ARQUITETURA RELIGIOSA DE OSCAR NIEMEYER EM BRASÍLIA

  • Upload
    lekhanh

  • View
    223

  • Download
    3

Embed Size (px)

Citation preview

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO PROGRAMA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    ARQUITETURA RELIGIOSA DE OSCAR NIEMEYER

    EM BRASLIA

    LUCIANE SCOTT

    BRASLIA/DF 2010

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO PROGRAMA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    ARQUITETURA RELIGIOSA DE OSCAR NIEMEYER

    EM BRASLIA

    LUCIANE SCOTT

    Dissertao defendida no Programa de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo - rea de concentrao em Arquitetura e Urbanismo e linha de pesquisa em Teoria, Histria e Crtica da FAU-UNB. Professor Orientador: Andrey Rosenthal Schlee.

    BRASLIA/DF 2010

  • ARQUITETURA RELIGIOSA DE OSCAR NIEMEYER EM

    BRASLIA

    Luciane Scott

    Esta dissertao foi julgada e aprovada para obteno do grau de

    Mestre em Arquitetura e Urbanismo

    Pelo Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de

    Braslia Unb.

    Braslia, 03 de setembro de 2010.

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________ Prof. Dr. Andrey Rosenthal Schlee

    Prof. Dr. Ricardo de Souza Rocha

    Profa Dra Sylvia Ficher

    Prof. Dr. Eduardo Pierrotti Rossetti

  • Aos meus pais

  • AGRADECIMENTOS Aos meus pais, Francisco e Reni Scott, e minha irm Juliane Scott Pivetta pelo amor e apoio incondicional, proporcionando todos os meios necessrios para

    meu crescimento pessoal e profissional.

    A Mrlou Peruzzolo Vieira pelo amor, carinho e por ter estado ao meu lado

    sempre me incentivando.

    Ao professor Andrey Rosenthal Schlee pela orientao, pacincia, confiana e

    pelos ensinamentos durante o mestrado.

    A Ana Lusa Diesel e Jssica de Souza pela amizade, e pelo apoio, apesar da

    distncia.

    Aos meus professores Fbio Mller e Ricardo Rocha por tudo que me

    ensinaram, pela amizade e pelo incentivo, atravs de seus exemplos, a ser uma

    pesquisadora.

    s minhas companheiras de ps-graduao Ana Cludia, Ellayne, Daniela,

    Maria e Mayra com quem dividi os momentos de alegria e preocupao.

    A tia Nina e sua famlia e Anna Finger por terem me recebido em Braslia com

    tanto carinho.

    A Eduardo Rossetti, a Danilo Matoso Macedo, a Sylvia Ficher, a Graciete

    Guerra da Costa, ao DEPHA, ARPDF, CEPLAN, IPHAN, Fundao Oscar Niemeyer

    de Braslia e Natanry Osrio por toda a disponibilidade e auxlio.

    Ao Programa da Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo da UnB.

    CAPES pela concesso da bolsa de estudos.

  • ... sempre considerei a arquitetura uma obra de arte e somente como tal capaz de subsistir. Oscar Niemeyer

  • RESUMO

    A pesquisa consiste no estudo e na sistematizao da arquitetura religiosa produzida

    pelo arquiteto Oscar Niemeyer em Braslia/DF. Desdobra-se no inventrio e na

    elaborao de fichas com o objetivo de compilar informaes sobre as obras

    identificadas. So nove as edificaes religiosas produzidas pelo arquiteto: a Capela

    do Palcio da Alvorada, a Igreja Nossa Senhora de Ftima, a Catedral Nossa

    Senhora Aparecida, a Igreja do Instituto de Teologia (no construda), a Capela do

    Palcio Jaburu, a Igreja Catlica Apostlica Ortodoxa Antioquina So Jorge, a

    Catedral Militar Rainha da Paz, a Capela do Anexo IV da Cmara dos Deputados e a

    Capela de Dom Bosco. Para contextualizar o tema, inicialmente aborda-se a questo

    do tipo religioso em arquitetura e discute-se a vida do arquiteto a partir da totalidade

    de sua produo arquitetnica religiosa.

    PALAVRAS-CHAVE: Oscar Niemeyer, Arquitetura Religiosa, Braslia.

  • ABSTRACT

    The research is based on the study and systematization of the religious architecture

    produced by the architect Oscar Niemeyer in Braslia. It unfolds in the inventory and

    the development of files which aim is a compilation of information concerning the

    works identified. There are nine religious buildings produced by the architect: Capela

    do Palcio da Alvorada, Igreja Nossa Senhora de Ftima, Catedral Nossa Senhora

    Aparecida, Igreja do Instituto de Teologia (not built), Capela do Palcio Jaburu, Igreja

    Catlica Apostlica Ortodoxa Antioquina So Jorge, Catedral Militar Rainha da Paz,

    Capela do Anexo IV da Cmara dos Deputados and Capela de Dom Bosco. To

    contextualize the issue, it considers initially the type of religious architectures

    question and discusses the life of the architect throughout the totality of his religious

    architectural production.

    KEYWORDS: Oscar Niemeyer, Religious Architecture , Braslia.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ARPDF Arquivo Pblico do Distrito Federal

    CEPLAN Centro de Planejamento Oscar Niemeyer

    DAU Departamento de Arquitetura e Urbanismo

    DEPHA Diretoria de Patrimnio Histrico e Artstico do Distrito Federal

    FON Fundao Oscar Niemeyer

    IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    NOVACAP Companhia Urbanizadora da Nova Capital

    SPHAN Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    SEPHA - Seo de Patrimnio Histrico Arquitetnico Cmara dos Deputados.

  • SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................ 10

    1. ARQUITETURA RELIGIOSA ............................................................................. 14 2. OSCAR NIEMEYER E A ARQUITETURA RELIGIOSA ..................................... 34

    3. FICHAS ............................................................................................................. 133 3.1. Capela Nossa Senhora da Alvorada .............................................................. 134

    3.2. Igreja Nossa Senhora de Ftima .................................................................... 157

    3.3. Catedral Nossa Senhora Aparecida ............................................................... 189

    3.4. Igreja do Instituto de Teologia ........................................................................ 238

    3.5. Capela do Palcio Jaburu .............................................................................. 242

    3.6. Igreja Catlica Apostlica Ortodoxa Antioquina de Braslia ............................ 247

    3.7. Catedral Santa Maria dos Militares Rainha da Paz ........................................ 264

    3.8. Capela do Anexo IV da Cmara dos Deputados ............................................ 285

    3.9. Capela de Dom Bosco .................................................................................... 297

    CONCLUSO ....................................................................................................... 308 REFERNCIAS .................................................................................................... 310

  • 10

    INTRODUO

    A pesquisa consiste em um estudo dos edifcios religiosos projetados por

    Oscar Niemeyer em Braslia/DF. A cidade construda no final da dcada de 50 para

    ser a capital do pas ostenta vrias obras do arquiteto. Escolhido pelo ento

    Presidente da Repblica, Juscelino Kubitschek de Oliveira, para ser o criador dos

    principais edifcios que iriam compor a nova malha urbana e os espaos simblicos

    de Braslia, Niemeyer projetou muito. Da inaugurao, aos dias de hoje, o arquiteto

    acrescentou, ainda, uma srie de outras edificaes na Capital que, hoje, conta com

    mais de 60 obras por ele assinadas.

    O tipo funcional religioso est presente em nove edificaes: na Capela do

    Palcio da Alvorada, na Igreja Nossa Senhora de Ftima, na Catedral Nossa

    Senhora Aparecida, na Igreja do Instituto de Teologia (no construda), na Capela do

    Palcio Jaburu, na Igreja Catlica Apostlica Ortodoxa Antioquina So Jorge, na

    Catedral Militar Rainha da Paz, na Capela do Anexo IV da Cmara dos Deputados e

    na Capela de Dom Bosco.

    Estas edificaes foram objetos da pesquisa que, como assinalado, tem como

    objetivo o estudo, a sistematizao e a compilao de informaes (como o material

    grfico e projetual referente aos oito edifcios religiosos de Oscar Niemeyer

    construdos na cidade de Braslia; bem como o projeto da Igreja para o Instituto de

    Teologia, no executado). Procurou-se tambm desvendar a relao e a abordagem

    do arquiteto com o sagrado e o possvel efeito refletido em suas obras. Alm disso, a

    pesquisa visa contribuir como meio de conhecimento e registro iconogrfico desta

    parcela da obra de Niemeyer.

    A escolha da produo religiosa de Oscar Niemeyer relevante pela

    qualidade arquitetnica alcanada neste tipo edilcio. O arquiteto se dedicou de

    maneira especial ao tema, construindo um nmero significativo de capelas e igrejas,

    obtendo grandes resultados nas obras destinadas interface entre o humano e o

    divino. notvel o fato de que Niemeyer realizou em torno de 20 projetos de igrejas

    ou capelas, sendo que a grande maioria se localiza em Braslia. Alm disso, um

  • 11

    estudo sobre a produo arquitetnica religiosa brasileira importante por se tratar

    de um tema sempre passvel de discusso.

    Embora seja um arquiteto reconhecido por sua importncia e contribuio

    arquitetura nacional e internacional tendo realizado aproximadamente 600 projetos

    (nem todos executados) a sua obra ainda carece de estudos aprofundados. No

    existe um sistema de catalogao dos trabalhos de Oscar Niemeyer, e o acesso aos

    projetos, originais, principalmente sob a guarda da Fundao Oscar Niemeyer1, com

    sede no Rio de Janeiro, extremamente e propositalmente dificultado.

    interessante destacar que, entre todas as suas obras, duas das mais

    reconhecidas pertenam arquitetura religiosa: a Igreja So Francisco de Assis, em

    Belo Horizonte; e a Catedral Metropolitana de Braslia. Existem alguns poucos

    estudos sobre a Catedral Nossa Senhora Aparecida, como o de Andrey Rosenthal

    Schlee2, a dissertao de Fbio Mller3 sobre arquitetura religiosa que discorre sobre

    a Catedral e a Igreja So Francisco de Assis, o livro Igreja da Pampulha, organizado

    por Hugo Segawa4 e o livro de Danilo Matoso5, que engloba os projetos de Oscar

    Niemeyer em Minas Gerais, dentre eles a Igreja da Pampulha. Entretanto, nenhum

    trabalho teve como foco a totalidade da sua produo de edifcios religiosos, embora

    alguns apaream de forma sucinta em livros de arquitetura brasileira e sobre o

    arquiteto.

    Esta pesquisa foi realizada a partir de um estudo sobre a histria da

    arquitetura religiosa, e de uma reflexo sobre o arquiteto Oscar Niemeyer e o

    conjunto de sua obra. Foram realizados levantamentos de dados e anlises de

    1 exceo da Filial da Fundao Oscar Niemeyer em Braslia, onde se tem acesso pesquisa dos documentos, plantas e livros que esto sob sua guarda. 2 SCHLEE, Andrey R. Oscar Niemeyer y su Catedral. In: Ivan San Martn; Peter Krieger. (Org.). Sacralizacin, culto y religiosidad. Mxico: Universidade Autnoma do Mxico, 2009, v. 1. 3 MLLER, Fbio. O templo cristo na modernidade Permanncias Simblicas & Conquistas Figurativas. Dissertao de Mestrado, Porto Alegre, PROPAR UFRGS, 2006 4 SEGAWA, Hugo (Org.) ; CASTRO, Maringela (Org.) ; FINGUERUT, Slvia (Org.) . Igreja da Pampulha: restauro e reflexes. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundao Roberto Marinho, 2006. 5 MACEDO, Danilo M. Da matria inveno: as obras de Oscar Niemeyer em Minas Gerais 1938-1955. Braslia, Cmara dos Deputados, Coordenao de publicaes, 2008.

  • 12

    informaes descritivas e qualitativas, presentes em fontes tais como livros, revistas,

    dissertaes, teses e Internet. Ainda foram produzidos estudos in loco, nas obras de

    interesse para o tema, com realizao de medies, fotografias e desenhos. Por fim,

    foi feita uma extensa pesquisa em rgos pblicos, buscando informaes, material

    grfico, documentao projetual e informaes sobre outros projetos com fins

    religiosos produzidos pelo arquiteto, baseando-se na listagem realizada pela

    Fundao Oscar Niemeyer6.

    Como o arquiteto trabalha com as mais diversas escalas de edifcios

    religiosos: capelas, igrejas e catedrais, faz-se necessrio uma pequena explicao

    sobre a particularidade de cada uma:

    Capela, segundo o Mons. Guilherme Schubert um templo de dimenses menores, destinado a um nmero reduzido de pessoas, mas preparado para que

    nele possa ser celebrada a santa missa.7 Pode ser pblica, semi-pblica ou

    particular. So deste conjunto a Capela do Palcio da Alvorada (particular), a Capela

    do Palcio Jaburu (particular), a Capela do Anexo IV da Cmara dos Deputados

    (semi-pblica) e a Capela de Dom Bosco (pblica).

    Igreja onde se desenvolvem todos os atos de culto da parquia que a

    clula-mater da vida comunitrio-religiosa, onde o proco cuida do bem espiritual e

    geral do cristo desde sua entrada no mundo at sua sada, e alm disso, pelos

    sufrgios post mortem.8 As igrejas podem ser: matriz, filial, colegiada, conventual,

    abacial ou de irmandade. Encontram-se nesta descrio a Igreja Nossa Senhora de

    Ftima (Filial), a Igreja do Instituto de Teologia (no construda, mas seria

    conventual), a Igreja Catlica Apostlica Ortodoxa Antioquina So Jorge (matriz).

    6 Essa relao reflete o estgio atual da pesquisa na Fundao Oscar Niemeyer (em dezembro de 2007), tendo sido excludos aqueles projetos cujos dados disponveis so insuficientes. Alguns desses projetos so resultado do trao original do arquiteto, desenvolvidos posteriormente por seus colaboradores. Disponvel em Acesso em 10 out. 2008. 7 SCHUBERT, Mons. Guilherme. Arte para a f: nos caminhos traados pelo Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 1987. p.28 8 SCHUBERT, Mons. Guilherme. Arte para a f: nos caminhos traados pelo Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 1987. p.28

  • 13

    Catedral a sede oficial, episcopal, arquiepiscopal, primacial, patriarcal ou

    metropolitana. So duas: a Catedral Nossa Senhora Aparecida (metropolitana), e a

    Catedral Militar Rainha da Paz (arquiepiscopal).

    Com fins didticos optou-se por dividir a dissertao em trs captulos:

    O primeiro captulo busca esclarecer a evoluo dos locais sagrados

    produzidos pelo homem destinados ao culto ou agrupamento de fiis. Inicia-se com a

    definio de Tipo e Tipologia fundamentada na bibliografia pertinente. apenas

    analisado neste capitulo o desenvolvimento do Cristianismo considerando-se o fato

    de todas as igrejas estudadas serem crists. explicada a evoluo do tipo, partindo

    das reunies em residncias adaptadas, passando por igrejas de tipo salo, de tipo

    basilical, planta central, cruz grega e cruz latina. Esse ltimo foi o tipo que

    permaneceu at o sculo XIX. No sculo XX iniciou-se a discusso sobre a funo

    dos templos, e o papel dos edifcios comeou a mudar, com a modernizao da

    Igreja e a adequao aos novos materiais de construo o que gerou uma grande

    explorao das formas a serem adotadas.

    A biografia de Oscar Niemeyer comentada no segundo captulo, tendo

    como foco principal sua relao com a religiosidade e sua arquitetura sobre o tema.

    So discutidos todos os projetos religiosos do arquiteto, no limitando-se apenas aos

    exemplares de Braslia. Niemeyer que sempre afirmou ser ateu convicto nunca

    escondeu sua curiosidade sobre o tema e a satisfao em projetar um edifcio

    religioso.

    Por fim, no terceiro captulo, foco principal do trabalho, so apresentadas as

    fichas das edificaes religiosas de Braslia, com dados principais de identificao,

    responsveis tcnicos pela obra, datas histricas, uma pequena descrio do

    mobilirio e obras de arte, e dados de restauraes ou reformas ocorridas. Alm

    disso, todo o material projetual encontrado (plantas, croquis e maquetes),

    publicaes da poca, fotografias da construo, fotografias atuais e vista area.

  • 14

    1 Arquitetura Religiosa O principiar da busca pelo sagrado confunde-se com o prprio surgimento da

    humanidade. E gradualmente, de acordo com a poca vivida e a cultura de cada

    agrupamento, foram se intensificando os diversos modos de manifestar esta noo

    do sagrado. Em conseqncia dessa organizao, passou a existir a necessidade do

    lugar sagrado e surgiram os templos dedicados adorao, submisso e

    celebrao do poder divino.

    Para a compreenso de que maneira esses edifcios se constituram ao longo

    do tempo e de como esto sendo construdos na atualidade, faz-se necessrio

    entender o surgimento dos primeiros espaos cristos, como se desenvolveram e de

    que maneira suas formas se repetiram ao longo dos sculos gerando tipos at hoje

    utilizados. Para tanto, inicialmente, observa-se a definio do conceito de tipo em

    arquitetura, partindo deste para um estudo dos tipos utilizados para os edifcios

    religiosos.

    As noes de tipo e de tipologia ainda so fundamentais para o entendimento

    e para a anlise das obras arquitetnicas. Diversos autores discorreram sobre este

    assunto ao longo dos tempos, sendo uma das definies mais adotadas aquela

    elaborada por Quatremre de Quincy, cunhada ainda no sculo XIX, e que buscou

    diferenciar o tipo do modelo:

    A palavra tipo no representa tanto a imagem de uma coisa a ser

    copiada ou imitada perfeitamente quanto a idia de um elemento que

    deve, ele mesmo, servir de regra ao modelo.[...]O modelo, entendido

    segundo a execuo prtica da arte, um objeto que se deve repetir

    tal como ; o tipo , pelo contrrio, um objeto, segundo o qual cada

    um pode conceber obras, que no se assemelharo entre si. Tudo

    preciso e dado no modelo; tudo mais ou menos vago no tipo.

  • 15

    Assim, vemos que a imitao dos tipos nada tem que o sentimento e

    o esprito no possam reconhecer.9

    Para Quatremre de Quincy, o arquiteto sempre deveria voltar ao tipo, aos

    princpios fundamentais de cada objeto arquitetnico, para conseguir entend-lo e

    contribuir de maneira positiva para a soluo de um dado problema.

    J no sculo XX, retomaram-se as discusses acerca da definio e do

    emprego do tipo em arquitetura. Giulio Carlo Argan, entre outros autores,

    caracterizou tipo como um esquema redutivo, ou seja: o tipo se configura assim

    como um esquema deduzido atravs de um processo de reduo de um conjunto de

    variantes formais a uma forma-base comum.10

    Por sua vez, Aldo Rossi afirmou que o tipo surge de acordo com as

    necessidades e em razo do local onde desenvolvido:

    [...] constituem-se as primeiras formas e os primeiros tipos de

    habitao, e os templos e edifcios mais complexos. O tipo vai se

    constituindo, pois, de acordo com as necessidades e com as

    aspiraes de beleza: nico, mas variadssimo em sociedades

    diferentes, ele est ligado forma e ao modo de vida. [...] Penso,

    pois, no conceito de tipo como algo permanente e complexo, um

    enunciado lgico que est antes da forma e que a constitui.11

    Rafael Moneo tambm forneceu sua definio:

    Talvez possa ser definido como aquele conceito que descreve um

    grupo de objetos caracterizados por ter a mesma estrutura formal.

    No se trata pois, nem de um diagrama espacial, nem do objeto

    mdio de uma srie. O conceito de tipo se baseia fundamentalmente

    na possibilidade de agrupar os objetos servindo-se daquelas

    9 Apud ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. So Paulo: Martins Fontes, 1995. p.25. (grifo nosso) 10 ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e Destino. So Paulo: Editora tica, 2000. p. 66 e 67. 11 ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. So Paulo: Martins Fontes, 1995. p.25. (grifo do autor)

  • 16

    similitudes estruturais que lhe so inerentes, poderia dizer inclusive

    que o tipo permite pensar em grupo.12

    Assim, o Tipo pode ser entendido como o ponto de partida, a forma

    primordial, que se desenvolve de maneiras diferentes gerando objetos finais distintos

    entre si, mas mantendo caractersticas essenciais iguais e reconhecveis. Pode ser

    definido tambm como uma espcie de esquema organizativo, encontrado na origem

    das edificaes.

    O edifcio cristo possui o papel de ser o lugar de comunho com Deus, de

    orao e de encontro com os outros cristos. visto como um local sagrado em

    meio ao profano. Costuma-se chamar o local onde os fiis se encontram de templo,

    mas seu sentido bastante amplo e abrange diversas religies. Edgar Graeff,

    explicou a funo inicial dos templos:

    Numa primeira aproximao do reconhecimento da origem e da

    funo do templo, pode-se considerar que ele foi criado como um

    lugar especialmente agenciado para o exerccio de determinados

    ritos; determinados, entenda-se, de acordo com as caractersticas de

    cada religio, em cada poca.13

    Mas, antes do entendimento de templo como construo, eram tratados como

    um lugar sagrado: a palavra templum[...] significa originalmente recinto, zona,

    cercada, separada (e, portanto, sagrada), e no uma construo, morada de Deus.14

    Mais tarde comeou a ser empregada no sentido de edificaes. Estas eram

    executadas sobre lugares previamente percebidos como sagrados15, e buscavam

    reconstruir o espao csmico: o telhado do templo representa o cu; as paredes, os

    12 Apud STRHER, Eneida R. Consideraes sobre o conceito de tipologia arquitetnica. In: O tipo na arquitetura: da teoria ao projeto. So Leopoldo: Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2001. p.27. 13 GRAEFF, Edgar Albuquerque. O Edifcio. Cadernos Brasileiros de Arquitetura, Projeto Editores Associados Ltda.1979. p.80. 14 FRADE, Gabriel. Arquitetura Sagrada no Brasil: sua evoluo at as vsperas do Conclio Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 2007. p.19. 15 Um dos hbitos da Igreja Catlica, o de abenoar o terreno antes da construo do edifcio, provavelmente tenha origem nestes costumes.

  • 17

    quatro pontos cardeais; o poo ou elemento aqutico, quando existe, uma

    representao das guas infracsmicas. Enfim, o templo simboliza o centro, o lugar

    sagrado por excelncia16.

    A origem do Cristianismo est na pregao de Jesus de Nazar, reconhecido

    como Filho de Deus encarnado, morto e ressuscitado17. Os seus ensinamentos

    foram difundidos por seus discpulos que anos mais tarde colocaram no papel as

    memrias da convivncia com o profeta atravs dos Evangelhos.

    Componente da cultura do nosso tempo, o cristianismo nasceu numa

    poca precisa da histria do mundo mediterrneo e prximo-oriental,

    a Antiguidade, num pas, a Judia, que ento fazia parte do Imprio

    Romano; arraigado na f e na cultura judaicas, desenvolveu-se

    rapidamente na cultura greco-romana.18

    Pequenas comunidades de crentes se formaram entre judeus e no-

    judeus (ou gentios), na Palestina, depois na parte oriental do

    Imprio Romano e em Roma, em seguida em sua parte ocidental,

    mas tambm em regies externas Mesopotmia e talvez a ndia, a

    partir da poca apostlica, Armnia, Gergia, Etipia, e entre os

    povos brbaros: visigodos, ostrogodos, vndalos, nos sculos IV e

    V.19

    Os primeiros cristos no tinham a preocupao de possuir um local

    especfico para o culto. A Igreja, cuja origem vem do termo Ecclesia, designava a

    16 FRADE, Gabriel. Arquitetura Sagrada no Brasil: sua evoluo at as vsperas do Conclio Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 2007. p.19. 17 THELAMON, Franoise. Os primrdios da histria do cristianismo. In: CORBIN, Alain (org.). Histria do Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 03. 18 THELAMON, Franoise. Os primrdios da histria do cristianismo. In: CORBIN, Alain (org.). Histria do Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 03. 19 THELAMON, Franoise. Os primrdios da histria do cristianismo. In: CORBIN, Alain (org.). Histria do Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 03 e 04

  • 18

    assemblia: a reunio de pessoas em funo de cultuar o cristianismo20: a palavra

    latina ecclesia deriva-se do grego ekklesia, que quer dizer reunio ou assemblia.

    nesse sentido que a palavra igreja usada.21 As pessoas reunidas formavam o

    verdadeiro templo espiritual de Deus 22. Portanto Igreja representa um organismo

    que segue determinada doutrina religiosa, enquanto igreja significa o local

    consagrado reunio da comunidade. Para Guilherme Schubert:

    Deus pode ser adorado em esprito e verdade, sem se entrar num

    edifcio de culto; o cristianismo, por trs sculos, at a paz de

    Constantino, viveu sua liturgia sem necessidade e possibilidade de

    um recinto sagrado.23

    importante ressaltar que durante viagens ou peregrinaes de povos,

    mesmo antes do nascimento de Jesus Cristo, as tendas tinham uma grande

    importncia em estabelecer um local designado ao encontro com Deus. No entanto a

    tenda itinerante no entendida como morada de Deus, mas como um sinal de sua

    presena.24

    Em geral, as reunies ocorriam normalmente no interior de residncias

    privadas, e suas celebraes eram realizadas de forma discreta. Conforme

    possvel observar na Fig. 1. Essas edificaes se organizavam em vrios espaos ao

    redor de um ptio central25, de forma aproximadamente quadrada, sendo chamadas

    de domus ecclesia.

    20 Com o tempo, passou tambm a ser entendido como um lugar, um edifcio especifico para os cultos. 21 A Igreja Atravs dos Tempos. Ecclesia. Disponvel em < http://www.ecclesia.com.br> Acesso em 28 mai. 2010. 22 FRADE, Gabriel. Arquitetura Sagrada no Brasil: sua evoluo at as vsperas do Conclio Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 2007. p.31 23 SCHUBERT, Mons. Guilherme. Arte para a f: nos caminhos traados pelo Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 1987. p. 8. 24 FRADE, Gabriel. Arquitetura Sagrada no Brasil: sua evoluo at as vsperas do Conclio Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 2007. p.25 25 MULLER, Werner; VOGEL, Gunther. Atlas de Arquitectura. vol. 1. Madrid: Alianza Editorial, 1984.

  • 19

    Figura 1 - Esquema das edificaes residenciais onde os primeiros cristos se reuniam. Fonte: desenhos da autora

    Para a realizao dos cultos, os cristos ocupavam o maior dos espaos ou

    uniam dois deles com a derrubada de uma das paredes. A forma resultante

    aproximava-se do retngulo e no possua elementos que indicassem sua funo.

    Apenas a presena de uma pequena sala batismal com pia e pinturas murais a

    apontar a destinao do espao.

    O edifcio cristo comeara sua vida como uma casa de classe

    mdia, com os cmodos dispostos em torno de um ptio interno,

    como era costume ento. Dentro deste prdio havia uma sala de culto

    com espao para um altar e uma ctedra e cerca de 60 pessoas. Do

    lado havia um cmodo menor decorado como um batistrio, com

    cenas simples da Ressurreio [...] e milagres de cura.26

    Um exemplo que permaneceu a edificao em Dura Europos, na

    Mesopotmia (ver Fig. 2. e Fig. 3.)

    26 COLLINS, Michael; PRICE, Matthew A. Histria do Cristianismo: 2000 anos de f. So Paulo: Edies Loyola, 2000. p. 49.

  • 20

    Figura 2 - Casa em Dura Europos Fonte: Church Architecture from 300-1400. Disponvel em

    acesso em 06 jun. 2010.

    Figura 3 - Sala de Batismo, Dura Europos Fonte: COLLINS, Michael; PRICE, Matthew A. Histria do Cristianismo: 2000 anos de f. So Paulo:

    Edies Loyola, 2000. p. 49.

  • 21

    Embora exista um conflito entre autores em relao s catacumbas (que eram

    cemitrios subterrneos) terem sido lugares de culto, bem possvel que os cristos,

    nos primeiros tempos, tambm se reunissem esporadicamente nesses espaos. Na

    poca das perseguies havia uma lei romana que considerava sagrados e

    inviolveis os cemitrios, o que impedia o acesso de perseguidores e permitiria que

    cristos se reunissem de forma mais segura.27

    Somente com o dito de Tolerncia de Milo, de 313 d.C. o Imperador

    Constantino (272-337) reconheceu o Cristianismo como religio e conferiu liberdade

    de culto aos cristos. E em 380 d.C. Teodsio (346-395) tornou o cristianismo a

    religio obrigatria do Estado. Isso permitiu, com o auxlio financeiro dos cristos e

    do Estado, que fossem adaptados antigos edifcios para o culto e iniciadas inmeras

    construes de igrejas e santurios.

    Com o crescimento do nmero de fiis, surgiram os edifcios dedicados

    somente ao culto. As construes destinadas a uma comunidade eram simples, de

    tipo salo, com uma abside28, independentes de outras edificaes ou contguas a

    residncias, conforme Fig. 4.

    Figura 4 - Esquema das edificaes de tipo salo Fonte: desenhos da autora

    27 A Igreja Atravs dos Tempos. Ecclesia. Disponvel em Acesso em 28 mai. 2010. 28 Nicho, geralmente semicircular, que abriga um altar ou tribuna, acrescentado ao espao principal.

  • 22

    Por sua vez, os edifcios destinados a sedes episcopais eram maiores, no

    entanto permanecia a mesma simplicidade. Algumas edificaes possuam mais de

    uma sala de culto. Tomou-se ento como referncia, para o desenvolvimento dos

    edifcios destinados ao novo programa, os tipos e as formas da arquitetura romana

    profana.

    O tipo geralmente utilizado para as grandes salas de celebrao com a

    comunidade (ecclesia) foi o basilical romano. A baslica era um edifcio utilizado para diversas funes, como mercado, sala de justia e ponto de encontro.

    Localizava-se prximo ao local de desenvolvimento da vida pblica, por exemplo, a

    praa do mercado.

    O espao amplo onde se podia abrigar um grande nmero de fiis foi eleito

    pelos cristos como adequado, j que tambm no possua nenhum significado

    religioso anterior. As igrejas desenvolvidas a partir de ento foram a base da

    arquitetura religiosa ocidental nos sculos seguintes. O primeiro local de grandes

    reunies de cristos foi a Baslica do Palcio de Letrn, em Roma29.

    O edifcio basilical cristo, de planta retangular longa, possua simetria axial, e

    seqncia de trio30, nrtex31, corpo da Igreja (ou nave), transepto32, e a abside

    (presbitrio33). (ver Fig. 5.)

    Na baslica romana havia a presena de duas absides, uma em frente outra,

    mas os cristos mantiveram uma s delas e deslocaram a entrada para o lado menor

    do edifcio. O transepto transversal entre a nave e a abside foi mantido em alguns

    exemplares, mas a baslica sem transepto foi o tipo mais utilizado. O volume externo

    refletia a organizao interna.

    29 MULLER, Werner; VOGEL, Gunther. Atlas de Arquitectura. vol. 1. Madrid: Alianza Editorial, 1984. 30 Ptio entrada da igreja, circundado por prticos. 31 Vestbulo da baslica paleocrist. 32 Nave transversal localizada entre a nave principal e o altar, formando ngulo reto com o eixo principal da edificao. 33 rea elevada reservada aos Sacerdotes e onde est localizado o altar.

  • 23

    O interior era composto por uma grande sala retangular, com uma srie de

    colunas que dividiam o espao em trs ou cinco naves longitudinais, com a nave

    central mais elevada que as demais, mais baixas e estreitas. Em sua extremidade se

    localizava a abside semicircular, ocupada pelo Bispo ou Celebrante principal e pelos

    Sacerdotes Auxiliares34. O altar dedicado deusa da Justia - Minerva - foi

    substitudo pelo altar cristo, e as duas tribunas elevadas (ambes) utilizadas no

    mais pelas testemunhas e advogados, mas pelos anunciantes das Epstolas e

    Evangelho. Ainda, nos edifcios cristos foi acrescentado um espao anterior sala

    principal, onde se localizou o batistrio. Era clara a distino entre sacerdotes e

    povo, o que no ficava to evidenciado nas construes anteriores.

    O local de batismo, que antes provavelmente ocorria no interior das igrejas

    residenciais, em um cmodo destinado a isso, passa a ser uma estrutura fora do

    edifcio principal, normalmente de forma redonda ou poligonal.35

    Figura 5 - Esquema das edificaes de tipo basilical

    Fonte: desenhos da autora

    A unio de espaos de funes litrgicas diferentes em um s complexo foi

    utilizada em alguns casos, como nos mosteiros.

    34 Na Baslica do Foro romano esta rea era destinada ao Pretor e seus assistentes. 35 FRADE, Gabriel. Arquitetura Sagrada no Brasil: sua evoluo at as vsperas do Conclio Vaticano II. So Paulo: Edies Loyola, 2007. p.38

  • 24

    Por outro lado, os edifcios de Planta Central tiveram sua origem nas

    sepulturas pr-histricas ou tholos36. Os gregos a adotaram para o culto de heris e

    para a realizao de sacrifcios, na forma de um templo redondo com cella37 e prtico

    circular. Posteriormente os romanos tomaram esta forma para os locais de

    celebrao de suas divindades.

    Para as igrejas batismais e as de carter comemorativo (cella memoriae38,

    martyrium39), a arquitetura paleocrist adotou a tradio dos edifcios de planta

    central, com espao principal separado por colunata, seguido de um espao

    circundante. Ver Fig. 6.

    Figura 6 - Esquema das edificaes de tipo central

    Fonte: desenhos da autora

    Os edifcios batismais foram erigidos para atender o nmero crescente de fiis

    a receberem o sacramento, se localizando geralmente prximos a igrejas episcopais.

    As edificaes de planta quadrada, circular ou poligonal com a pia (ou piscina) ao

    centro, substituram os edifcios retangulares com a pia batismal em uma das

    extremidades. A piscina escavada no cho era rodeada por colunata. A forma

    36 Sepultura subterrnea com cmara circular coberta por cpula, acessada atravs de um longo corredor. 37 Cmara ou recinto principal do templo, onde est abrigada a imagem da divindade. 38 Igreja construda em memria de um mrtir ou de um santo. 39 Igreja construda sobre o tmulo de um mrtir.

  • 25

    preferida era o octgono, coberto com uma cpula, e que assumiu variaes e

    associaes com outros elementos construtivos.

    Para as igrejas de carter comemorativo, construdas sobre a sepultura de

    pessoas importantes ou de lugares significativos, as formas so mais diversas do

    que as adotadas nos locais de batismo, j que no estavam sujeitas a um culto

    religioso invarivel.

    Um exemplo importante foi a igreja de Santa Constanza (ver Fig. 7), do incio

    do sculo IV, em Roma, com sua colunata dupla em crculo ao centro, seguida de

    parede circular com srie de nichos. O edifcio repetia a tradio do templo antigo

    sendo cercado de prtico circular e a entrada era feita atravs de um nartx

    transversal.

    Figura 7 - Igreja de Santa Constanza. Fonte: Il Mausoleo di S. Costanza. Disponvel em

    acesso em 02 jul. 2010.

    A partir do governo de Justiniano (527-565) foram construdos vrios edifcios

    para representar a importncia da Igreja e do Imprio. O tipo escolhido para isto

    foram os Edifcios de Cpula, por seu interessante efeito espacial de composio

    escalonada.

    O tipo baslica e o edifcio de planta central se desenvolveram nos sculos IV

    e V de maneira independente. A baslica atendia, com sua composio simples, as

    exigncias litrgicas das Igrejas Paroquiais e Episcopais. J o edifcio de planta

    central, com suas formas mais elaboradas, no cumpria essas exigncias.

  • 26

    No sculo V apareceram as tentativas de unir as duas formas em uma s

    edificao. Com a soma dos experimentos, experincias tcnicas e artsticas

    surgiram as Baslicas de Cpula. Pode-se citar a Igreja de Santa Sofia (532-537), em

    Constantinopla, como um dos exemplos mais expressivos. Possui planta retangular

    com um espao longitudinal centralizado, repleta de arcadas e pilares, o presbitrio

    em forma de trevo e o volume externo escalonado com cpulas e meias-cpulas.

    Como continuao dos experimentos, por volta do sculo XI, e com a insero

    de transeptos perpendiculares ao corpo da igreja surgiram as plantas em forma de

    cruz. A partir da interpenetrao de duas naves retangulares, resultou a figura bsica

    da cruz grega (Fig. 8): com um espao quadrado central, e quatro de mesmas dimenses nas laterais deste. Cada espao deste suportando uma cpula,

    resultando num volume de cinco cpulas.

    No comeo do sculo XIII a igreja sofreu uma diviso

    A parte oriental da Igreja passaria a se chamar Igreja Ortodoxa, e a

    parte ocidental, Igreja Catlica. As duas comunhes permaneceram

    muito prximas em termos de doutrina e prtica ambas se mantm

    apegadas Bblia; antiga estrutura da Igreja, liderada por bispos e

    padres; aos sete sacramentos, aos dias dos santos e outras festas;

    venerao de Maria.40

    Mais tarde, vrias aes da Igreja como a venda de indulgncias, e a

    negligncia e indiferena com os cristos, precipitaram uma maior e mais profunda

    fragmentao da instituio.

    Em 1517, O telogo alemo Martinho Lutero (1483-1546) revoltou-se contra

    as prticas da igreja catlica, foi excomungado e fundou a Igreja Luterana. Esta no

    reconhece a autoridade papal, nega o culto aos santos e acaba com a confisso

    obrigatria e o celibato dos padres e religiosos. Mas manteve os sacramentos do

    batismo e da eucaristia. Contrastando com a riqueza de decorao das igrejas

    catlicas, as chamadas igrejas reformadas passaram a ser construes simples, 40 COLLINS, Michael; PRICE, Matthew A. Histria do Cristianismo: 2000 anos de f. So Paulo: Edies Loyola, 2000. p. 103.

  • 27

    despojadas de ostentao, com foco no sermo (na palavra). Essa Reforma

    protagonizada por Lutero se expandiu e deu origem a outras manifestaes em

    diversos pases41.

    A Igreja catlica reagiu com o que foi considerada uma contra-reforma: uma

    reforma dentro da prpria igreja. A partir de 1520 foram notadas as primeiras

    mudanas com as criaes de novas ordens religiosas: capuchinhos, teatinos,

    barnabitas e jesutas. Mas a repercusso mais importante foi a realizao do Conclio

    de Trento, convocado em 1542 e encerrado somente em 1563. Nestas sesses

    buscou-se definir melhor a doutrina catlica.

    Na ltima sesso, iniciada em 1562, o conclio reafirmou muito da

    doutrina e da pratica medievais, como o celibato do Clo e a

    existncia do purgatrio. Tambm defendeu a crena no livre-arbtrio

    contra a doutrina de Lutero do cativeiro da vontade, e rejeitou sua

    doutrina da f exclusiva, insistindo que o amor e a esperana tambm

    so necessrios salvao e publicando decretos que extinguiam o

    pluralismo e a compra e venda de cargos eclesisticos.

    Aps o Conclio de Trento, que no havia se pronunciado a respeito dos locais

    de culto, o arcebispo de Milo, So Carlos Borromeu (1538-1584) na Instruo sobre

    a construo das Igrejas, recomendou:

    [...] Contra o plano circular ou em cruz grega, preconizado o plano

    em cruz latina, que alonga a nau para os fieis separando-a do coro

    reservado ao clero. [...]. Na igreja, o altar-mor deve ficar bem

    isolado[...] e elevado, de tal sorte que todos os olhares se dirijam para

    o sacrifcio da missa.[...] o plpito do pregador ser ao contrario

    aproximado o mais possvel da assistncia. Por outro lado, para que

    essa possa acompanhar da melhor maneira possvel os ofcios, a

    igreja dever ser to clara quanto possvel.42

    41 O Calvinismo na Sua, o Anglicanismo na Inglaterra, o Presbiterianismo na Esccia, entre outros. 42 VENARD, Marc. A imagem tridentina: a ordem da beleza. In: Histria do Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 342.

  • 28

    .

    Figura 8 - Esquema das edificaes de tipo cruciforme. Fonte: desenhos da autora

    Estes tipos (salo, basilical romano, de planta central e cruciformes),

    consagrados a partir dos primeiros sculos de culto cristo, seguiram orientando as

    construes das Igrejas Catlicas at o sculo XIX.

    No incio do sculo XX, muitos acreditavam que no havia sentido na procura

    de uma nova arquitetura, sustentando que as igrejas existentes eram o modelo

    adequado a ser seguido e repetido. Mas comeou-se a discutir esta prtica em busca

    de uma adaptao s novas formas arquitetnicas e s novas tcnicas de

    construo no somente nas igrejas catlicas, como tambm nas protestantes.

    O papel dos edifcios religiosos como ponto de referncia comea a ser

    alterado:

    Assim como os horizontes das cidades modernas so dominados

    pelos prdios comerciais, na Europa medieval as catedrais e igrejas

    eram os edifcios maiores e mais importantes. A catedral era um

    smbolo da cidade.43

    43 COLLINS, Michael; PRICE, Matthew A. Histria do Cristianismo: 2000 anos de f. So Paulo: Edies Loyola, 2000. p. 111.

  • 29

    No entanto neste momento as igrejas no precisam mais assumir esta funo,

    perde-se a necessidade de construes gigantescas e imponentes.

    O Movimento Litrgico, de acordo com as manifestaes do Papa Pio X

    (1835-1914), que exerceu seu papado de 1903 a 1914, iniciou uma renovao na

    Igreja Catlica. Houve iniciativas para aproximar os fiis da liturgia nas missas e a

    inteno de aliar os artistas modernos Igreja, de maneira a reafirmar a

    modernidade litrgica. No campo da arquitetura essas reformas preconizaram a

    lgica e harmonia das construes com os materiais e tcnicas modernas.

    [...] fundamental arquitetura eclesistica da reforma foi o carter

    eminentemente central que deveria assumir o altar, em volta do qual

    as pessoas reunir-se-iam, transplantando-o como domnio exclusivo

    do clero e exaltando-o como pedra fundamental da Igreja crist, ao

    mesmo tempo em que o relacionaria ao ato Eucarstico Cristo e aos

    apstolos na ltima Ceia, em ideal cristocntrico. Alm de facilitar a

    comunho e a participao da congregao na Casa de Deus e

    Corpo de Cristo, a funo do templo reformado deveria ser a de

    promover o senso comunitrio e encorajar a contribuio ativa do fiel

    pela emoo individual em conjuno coletiva, sentido anlogo

    viso socialista dos expressionistas.44

    A Alemanha foi um campo especialmente frtil agregando inmeras novas

    experincias (ver Fig. 9 a 13) . Um dos arquitetos que se dedicou explorao das

    formas, buscando alternativas de configuraes dos espaos tradicionais e

    aproximando o altar dos fiis foi Dominikus Bhm, seguido por seu colaborador

    Rudolf Schwarz que em 1938 escreveu Vom Bau der Kirche45 onde apresentou

    modelos esquemticos (ver Fig. 14) e discorreu sobre os problemas de

    representatividade dos templos para o arquiteto. Tais modelos foram bastante

    44 MLLER, Fbio. O templo cristo na modernidade Permanncias Simblicas & Conquistas Figurativas. Dissertao de Mestrado, Porto Alegre, PROPAR UFRGS, 2006. p. 288 45 SCHNELL, Hugo. La arquitectura eclesial del Siglo XX en Alemania. Munich: Schnell & Steiner, 1974.

  • 30

    divulgados, repercutindo na arquitetura religiosa de inmeros pases e de

    importantes arquitetos como, por exemplo, Le Corbusier e Oscar Niemeyer.

    Figura 9 - Auferstehungskirche ou Igreja da Ressurreio, Otto Bartning, 1929/30.

    Fonte: SCHNELL, Hugo. La arquitectura eclesial del siglo XX em Alemania. Munich Zurich: Schnell & Steiner. 1974. p.59.

  • 31

    Figura 10 - Modelo de uma igreja protestante em vidro e ao. Peter Grund. 1929.

    Fonte: SCHNELL, Hugo. La arquitectura eclesial del siglo XX em Alemania. Munich Zurich: Schnell & Steiner. 1974. p.60

    Figura 11 - Igreja Catlica St. Pius. H. Schedel, 1958/60.

    Fonte: SCHNELL, Hugo. La arquitectura eclesial del siglo XX em Alemania. Munich Zurich: Schnell & Steiner. 1974. p.116.

  • 32

    Figura 12 - Projeto de igreja com paredes curvas de concreto, T, Hermanns, 1963.

    Fonte: SCHNELL, Hugo. La arquitectura eclesial del siglo XX em Alemania. Munich Zurich: Schnell & Steiner. 1974. p.128.

    Figura 13 - Capela Protestantes, Fautze Rau, 1964/68.

    Fonte: SCHNELL, Hugo. La arquitectura eclesial del siglo XX em Alemania. Munich Zurich: Schnell & Steiner. 1974. p.128.

  • 33

    Figura 14 - Esquema das novas formas adotadas no sculo XX. Fonte: desenhos da autora

    O evento mais importante do sculo XX para o catolicismo, no entanto foi o

    Conclio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965. Neste, o catolicismo passou por

    uma transformao efetiva e profunda em direo aceitao da modernidade, que

    j vinha sendo discutida no seio da Igreja. A missa, que antes era celebrada em latim

    e rezada pelo padre de costas para os fiis, passou a utilizar a lngua de cada pas e

    o celebrante a se postar voltado para a assemblia. A mudana arquitetnica que

    isto acarretou foi a localizao do altar, que se aproximou da assemblia, exigindo

    uma reorganizao do espao.

    Com todas essas transformaes, os espaos das igrejas tambm se

    modificaram, com a principal finalidade de aproximar as pessoas da Divindade, dos

    santos e do clero. Os santos passaram a ser tratados mais como humanos do que

    divindades, e reduziram-se suas imagens em nmero, privilegiando a simplicidade. A

    pia batismal que se localizava fora da igreja ou logo entrada, segundo a idia de

    que as pessoas deveriam ser batizadas antes de entrarem no templo, que s deveria

    ser freqentado depois que deixassem de ser pagos, passou a ter um local de

    importncia dentro da nave. Os fiis deviam participar deste ato importante, e por

    este motivo ela se localizou prxima ao altar, para que todos possam testemunh-lo.

  • 34

    2 Oscar Niemeyer e a Arquitetura Religiosa Oscar Niemeyer, com mais de 100 anos de vida e uma longa carreira

    profissional, teve muitas oportunidades de projetar e construir um grande nmero de

    obras: museus, palcios, residncias, monumentos, parques, escolas entre outras,

    tanto no Brasil quanto no exterior.

    Entre os inmeros projetos encontram-se vrios exemplares, construdos ou

    no, de edifcios religiosos. Embora declaradamente ateu, o arquiteto se dedicou de

    maneira especial a este tema, desenvolvendo um nmero significativo de templos.

    Estudando de maneira mais abrangente sua trajetria poderemos perceber

    que o tema religioso esteve presente de diversas maneiras na vida do arquiteto.

    Ainda criana, Niemeyer conviveu com o mundo religioso, atravs do ambiente de

    orao em sua prpria famlia. Mais tarde, conheceu vrios exemplares de

    arquitetura religiosa por meio de seus contatos profissionais e mesmo por meio da

    conversa entre amigos, inclusive alguns religiosos.

    Oscar Niemeyer nasceu em 15 de dezembro de 1907, na cidade do Rio de

    Janeiro. Como consta em seus vrios registros biogrficos, viveu sua infncia na

    casa de seus avs, no bairro das Laranjeiras (Fig. 15 e 16). Uma de suas mais

    longnquas lembranas ligada religio: Foi na velha casa das Laranjeiras que

    passei a minha mocidade, dela lembrando a sala de visita que virava capela.46

    A importncia dada religio por sua av, o impressionou: A minha famlia

    era catlica, famlia de fazendeiros procedente de Maric, com retrato do papa na

    parede, cheia de preconceitos.47

    A sala de visitas tinha cinco janelas trs dando para a rua, duas

    para os lados. Numa destas, minha av embutiu um oratrio, que,

    46 NIEMEYER, Oscar. A forma na arquitetura. Rio de Janeiro: Avenir Editora, 1978. p. 12. 47Entrevista ao Confea. Disponvel em Acesso em: 6 nov. 2008.

  • 35

    aos domingos abrindo para a sala, permitia que a missa fosse rezada

    em casa, to religiosa era a nossa famlia.48

    Figura 15 - A casa da Rua Passos Manuel. Fonte: PETIT, Jean. Niemeyer Poeta da Arquitetura. Lugano: Fidia Edizzione dArte, 1998.

    p.20.

    48 NIEMEYER, Oscar. A f segundo Niemeyer. Correio Braziliense. Braslia, 05 jul. 2009. p. 38.

    Figura 16 - Planta da casa da rua Passos Manuel. Sala de Estar em destaque. Fonte: Oscar Niemeyer. Casas onde Morei. Rio de Janeiro: Revan, 2005 p.35.

  • 36

    Figura 17 Famlia de Oscar Niemeyer: esquerda seu irmo Carlos Augusto, sua me e seu pai, frente suas irms Lilia e Leonor, Oscar Niemeyer, irm Judith e irmo Paulo, dcada de 1920.

    Fonte: GARCI, Willie. Celebrating Oscar Niemeyer. Oscar Niemeyer, Did You Know? 28 jul. 2009. Disponvel em acesso em 20 mai. 2010.

    Mas Niemeyer no conseguia entender o ar solene com que ela realizava tais

    ritos. Ainda criana, achava graa: Aos domingos minha av abria uma das janelas

    da sala de visitas. Era o oratrio, e a missa rezada em casa com a presena da

    vizinhana. No raro me retiravam da sala, a rir do ar compenetrado com que ela, em

    voz alta, rezava a Salve-Rainha.49

    Mais tarde, em sua juventude, comeou a questionar o Deus de sua av e a

    buscar alternativas para entender o mundo: s vezes, muito jovem, o espiritismo me

    atraa, logo dissolvido pelo materialismo dialtico irrecusvel.50

    49 NIEMEYER, Oscar. Casas onde morei. Rio de Janeiro: Revan, 2005. p. 13-14. 50 NIEMEYER, Oscar. Minha Arquitetura. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p. 339.

  • 37

    Depois de trabalhar no Socorro Vermelho51, conviver com um grupo de

    comunistas, e perceber a discrepncia entre pobres e ricos, Niemeyer deixou de

    acreditar em Deus:

    A idia de um Deus todo-poderoso, criador de todas as coisas, havia

    desaparecido do meu pensamento. Mas a viso de um ser humano

    to frgil e desprotegido, diante deste universo fantstico que o cerca,

    levava-me a acompanhar as conquistas da cincia, empenhada em

    desvendar os mistrios do cosmo e de nossa prpria existncia.52

    Mas no abandonou o assunto ao longo do tempo, surgindo em vrias de

    suas declaraes. Em conversas com seu engenheiro e amigo, Carlos Sussekind,

    confessou que buscou refgio na literatura para tentar entender a religio:

    [...] li com ateno o livro Em que crem os que no crem? que

    voc me deu. Pura especulao intelectual. Seus autores inteligentes

    e cultos demais para uma conversa mais realista.53

    Apesar de se declarar ateu, no mantm uma postura de rejeio em relao

    religio e s pessoas que a seguem

    [...] a lembrana daqueles velhos tempos, dos amigos em sua

    maioria catlicos que nos freqentavam deixou-me a idia de que

    se tratava de gente boa e bem intencionada, que manifestava uma

    atitude generosa diante da pobreza, sem a revolta que em mim

    passou a dominar

    [...]

    51 O Socorro Vermelho Internacional (SCI) foi um servio social organizado pela Internacional Comunista em 1922. Conduziu campanhas de apoio aos prisioneiros comunistas e reuniu apoio material e humanitrio em situaes especficas. No Brasil tambm era conhecido como Socorro Proletrio. 52 NIEMEYER, Oscar. A f segundo Niemeyer. Correio Braziliense. Braslia, 5 jul. 2009. p. 38. 53 NIEMEYER, Oscar. Conversa de Amigos: correspondncia entre Oscar Niemeyer e Jos Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 31.

  • 38

    Tudo isso explica a minha postura compreensiva e quase indulgente

    em relao aos que crem num Deus invisvel e onipotente,

    aceitando, conforme tem acontecido, projetar uma igreja, uma

    catedral, ou uma simples capela como a que acabo de desenhar, a

    pedido de meu amigo Roberto Irineu Marinho. 54

    Afirma tambm: No sou catlico, mas sempre senti certa atrao pelos

    assuntos de religio, numa tendncia a especular sobre coisas em que intimamente

    gostaria de acreditar.55

    Oscar Niemeyer tambm fala do desafio e da grandeza de realizar um edifcio

    voltado para a religio:

    [...] ao desenhar uma igreja, o arquiteto sente, surpreso, como esta

    generosa como tema arquitetural. Com que prazer desenhei as

    colunas da Catedral de Braslia, a subirem em crculo, criando a

    forma desejada! E lembro os contrastes de luz que adotei, to

    importantes no interior de uma catedral.

    Quando projeto uma catedral, reconheo que o prazer que sinto em

    ver uma obra bem realizada muito menor do que a importncia que

    lhe do aqueles que vo freqent-la, pois ali que acreditam

    estarem perto de Deus. Para eles, o ser supremo que, onipotente,

    tudo criou.

    Eis como eu posso justificar essa contradio que alguns levantam

    entre a minha posio de comunista e o meu interesse em desenhar

    obras de carter religioso.56

    54 NIEMEYER, Oscar. A f segundo Niemeyer. Correio Braziliense. Braslia, 5 jul. 2009. p. 38. 55 NIEMEYER, Oscar. Quase memrias: Viagens. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1966, p. 99.

    56 NIEMEYER, Oscar. A f segundo Niemeyer. Correio Braziliense. Braslia, 5 de jul. 2009. p. 38.

  • 39

    Oscar Niemeyer ingressou na Escola Nacional de Belas Artes em 1929, aos

    22 anos, onde se formou engenheiro-arquiteto (Fig. 18 e 19). Ainda estudante teve a

    oportunidade de estagiar no escritrio de Lucio Costa e Carlos Leo, e de trabalhar

    em uma construtora:

    Como imaginava, a passagem pelo escritrio do Lucio foi

    fundamental para mim. Quanta coisa devo a esses bons amigos!

    Com eles compreendi melhor a nossa velha arquitetura colonial; eles

    demonstravam a determinao com que devemos atuar no campo da

    arquitetura. Com que interesse tomava contato com os primorosos

    desenhos do Lucio e as belas mulheres que Leo to bem sabia

    desenhar!57

    Figura 18 - Carteira de Niemeyer como Aluno da Escola Nacional de Belas Artes Fonte: Cronologia Vida < http://www.niemeyer.org.br> acesso em 21 mar. 2010.

    57 NIEMEYER, Oscar. Meu ssia e eu. Rio de Janeiro: Revan, 1992. p. 61.

  • 40

    Figura 19 - Diploma da Escola Nacional de Belas-Artes

    Fonte: Cronologia Vida < http://www.niemeyer.org.br> acesso em 21 mar. 2010.

    Nesta convivncia com os dois arquitetos possvel que Niemeyer tenha

    estado em contato com um projeto que Lucio desenvolveu para um concurso de uma

    cidade operria para Monlevade58, em 1934. Uma das edificaes desenvolvidas era

    uma igreja que, segundo Carlos E. Comas59, inspirava-se diretamente na de Igreja

    de Notre-Dame du Raincy, de Auguste Perret de 1922 (ver Fig., 20 e 21). O projeto

    da igreja possua trs naves abobadadas, suportadas por colunas delgadas e com

    elementos vazados filtrando a luz nas paredes laterais.

    58 Concurso realizado pela Companhia de Siderurgia Belgo-Mineira, para um conjunto habitacional com residncias, igrejas, cinema, armazns. 59 COMAS, Carlos Eduardo. Precises brasileiras: sobre um estado passado da arquitetura e urbanismo modernos. Tese de doutorado. Universidade de Paris, 2002. p. 65.

  • 41

    Figura 20 - Croqui de Monlevade. Lucio Costa. 1934. Fonte: BRUAND, Yves. Arquitetura contempornea no Brasil. So Paulo: Editora Perspectiva, 1991.

    p. 75.

    Figura 21 - Igreja de Monlevade. Lcio Costa. 1934. Fonte: BRUAND, Yves. Arquitetura contempornea no Brasil. So Paulo: Editora Perspectiva, 1991.

    p. 75.

  • 42

    Niemeyer cultivou vrias amizades ao longo de sua vida. E foram estes

    contatos e amigos que lhe abriram as portas para aprender, aperfeioar, difundir e

    executar sua arquitetura.

    Em 1936, depois de recusar a execuo do projeto vencedor para o edifcio do

    Ministrio da Educao e Sade60, o ministro Gustavo Capanema convidou Lucio

    Costa para coordenar a elaborao de um novo projeto e este sugeriu a consultoria

    de Le Corbusier. Oscar Niemeyer reivindicou sua participao na equipe61 e alm de

    ter vivenciado o modo de projetar do mestre franco-suo, teve um papel importante

    na escolha da soluo final para o Ministrio.

    Foi durante o desenvolvimento do projeto de Le Corbusier para a

    sede do MES que me senti mais confiante. O projeto estava sendo

    desenhado na base do segundo projeto do velho mestre. O mesmo

    bloco junto ao Ministrio do Trabalho, a mesma rua corredor e os

    mesmos pilotis com quatro metros de altura e o brise vertical da ABI.

    Curioso, fiz um croqui diferente, em funo do primeiro estudo de Le

    Corbusier. Leo gostou da soluo, Lucio quis v-la e eu que

    nenhuma pretenso tinha de mudar o projeto em execuo joguei o

    croqui pela janela. Lucio mandou busc-lo e o adotou. Nesse

    momento, senti que no seria um arquiteto medocre, que

    compreendia a arquitetura contempornea e nela podia atuar

    corajosamente.62

    Entre outras coisas, em seu croqui, Niemeyer alterou a localizao do prdio

    para o meio da quadra e aumentou para dez metros a altura dos pilotis, que antes

    eram de apenas quatro metros.

    60 Mais tarde, a Lei n.o 1.920, de 25 de julho de 1953, criou o Ministrio da Sade, e o Ministrio da Educao e Sade passou a se chamar Ministrio da Educao e Cultura. 61 Lucio Costa, Carlos Leo, Jorge Moreira, Affonso Reidy, Ernani Vasconcellos e Oscar Niemeyer. 62 NIEMEYER, Oscar. Meu ssia e eu. Rio de Janeiro: Revan, 1992. p. 62.

  • 43

    Figura 22 Croquis comparativos de Oscar Niemeyer1. proposta da equipe brasileira, 1. Proposta de Le Corbusier, 2. Proposta de Le Corbusier e proposta definitiva da equipe brasileira.

    Fonte: PHILIPPOU, Styliane. Oscar Niemeyer: curves of irreverence. London: Yale University Press, 2008, p. 58.

    A vinda de Le Corbusier influenciou a arquitetura brasileira e de maneira

    especial, aliada ao apoio de Lucio Costa, contribuiu para a ascenso de Oscar

    Niemeyer. Este foi o ponto de partida para que Niemeyer comeasse a desenvolver a

    sua linguagem arquitetnica peculiar. Para Niemeyer,

    [...] cujas preocupaes fundamentais eram j de ordem formal, o fato

    de constatar pessoalmente a importncia que as mesmas tinham

    para Le Corbusier, significou uma verdadeira libertao,

  • 44

    possibilitando-lhe lanar audaciosamente pelo caminho que viria a

    torn-lo internacionalmente conhecido.63

    Outro fato importante preconizado por Gustavo Capanema foi a criao, em

    1937, do SPHAN Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, destinado a

    determinar, organizar, conservar, defender, enriquecer e propagar o patrimnio

    artstico nacional64. A equipe ento formada possua predominantemente arquitetos,

    que em sua maioria eram simpatizantes ao movimento moderno brasileiro.

    O SPHAN comea a funcionar contando, alm de seu diretor Rodrigo

    Mello Franco de Andrade, com os seguintes colaboradores: uma

    secretria, Judith Martins, e os arquitetos Lucio Costa, Oscar

    Niemeyer, Carlos Leo, Jos de Souza Reis, Paulo Thedim Barreto,

    Renato Soeiro e Alcides da Rocha Miranda.65

    Oscar Niemeyer, atravs dessa vivncia, teve contato com a arquitetura

    brasileira do passado. Ao mesmo tempo em que ele e seus colegas estavam

    interessados em criar uma nova arquitetura brasileira, baseada nos preceitos de Le

    Corbusier, voltaram suas atenes tambm preservao e valorizao do passado,

    aprendendo com as lies presentes em obras centenrias.

    [...] aprendi a respeitar nosso passado colonial, a sentir como so

    belas as velhas construes portuguesas, sbrias, rijas, com suas

    grossas paredes de pedra ou taipa de pilo. E os telhados

    derramados a contrastarem com suas brancas paredes caiadas.66

    63 BRUAND, Yves. Arquitetura contempornea no Brasil. So Paulo: Editora Perspectiva, 1991. p. 90-91. 64 ANDRADE, Mrio. Anteprojeto do Patrimnio. In: CAVALCANTI, Lauro (Org.). Modernistas na repartio. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993. p. 39. 65 CAVALCANTI, Lauro. Introduo. In CAVALCANTI, Lauro (Org.). Modernistas na repartio. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993. p. 21. 66 NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo: Memrias. Rio de Janeiro: Revan, 2000. p. 42-43.

  • 45

    Durante este perodo, Oscar Niemeyer visitou as cidades histricas, muitas

    vezes ao lado de Rodrigo M. F. de Andrade67, tomando conhecimento da arquitetura

    do sculo XVIII, das igrejas barrocas, das obras de Aleijadinho e passou a admir-

    las.

    Por outro lado tambm acompanhou a discusso acerca da insero de

    construes modernas em stios histricos. Ele mesmo, em 1938, foi encarregado de

    projetar um hotel para a cidade de Ouro Preto. A tarefa no era fcil, implicava em

    construir um edifcio que atendesse s necessidades do turismo, tentando no entrar

    em conflito com a paisagem da cidade. Com o auxlio de Lucio Costa, Niemeyer

    conseguiu chegar a um resultado bastante razovel. Nesta poca, Lucio estava

    finalizando seu projeto para um museu inserido no Sitio Histrico de So Miguel, um

    dos stios histricos dos Sete Povos das Misses, no Rio Grande do Sul. (Fig. 23)

    Figura 23 Museu das Misses. Fonte: So Miguel das Misses. Disponvel

    acesso em 28 mai. 2010.

    Um dos temas mais estudados pela Revista do Patrimnio, publicada

    anualmente pelo SPHAN, era de carter religioso:

    Um exame nos primeiros cinco exemplares confirma o perfil de um

    patrimnio que privilegia os bens de pedra-e-cal, sobretudo religiosos

    67 NIEMEYER, Oscar. Prefcio. In CAVALCANTI, Lauro (Org.). Modernistas na repartio. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993. p. 10.

  • 46

    de Minas e Rio de Janeiro. [...] Mais da metade (68%) dos artigos de

    arquitetura, arte e histria abordam temas religiosos.68

    Em 1940, Joaquim Cardozo comeou a trabalhar no SPHAN, no ano seguinte,

    conheceu Niemeyer que o convidou para fazer os clculos de seus projetos para os

    edifcios da Lagoa da Pampulha.

    Cardozo se interessava pelas obras antigas e em 1943, publicou um ensaio

    com o ttulo Um tipo de casa rural do antigo Distrito Federal e Estado do Rio na

    revista nmero 7 do SPHAN. Este artigo foi publicado novamente na Mdulo, anos

    mais tarde69 (Fig. 24). Cuja capa foi ilustrada com a imagem de uma casa colonial, a

    fazenda de Coluband, onde se podem notar trs elementos importantes nesta

    arquitetura: cobertura de telhas de barro, a colunata e a larga varanda. Elementos

    que, inmeras vezes, seriam empregados por Niemeyer, de forma explcita ou

    implcita.

    Figura 24 - Capa da revista Mdulo no29, agosto de 1962

    Fonte: Mdulo, Rio de Janeiro: no 29, Ago. 1962

    68 CAVALCANTI, Lauro (Org.). Modernistas na repartio. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993. p. 22. 69 CARDOZO, Joaquim. Um tipo de casa rural do antigo Distrito Federal e Estado do Rio. Revista Mdulo, no 29, ago. 1962. p. 1-23.

  • 47

    No ensaio, Cardozo enfatiza a disposio da capela:

    [...] em Coluband, a capela fica bastante afastada da casa-grande,

    possui trre[sic], nave, capela-mor e sacristia, isto , todos os

    requisitos de uma pequena igreja, em trno[sic] da qual h um largo

    ptio que sempre ornamentado em dias de festa.70 (ver Fig. 25 e

    26)

    Figura 25 Planta Baixa Fazenda Coluband Fonte: Mdulo, Rio de Janeiro no 29, Ago. 1962, pag. 15.

    Figura 26 - Fazenda Coluband Fonte: Fazenda Coluband

    acesso em 02 fev. 2010.

    70 CARDOZO, Joaquim. Um tipo de casa rural do antigo Distrito Federal e Estado do Rio. Revista Mdulo, no 29, ago. 1962. p. 9.

  • 48

    Por sua vez, Rodrigo Mello Franco de Andrade, presidente do SPHAN at a

    dcada de 60, escreveu acerca das capelas rurais na primeira edio da revista

    Mdulo, em 1955, enfatizando a importncia dessas edificaes na histria da

    arquitetura brasileira:

    No se poderia escrever a histria da arquitetura religiosa no Brasil

    sem um captulo especial dedicado s capelas rurais. O trabalho a

    esse respeito que as exclusse seria, pelo menos, gravemente omisso

    no tocante a alguns dos monumentos mais arcaicos e genunos do

    acervo arquitetnico de nosso pas.71

    Algumas destas construes resistiram ao tempo, e Rodrigo mencionou

    aquelas de grande importncia, como a capela da Torre de Garcia dvila (Fig. 27),

    as capelas integradas em residncias rurais estudadas por Lus Saia e relembrou as

    apresentadas por Joaquim Cardozo72. Ainda citou a importncia dada por Lucio

    Costa a este tipo de edificao quando discorreu sobre a arquitetura dos Jesutas.

    Figura 27 - Capela da Casa da Torre de Garcia dvila Fonte: Fundao Garcia dvila acesso em 18 mai. de 2010.

    Depois do desenvolvimento do Ministrio da Educao e Sade, Niemeyer

    realizou alguns trabalhos. Alm de um edifcio para uma entidade assistencial, a

    71 Mdulo, no 1, 1955. 72 Trabalho orientando pela Diretoria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional e publicado na revista no 7 deste rgo, de 1943.

  • 49

    Obra do Bero, elaborou outros projetos, a maioria no construdos.73Em 1938, foi

    lanado um concurso para o projeto do Pavilho Brasileiro para a exposio de Nova

    York. Apenas dois anos depois da vinda de Le Corbusier, a arquitetura brasileira

    estava em franco desenvolvimento, porm, ainda em busca de um caminho que a

    identificasse como arquitetura moderna e a distinguisse do estilo internacional.

    Nesse momento, Lucio convidou Niemeyer para a elaborao de um projeto em

    conjunto (Fig. 28). Prepararam uma edificao simples, de estrutura metlica, com o

    uso de linhas curvas que alcanou grande sucesso.

    Tratava-se de convincente exemplo de nova forma de expresso

    arquitetnica, com caractersticas de criao autenticamente

    brasileiras em sua flexibilidade e riqueza plsticas [...] atravs de uma

    linguagem moderna, com marcante interpretao pessoal plenamente

    vlida e de grande significao. 74

    Figura 28 Croqui do Pavilho do Brasil. Fonte: Coletnea de 49 croquis de Oscar Niemeyer produzidos entre 1936 e 2003

    Acesso em 20 jan. 2010.

    73 Segundo levantamento feito pela Fundao Oscar Niemeyer, foram construdos: a Obra do Bero (RJ, 1937), o Grande Hotel de Ouro Preto (MG, 1938), alm da participao no projeto do Ministrio da Educao e Sade e do Pavilho do Brasil para a Exposio Mundial de Nova Iorque. Neste tempo, Niemeyer tambm elaborou projetos que no foram construdos Clube Esportivo (RJ, 1935), Residncia (RJ, 1935), Residncia Henrique Xavier (RJ, 1936), Maternidade (RJ, 1937), Residncia Oswald de Andrade (SP, 1938), Residncia M. Passos (RJ, 1939) e participao no projeto para a Universidade do Brasil (RJ, 1936). 74 BRUAND, Yves. Arquitetura contempornea brasileira. So Paulo: Editora Perspectiva, 1991. p. 107.

  • 50

    Nesse projeto, aparece um dos elementos que iria ser constante a partir de

    ento na obra de Oscar Niemeyer: a rampa curvilnea, criando um percurso de

    observao do edifcio.

    Mais tarde, por volta de 1940, Niemeyer, mais uma vez por intermdio do

    ministro Gustavo Capanema, foi apresentado a Juscelino Kubitschek, que o convidou

    para projetar um conjunto de edifcios circundando a lagoa da Pampulha, em Belo

    Horizonte. Em meio aos cinco edifcios75 estava a primeira obra religiosa de Oscar

    Niemeyer.

    Tudo comeou na Pampulha76, diz Oscar Niemeyer. Embora j houvesse

    elaborado alguns projetos anteriormente, o arquiteto sempre se referiu a este

    momento como o seu efetivo incio na rea da arquitetura.

    Em cinco momentos divido a minha arquitetura: primeiro, Pampulha;

    depois, de Pampulha a Braslia; depois, Braslia; depois ainda, minha

    atuao no exterior; e, finalmente, os ltimos projetos que realizei.77

    Nos projetos para a lagoa da Pampulha, Oscar explorou as possibilidades da

    tcnica do concreto armado. Anos mais tarde, o arquiteto diria:

    E tudo comeou quando iniciei os estudos de Pampulha [...]

    desprezando deliberadamente o ngulo reto to louvado e a

    arquitetura racionalista feita de rgua e esquadro, para penetrar

    corajosamente nesse mundo de curvas e formas novas que o

    concreto armado oferece.

    75 Estavam previstas cinco edificaes: um Hotel (no construdo), um Cassino (atualmente Museu de Arte), um clube (Iate Golf Clube), restaurante (Casa do Baile) e uma igreja (Igreja de So Francisco de Assis). 76 NIEMEYER, Oscar. Conversa de Amigos: correspondncia entre Oscar Niemeyer e Jos Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p.57. 77 NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo: Memrias. Rio de Janeiro: Revan, 2000. p. 266.

  • 51

    E foi no papel, ao desenhar esses projetos, que protestei contra essa

    arquitetura montona e repetida, to fcil de elaborar que se

    multiplicou rapidamente, dos Estados Unidos ao Japo.

    [...] Era o protesto pretendido que o ambiente em que vivia exaltava

    com suas praias brancas, suas montanhas monumentais, suas velhas

    igrejas barrocas, suas belas mulheres bronzeadas.78

    Em Pampulha ele buscou se libertar das limitaes funcionalistas e teve a

    coragem de executar a arquitetura que almejava: a busca pela liberdade formal,

    beleza e inveno.

    O projeto me interessava vivamente. Era a oportunidade de contestar

    a monotonia que cercava a arquitetura contempornea, a onda de um

    funcionalismo mal compreendido que a castrava, dos dogmas de

    forma e funo que surgiam, contrariando a liberdade plstica que o

    concreto armado permitia. A curva me atraa. A curva livre e sensual

    que a nova tcnica sugeria e as velhas igrejas barrocas lembravam.79

    E para a pequenina igreja dedicada a So Francisco (Fig. 29), Niemeyer

    explorou as possibilidades plsticas do concreto armado. A edificao est disposta

    entre o lago da Pampulha e a avenida que o circunda. De traos delicados e cor

    predominantemente azul, estabelece um ponto intermedirio no horizonte, uma

    ligao entre o lago e o cu.

    Ao visitante que chega pela avenida, descortina-se um grande painel,

    delimitado pela laje de cobertura. O painel externo de azulejos80 em azul e branco foi

    78 NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo: Memrias. Rio de Janeiro: Revan, 2000. p. 267-268. 79 Apud PETIT, Jean. Niemeyer: poeta da arquitetura. Lugano: Fidia Edizione dArte, 1998. p. 304.

    80 Os azulejos foram executados por Paulo Osir Rossi e sua firma Osirarte, a mesma que realizou a execuo dos azulejos do Ministrio da Educao e Sade, em 1936.

  • 52

    realizado por Candido Portinari retratando a vida de So Francisco de Assis.81. (Ver

    Fig. 30)

    Figura 29 - Croqui da Igreja So Francisco de Assis Fonte: Coletnea de 49 croquis de Oscar Niemeyer produzidos entre 1936 e 2003.

    Acesso em 20 jan 2010.

    Figura 30 - Igreja So Francisco de Assis, 2005.

    Fonte: Foto da autora

    81 Os estudos comearam em 1943. A datao das obras segue as datas encontradas nas correspondncias entre Portinari e Oscar Niemeyer ou presentes na Cronobiografia de Portinari, realizada pelo Projeto Portinari.

  • 53

    Conduzindo o visitante, o caminho de pedra portuguesa passa em meio aos

    jardins elaborados pelo paisagista Roberto Burle Marx.

    A cobertura da nave feita por casca de concreto em forma de arco

    parablico e diminui em altura medida que se aproxima do altar. Neste ponto se

    insere sob outra cobertura, abrigando sacristia e servios, com formato de quatro

    parbolas unidas, sendo trs delas em menor tamanho, no entanto seu processo

    construtivo diferente, as abbadas se apiam em pilares.

    O que Oscar faz na sacristia e capela lateral da Pampulha nada mais

    que [...] sucesso de abbadas, estendendo a parbola at o solo

    nas extremidades supostamente de modo a transmitir os empuxos

    finais at o solo.82

    As cascas foram revestidas por pastilhas em porcelana azul, e nas laterais da

    parte que reveste a nave esto dois mosaicos de autoria de Paulo Werneck (Fig. 30).

    O acesso, pela fachada de vidro e brises voltada para o lago (Fig. 31),

    marcado por uma marquise inclinada que une templo e campanrio. Um piso de

    mrmore branco, com desenhos sinuosos em basalto preto integra exterior e interior.

    Figura 31 - Igreja So Francisco de Assis, 2005.

    Fonte: Foto da autora

    82 MACEDO, Danilo M. Da matria inveno: as obras de Oscar Niemeyer em Minas Gerais 1938-1955. Braslia, Cmara dos Deputados, Coordenao de publicaes, 2008. p.178.

  • 54

    Dentro da igreja (Fig. 32), a abbada parablica revestida de madeira afunila-

    se suavemente em direo ao altar conduzindo o olhar para o mural de Portinari

    intitulado So Francisco despojando-se das vestes. Para o interior Portinari tambm

    realizou uma srie de quadros representando a Via Sacra e desenhou azulejos que

    revestem duas bancadas laterais, as paredes do plpito, do confessionrio e do

    guarda-corpo do coro. A parede que conforma o batistrio revestida na face

    exterior por estes azulejos, e na interior por um bronze de Alfredo Ceschiatti.

    Figura 32 Interior da Igreja So Francisco de Assis, 2005.

    Fonte: Foto da autora

    A integrao bem-sucedida de todas as partes tem origem na equipe que

    Niemeyer convocou para auxili-lo: o engenheiro Joaquim Cardozo; o paisagista

    Roberto Burle Marx; e artistas plsticos Cndido Portinari83, Alfredo Ceschiatti e

    Paulo Werneck.

    Niemeyer estabeleceu um ponto de partida para uma nova arquitetura, no

    desvinculada dos preceitos racionalistas, mas com o algo a mais.

    83 Em 1944, ainda durante as obras da Pampulha, Athos Bulco (futuro colaborador de Niemeyer em Braslia) conheceu Portinari, e foi convidado a ser seu assistente, atuando na execuo do Painel de So Francisco. Athos havia sado do Exercito quando Portinari o convidou para ajudar na Pampulha.

  • 55

    Inovadora pelo inusitado emprego de uma casca parabolide para a

    nave, associada a abbadas para o abrigo das demais dependncias

    religiosas, numa combinao de estruturas cuja resultante formal

    afastava-se de qualquer formulao do racionalismo do ps-guerra.84

    No entanto, a inovao que Niemeyer traz relativa: mesmo criando um

    marco para a renovao da arquitetura religiosa, ao mesmo tempo respeita a

    tradio franciscana. A planta da Igreja de So Francisco de Assis possui todas as

    caractersticas de um templo tradicional:

    Nave nica, cruzeiro, nrtex, adro, torre-sineira de um lado s,

    balaustrada sinuosa no coro, plpitos colocados no cruzeiro e nave

    sem arestas vivas, tudo inundado com brilhante efeito de luz natural,

    enfatizando o protagonismo do altar, so reais subterfgios da

    arquitetura eclesistica franciscana presentes tanto nesses

    exemplares do sculo XVIII, como na capela de Niemeyer dedicada a

    So Francisco.85

    Niemeyer utiliza um partido tradicional, mas confere uma nova leitura espacial

    obra. Enquanto tipologicamente e programaticamente arquitetura tradicional

    como as antigas capelas encontradas no interior do Brasil, possui tambm uma

    caracterstica moderna. Niemeyer reinventou a arquitetura religiosa, sem perder as

    caractersticas essenciais. Atravs das possibilidades do concreto, emprestou

    planta tradicional uma feio revolucionria. O interior continua tradicional, mas com

    uma releitura moderna, enquanto o exterior traz a inovao.

    Nesse sentido, o arquiteto demonstra conhecer a histria da arquitetura

    religiosa, provavelmente devido ao convvio no SPHAN. Nessa primeira obra, ele

    mantm a tradio, os costumes, ao mesmo tempo em que busca uma integrao

    com o seu tempo. Niemeyer segue a linha do desenvolvimento da arquitetura

    84 SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1997. p. 100. 85 MLLER, Fbio. O templo cristo na modernidade Permanncias Simblicas & Conquistas Figurativas. Dissertao de Mestrado, Porto Alegre, PROPAR UFRGS, 2006. p. 288

  • 56

    religiosa. A arquitetura de igrejas foi se modificando ao longo dos tempos, de acordo

    com as inovaes tcnicas que se produziam e a adequao foi sendo necessria.

    A Igreja da Pampulha, no entanto, gerou uma grande polmica, envolvendo

    representantes do clero, a populao e intelectuais.

    [...] a querela gerada perpetuou-se por dezessete anos parecendo

    apontar para uma condenao da esttica do modernismo por parte

    de segmentos conservadores do clero e da sociedade daquela

    poca.86

    Ainda que o principal motivo fosse a no aceitao da modernidade da obra,

    havia outros fatores contribuindo para os desentendimentos.

    A igreja, porm, fora construda em um terreno no consagrado, nem

    bento, sem consulta ao arcebispo, utilizando o trabalho de artistas

    identificados ao comunismo e consagrada a um santo da escolha do

    prprio prefeito.87

    Isso gerou manifestaes da Cria, contrariada por no ter sido convidada a

    participar do planejamento da edificao, alegando que a construo ignorava o

    Cdigo de Direito Cannico88.

    Embora o clero da poca tenha ficado escandalizado com o edifcio a ponto de

    no permitir a sua consagrao, a intolerncia era maior com as obras de arte do

    que com a arquitetura. Em entrevista, enquanto se referia aos painis e decorao

    86 BAPTISTA, Anna Paola P. Modernismo e tradio na arte religiosa a querela da Pampulha. In: Locus: Revista de Histria. Juiz de Fora, v. 5, n. 2, jul. - dez. 1999. Disponvel em acesso em 25 jan 2010. 87 BAPTISTA, Anna Paola P. Modernismo e tradio na arte religiosa a querela da Pampulha. In: Locus: Revista de Histria. Juiz de Fora, v. 5, n. 2, jul. - dez. 1999. Disponvel em acesso em 25 jan 2010. 88 O Cdigo o principal documento legislativo da Igreja e se baseia na herana jurdico-legislativa da Revelao e da Tradio. Seu objetivo tornar visvel a estrutura hierrquica e orgnica da Igreja; organizar o exerccio das funes divinamente confiadas sociedade eclesial; compor as relaes mtuas entre os fiis; apoiar, proteger e promover iniciativas comuns em prol de uma vida cristo mais perfeita; permitir sociedade eclesial criar uma ordem que d primazia ao amor e facilite o desenvolvimento da Igreja e de cada um de seus membros." (cf. Cdigo de Direito Cannico - Ed. Loyola) Disponvel em acesso em 25 jan 2010.

  • 57

    como fantasia dos artistas 89, o arcebispo de Belo Horizonte Dom Antonio Santos

    Cabral afirmou:

    Quanto ao estilo arquitetnico, repito, poderia haver tolerncia. Na

    Frana, todas as reconstrues religiosas esto obedecendo a

    tcnica do cimento armado. Estilo verdadeiramente revolucionrio,

    porm, compreensvel.90

    O debate foi longo, cogitando-se at mesmo a hiptese de se transformar o

    edifcio em Museu de Arte Moderna. Em 1947 o edifcio foi tombado pelo SPHAN,

    mas a igreja somente foi consagrada em 1959.

    No mesmo ano em que visitou a Europa pela primeira vez, 1954, Niemeyer

    projetou a residncia Cavanelas (Fig. 33 e 34), continuando suas experimentaes

    formais. Em meio a uma paisagem deslumbrante, o edifcio possui um desenho

    simples, enfatizando a leveza da estrutura e a continuidade dos espaos. Uma laje

    esbelta de trelias metlicas levemente curvada para baixo no seu centro (catenria),

    apoiada nas quatro extremidades, maneira de uma tenda. Alm dos quatro apoios

    de pedra existem tambm duas paredes de pedra, delimitando a rea social e

    separando-a da rea intima.

    89 Afirmava ainda que eram Extravagncias que podem ficar muito bem nos sales da arte [...] Mas para um templo aquilo no fica bem, no podemos desvirtuar a obra do Senhor, nem a igreja lugar para experincias materialsticas, embora artsticas. Condenada a Igreja de S. Francisco da Pampulha. A Noite, Rio de Janeiro, RJ, 26 ago. 1946. Disponvel em acesso em 22 jan 2010. 90 Condenada a Igreja de S. Francisco da Pampulha. A Noite, Rio de Janeiro, RJ, 26 ago. 1946. Disponvel em acesso em 22 jan 2010.

  • 58

    Figura 33 - Croqui da Residncia Cavanelas.

    Fonte: Coletnea de 49 croquis de Oscar Niemeyer produzidos entre 1936 e 2003 Acesso em

    20 jan 2010.

    Figura 34 Residncia Edmundo Cavanelas, Pedro do Rio, RJ, 1954.

    FONTE: HESS, Alan; WEINTRAUB, Alan. Oscar Niemeyer Houses. New York: Rizzoli International Publications, 2006. p. 114

    Por sua vez em 1955, Lucio Costa elaborou um anteprojeto91 para um altar ao

    ar livre destinado ao 36o Congresso Eucarstico Internacional. Uma construo

    bastante simples, em madeira, com uma enorme vela. (Fig. 35 e 36.)

    91 O risco original feito por Lucio Costa foi desenvolvido pelos Arquitetos Alcides Rocha Miranda, Fernando Cabral Pinto e Elvin Mackay Dubugras.

  • 59

    Figura 35 Altar para o 36o Congresso Eucarstico Internacional, 1955. Lucio Costa, Alcides Rocha

    Miranda. Fonte: Altar para o 36 Congresso Eucarstico .

    Acesso em 03 jun. 2009.

    Figura 36 - Altar construdo para o 36o Congresso Eucarstico Internacional.

    Fonte: Congresso Eucarstico Internacional. < http://elvindubugras.blogspot.com/2008/03/congresso-eucarstico-internacional.html >. Acesso em 31 jan. 2010.

    No mesmo ano foi lanada a revista Mdulo92, instrumento de divulgao da

    arquitetura brasileira em geral, e da arquitetura de Niemeyer em particular. Uma

    explicao sobre o ttulo feita pela redao: Mdulo diz o dicionrio medida

    reguladora das propores arquitetnicas de um edifcio.93 Enfatizou-se que este

    princpio havia sido recriado por Le Corbusier, com base na representao das

    92 Com a direo de Joaquim Cardozo, Oscar Niemeyer Filho, Rodrigo M. F. de Andrade, Rubem Braga e Zenon Lotufo. 93 A revista e o ttulo. Mdulo, Rio de Janeiro, no 1, mar. 1955, p. 2.

  • 60

    medidas do corpo humano: o Modulor. Finalizando o texto, Mdulo quer ser fiel a

    esta lembrana, e guardar, entre os prodgios da tcnica e as fantasias da esttica, a

    singela medida do humano.94 Na pgina seguinte um comentrio de Niemeyer

    generoso a respeito de Le Corbusier e a sua influncia na arquitetura

    contempornea.

    No mbito religioso, e na mesma poca, uma obra feita por Le Corbusier

    impressionou o arquiteto. Em 1950, o mestre franco-suo iniciou os estudos para a

    Igreja de Notre-Dame-Du-Haut, em Ronchamp, inaugurada em 1955 (Figs. 37 a 39).

    Construdo em um stio com um cenrio de beleza especial e com antiga tradio

    religiosa, o projeto de Le Corbusier impressionou pela forma adotada, muito diferente

    das igrejas tradicionais, e pela sobriedade no uso dos materiais.

    Figura 37 Igreja de Notre-Dame-Du-Haut, Ronchamp, Le Corbusier Fonte: Chapel of Ntre Dame du Haut

    acesso em 26 jun. 2010

    94 A revista e o ttulo. Mdulo, Rio de Janeiro, no 1, mar. 1955, p. 2.

  • 61

    Figura 38 - Igreja de Notre-Dame-Du-Haut, Ronchamp, Le Corbusier Fonte: Chapel of Ntre Dame du Haut

    Acesso em 26 jun. 2010

    Figura 39 - Planta da Igreja de Notre-Dame-Du-Haut, Ronchamp, Le Corbusier. Risco Original. 1950. Fonte: foto da autora. Exposio Le Corbusier entre dois mundos. Caixa Cultural, Braslia: 17 jul.

    2009.

  • 62

    Em 1956, Oscar publicou na Mdulo no 5, um artigo sobre a Igreja de

    Ronchamp onde afirmou que a obra de Le Corbusier

    como que um movimento de libertao h muito desejado, e que se

    afirma agora com o mpeto criador do seu talento e da sua invulgar

    personalidade. , em sntese, a predominncia da forma plstica,

    sugerindo e dirigindo todo o planejamento, a imaginao do artista se

    expandindo pura e espontnea em busca de beleza e harmonia.95

    Para Niemeyer, a construo de Ronchamp, foi uma espcie de afirmao

    positiva em relao a sua prpria arquitetura. como se Niemeyer recebesse um

    aval sobre suas obras e idias.

    Diz Niemeyer que a obra de Le Corbusier se caracterizou durante anos

    disciplinada em princpios arquitetnicos por le[sic] mesmo institudos e que muitas

    vzes[sic] condicionavam a beleza plstica a convenincias tcnico-funcionais.96 No

    entanto Niemeyer acredita ter vislumbrado um desejo latente de maior liberdade de

    criao e poesia 97 em meio a obra do arquiteto ao longo do tempo. E pensa que

    Agora, com a Capela de Ronchamps [sic] realizada, sabemos que o

    velho mestre atingiu o seu objetivo, e que hoje, mais jovem do que

    nunca, a todos oferece o poder criador do seu talento e da sua

    fantasia. 98

    Neste mesmo artigo refere-se capela de Ronchamp como obra magistral, e

    afirma que ela permanecer, atravs dos tempos, como uma obra de sensibilidade,

    beleza e poesia.99

    95 NIEMEYER, Oscar. A Capela de Ronchamp. Revista Mdulo, no 5, set. 1956, p. 45. 96 NIEMEYER, Oscar. A Capela de Ronchamp. Revista Mdulo, no5, set. 1956, p. 43. 97 NIEMEYER, Oscar. A Capela de Ronchamp. Revista Mdulo, no5, set. 1956, p. 43. 98 NIEMEYER, Oscar. A Capela de Ronchamp. Revista Mdulo, no5, set. 1956, p. 43. 99 NIEMEYER, Oscar. A Capela de Ronchamp. Revista Mdulo, no5, set. 1956, p. 43.

  • 63

    As formas livres da capela influenciaram fortemente Niemeyer que, logo em

    1955, esboou um estudo sobre o tema (Figs. 40 a 42), publicado no livro escrito

    sobre sua obra por Stamo Papadaki.100

    Sem um stio especfico, Niemeyer elaborou um desenho de formas curvas,

    para um espao destinado ao culto e a uma sacristia. A forma, vista do exter