser mais complexo pelas entidades envolvidas e pela maneira difusa que as coisas podem suceder. Como refere Boaventura Sousa Santos,

    “sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a mulher, o homem, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis

    23 MOREIRA, Carlos Diogo – “Prefácio”. in PERALTA, Elsa; ANICO, Marta, [et al.] Patrimónios e Identidades: Ficções Contemporâneas. Oeiras: CELTA EDITORA, 2006.24 “Ter uma identidade significa, de facto, ter tomado posse de um mundo, compreendido com um acto de idenficação. Somente quando se alcançar essa identificação, poder-se-á dizer que se habita no verdadeiro sentido da palavra (…) Assim, dizemos como auto - identificação: sou 'florentino', ou sou “romano”. Se este aspecto do viver for perdido, surge a alienação, o alheamento e, na sua relação com o mundo, o Homem perde a sua base existencial.” in AGUIAR, José - Cor e cidade histórica, estudos cromáticos e conservação do património. Porto: FAUP, 2002. p.11525 PERALTA, Elsa; ANICO, Marta, [et al.] - Patrimónios e Identidades: Ficções Contem-porâneas. Oeiras: CELTA EDITORA, 2006. p.2

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    em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades, são, pois, identificações em curso.”26

    Tentado direcionar estes pressupostos para o campo das identidades urbanas, e sabendo que as cidades estão em permanente transformação, tanto das suas gentes como das suas arquiteturas e paisagens, podemos afirmar que a interpretação das suas identidades pode ser aferida a partir das permanências, sobre os elementos que asseguram alguma continuidade de sentido aos lugares. Ou seja, entendemos que as características mais estáveis de um lugar podem ser reconhecidas durante mais tempo, enquanto que as características fugazes podem não permanecer nas nossas memórias, por outro lado, a identidade pode também ser reconhecida nesse dinamismo de transformações e nas novidades que uma cidade ou um lugar pode oferecer. A identidade pode assim ser forjada pelo aspeto mutante que a realidade carrega. Tema de grande complexidade pelo seu carácter polissémico, os processos de construção identitária implicam o constante acompanhamento das dinâmicas culturais.

    Um outro conceito, intrínseco à própria noção de património, que implica uma abordagem atenta por conter possibilidades de interpretação carregadas de subjetividades é o de valor. Nós atribuímos valores aos objetos, aos lugares e às coisas em geral, através de juízos que possuem uma carga relativa e que, como tal, obrigam a que sejam estabelecidos processos de negociação intersubjetiva de que resultem critérios comuns que informem uma apreciação objetiva e coerente dos bens patrimoniais.

    O reconhecimento dos mecanismos de afirmação dos valores, sua estratificação e coexistência por vezes conflitual deve-se ao trabalho do historiador vienense Aloïs Riegl (1858-1905), publicado em 1903, “O Culto Moderno dos Monumentos”. Ainda hoje este documento constitui a base para a reflexão sobre a identificação dos valores da obra arquitetónica.

    “Riegl entendeu como valores contemporâneos dos monumentos os seguintes: (i)valores artísticos relativos, referentes a uma sensibilidade contemporânea; (ii) valor de novo, que a sociedade sempre atribuiu a uma aparência fresca, de récem-acabado, no apresso ou preferência da coisa nova sobre a coisa velha (iii) finalmente, o valor de uso, tomado sobretudo como critério de distinção entre o monumento histórico e as ruínas, as quais não possuem valor de uso, mas apenas valor memorial e histórico.”27

    26 SANTOS, Boaventura de Sousa - Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-modernidade. Porto: Edições Afrontamento, 1994. p.11927 AGUIAR, José - Cor e cidade histórica, estudos cromáticos e conservação do património. Porto: FAUP, 2002. p.48

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    É de salientar que os valores expostos por Riegl estão presentes não só nos monumentos 28, mas também num campo mais difuso que pode incluir a arquitetura popular, a arquitetura corrente, os equipamentos urbanos. Os critérios estabelecidos por Riegl alertam-nos para o facto de algumas categorias de valores se oporem entre si, o que gera situações de grande complexidade quando se pretende atuar sobre esses organismos. Segundo Nuno Valentim,

    “a análise e a percepção precursoras de Riegl põem ainda a descoberto as exigências simultâneas e contraditórias dos valores que envolvem o edificado patrimonial – também estes dependentes das circunstâncias e por isso negociáveis caso a caso: “0 valor de antiguidade opõe-se ao valor de novo e ameaça o valor de uso, enquanto este, por sua vez, pode criar incompatibilidades com o valor artístico e o valor histórico. Estes valores contraditórios produzem compromissos que, na óptica do autor [Riegl], são negociáveis caso a caso, em função do estado do monumento e do respectivo contexto social e cultural. (…) A percepção dos conflitos latentes no interior da noção de monumento histórico explica, de certo modo, a ambiguidade em que, por vezes, caem os doutrinadores e práticos do restauro e que assombra, de forma geral, as iniciativas de salvaguarda do patrimônio histórico no século XX.”29

    28 Os valores de monumento e seu desenvolvimento histórico - “Por monumento no sentido mais antigo e originário compreende-se uma obra de mão humana, construída com fito determinado de conservar sempre presentes e vivos na consciência das gerações seguintes feitos ou destinos humanos particulares (ou conjuntos de tais feitos e destinos). Pode ser um monumento artístico ou escrito, conforme se dá a conhecer ao espectador o acontecimento a imortalizar com os meros meios expressivos da arte plástica ou valendo-se de uma inscrição; o mais frequente é encontrarem-se unidos em igual grau em dois géneros.” in RIEGL, Alois - O Culto dos Modernos dos Monumentos. Lisboa: Edições 70, 2016. p.929 LOPES, Nuno Valentim - Projecto, Património Arquitectónico e Regulamentação Contemporânea. Sobre Práticas de Reabilitação do Edificado Corrente. Porto: FAUP, 2016. p.19. - Citando: NETO, Maria João Baptista. Memória, Propaganda e Poder: O Restauro dos Monumentos Nacionais (1929-1960). Porto: FAUP, 2001. p. 51.

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    500 km 500km

    01 Cabo Verde, situação geográfica

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    1.2- Cabo Verde, Situação Geográfica e Arquitetura Vernacular

    Cabo Verde é um país insular formado por dez ilhas vulcânicas. Situa-se a cerca de quinhentos quilómetros de distância da costa ocidental de África 30. “Pela sua situação geográfica na zona tropical atlântica, o Arquipélago de Cabo Verde é tipicamente um estado do «Sahel»: «Le Sahel en pleine mer»”,31 facto que lhe confere um clima tropical seco de aridez acentuada. As ilhas compõem paisagens diversificadas, entre a tropical e a aridez desértica,32 e, “tal como os países do Continente Africano, o Arquipélago conhece um longo período de seca de 9 meses e um período irregular de chuvas no Verão/Outono de 5 meses.”33

    As ilhas de Cabo Verde foram descobertas durante as expansões portuguesas “entre 1460 e 1462, por António da Noli, Diogo Gomes e Diogo Afonso, constituídos lugares inicialmente desabitados, que foram seguidamente povoados pelos portugueses” 34. Encontradas desérticas e sem condições favoráveis para constituição de povoados, o certo é que estavam numa posição favorável de ligação aos novos portos mirados pelas frotas portuguesas, o que impulsionou a fixação humana. Anos após o descobrimento, a ilha de Santiago foi o principal porto de escala e tráfego esclavagista,35 constituindo uma paragem obrigatória nas ligações marítimas transatlânticas 36. Fundaram-se aqui

    30 “As Ilhas de Cabo Verde ficam situadas a cerca de 500 Km a ocidente da ponta mais ocidental de Africa - o «Cap Verd» (Senegal), do qual as ilhas receberam o nome. Situando-se entre 14° 48' e 17° 12' de latitude norte', assim como entre 22° 41' e 25° 42' de longitude oeste, são as componentes mais a sul do grupo de ilhas constituídas pelas ilhas dos Açores, Madeira, Canãrias e Cabo Verde. Na direcção do principal vento dominante de nordeste, o Arquipélago é dividido em Ilhas do Barlavento a norte, que são compostas pelas Ilhas de Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Sal e Boa Vista e os Ilhêus Branco e Razo, e a sul pelas Ilhas de Sotavento, que se compõem das Ilhas de Maio, Santiago, Fogo, Brava, às quais se juntam os Ilhéus Secos: Grande, Luís Carneiro e Cima.” in KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo Verde: aspectos históricos, sociais, ecológicos e económicos: tentativa de análise. Instituto Caboverdiano do livro, 1987. p. 13-1431 Idem, p.2432 “Sub-tropicais e áridas, escassamente povoadas desde a sua descoberta na segunda metade do século XV, as dez ilhas de Cabo Verde representaram por séculos uma escala útil nas longas viagens transatlânticas, e na articulação com a costa africana.” in FERNANDES, José Manuel - Luso Africana – Arquitectura e Urbanismo na África Portuguesa, Casal de Cambra; Caleidoscópio, 2014. p.3533 KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo Verde: aspectos históricos, sociais, ecoló-gicos e económicos: tentativa de análise. Instituto Caboverdiano do Livro, 1987. p.2434 FERNANDES, José Manuel; JANEIRO, Maria de Lurdes; MILHEIRO, Ana Vaz - Cabo Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas, Lisboa, Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA, 2014. p.735 Idem, p. 836 “O arquipélago serviu de apoio às passagens marítimas transatlânticas ao longo dos séculos, criando-se em várias das suas ilhas diversos núcleos urbanos, o mais antigo dos quais constitui hoje um precioso vestígio em ruínas (Cidade Velha de Santigo), classificado como

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    02 A Ribeira Grande vista do mar, gravura holandesa de 1635

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    vários núcleos urbanos, sendo o primeiro a cidade da Ribeira Grande. Depois da fixação nesta, num processo lento, os ocupantes foram explorando as outras ilhas 37, não havia quem se disponibilizasse para habitar nas outras ilhas mais isoladas e com escassez de recursos. A ilha do Fogo foi a segunda a ser povoada e estabeleceu-se com atividades ligadas à agricultura. A confluência de várias culturas, motivadas pelo tráfego esclavagista de que o arquipélago foi palco, implicou uma readaptação do modo de vida das comunidades, num lugar climática e geograficamente diferente. A consolidação de uma cultura local resultou desse fenómeno de adaptação, e a identidade do país foi construída a partir daí. A ideia seguinte traduz certamente esse processo de miscigenação:

    “Cabo Verde parece ser um lugar onde dois mundos conluiram para se encontrarem, onde duas raças se esforçaram por se cruzar e onde a história é feita mais de estórias de sofrimento do que de alegria. A realidade, porém, é outra: há um só mundo, e é novo, não há raça, existe o cabo-verdiano, e as histórias são estórias de esperança.” 38

    Cada uma destas ilhas tem as suas particularidades físicas, do que resultam quadros socioeconómicos específicos, determinados pelos recursos disponíveis. Pela diversidade das atividades produtivas, Santiago é a ilha que se apresenta como a mais polivalente. Santa Luzia permanece despovoada e tem sido preservada praticamente no seu estado natural, constituindo uma reserva ecológica. Atualmente, estas ilhas da “morabeza” já não representam uma escala indispensável para as frotas que atravessam o atlântico, mas possuem um encanto que atrai visitantes, principalmente na procura de refúgio e descanso no aconchego e calor do povo e das ilhas.

    Relativamente às expressões de arquitetura cabo-verdiana, verifica-se que, num momento inicial, as construções seguiam modelos semelhantes aos da metrópole, o que parecia corresponder às necessidades dos colonizadores, no entanto, com o tempo e acompanhando a mudança das circunstâncias, os nativos foram criando tipologias arquitetónicas e processos construtivos próprios. Em Cabo Verde, a edificação vernácula de cariz popular é o resultado

    Património da Humanidade pela UNESCO.” in FERNANDES, José Manuel; JANEIRO, Maria de Lurdes; MILHEIRO, Ana Vaz - Cabo Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas, Lisboa, Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA, 2014. p.737 “A colonização de Cabo Verde faz-se lentamente. Meio século depois de descobertas, ainda a maior parte das ilhas eram despovoadas”. in RIBEIRO, Orlando - A Ilha do Fogo e suas Erupções; Comissão Nacional Para As Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; (1ª Edição de1954); Lisboa, 1997. p.15338 Marques, Ana Filipa. (2001), Construir e Habitar a Casa Tradicional de Cabo Verde na Cidade Velha. Prova Final, Porto, FAUP. p.25 – in “O erro de A. Carreira” de Humberto Cardoso, artigo publicado em “Cultura, Cabo Verde”, Publicação Semestral, nº2, julho de 1998, p.33.

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    03 Esquema de planta da casa rural cabo-verdiana por Ilídio Amaral

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    do processo enraizamento do homem às circunstâncias daquela geografia, constitui uma resposta ao clima, à topografia e às necessidades primárias da habitação. Com base nos escassos recursos oferecidos por aquelas ínsulas, o engenho utilizado para a construção procurou adaptar os materiais endógenos, em construções de volumetrias simples, que procuram coabitar com as topografias acidentadas dos lugares. Estas arquiteturas desempenham maioritariamente funções habitacionais e integram a paisagem rural das ilhas. São construções de pequenas dimensões, de volume único na sua génese e que, ganhando vizinhança, acabam por compor pequenos aglomerados.

    A materialidade da construção é definida por materiais endógenos: a pedra - basalto ou calcário, dependendo da ilha; o colmo (constituído por folhas de cana-sacarina, folhas de coqueiro ou de tamareiras); o sisal e a madeira de coqueiro, para a armação da cobertura e para a construção das portadas dos vãos.

    Construtivamente, a habitação vernacular cabo-verdiana apresenta-se de forma robusta. As suas paredes em alvenaria de pedra, têm espessuras generosas (entre 40 a 60cm), o que permite dar estabilidade e a inércia térmica necessária à adaptação ao clima quente. Essas paredes geralmente são de junta seca, embora, em casos mais raros, possam integrar o barro como elemento aglutinante. Habitualmente não têm revestimento, nem exterior nem interiormente, excetuando-se casos em que os recursos económicos dos seus proprietários, ou os recursos físicos da ilha em que se encontra, possibilitam a sua utilização. Este é o caso da ilha da Boavista, onde é comum a produção da cal como inerte para a composição de rebocos e para acabamento das superfícies.

    No geral, as habitações apresentam poucos vãos, que se concentram nos alçados frontais, organizados por porta central (com dimensão de dois metros de altura por um metro de largura) e duas janelas laterais (com um metro por setenta centímetros) dispostas simetricamente. Nos alçados tardozes existem dominantemente vão único, correspondente a uma porta, posicionado em linha com a porta da fachada oposta. Só excecionalmente existem vãos nos alçados laterais, o que depende da existência ou não de volumes adjacentes na composição, porém, são sempre de pequenas dimensões. As caixilharias, em madeira, podem ser pintadas, o que também depende dos meios de cada proprietário.

    A cobertura geralmente é de duas águas com inclinações de aproximadamente 45º. A sua estrutura é feita em barrotes de madeira sobre o qual apoia o revestimento em colmo, composto por ripados em cana de carriço que contém as camadas de palha, amarradas entre si com sisal.

    O interior organiza-se em dois espaços apenas, uma sala e um quarto. As duas portas que se rasgam na fachada e no tardoz permitem o acesso e o atravessamento da sala, espaço que poderá acolher tanto a função de estar como de serviço, caso não existam outras dependências, como a cozinha ou a despensa, esse espaço poderá ser adaptado de modo a permitir essas ocupações. O quarto é um espaço de dimensão menor, tem uma entrada central perpendicular à sala e está reduzido a esse acesso. Os pavimentos, na sua génese, seriam em terra batida, mas posteriormente começou-se a utilizar a pedra como acabamento para o piso.

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    04 Aglomerado de casas em ambiente rural anos 60

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    A habitação “prima pela simplicidade da sua planta e da construção, exprimindo bem o nível social e económico daqueles que a habitam” 39. Como foi já referido, a construção tem volumetria elementar, de piso único e cobertura de duas águas. O núcleo fundamental tem planta retangular, com dimensões que variam de 6 a 8 metros de comprimento por 3 a 4 metros de largura, contudo, há situações em que são adicionados outros corpos, que poderão ter diferente volumetria, dependendo da função e das condicionantes e geometria do terreno.

    A implantação das partes que compõem a habitação exige algum cuidado, pela disposição em relação à incidência da luz solar. Habitualmente evitam-se as grandes aberturas viradas para sul e procuram-se garantir efeitos de sombreamento, recorrendo à plantação estratégica de árvores. Em complemento, o uso de sistemas passivos de ventilação, garantidos pela inteligente distribuição dos vãos, contribui para o nível de conforto deste tipo de construções. As habitações possuem geralmente um logradouro, organizado em dois espaços, um frontal em relação ao edifício e outro posterior, designados localmente por pátio e quintal, respetivamente. O núcleo da habitação unifamiliar tradicional, nas situações mais simples, é formado por sala e quarto, aos quais podem ser adicionados, de acordo com a necessidade e possibilidade do proprietário, a cozinha, a dispensa, a casa de banho.

    Em contexto rural, verifica-se uma complementaridade entre o habitar e laborar, sem que haja uma clara segregação espacial destas funções. A habitação elementar, enquanto extensão do espaço de trabalho e produção, que é o campo, acrescentam-se outros corpos, funcionalmente especializados e autónomos, interligados por espaços exteriores polivalentes, resultando num conjunto mais ou menos complexo de volumes que se adequam, organicamente às características orográficas formando uma composição orgânica. Entre essas áreas está o quintal, o pátio frontal, espaços de apoio à cozinha e às atividades agrícolas. A junção dos vários núcleos permite a formação de aldeamentos com base em arquiteturas vernaculares.

    A implantação, de modo a rentabilizar a reduzida área fértil, procura geralmente lugares periféricos aos terrenos agrícolas e inapropriados ao cultivo, devido à topografia acidentada ou ao difícil acesso. Estes fatores estimulam o engenho dos construtores que promovem uma integração, muitas das vezes, bem conseguida pelo respeito à orografia do terreno. São construções que dialogam fortemente com os aspetos geomorfológicos do lugar, o artificial e o natural parecem fundir-se num só organismo, o que cria uma harmoniosa ligação do edifício com o terreno, acrescentando valor ao lugar e compondo paisagens de beleza singular.

    39 AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta de Investigações do Ultramar; Lisboa, 1964.

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    05 Paisagem rural Cabo Verde anos 60

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    A arquitetura vernacular popular cabo-verdiana está a perder caráter e presença na paisagem, devido às transformações dos sistemas de produção, do quadro socioeconómico das ilhas, dos sistemas construtivos trazidos pela contemporaneidade e das práticas do habitar, factos que determinam uma perda irreparável do património arquitetónico nacional 40.

    A pertinência da preservação dessas construções, tal como aponta Ana Filipa Marques no estudo que efetuou sobre a casa tradicional da Cidade Velha, “[…] também da arquitectura vernácula cabo-verdiana, “podem-se extrair lições de coerência, de seriedade, de economia, de engenho, de funcionamento, de beleza.” 41

    40 “As tradições são postas em causa pela modernidade mas, no momento em que se anuncia um mundo novo, (re)descobre-se o valor do que se perde.” in AGUIAR, José - Cor e cidade histórica, estudos cromáticos e conservação do património, Porto, FAUP, 2002. p.3841 (interesse de recuperar as técnicas tradicionais) in MARQUES, Ana Filipa - Construir e Habitar a Casa Tradicional de Cabo Verde na Cidade Velha. Prova Final, Porto: FAUP, 2001. p.74

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    06 Ruínas da Sé Catedral da Cidade Velha anos 60

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    1.3 - Temáticas de Valorização do Património Arquitetónico em Cabo Verde

    Diferentes momentos marcaram o processo histórico de reconhecimento, valorização e atuação sobre o património arquitetónico no arquipélago, os quais, informados pelas diferentes conjunturas políticas e ideológicas. Apesar de submetidos a um quadro jurídico e administrativo comum, durante o período colonial, os territórios ultramarinos assimilaram e adequaram as diretivas emanadas pela metrópole, no entanto, aquilo que se constata é que as ações relativas a identificação e a salvaguarda dos monumentos suscitaram preocupações em momentos distintos nos dois territórios.Uma das primeiras medidas jurídicas para proteção de vestígios documentais do passado do reino 42, data do reinado de D. João V e traduz uma prática comum às monarquias europeias, que tinha como propósito reafirmar as vetustas origens da nação e a importância do seu devir histórico. De acordo com Ana Cristina Martins,

    “foi D. João V (1706-1750) a personificar este movimento cientifico-cultural que fecundava as vivências intelectuais de Setecentos e assumia o património histórico-artístico como riqueza de toda uma colectividade, num exercicio de despotismo ilustrado e de acção exercida directamente pelo Estado sobre a sua salvaguarda.”43

    Entre as medidas tomadas por este monarca, contam-se a criação da Academia Real de História em 1720 e, no ano seguinte, a publicação dum alvará que defendia a preservação das memórias do passado 44. O registo e a preservação da memória das antiguidades nacionais passaram então a ser concretizados, não apenas através da redação de memórias descritivas, mas sobretudo pelo registo gráfico através do desenho 45. Apesar desta iniciativa precoce, é somente no século seguinte, após a instalação do regime liberal, que são desenvolvidas as primeiras reflexões em torno do

    42 RODRIGUES, Paulo Simões “O longo tempo do património. Os antecedentes da República (1721-1910)”. Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arquelógico, I,P., - 100 Anos de Património Memória e Identidade. Portugal 1910-2010, Lisboa, 2010. p.2043 MARTINS, Ana Cristina - Património histórico-cultural: a emergência das reformas (do Liberalismo ao Republicanismo) - 1.ª parte. Património Estudos nº5, 2003. p.4144 Idem, ibidem.45 Idem. p.42

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    07 Mosteiro da Batalha 08 Mosteiro dos Jerônimos

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    conceito moderno de “monumento nacional” e das modalidades teóricas para a sua salvaguarda e valorização, em boa parte impulsionadas pelo pensamento romântico de Almeida Garrett. Alexandre Herculano, bibliotecário-mor do reino, deu uma significativa contribuição para a disseminação destas questões, com a criação, em 1840, da Sociedade Conservadora dos Monumentos Nacionais e a publicação, na revista O Panorama, da coluna sobre os “monumentos pátrios” 46. A fundação da Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portuguezes (AACAP) e da mais tardia Comissão dos Monumentos Nacionaes, instituições imbuídas da missão de salvaguarda do património arquitetónico e arqueológico, em convergência com instituições congéneres anteriormente fundadas em França, Espanha, Alemanha e Inglaterra, assinala a participação pioneira da sociedade civil neste campo de ação.

    Este movimento associativo permitiu construir e consolidar um património teórico no campo disciplinar, nomeadamente através dos textos e dos exemplos que publicavam no Boletim de Architectura e Archeologia. No início, informado pelas teorias experiências práticas do arquiteto francês Viollet-le-Duc, que desde 1830 vinha aferindo os critérios de restauro estilístico no estaleiro da catedral de Nôtre Dame de Paris, a práxis do restauro em Portugal tem particular expressão em dois dos mais celebrados monumentos pátrios: os Mosteiros da Batalha e dos Jerónimos 47. Desenvolvido ao longo de um século, este processo embrionário, culmina, já após a implantação da república, na publicação dos primeiros instrumentos jurídicos de proteção, nomeadamente da lista de classificação dos Monumentos Nacionais em 1910. Neste grupo não estava contemplado nenhum exemplar localizado em território africano.Apesar da distância geográfica e cultural, em Cabo Verde, que nessa altura era colónia portuguesa, não deixaram de ter expressão algumas destas preocupações relativas à salvaguarda patrimonial. Foi o risco de desaparecimento dos vestígios de antigos monumentos abandonados que levou o bispo radicado no arquipélago, em meados do século XIX, a alertar as autoridades para o estado de conservação em que se encontravam as

    46 “… também na senda do modelar periódico O Panorama, da responsabilidade da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, em cujas colunas ganhou forma a versão portuguesa das antiquitées nationales - os “monumentos pátrios” -, por mão de A. Herculano, para quem a filosofia Kantiana deveria sobrepor-se à aristotélica, num primado do mundo “interior”, introspectivo, sobre o exterior, mais próximo da Natureza, que o estilo gótico tão bem soubera traduzir.” in MARTINS, Ana Cristina - Património histórico-cultural: a emergência das reformas (do Liberalismo ao Republicanismo) - 1.ª parte. Património Estudos nº5, 2003. p.5047 MARTINS, Ana Cristina - Património histório-cultural: a emergência das reformas (do Liberalismo ao Republicanismo) - 1.ª parte. Património Estudos nº5, 2003. p.33-50

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    09 Cidade Velha, vista sobre a Sé anos 60

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    construções da Cidade Velha:

    «Algumas igrejas e capelas pareciam-lhe cavalariças, cobertas de palha, com chão de terra, sem portais nem reboco. A Ribeira Grande, actual Cidade Velha, com “edifícios quase destruídos e os que restavam cobertos de palha”. Os objectos de prata da Sé Catedral foram, nessa época, fundidos e transformados em moeda. Os grandes edifícios desabitados eram demolidos e as suas pedras de cantaria enviadas por barco a Praia. Nem se quer a Sé foi poupada. Em 1875, O Secretário-geral do Governo solicitava ao bispo autorização para demolir e para aproveitar o seu material.» 48

    A perda de importância económica do arquipélago, em consequência da interrupção do tráfego esclavagista, associado à falta de recursos naturais e à inospitalidade daquele território, determinou a secundarização deste território, em relação às demais colónias que possuíam recursos naturais com valor económico. A fragilidade política da I República, envolvida em constantes problemas financeiros que se viram agravados com a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial, limitaram bastante a capacidade de intervenção nas colónias, algumas das quais foram também cenário de guerra. Por outro lado, as instituições administrativas locais não tinham condições financeiras nem autonomia política para a implementação duma estratégia concertada de salvaguarda do “património histórico e artístico”. Apesar disso, assinala-se a tentativa do governador de Cabo Verde, Filipe Carlos Dias de Carvalho, de proteger os vestígios monumentais da Cidade Velha, através do seu estudo e pela intervenção arquitetónica: atribuindo à Direção de Obras Públicas o ónus da sua conservação 49. Uma década mais tarde, no âmbito da celebração dos 400 anos da criação da Diocese de Cabo Verde e Guiné, o Deão da Sé de Cabo Verde, António José de Oliveira Bouças, escreveu uma carta aberta à população, intitulada “Apelo em Pró das Ruínas da Antiga Cidade da Ribeira Grande em Santiago – C. Verde 1533-1933”, onde demonstrava a sua insatisfação perante a ineficiência das ações de salvaguarda desse património 50. Associado a esta carta, o manifesto de João Lopes, alerta

    48 Ofício de maio de 1850 do bispo D. Patrício Xavier Moura. in AYMERICH, Carlo; PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana – Mindelo”. edarq – Editorial do Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007). p.1649 através da Portaria nº40, [Boletim Oficial da Província de Cabo Verde], citado por MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património português ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974) - LISBOA, 21-23 de Junho de 2012, IICT - Instituto de Investigação Científica Tropical e ISCSP-UTL - Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, 2013. p.250 MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património portu-

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    10 João Lopes em Ribeira Grande

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    para o valor histórico da Sé Catedral da Cidade Velha, no contexto patrimonial do império, acentuando que a ruína desse edifício “é o principal monumento da primeira cidade da primeira ilha da primeira Colónia Africana Portuguesa!”, assinalando em simultâneo o desconhecimento que a população local, nomeadamente a elite intelectual, tinha deste local. Produtos duma educação que privilegiava o conhecimento da realidade metropolitana em detrimento da especificidade geográfica e histórica dos contexto local, bem traduzido na expressão:

    “Como bom cabo-verdiano, naturalmente desconheces a histórica Cidade Velha, pois levaste 6 anos nos Liceus a estudar Geografia e não estudaste a Corografia da tua terra em 7 meses! Que importa isto, se conhecer todos os ramais dos caminhos-de-ferro da Metrópole e os afluentes de todos os rios espanhóis que passam por Portugal!!!” 51.

    A ação de João Lopes em torno da causa da reabilitação da Cidade Velha prolongou-se, ele fundou em 1936 a revista Claridade, editada em Mindelo, que “marca como que o início de uma tomada de consciência com o propósito de se interessar pela terra, defendendo o cabo-verdiano como uma entidade social e psicológica e dedicando-se ao estudo do meio sócio-economico e cultural do arquipélago.”52 De forma algo camuflada, o manifesto de João Lopes denuncia a “politica de sujeição”, dominante até à II Guerra Mundial, em que a colónia era um mero espaço de exploração e em que as populações locais eram mantidas em regime de menoridade e marginalidade cívica, controladas por um apertado funcionalismo administrativo dependente da metrópole 53.A partir da década de 1950, a pressão da ONU para que as potências imperiais abandonassem os territórios ocupados obrigou, como reação, a que Portugal revisse a sua política colonial, no sentido de tentar integrar das colónias num todo nacional, sempre governado a partir da metrópole. Em 1952, o ato colonial é revogado e revisto o estatuto dos indígenas. As colónias passam então a ser

    guês ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974) - IICT - Instituto de Investigação Científica Tropical e ISCSP-UTL - Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, 2013. p.251 FUNDAÇÃO JOÃO LOPES, CIDADE VELHA – RIBEIRA GRANDE DE SANTIA-GO. Praia: Publicom, 2015. p.1552 LOPES FILHO, João - Defesa do Património Sócio - Cultural de Cabo Verde, Lisboa: ed. Ribeiro, José A. 1985, p.154. (in “Presença Cabo-verdiana” – nº 19/20. Lisboa, Julho / Agos-to, 1974)53 Idem, ibidem.

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    11 Bairro Craveiro Lopes, Cidade da Praia terceiro plano anos 60

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    designadas de “Províncias Ultramarinas” 54, e o estado português incrementa os investimentos nesses territórios nomeadamente com a construção de infraestruturas, equipamentos e habitação para as populações indígenas. Cabo Verde usufruiu dos programas de fomento lançados pelo governo a partir de 1953 55. Dois anos depois, aquando a deslocação do chefe do estado português ao arquipélago, o programa de visita envolvia a inauguração de um conjunto de equipamentos administrativos, do bairro habitacional Craveiro Lopes, de algumas obras de fomento agrícola e industrial, numa clara manifestação dum ideal de progresso económico em detrimento da valorização cultural 56.A oportunidade para a afirmação do valor patrimonial dos vestígios da ocupação colonial existentes no arquipélago sucedeu mais tarde, e por impulso dum evento externo, as comemorações do V centenário da morte do Infante D. Henrique, cujos festejos estavam centrados na cidade de Lisboa e no Algarve. A coincidência desta data com a do V Centenário da Descoberta das ilhas de Cabo Verde, em 1960, foi um motivo para que o Ministério do Ultramar desse início a um processo concertado de salvaguarda do património local, pois os monumentos foram chamados a participar, como testemunhas de factos históricos, integrados num programa assumidamente de defesa do império e que procurava manipular a opinião pública 57.O facto dessas comemorações preconizarem a glorificação da nação portuguesa permitiu que a colónia beneficiasse de apoio logístico por parte da entidade pública responsável pela salvaguarda do património em Portugal: a Direcção Geral dos Monumentos Nacionais. Foi esta instituição que cedeu o técnico responsável pela coordenação das intervenções nos monumentos que integraram às cerimónias comemorativas, o arquiteto Luís Benavente, o qual mobilizou uma equipa local para desempenhar de tarefas diferenciadas, entre as quais a identificação e inventariação do património, a elaboração de estudos

    54 Lei orgânica do Ultramar Português - Lei n.° 2.066, de 27 de Junho de 1953.55 II Plano de Fomento 1959-1964 - Agência Geral do Ultramar (1961) - II Plano de Fomento 1959-1964 atribui a Cabo Verde cerca de 250 milhões. Mais de metade para comunicações e transportes seguindo-se fomento da agro-pecuária, instrução e saúde. in Cabo Verde, pequena monografia. Lisboa. p.3556 -1955 16 maio - O Chefe do Estado inaugurou o bairro de moradias para funcionário na Cidade da Praia – 62 residências com 2 divisões, cozinha e quintal; in Jornal O Século -1955 17 maio - O Chefe do Estado inaugurou um posto de fomento pecuário em Santa Catarina, Ilha de Santiago. Tem uma exposição de produtos agrícolas e artesanato com “Uma casa típica da região, com pocilga e nora, especialmente construída na exposição, representa a vida nesta província. É a casa do “badiu”, o camponês cabo-verdeano.” in Jornal O Século, 25 de Maio 195557 MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património portu-guês ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974), 2013. p.3

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    12.1 Levantamento Luís Benavente - Igreja Nossa Senhora do Rosário12.2 Projeto de restauro Luís Benavente - Igreja Nossa Senhora do Rosário

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    prévios e a participação nas ações construtivas 58. Também esse impulso promoveu a criação de uma legislação protetora para esses bens patrimoniais. A iniciativa teve especial impacto na Cidade Velha, localizada na ilha de Santiago, do que resultou a concretização de um conjunto de intervenções de conservação e restauro dos monumentos mais antigos, mais representativos e que estavam em melhor estado de integridade, caso da Fortaleza de S. Filipe e da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, considerada o templo mais antigo do arquipélago.

    Ainda, no âmbito das comemorações, foi realizada uma exposição fotográfica dedicada às ruínas da Ribeira Grande, promovida e organizada pelo “Grupo de Amigos da Cidade Velha” 59 . A importância científica e documentais dos exemplares apresentados, pelas informações que davam das ruínas, determinou que as mesmas fotografias fossem posteriormente postas ao serviço do governo da província 60. Depois das comemorações, mais sensibilizadas para a importância dos bens patrimoniais do arquipélago (neste caso, dos mais antigos vestígios da ocupação e da soberania portuguesa), as instituições públicas intensificam as ações de salvaguarda do património na província, num processo que se prolongou por mais de uma década, pois a maioria das intervenções físicas datam do final dos anos sessenta. O arquiteto Luís Benavente, que dirigiu todos os trabalhos de restauro, foi o protagonista desta ação. Entre 1960 e 1970, Benavente deslocou pelo menos quatro vezes ao arquipélago 61, promoveu a formação de moradores locais para as intervenções de restauro, acompanhou o processo de restauro e desenvolveu vários trabalhos teóricos acerca dos monumentos e do património cabo-verdiano 62.

    58 NETO, Maria João Baptista - Monumentos Nacionais - Memória, proganda e Poder (1929-1960). COSTA, Marisa (coord.) - Propaganda e Poder. Lisboa, Edições Colibri, 2001.59 “Acerca das actividades promovidas no âmbito das celebrações centenárias de 1960 interessa-nos destacar a exposição fotográfica dedicada às ruínas da Ribeira Grande, cuja organização foi assumida pelo “Grupo de Amigos da Cidade Velha”, nomeadamente por Aníbal Barbosa da Silva, José Delgado Freire, Luís Pires de Bastos, Mário Lima Furtado e pelo fotógrafo Francisco Delgado Freire, também conhecido como “FRANK”.” in MARIZ, Vera Félix - A “memória do império” ou o “império da memória” a salvaguarda do património arquitectónico português ultramarino (1930-1974). Doutoramento. Lisboa: FLUL, 2016. p.28760 Idem, ibidem.61 “[…] arquitecto Luís Benavente que, em missão para o Ministério do Ultramar, foi quatro vezes a Santiago, entre 1960 e o principio da década seguinte.” in AYMERICH, Carlo; PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana – Mindelo”. edarq – Editorial do Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007). p. 1662 -1967 - Luís Benavente: “Relatório acerca dos monumentos de Cabo Verde” -1969 - Luís Benavente: “Relatório acerca da salvaguarda e protecção do património de Cabo Verde” -1971 - Luís Benavente: “Processo para a classificação da Antiga Cidade da Ribeira Grande”

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    13 Pelourinho em ruína 14 Pelourinho após restauro

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    Apesar das dificuldades financeiras e técnicas que limitaram o alcance das intervenções, os trabalhos denunciam a tentativa de assimilação de alguns dos critérios estabelecidos pela Carta de Veneza 63 , recentemente redigida. Segundo o depoimento do arquiteto:

    “Todos os trabalhos serão executados dentro das normas seguidas neste género de obra de acordo com a Carta Internacional para o Restauro e Conservação de Monumentos outorgada em Veneza em Maio de 1964 pela comissão internacional de que o signatário fez parte, documentando-se as respectivas fases do trabalho no sentido de uma publicação demonstrativa da obra realizada.”64

    A capacidade do arquiteto de interpretar e adequar metodologicamente as ações às particularidades da circunstância geográfica e social do arquipélago, nomeadamente no que se refere à inexistência de recursos humanos qualificados para a execução dos trabalhos, levou-o a promover a sua formação nos próprios estaleiros. A intervenção na Igreja Nossa Senhora do Rosário foi pioneira neste aspeto, pois possibilitou não só o envolvimento da população local em diversas atividades de salvaguarda, mas também criação dum grupo habilitado para cooperar em futuros trabalhos de restauro e de consolidação dos monumentos, não apenas da Ribeira Grande, mas também noutros edifício localizados nas diferentes ilhas 65. Os benefícios obtidos com a integração da comunidade local nos trabalhos de restauro, serviria para estimular o apreço pelos monumentos da urbe 66 e habilitava-os a realizar tarefas regulares de manutenção. O que, mais uma vez, denuncia a tentativa de aplicação na prática dos princípios da Carta de Veneza.

    63 MARIZ, Vera Félix - A “memória do império” ou o “império da memória” a salvaguar-da do património arquitectónico português ultramarino (1930-1974). Doutoramento. Lisboa: FLUL, 2016.. p.32964 Idem, p.32465 Idem, p.32766 - Para Benavente, a salvaguarda do património arquitectónico de Cabo Verde não implicava apenas a protecção e divulgação dos edifícios mas, também, o benefício da comunidade local, a sua integração nos trabalhos como forma de travar a emigração e de fomentar o desenvolvimento de uma consciência patrimonial que travasse o recorrente problema da “caça à cantaria”, valendo-se, por exemplo, da realização de visitas guiadas aos monumentos. Nesta tentativa de estimular o apreço da comunidade pelos monumentos da Ribeira Grande, de garantir a sua fixação e de potencializar os resultados alcançados pelas obras de restauro, Benavente propôs, também, a instalação de redes de esgotos, de água e de electricidade, a pavimentação das ruas e o desenvolvimento do artesanato. Estamos, portanto, tal como afirmámos anteriormente, perante uma tentativa de estabelecimento de um desenvolvimento sustentável na Cidade Velha, local ao qual Luís Benavente reconheceu, também, um extraordinário potencial turístico. Idem, p.296

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    15 Fortim Del Rei, ilha da Boavista

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    As tarefas do arquiteto Luís Benavente não se esgotariam nos trabalhos em torno dos monumentos da Cidade Velha, sinal de que já existia uma preocupação com outras ilhas para além de Santiago. Também visita a ilha da Boavista com intenção de promover ações concretas de salvaguarda dos fortins, demonstrando o reconhecimento dos valores inerentes ao território. Durante a sua estadia, para além de dois relatórios de trabalho que serviriam como documentos de gestão, o “Relatório acerca dos monumentos de Cabo Verde” e o “Relatório acerca da salvaguarda e protecção do património de Cabo Verde”, elabora, ainda nos finais da década de sessenta e no início da seguinte, uma proposta para a criação de legislação mais apropriada às necessidades de proteção do património histórico artístico das ilhas 67.

    A partir da década de 1950, em oposição às forças de unificação nacional, promovido pelo governo do Estado Novo, assiste-se ao início dum processo de desagregação do império, com o surgimento de sentimentos protonacionalistas que levam ao despoletar dos movimentos descolonizadores nas várias colónias. Apesar autonomia que os diferentes grupos políticos assumiram, havia um aspeto ideológico agregador: as várias colónias tentam a independência e para isso procuram reforçar os laços africanos, configurando um ideal de “pan-africanismo”. O momento, geralmente designado por “fase da tomada de consciência”, caraterizou-se pela atividade pioneira de algumas elites culturais, a partir da qual surgiram núcleos que deram origem às futuras estruturas políticas 68. Em 1951, um conjunto de estudantes universitários africanos que estudavam em Lisboa e se reunia na Casa dos Estudantes do Império, interessados no conhecimento da identidade dos países de onde eram originários, fundaram o Centro de Estudos Africanos 69. A tomada da consciência da situação em que estavam as suas pátrias promoveu a afirmação do espírito “nacionalista” por parte dos estudantes africanos que frequentavam esse local, contaminando as futuras gerações de alunos. Após o regresso a Cabo Verde, os inúmeros estudiosos que concluíam os estudos nas universidades estrangeiras, sentiam-se no dever de contribuírem com os seus saberes para o progresso do país.

    67 MARIZ, Vera Félix - A “memória do império” ou o “império da memória” a salvaguarda do património arquitectónico português ultramarino (1930-1974). Doutoramento. Lisboa: FLUL, 2015. p.29868 CORREIA, Pedro Pezerat - A descolonização. in REIS, António(coord.) – PORTUGAL 20 ANOS DE DEMOCRACIA, Círculo de Leitores, 1994. p.4369 Contributos históricos para a Independência de Cabo Verde [consultado em: 23 08 18] Disponível em http://nosgenti.com/contributos-historicos-para-a-independencia-de-cabo-verde/

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    16 Amílcar Cabral e Pedro Pires

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    Enquanto estudante em Lisboa, Amílcar Cabral também frequentou a Casa dos Estudantes do Império e mobilizou um grupo entre guineenses e cabo-verdianos que, em conjunto, criaram os fundamentos para a luta pela independência das duas colónias.

    “Após uma análise científica do colonialismo português, Cabral defendeu que a política de assimilação e alienação imposta por Portugal tinha levado a população cabo-verdiana, principalmente a “pequena burguesia”, culturalmente desenraizada, alienada ou mais ou menos assimilada, a renegar a sua herança cultural africana e a desenvolver um certo complexo em relação à sua origem negra. Além disso, a classe assimilada passou a manifestar uma atitude de distanciamento e desprezo em relação à cultura das massas populares. Perante tal realidade, tornava-se necessário libertar a população assimilada desse complexo e levá-la a tomar consciência da dimensão africana da sua cultura e assumir esta sua africanidade. Para isso acontecer, era primordial um “regresso às origens”, que Cabral designou de “reafricanização dos espíritos”, que consistia na negação da cultura assimilada da potência dominante e, por conseguinte, na busca e valorização dos traços culturais de origem africana que caracterizam o homem cabo-verdiano.” 70

    Outros intelectuais cabo-verdianos 71 e guineenses juntaram-se e constituíram uma força mental e física que partilhava das mesmas estratégias e ideologias para combater a força colonizadora. Existia a consciência de que essa luta não se ficava apenas na exaltação da independência, mas havia que definir o rumo para o futuro. Cabral projeta então um caminho próspero para o país, afirmando que, “no quadro da conquista da Independência Nacional, na perspectiva da construção do progresso económico do povo, o desenvolvimento de uma cultura popular e de todos os valores positivos autóctones é um objectivo a atingir.”72 Para Amílcar Cabral, este objetivo não se esgotava na exaltação da cultura viva do seu povo, mas também na redescoberta do passado do país e das suas memórias, que se concretizava em políticas de salvaguarda dos vestígios materiais que representavam esse processo histórico. Embora existisse a intenção/vontade de preservação da tradição cultural cabo-verdiana, Cabral estava ciente de que o caminho para o desenvolvimento do país passaria

    70 Contributos históricos para a Independência de Cabo Verde [consultado em: 23 08 18] Disponível em http://nosgenti.com/contributos-historicos-para-a-independen