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Universidade Federal do Ceará Centro de Humanidades Programa de Pós-Graduação em Letras HFP 800 – Poética Prof.ª Dr.ª Odalice de Castro Silva Mestrando: José Lourenço Becco Rodrigues – 9717617 Arte poética de Aristóteles O dito popular reza que a arte imita a vida. A afirmação parece incontestável, pois qual seria o objeto do artista em sua obra a não ser a vida em si mesma e suas mais diversas facetas? Todavia, tal aceitação nos leva a outros questionamentos, tais como: quão fiel é essa imitação?; até que ponto a realidade pode ser apreendida por ela?; a imitação nos agradaria mais que o real? Tanto a designação de arte como imitação da vida quanto suas implicações foram analisadas por Aristóteles em sua afamada Arte poética. Como o próprio título indica, o filósofo grego demorou- se na análise da arte de imitar em versos, a Poesia, ou Literatura como modernamente a conhecemos, mais especificamente nas modalidades da tragédia, do poema épico e da comédia. Sobre a significação exata do título, nos esclarece Massaud Moisés: Aristóteles foi, como se sabe, o primeiro filósofo a consagrar todo um tratado, ainda que incompleto, ao

ars poetica aristóteles

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Universidade Federal do CearáCentro de HumanidadesPrograma de Pós-Graduação em LetrasHFP 800 – PoéticaProf.ª Dr.ª Odalice de Castro SilvaMestrando: José Lourenço Becco Rodrigues – 9717617

Arte poética de Aristóteles

O dito popular reza que a arte imita a vida. A afirmação parece incontestável, pois

qual seria o objeto do artista em sua obra a não ser a vida em si mesma e suas mais diversas

facetas? Todavia, tal aceitação nos leva a outros questionamentos, tais como: quão fiel é

essa imitação?; até que ponto a realidade pode ser apreendida por ela?; a imitação nos

agradaria mais que o real? Tanto a designação de arte como imitação da vida quanto suas

implicações foram analisadas por Aristóteles em sua afamada Arte poética.

Como o próprio título indica, o filósofo grego demorou-se na análise da arte de

imitar em versos, a Poesia, ou Literatura como modernamente a conhecemos, mais

especificamente nas modalidades da tragédia, do poema épico e da comédia. Sobre a

significação exata do título, nos esclarece Massaud Moisés:

Aristóteles foi, como se sabe, o primeiro filósofo a consagrar todo um tratado, ainda que incompleto, ao exame do fenômeno poético: , ou Arte Poética, ou Poética. A rigor, o título deveria ser Acerca da Poética, ou melhor, Acerca da Arte {ou Ciência] da Criação, uma vez que o vocábulo pioetikê se origina de poien (fazer), de que ainda derivam poiesis (poesia) e poiema (poema ou o que é feito).(MOISÉS: 1993, 105)

Dividida em 26 curtos capítulos, a Arte poética ainda motiva debates a respeito de

sua harmonia e de seu suposto pendor prescritivista. Assis Brasil já dizia em seu prefácio

para a edição brasileira da obra que para alguns críticos, a Arte Poética, de Aristóteles, não

é uma obra unitária, coerente, e sim notas de leitura, ou notas feitas por um aplicado aluno

de literatura (ARISTÓTELES: 1989, 06). Considerando a distância que nos separa do

tempo da escrita do texto e o fato de que um dos livros que o compunham foi perdido (o

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segundo, que discorria sobre a comédia), a leitura da Arte poética ainda nos parece

organizada e bastante congruente. O autor inicia por definir a imitação poética, seus meios

e objetos pra, só então, apontar o épico, a comédia e a tragédia como modos de poesia que

tiveram seu começo na improvisação (ARISTÓTELES: 1989, 18). A partir do capítulo 6, a

tragédia e o poema épico passam a dividir as observações do filósofo; aquela bem mais que

este; predileção confirmada com o juízo de valor que encerra o texto.

O caráter normativo que parece guiar as observações e advertências advêm do

objetivo mesmo do texto: um tratado do bem escrever deve apontar direções para que o

poeta seja bem sucedido em sua empreita. Ademais, o autor da Arte Poética é muito mais

um crítico, que analisa os méritos e falhas de poetas como Homero e Sófocles, e um

teórico, com sua visão surpreendentemente atual de conceitos como mímese e

verossimilhança, do que um simples preceptor. Assim como Longino e sua poética

fundamentada sobre o conceito do sublime (Sobre o Sublime), Aristóteles parte da

perspectiva que toda arte é imitação (ou mímese) para elaborar o que se poderia chamar de

uma prática literária (ou sistema poético) e não uma simples doutrina ou norma. Ainda a

respeito da suposta normatividade da Arte Poética, Luís Costa Lima adiciona um novo

ponto de vista nesta longa, mas necessária, citação:

É bem sabido que, desde seu revival no século XVI até os preceptistas, principalmente franceses, a Poética foi utilizada para a confecção de cânones a que as obras deveriam se ajustar. Também sabemos que o próprio Aristóteles não seria responsável por essa utilização. Mas seu tratado impugnaria a priori semelhante leitura? (...) Contudo, sem querer salvar Aristóteles a todo custo, convém destacar que a questão não é tão simples. Ela, na verdade, depende do critério de interpretação anteriormente adotado. Quero dizer, se se encara a Poética como voltada para a caracterização do produto a partir de propriedades que lhe seriam inerentes – i.e., se a tomarmos como a primeira manifestação de uma poética imanentista – ou, ao contrário, encararmos como uma reflexão que caracteriza a mimesis pela conjunção de propriedades do objeto com uma disposição específica do receptor. Ora, muito antes da teoria do papel do receptor pela estética da recepção, já podíamos ouvir o comentário de um dos mais finos intérpretes do filósofo grego: Não há para Aristóteles nenhuma separação entre a perfeição da obra da arte trágica em si e os efeitos dela resultantes sobre o espectador. O modo de ser da tragédia se realiza na comoção trágica particular e desta deriva o seu traço característico (Kommerell: 1940, 63). Ora, se a perfeição da obra não está em si, mas no efeito que provoca, a questão da normatividade se torna secundária: mesmo que o autor da Poética a tenha inscrito em seu tratado, à medida que torna a obra

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dependente da conduta do receptor automaticamente libera o gênero da uniformidade normativa.(LIMA: 1983, 240-1)

Aristóteles foi um dos primeiros teóricos a perceber a importância do leitor no

processo inegável de comunicação que se estabelece quando da realização do ato da leitura.

Tão importante quanto a escolha de certas palavras e metáforas é o efeito que elas causarão

no leitor. A disposição específica do receptor (quem lê ou assiste a uma tragédia) de que

nos fala Costa Lima quando resulta em um sentimento de piedade, pelo protagonista, ou de

temor (que a mesma sina possa sobrevir sobre si) é chamada de catarse. No entanto, para

que esta ocorra é necessário que se verifique outro importante aspecto da poética

aristotélica; a verossimilhança.

Assim como mimesis, os conceitos de catarse e de verossimilhança são

imprescindíveis para a correta percepção da Poética, já que fazem parte de um sistema de

relações que dá origem ao prazer estético. Desta forma, passaremos a explicitar como este

processo toma lugar a partir de cada um desses elementos.

Platão considerava a imitação como uma forma de enganar, visto que o que se

imitava, os modelos reais, já eram uma cópia imperfeita das formas ideais, fonte primeva

do conhecimento. Desta forma, deveria ser evitada. Aristóteles considerava a imitação e,

por conseguinte, a Arte que dela resultava, uma forma de recriar. A arte não é para ele

ignorância ou ilusão, e sim uma atividade segundo a ´natureza’ (HAAR: 2000, 28). Isto

porque é humano imitar, é inerente à nossa natureza fazê-lo. E o homem, a mais imitativa

das criaturas (ARISTÓTELES: 1989, 17), não só aprende com a criação (noção que Platão

rejeitaria) como pode se regozijar com ela. Mesmo a imitação de objetos que causariam

repulsa ao serem contemplados seria fonte de prazer, pois o que resulta dela é uma

recriação do que existe no universo material. Aí repousam duas concepções que mesmo não

estando patentes e/ou explícitas no texto aristotélico, a de prazer estético e a de autoria. O

poeta recriaria, a princípio, por meio de improvisações e, mais tarde, aperfeiçoando suas

aptidões naturais de imitar, o homem através de suas ações, boas ou más. O poeta

representaria então o papel de demiurgo de um próprio universo.

Ao invés de copiar, a Arte consistiria na criação de um mundo coerente, paralelo ao Cosmos, regido por leis específicas, homólogas das que norteiam o outro, e

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ao qual se acrescentaria: à realidade criada se adicionaria sua recriação, não por cópia mas pela utilização dos processos de elaboração semelhantes aos que teriam outorgado homogeneidade ao mundo dos objetos criados. A obra da recriação estaria para a obra da criação assim como o poeta estaria para o demiurgo, ou o criador do Universo.(MOISÉS: 1993, 106)

Já o prazer adviria do reconhecimento das semelhanças entre os universos, o criado

e o recriado; entre os homens, o real e o personagem. Neste ponto é que se dá a adição de

que nos fala Moisés, na caracterização do personagens. Os homens podem ser

representados de três formas: do modo como são ou melhores ou inferiores a isso. A

imitação regularmente os representa destes dois últimos modos, sendo que os homens

superiores são caracteres da tragédia e da epopéia; e os inferiores, da comédia. As ações

dos personagens é que os particulariza como melhores ou piores. O poeta deve, portanto,

observar atentamente neste aspecto, pois dele depende o sucesso do texto. como diz o

próprio Aristóteles: Verifica-se (...) que o poeta deve ser o construtor de enredos, mais do

que de versos, uma vez que é poeta em virtude de sua representação e o que representa são

ações (ARISTÓTELES: 1989, 26). O poeta é então novamente definido como tal, não mais

pelo verso que utiliza para narrar, já que o verso se presta a muitos usos, mas por aquilo que

narra.

O enredo (ou fábula) narrado pelo poeta deve causar um determinado efeito sobre o

leitor. Um efeito de purgação e de purificação. Enfim, um efeito de catarse. Este tipo de

reação é causado pela conformação das ações na tragédia. O filósofo reitera que uma vez

que o poeta dramático tem, por meio de sua representação, de produzir o prazer trágico,

que está associado com a piedade e o medo, é evidente que tal efeito tem de ser vinculado

aos acontecimentos do enredo (ARISTÓTELES: 1989, 32). No entanto o efeito trágico só

ocorrerá quando o personagem (normalmente alguém de família nobre, de bom caráter)

passa do fortuna para a desdita. E melhor ainda será se ele não tiver controle sobre o que

acontece, quando comete a falha (hamartia) sem consciência de que o fez. Édipo Rei de

Sófocles é o exemplo mais bem acabado desta fórmula. Causa temor e pena ao espectador

que homem tão prudente e sábio tenha que perfurar os olhos e se exilar (e ele o faz, pois

também é justo) para expiar dois crime horrendos, parricídio e incesto, que nem sabia haver

cometido. O leitor, ou espectador, se afina com o coro que diz, logo após Édipo ter

perpetuado e cumprido com a sua sentença: Profunda piedade inspira teu sentimento de tão

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negra sina. Ah. Quem dera jamais eu ter te conhecido (SÓFOCLES: 2002, 72). O

reconhecimento da culpa do protagonista é o zênite para onde caminha todo enredo,

culminando com o sentimento de piedade e temor por parte do receptor do poema trágico.

Neste contexto, a verossimilhança é a condição que dá credibilidade ao processo

mimético, sendo assim responsável pelo resultado final da catarse. Aristóteles parece

utilizar o preceito do In mediocritas, veritae, que aponta o meio termo como a melhor

opção. Mas quanto a verossimilhança, ele parece abrir uma brecha ao dizer é melhor

utilizar o inverossímil provável do que o verossímil improvável em nome do enredo.

Do mesmo modo que o pintor, ou qualquer outro artista, o poeta visa a representação da vida; necessariamente, portanto, deverá representar as coisas de uma destas três maneiras ou como eram e como são, ou como se diz que são e como se mostram, ou como deveriam ser. (...) Se o poeta apresentou algo impossível, há um defeito, sem dúvida, mas tal efeito é justificado se a arte atinge sua finalidade verdadeira (...).(P. p. 52-3)

De qualquer forma, não é possível que a arte imite a vida de forma incontestável e

exata, pois essa seria uma metáfora perfeita, que, como nos adverte Richard Shiff,

esvaziaria o sentido de recriação do processo mimético: Nem uma vida aperfeiçoada como

a arte nem uma arte aperfeiçoada como a vida nos parece possível; ambas levam à morte.

(SHIFF: 1992, 124). A exatidão fica a cargo dos historiadores e dos cientistas. Para os

poetas, a liberdade criadora, que em sua faceta divina apresenta algo de loucura, como o

próprio Aristóteles, não obstante sua suposta normatividade, afirma:

Assim, a poesia é o produto, quer de um homem de grande habilidade natural, quer de um que não seja inteiramente são de juízo; um é altamente responsável, o outro arrebatado.(P. , p. 37)

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BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Da arte Poética. In: Crítica e teoria literária na Antiguidade. Prefácio de

Assis Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 1989.

HAAR, Michel. A obra de arte. Rio de Janeiro: Difel, 2000.

LIMA, Luís Costa. Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves,

1983.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: Poesia. São Paulo: Cultrix,1993.

SHIFF, Richard. Arte e vida: uma relação metafórica. In: SACKS, Sheldom (Org.). Da

metáfora. São Paulo: Fontes, 1992.

SÓFOCLES. Édipo Rei / Antígona. São Paulo: Martin Claret, 2002.