13
http= | | www, sem i na ri od eci nema .com' b r/ a rti gosv. as p?id = 7 A POÉTICA DO CINEMA E A QUESTÃO DO MÉTODO EM ANÁLrSE rÍlurCe Wilson Gomes 1. A questão do método em análise fílmica A atividade de interpretação e análise de filmes, embora decisiva no âmbito da pesquisa contemporânea em cinema, aparece comoofício que podeser realizado por muitos, de muitosmodos e através dos mais variados meios. Pode-se considerar análise fílmica qualquer texto que fale de filmes e do que neles estácontido, não importando propriamente o Seu foco, alcance, profundidade e rigor, num arco que inclui desde o merocomentário, passando-se pelachamada crítica de cinema de tipo jornalístico, incluindo, por fim, até mesmoo estudo acadêmico, em toda sua variedade. Em uma formacomonoutra, não Se consegue, effi geral, identificar uma disciplina metódica que conduza o trabalho analítico e, ao mesmo tempo, seja capazde prescrever pelo menos o que deveria necessariamente ser notado e examinado, sob que formas ou capacidades e com que cuidados. Cadaanalista vê o que pode ou quer e, pelo menosem princípio, poderia falarde uma coisa diferente do que falaria um outroanalista, segundo a ordem que lhe agrade e com a ênfase que deseje. Na ausência de qualquerdisciplina hermenêutica capaz de oferecer garantias demonstrativas suficientes para produzir convicção para além do limiar do subjetivo e do íntimo e capaz, além disso,de oferecer um terreno público e leal para a disputa interpretativa, a análise finda por apoiar-se inteiramente nasqualidades peculiares do analista, ou seja,no seutalento, sua cultura, sua habilidade literária, sorte - ou na falta deles.Parece razoável afirmar, a este ponto' que se não há alguma disposição metódica, assentada em um consenso amplamente compartilhado, é porque o ambiente intelectual e profissional da análise fílmica - composto por jornalistas, acadêmicos e cinéfilos - não parecereconhecer-lhe sentidoe necessidade. A crítica de jornalística de cinema assume o seu lugar como orientadora da tomada de decisão paraestaespécie de consumo cultural que é a apreciação de filmes de cinema, num sistema industrial que produz e circula em profusão. Distancia-se cada vez mais de funções que o ambiente culturallhe atribuía no passado, de forma que entre o exame analítiCo dos filmes, de um lado,e o registro jornalístico do produto e a caracterização velozdos elementos que permitem que um público de massa formea suadecisão de consumo, de outrolado, tende decisivamente a ficar com o segundo. Importa ao analista identificar as características fundamentais que estabelecem as pequenas diferenças entre os produtos em ofertade modoa orientar a decisão sobre o filme que deverá ser consumido no próximo sábado

A Poetica Do Cinema Wilson Gomes

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A Poetica Do Cinema Wilson Gomes

http= | | www, se m i n a ri od eci n em a . co m' b r/ a rti gosv. a s p? i d = 7

A POÉTICA DO CINEMAE A QUESTÃO DO MÉTODO EM ANÁLrSE rÍlurCeWilson Gomes

1. A questão do método em análise fílmica

A atividade de interpretação e análise de f i lmes, embora decisiva noâmbito da pesquisa contemporânea em cinema, aparece como ofícioque pode ser realizado por muitos, de muitos modos e através dosmais variados meios. Pode-se considerar análise fí lmica qualquertexto que fale de f i lmes e do que neles está contido, não importandopropriamente o Seu foco, alcance, profundidade e rigor, num arco queinclui desde o mero comentário, passando-se pela chamada crít ica decinema de t ipo jornalíst ico, incluindo, por f im, até mesmo o estudoacadêmico, em toda sua variedade. Em uma forma como noutra, nãoSe consegue, e ff i geral, identif icar uma discipl ina metódica queconduza o trabalho analítico e, ao mesmo tempo, seja capaz deprescrever pelo menos o que deveria necessariamente ser notado eexaminado, sob que formas ou capacidades e com que cuidados.Cada analista vê o que pode ou quer e, pelo menos em princípio,poderia falar de uma coisa diferente do que falaria um outro analista,segundo a ordem que lhe agrade e com a ênfase que deseje. Naausência de qualquer discipl ina hermenêutica capaz de oferecergarantias demonstrativas suficientes para produzir convicção paraalém do l imiar do subjetivo e do íntimo e capaz, além disso, deoferecer um terreno público e leal para a disputa interpretativa, aanálise f inda por apoiar-se inteiramente nas qualidades peculiares doanalista, ou seja, no seu talento, sua cultura, sua habil idade l i terária,sorte - ou na falta deles. Parece razoável afirmar, a este ponto' quese não há alguma disposição metódica, assentada em um consensoamplamente comparti lhado, é porque o ambiente intelectual eprofissional da análise fí lmica - composto por jornalistas, acadêmicose cinéfi los - não parece reconhecer-lhe sentido e necessidade. Acrít ica de jornalíst ica de cinema assume o seu lugar como orientadorada tomada de decisão para esta espécie de consumo cultural que é aapreciação de f i lmes de cinema, num sistema industrial que produz ecircula em profusão. Distancia-se cada vez mais de funções que oambiente cultural lhe atribuía no passado, de forma que entre oexame analít iCo dos f i lmes, de um lado, e o registro jornalíst ico doproduto e a caracterização veloz dos elementos que permitem queum público de massa forme a sua decisão de consumo, de outro lado,tende decisivamente a f icar com o segundo. Importa ao analistaidentif icar as característ icas fundamentais que estabelecem aspequenas diferenças entre os produtos em oferta de modo a orientara decisão sobre o f i lme que deverá ser consumido no próximo sábado

Page 2: A Poetica Do Cinema Wilson Gomes

à noite, antes da ida ao restaurante. O filme em cartaz como o prato,em seguida, no cardápio não precisam ser examinados, apenascaracterizados, isto é, reconhecidos, qualificados, classificados. OSucesso nesse ambiente profissional provém muito menos daqualidade intrínseca da análise oferecida sob a rubrica "crít ica decinema" dos periódicos contemporâneos e muito mais da capacidadedemonstrada pelo crít ico de conduzir os hábitos de consumo cultural,de influenciar a decisão, de produzir identif icação entre as suaspreferências de consumo e as preferências do grande público, de vera sua agenda cultural assumida pela audiência. Nos ambientesacadêmicos, o movimento é diverso, embora a posição sobre aanálise possa terminar em algo muito semelhante no que respeita àdiscipl ina metódica. Tomando como objeto algo que se não é umaprática artíst ica, como o pretendem alguns, pelo menos é umaatividade de criação, como o admitem todos, a análise acadêmica defi lmes ganha, ela mesma, aura artíst ica e ares l i teráÈios e ensaístico.Neste ambiente, o reconhecimento e o sucesso se dão por outroscaminhos, inc lusive pela qual idade interna da anál ise, o 9uê,entretanto, não parece compOrtar, em geral, uma maiOr bOa vOntadecom a idéia de método de análise. Alcança-se prestígio no interior docampo analít ico sobretudo através da capacidade demonstrada, peloanalista, de dar conta das competências específ icas de três ambientesassociados ao campo do cinema: o ambiente da realização técnica eartística, o ambiente da apreciação, composto por cinéfilos eaficcionados, e o ambiente da teoria cinematográfica. Do ambiente darealização, o analista precisa obter o capital cognit ivo constituído pelacompreensão das técnicas envolvidas na produção do objeto-f i lme edos procedimentos empregados na circulação e promoção damercadoria-f i lme, além do domínio da terminologia aplicada emambos oS casos. Do ambiente da apreciação, o analista precisademonstrar posse do capital cultural que consiste no conhecimentoda história do cinema e dos fr aspectos nela envolvido. Há deprecisar também demonstrar posse do recurso específico do ambienteacadêmico, o domínio da teoria cinematográfica. O desagrado compossibi l idade de exigências metodológicas não parece, em princípio,incompatível com as estratégias de distinção e com a economia doreconhecimento no campo da análise cinematográfica. Na verdade, adisposição para o atendimento de demandas metodológicas podevariar muito nas diversas tradições culturais, a depender do, grau deautonomia da instância universitária na gestão de reconhecimento edistínção. Há uma constante tensão entre as dimensões envolvidas ea forma como ela se decide no ambiente universitário decideigualmente qual o valor atr ibuído à discipl ina metódica no campo daaìálise fí lmica. Certos ambientes universitários americanos efranceseS, FOr exemplo, conservam maior autOnomia em faCe dOspólos da realização do que os seus correspondentes brasileiros.Resulta de tal autonomia que valores da cultura acadêmica ecientífica, como o ideal da correção metódica ou a capacidade de

Page 3: A Poetica Do Cinema Wilson Gomes

estar em dia com o estado da arte, são reconhecidos como principiosimportantes de distinção internos ao campo. Quando numadeterminada tradição cultural, o reconhecimento que Se procuraprovém da intimidade demonstrada pelo analista com o campoartístico e técnico do cinema, valores artísticos tornam-sepreponderantes. Demanda-se da peça analít ica que assumapropriedades do seu objeto. Qualidades especialmente apreciadas nacultura científ ica são considerados indesejadas ou, ao menos,dispensáveis para o julgamento do texto analít ico. Assim, o campopassa a valorizar

- pãrt icularmente a habil idade l i terária, a

competência expressiva, a invenção retórica, a beleza da l inguagem'mais do que a discipl ina metódica, a profundidade argumentativa, acapacidade de explorar com consistência fontes de qualidade, aobjetividade e a verif icabil idade das posições apresen_tadas. O art igoé ã forma expressiva de uma cultura analít ica onde há predomínio doreconhecimento acadêmico, enquanto o ensaio é a formapreponderante numa cultura analít ica onde mesmo a Academiasolicita que a distinção lhe seja oferecida pelos ambientes darealização e do consumo artíst ico. Por outro lado, se oreconhecimento do campo social no interior do qual se põe aatividade da análise fí lmica - part icularmente no que se refere aomodo como os agentes envolvidos em tal atividade produzem egerem critérios de distinção - é fundamental para I corretoentendimento do lugar e do alcance das questões de método nosprocedimentos analí[ icos atualmente praticados, temos que admitir,todavia, que a permanecermos neste horizonte não ultrapassaremosa soleira de uma sOciologia da cultura, 9U€, como sAbemos,esforçam-Se por dizer como as coisas são, a prescindir da questão decomo elas deveria,rqser. Resta ainda a possibi l idade de que nosperguntemos se, de direito, as coisas devem e precisam ser comosão. Mudada a perspectiva, evidencia-se o fato de que não hádiscipl ina analít ica que possa evitar vir a confrontar-se com questões..acadêmicas" relacíonadas a qualquer atividade de interpretação,como a possibi l idade de chegar-se a uma interpretação verdadeira' ocontrole intersubjetivo das asserções analít icas, os procedimentos deanálise... O que óu"t dizer que, de um jeito ou de outro, o fenômenoàu .o11preensão de filme e o problema da sua correta interpretaçãosão questões sobre as quais os ambientes de análise fí lmica podem

silenciar, mas que não podem, coerentemente, evitar. IndO direto aoponto, podemos dizer que por trás de todo ofício de interpretação de

iitmes trá um inegável problema hermenêutico, onde alcançamsàntiOo questões sõbr" a possibi l idade de uma análise correta, deuma interpretação adequada ou de uma compreensão precisa deii iúàr, eu'estões que se põem desde a origem do próprio cinema,mesmo se freqüentemente a resposta que a elas tenha sido dada nãoseja propriamente dotada de um caráter teórico rigoroso, estandonormalmente vinculada ao comportamento prático do cineasta, doapreciador de f i lmes ou do crít ico de cinema como princípios para a

Page 4: A Poetica Do Cinema Wilson Gomes

sua orientação e justif icativa para a avaliação que a sua práticacomporta e exige. Seria um engano, todavia, converterimediatamente a questão da compreensão e interpretação do f i lme, oproblema hermenêutico aplicado ao cinema, num problema demetodologia científ ica da análise fí lmica. Embora insista que questõessobre um método para que se possa compreender f i lmes estãoautorizadas e são desejáveis, tais questões não podem consistir noproblema da construção de um conhecimento certo que possasatisfazer ao ideal metodológico da ciência em termos deverif icabil idade dos dados da descoberta, de recondutibÍl idade daproposição em que se expressa o conhecimento verdadeiro à baseempírica que a autoriza e legit ima ou de replicabil idade doexperimento ou do raciocínio de onde resultou a proposiçãoverdadeira sobre o objeto. A metodologia científica visa t assegurarque a prática metódica da pesquisa seja capaz de produzirconhecimento sobre as leis gerais de funcionamento dos fenômenosque lhes são objetos. Neste horizonte, o sucesso do procedimento depesquisa depende da sua capacidade de isolar uniformidade eregularidade no objeto de forma a tornar possível a previsão dequalquer ocorrência de fenômenos e processos. Tal critério devalidade não nos poderia ser mais estranho. Bem compreender umfi lme dif ici lmente pode coincidir com a identif icação de uma lei geralda natureza do f i lme, à luz da qual, a peça particular nada mais seriado que a ocorrência específ ica de um caso universal. Por menos quesaibamos sobre o fenômeno da compreensão de objetos como fi lmes,não é difíci l admitirmos que o entendimento de um fi lme resulta dacompreensão daquilo que ele tem de singular, único e específ ico,resulta, pois, da compreensão daquílo que não interessa à ciência.Mas é igualmente inaceitável acreditar-se que o fenômeno dacompreensão de f i lmes não comporte conhecimento e verdade e,portanto, alguma espécie de controle intersubjetivo sobre o que seargumenta, a possibi l idade de disputa interpretativa numa arenadotada de um grau razoavelmente consistente de objetividade, asobrigações de dãmonstração e prova. É Oa natureza mesma de todoato ãe- compreensão que nele alcancemos idéias, noções, princípios,conhecimentos, que Sempre podem Ser verdadeiros ou falsos,adequados ou inadequados para dar conta do objeto dainterpretação. Resta, naturalmente, como problema hermenêuticoautêntico a pergunta sobre a natureza do conhecimento e da verdadeque se apresenta no ato de compreensão do f i lme e sobre qual afonte específ ica da sua justif icação teórica e da sua legít imidadeespeculativa. Há, portanto, um horizonte de discussão propriamentehermenêutico, em que se põem com legit imidade os problemas sobrea natureza da verdade que pode emergir no entendimento de umfi lme ou sobre as condições de possibi l idade desta específ ica formade compreensão que resulta da análise e interpretação do cinema.Mas há também no seu interior um justif icado patamar de discussãoonde se apresentam indagações sobre a natureza dos procedimentos

Page 5: A Poetica Do Cinema Wilson Gomes

e dos percursos analít icos, da prova e da argumentação envolvidosna análise fí lmica, indagações, enfim, que podem ser corretamenteconvocadas como questão de método. Neste patamar, váriasalternativas apresentam-se à arena da discussão para seremexaminadas, testadas, eventualmente aceitas ou refutadas. Aperspectiva que é apresentada a seguir busca, portanto, colocar-secomo uma alternativa a ser examinada no contexto da discussãosobre procedimentos de análise fí lmica. Não se trata de uma teoriageral da interpretação do f i lme ou de uma resposta global à perguntasobre como analisar um fi lme, mas de uma perspectiva analít ica, queacreditamos calaz de orientar o olhar e o discurso sobre a obracínematográfica, apoiada, por sua vez, em uma teoria sobre ofuncÍonamento do f i lme.

2. A Poética do Cinema como Perspectiva de Análise FílmicaVamos chamar de Poética a perspectiva analít ica que aqui sepretende sistematizar ou formular. Não se fala aqui de "inaugurar"por Se considerar que isso seria inadequado, por dois motivos. Antesde tudo, porque se acredita encontrar o momento fundador de talperspectiva no pequeno tratado de Aristóteles sobre ficção erepresentação teatral e l i terária que se conhece como Poética. Alémdisso, porque aqui e al i , na história das práticas de interpretação dosfi lmes, foram empregados aspectos, dímensões e intuições inerentesa esta perspectiva, ainda que o sistema como um todo não fosseconvocado, ainda que a referência histórica não se puSeSSe e aindaque tais elementos comparecessem misturados a outros emprocedimentos incoerentes e assistemáticos. A poética do f i lme nãopode consistir em algo como aplÍcar ao cinema o que Aristóteles dizem seu tratado sobre a l i teratura oral e sobre f icção cênica, Nãoapenas porque temos apenas uma parte do tratado, tendo se perdidoo segundo l ivro da Poética talvez ainda na Antiguidade, mas porqueal i há mui to de inadequado e inapl icável , como ser ia esperável numaobra que l ida com referêncías artíst icas de pelo menos 24 séculosatrás. Vamos chamar de Poética a esta nossa sistematização porqueela se apóia em algumas grandes intuições ou descobertas cujaorigem é certamente o tratado homônimo do f i lósofo grego do séculoIV a.C. A primeira contribuição retÍrada da Poética de Aristóteles épreliminar e diz respeito a certas restrições acerca do objeto sobre oqual se discorre. O tratado antigo versava sobre a composição derepresentações em forma de história, aquilo que hoje chamaríamosde construção de histórias. Interessa-lhe o que hoje chamamos denarrativas, ou, em l inguagem antiga, representações de pessoas quepraticam alguma ação. Não se trata de um tratado sobre a criaçãoartística em geral e, portanto, a restrição da atenção à representação(mímesis) não comporta, como erroneamente se costuma supor, umjuízo sobre o realismo como única forma artística aceitável. Restringirum objeto signifÍca apenas delimitar o campo de interesse dodiscurso que Se está fazendo, que nesse caso é a representação da

Page 6: A Poetica Do Cinema Wilson Gomes

ação, sobretudo no teatro e na l i teratura oral. A primeira intuiçãoréalmente importante retirada da Poética de Aristóteles consiste nasua idéia de que a obra deve ser pensada em função da suadestinação. É problema central na Poética antiga os critérios a seremlevados em conta no cumprimento da destinação ou f inalidade decada espécie de representação. A destinação ou dynamis de umaespécie de representação é o que ela deve Ser ou realizar por suaprópria natureza. O mais interessante, todavia, é que para Aristótelesa destinação de uma composição qualquer, a sua realização é o seuefeito. Mas efeito que não se realiza senão sobre aquele que desfrutaou aprecia a representação. Quando se efetiva, quando produz umefeito, é que uma operação se torna obra, resultado. E efeito éSempre efeito sobre o apreciador, para o qual justamente-, ela opera,ela é obra. Assim, dizer que cada gênero de representação tem umaprópria destinação equivale a dizer que cada um deles está destinadoa provocar um determinado efeito sobre os seus apreciadores' Efeitosanímicos, vai dizer Aristóteles, efeitos emocionais como o horror e acompaixáo, no caso da Tragédia. Nesta compreensão estavaimplicada uma idéia importante sobre a natureza das representações,que não encontrará uma forma de exposição completa antes doséculo XX. Aristóteles acredita que em cada um dos gêneros derepresentação o criador deve buscar o efeito apropriado e devebuscá-lo prioritariamente sobre qualquer outro t ipo de efeito possível.Isso signif ica que a cada gênero corresponda um efeito próprio econveníente. úas signif ica também que o papel do criador, docompositor de represéntações (o poeta, para Aristóteles), é projetar,prever e organizar estrategicamente os efeitos no apreciador que sãoadequados para o seu gênero de obra. O apreciador, portanto, deveser previsto na produção e o Seu ânimo deve ser conduzido no atocriador da composição que ele posteriormente apreciará. O efeito éSemente plantada na criação, a desabrochar somente na apreciação.De forma QU€, se a composição é obra apenas quando se realiza,como efetivjdade, como efeito, na apreciação, por outro lado, é obraque Se realiza por arte, isto é, através das destrezas do poeta, aquem cabe prever e conduzir a apreciação. O que signif ica que air iação é atividade de argúcia, planejamento, previsão e provisão deefeitos. O criador há de construir, de algum modo, a recepção da suaobra, há de antecipar e prever os efeitoi que desencadeará. Criação é

estratégia, estratégia de produção de efeito, estratégias de

agenciamento e dã organização dos .elementos da composiçãovõltados para a previsãô e a solicitação de determinados efeitos(específicos de cada gênero). os eigitol que se realizam na

àpr'eciaçao, são previstos na criação (póiesis), na poesia da obra' Noseio de-tais descobertas, ganha forma um programa de estu_dos que

Se ocuparia, então, com os efeitos,da composição e da relação entre

tais efeitos realizados e as estratégias presentes em tal composição.É u .5" programa de estudos que òhamamos aqui propriamente depoética. Uma-poética aplicada ao cinema há de se constituir como um

Page 7: A Poetica Do Cinema Wilson Gomes

programa teórico e metodológico que assume como seus própriospressupostos as duas teses que herda da poética clássica. O primeiropressuposto é uma tese sobre a natureza da peça cinematográfica: ofi lme pode ser entendido corretamente se visto como um conjunto dedíspositivos e estratégias destinados à produção de efeitos sobre oSeu espectador. Tais dispositivos e estratégias podem seridentif icados, isolados e relacionados à famíl ia de efeitos procuradospelo realizador. A perspectiva metodológica que daí decorre indica umprocedimento analít ico cuja destinação consistir ia em indicar osrecursos e meios estrategicamente postos no filme. A poética estaria,então, voltada para identificar e tematizar os artifícios que no filmesolicitam esta ou aquela reação, esse ou aquele efeito no ânimo doespectador. Nesse sentido, estaria capacitada a ajudar a entender porquê e como se pode levar o apreciador a reagir desse ou daquelemodo diante de um fi lme. O segundo pressuposto é uma tese sobre anatureza da apreciação do f i lme: um fÍ lme não existe enquanto obraem nenhum outro lugar Ou mOmento a não Ser no atO da suaapreciação por um espectador qualquer. Como uma sinfonia nãoexiste como música nem na parti tura nem no CD, mas no ato da suaapreciação quando executada, um fi lme só existe no momento daexperiência fí lmica, só existe no momento em que desabrocha emsentidos e efeitos. Decorre daí uma perspectiva metodológica queexige do intérprete de f i lmes que sua atenção se desvie dacompreensão do realizador isolado e das SuaS propostas e seconcentre no f i lme enquanto experimentado, na peça cinematográficaenquanto apreciado, f lo texto enquanto executado. A primeiraperspectiva metodológica se completa com a idéia de que nosinteressam oS recursos e meios estrategicamente postos no filme, àmedida que justamente a partir deles o apreciador da obra executaos seus efeitos. Não seria incorreto fazer derivar do pressupostoaristotél ico uma prescrição metodo.lógica de t ipo fenomenológico:devemos nos ater à coisa mesma. A coisa que está na experiência.Devemos nos ater ao f i lme que se aprecia, deixando em planosecundário o f i lme imaginado ou desejado pelo realizador ou o f i lmeque deveria corresponder aos seus projetos. A instância da realizaçãoé secundária diante do que interessa centralmente: a instância daobra, entendida como uma peça que Se realiza enquanto éexperimentada, apreciada. Etienne Souriau e Gilbert Cohen-Séat, emsua f i lmologia, falam de nível f i lmofônico da peça cinematográfica oudo "f i lme funcionando como objeto percebido por espectadoresdurante o tempo de sua projeção". A experiência fí lmica queinteressa à poética não é exatamente o momento empírico daapreciação do f i lme, que interessa principalmente, no nosso modo deentendér, a uma etnografia da audiência. Interessa-nos a apreciação,como instância que Se realiza empiricamente através de um ou demúlt iplos atos circunstanciais de desfrute da obra, mas' sobretudo,como instância que está prevista no texto da obra. A experiênciafí lmica é a experiência da apreciação do f i lme ou do f i lme enquanto

Page 8: A Poetica Do Cinema Wilson Gomes

objeto apreciado por um espectador qualquer, real ou possível. Aspeispectivas metodológicas que decorrem dos pressupostos dapoética se encaixam reciprocamente no ato analítico. Ao abordar ofi lme como obra, isto é, como composição de disposit ivos eestratégias voltadas a exercer efeitos sobre a apreciação, cabe aoanalista antes de tudo identif icar o "lugar da apreciação", enquantoinstância onde o f i lme opera, onde produz oS Seus efeitos, onde seapresenta pela primeira vez como fi lme. O "lugar da apreciação" nadamais é do que o sistema dos efeitos operados. Identif icá-lo equivale aisolar aS sensações, os sentimentos e os Sentidos que se realizam noapreciador durante a sua experiência do f i lme e por causa dela. Ditode uma outra forma, no programa teórico e metodológico da poéticao começo de tudo é a identif icação daquilo que compõe a experiênciafí lmica, daquilo que o f i lme faz com os seus apreciadores, daquilo queemerge da cooperação entre intérprete e texto. Como veremos emseguiãa, esta experiência se estrutura como uma composição,vaiiável em Sua material idade singular, de sensações, sentimentos esentidos. Alcançar tal extrato da experiência signif ica a identif icaçãodos t ipos e modos de sensações, sentimentos e sentidos que umfi lme determinado é capaz de produzir na apreciação. O procedimentometodológico solicita que se vá constante da experiência fí lmica aopróprio f i lme enquanto composição. Com isso remontamos do efeito àestiatégia, da apreciação ao texto onde a apreciação é programada.Remoniar do efeito à sua programação na peça fí lmica é realizar umpercurso inverso ao da produção da obra. Assim, por exemplo, deemoções como horror, comoção, angústia, suspense ouestránhamento se remonta às estratégias e disposit ivos que sãocapazes de gerá-los, estuda-se o mecanismo em base ao qualfuncionam, procura-se estabelecer leis gerais da programação deefeitos em fi lmes, procura identif icar-se os códigos internos defuncionamento da composição do f i lme a partir dos gêneros de efeitoem que se especial izam... Esta base fundamental do procedimentometodológico supõe uma compreensão da peça fí lmica como- algo secompõe fuevendo ser metodicamente decompostos na análise) detrês dimensões: efeitos, estratégias e meios ou recursos. Meios sãorecursos ou materiais que são órdenados e dispostos com vistas àprodução de efeitos na apreciação. Estratégias são tais meiosenquanto estruturados, compostos e agenciados como disposit ivos deforma a programar efeitos próprios da obra. Os efeitos são aefetivação de meios e estratègias sobre a apreciação,- são a peça

cinemaiográfica enquanto resultado, enquanto obra. Os materiaiscom que se compõe uma obra fí lmica são muito variados e podem serclassif icados de muitos modos. Podemos tentar agrupá-los pelosparâmetros já tradicionais na arte cinematográfica e conseguiremosdistr ibuir os materiais em visuais, sonoros, cênicos e narrativos. Oparâmetro visual, que tem concentrado a maior parte da reflexãosobre oS materiais do cinema, incluem desde os aspectosespecif icamente plásticos, como aS dimensões cromáticas e

Page 9: A Poetica Do Cinema Wilson Gomes

composicionais do f i lme (l inha de foco, distr ibuição dos elementos,posição do motivo) até os aspectos genericamente fotográficos, taiscomo incidência angular, enquadramentos, código de escalas deplanos, nit idez da imagem, contraste, tonalidade, bri lho, foco(seleção e profundidade de campo, fonte de luz), passando-se pelosaspeètos fotográficos de natureza especificamente cinematográfica,como movimentos de câmera e raccords, e pelOs efeitos visuais. Oparâmetro sonoro todo aspecto acústico de música a sonoplastia,enquanto o parâmetro cênico comporta desde a direção e atuaçãodos atores, até cenários e f igurinos. Por f im, no caso de f i lmesnarrativos, oS parâmetros narrativos que o cinema condivide comliteratura, teatro, ópera, quadrinhos etc. e que dizem respeito àcomposição da história, Seu argumento e enredo, SuaS peripécias e osseus desenlaces. Obviamente, estes últ imos parâmetros são tão parao cinema narrativo contemporâneo quanto oS parâmetros visuais,justif icando pela enésima vez a compreensão do cinema como artetompósita. Notemos que nem todos esses aspectos sãoexclusivamente cinematográficos e QU€, portanto, uma teoria docinemático não é suficiente para explicar um fi lme mesmo do pontode vista dos seus materiais. Os materiais da composiçãocinematográfica transformam-se em meios para a produção do f i lmequando são empregados ou estruturados com vistas à produção deefeitos. Do ponto de vista do texto fílmica temos um primeiro extratode emprego de ta is mater ia is naqui lo que consideramos um usotécnico do recurso cinematográfico. Esta é certamente a base de tudodo ponto de vista da realização e é certamente a base materialtécnica da existência de algo como um fi lme. Trata-se do usoorientado pela eficácia ou eficiência técnica do recurso. Sabemos, porexemplo, o que é uma boa fotografia de cinema, uma boa i luminaçãoou um bom desempenho do ato de cinema do ponto de vista dodomínio das técnícas cinematográficas envolvidas. Sobre esta basepode Ser estabelecido um segundo t ipo de emprego do recursocinematográfico, orientado por propósitos expressivos,freqüentemente tomados como artísticos. Nesse caso' o uso dosrecursos Serve para configurar um modo particular de expressão,orientado por valores estéticos ou por peculiaridades de l inguagem. Apeça, então, recebe o tom, o jeitO, a marca, O esti lO a l inguagemp"óuiiar de algum agente da instância da realização. Os usos técnicose "de l inguagem" dOS recursos cinematográficos nãO se cOnfundeff i €,às ve=el, entram em confl i to. Não de raro, por exemplo,compromete-se a eficiência técnica de uma fotografia em nome depropostas "expressivas" de pendor . estético ou simplesmenteesti l íst ico ou, vice-versa, ousadias estéticas nos usos dos recursossão dispensadas em nome da primazia da efícácia técnica.Basicamente um fi lme se compõe de recursos cinematográficosempregados com habi l idade técnica, eventualmente com uma marcade esti lo e l inguagem proveniente do realizador. Tudo isso, contudo,ainda é mateiial iãade a ser devidamente formada por complicados

Page 10: A Poetica Do Cinema Wilson Gomes

mecanismos de produção de efeitos na apreciação. Por isso mesmo,mudamos de patamar ao nos referir aos usos expressivos dosrecursos cinematográficos, onde vemos os recursos, dominados jápela competência técnica e artíst ica, controlados por uma hábilmáquina de programação de efeitos. Esta máquina funciona com pelomenos três modos de composição da obra, correspondentes aos trêstipos de efeito convocados no apreciador: sensação, sentido esentimento. Em primeiro lugar, temos uma programação de efeitosque podemos propriamente chamar, ainda que imperfeitamente, decomposição estética (de aisthesis, sensação), no sentido de que aquios meios e materiais são estruturados para produzir efeitossensoriais. Assim como o art ista plástico pode produzir umainstalação com canudos transparentes para produzir um efeito ousensação de rugosidade (a prescindir do fato de se, além de fazersentir alguma coisa a instalação queira também dizer algo) naqueleque a aprecia, também os elementos de que se compõe a peçafí lmica (a cor, a luz, um ritmo de montag€ff i , uma tr i lha sonora etc.)podem ser dispostos para produzir uma determinada sensação noespectador do f i lme. Sensação que o analista precisa identif icar para,então, isolar a estratégia empregada. Em segundo lugar, temos umaestruturação que podemos chamar de composição comunicacional,pois meios e materiais aí são organizados para produzir sentido, ouseja, para compor mensagens, transferir idéias ou fazer pensar emdeterminadas coisas. O efeito desejado nesse caso é um eventoconceitual: os signif icados ou sentidos. Os meios e recursos aqui secifram ou codif icam na instância estratégica da realização para seremdecifrados ou decodif icados como texto na instância operativa daapreciação. Operação de decifração que se realiza tanto no nível daposse dos códigos quotidianos quanto no recurso a código aptos aodesvendamento de sentidos f igurados. Se no primeiro t ipo decomposição, a obra produz uma sensação específ ica, nesse segundomodo, a obra diz a lguma coisa ou, pelo menos, faz pensar a lgo.Nenhum desses dois modos de composição estavam previstos naPoética clássica, mas o terceiro modo encontra certamente lá a Suaorigem. Trata-se da composição que podemos, para homenagear asorigens, chamar de composição poética. Nela os elementos sãodispostos, os recursos, meios e materiais são agenciados paraproduzir efeitos emocionais ou anímicos no espectador. Nessacomposição, os materiais não se estruturam para produTir umasensaçãO, mas um sentimento; nãO se Organizam para fazer emergiruma idéia ou uma noção, mas para gerar um estado de espírito, umestado de ânimo. O primeiro t ipo de composição programa aexperiência sensorìal da apreciação. O segundo t ipo faz o mesmocom a experiência conceitual, enquanto o terceiro tem em vistaespecif icamente a experÍência emocional gerada pelo f i lme. Restaainda a pergunta - que ainda não somos capazes de responder - seestes t ipos de efeitos esgotam a total idade da experiência ou sehaveríamos de identif icar mais alguma coisa que o f i lme faria com o

1 0

Page 11: A Poetica Do Cinema Wilson Gomes

apreciador. Os modos de estruturação do f i lme não operam comocamadas justapostas, o f i lme é ele mesmo uma composição no qualse sintetizam as várias composições e usos dos elementos emateriais. O f i lme como um todo é a programação de efeitos, alogística que rege e coordena as estratégias fundamentais e os usosdos seus recursos elementares. Além disso, não seria corretoimaginar que os f i lmes se componham, em igual medida, dasdiversas composições elementares. Cada f i lme, enquanto obrasingular, é um programa artíst ico específ ico e solicita, numaespecíf ica medida e realizando um conjunto preciso de escolhas, anatureza e os modos dos seus efeitos próprios. Cada f i lme, cadaclasse ou gênero deles tem um especial sabor, uma têmperaparticular, decorrente do modo peculiar como nele se combinam oselementos e da quant idade e qual idade dos ingredientes envolv idos.Assim, ampliando Aristóteles, o f i lme não se qualif íca apenas pelogênero de efeitos emocionais que prevê e solicita, mas também peladeterminação do t ipo de composição que ele comporta e da famíl ia deefeitos que ele engendra. A história da arte em geral e a histórÍa dateoria do f i lme em particular são um contínuo suceder de disputasentre escolas sobre aquilo que a arte cinematográfica e o f i lme são oudeveriam ser. E freqüentemente os termos da escolha sãojustamente as três formas de composição indicadas acima. Um fí lmequalquer deve ou não deve conter uma mensagem, uma denúncia ouuma informação? Quando isso acontece tal coisa se dá a prejuízo dassuas propriedades artíst icas e expressivas? Um bom fi lme não deveser engajado, crit icar determinados modos de vida, fazer pensar edefender as causas justas? Aquilo que torna um fi lme artíst ico não éjustamente o fato de que ele não está al i para fazer pensar em nada(não é unra tese, é arte!), mas para expressar, fazer sentir? Um fi lmevoltado para a comoção não estaria degradando a sua funçãoartíst ica, de um lado, óu a sua função crít ióa, de outroZ É, evidenteque as escolas "artíst icas", voltadas para defender o especif icamenteartíst ico como o não-conceitual, insistírão que o que caracterizariaespecif icamente o f i lme como arte estaria na sua composição estéticae no emprego artíst ico dos recursos cinematográficos. Nesse sentido,as "vanguardas estéticas" e as suas inovações da "l inguagem" e dosrecursos expressivos são as preferidas por esta escola. Já as escolasconceituais insistem na função comunicativa do f i lme, no bom e nomau sentido. No bom sentido, quando o cinema exerce a sua funçãocrít ica da sociedade e dos seus modos de vida, quando denuncia,quando faz pensar, quando se engaja nas causas eticamente justas.No mau sentido, porque a leitura crítíca do cinema demonstraria oquanto a indústria cinematográfica produz mensagens voltadas paraa manutenção do status QUo, da dominação do homem sobre ohomem e para o apoÍo e adesão ao modo de vida das sociedadescentrais na forma atual de capital ismo. Comum tanto à perspectivado cinema de vanguarda estética quãnto à perspectiva do cínemaengajado é a avaliação negativa sobre a composição poética. O

11

Page 12: A Poetica Do Cinema Wilson Gomes

cinema de mensagens despreza o cinema de lágrimas tanto quanto ocinema estético ofaz. Tais disputas, na medida em que solicitam umaescolha entre os modos de composíção, f indam por Ser uma arenapolítica. Todas essas formas de composição fizeram parte da formasde realização artíst ica desde sempre e não parecem dar sinais deesgotamento. A nossa experiência nos diz que elas estãofreqüentemente combinadas nas obras de arte que apreciamos. Masno diz também que a fenomenologia das formas de composição émuito variável e que a escolha aprioríst ica de uma ou de outra nãonos ajudaria a compreender melhor o fato artíst ico. Há obras em queuma forma de composição é predominante e, de alguma maneira,si lencia ou controla todas as outras: é o caso dos f i lmes-denúncia,dos f i lmes de vanguardas expressivas ou dos melodramas lacrimosos,por exemplo, em que a busca de produção de idéias ou sensações ousentimentos esgotam praticamente todos oS recursos empregados naobra. Há obras em que oS programas de efeitos se combinam demaneira mais homogênea, há obras em que apenas dois deles estãopresentes. Nenhuma dessas formas do fenômeno é, por isso, mais oumenos artíst ica do que a outra. Nesse sentido, um fÍ lme deve SempreSer capaz de dizer o modo como quer Ser apreciado, O modo e adosagem como as várias composições são, por sua vez, compostasnum lodo que é dado à apreciação. E a obra que rege, também nocinema, os parâmetros da sua própria apreciação e, por conseguinte,os parâmetros da sua própria análise. Para Jakobson um trabalholiterário se faz com um grupo de códigos em interação' mas de modotal que um código é sempre dominante. Em certos poemas lír icos, porexemplo, al i terações e assonâncias, que seriam códigos sonoros,controlariam as inflexões dos outros códigos como narrativa,repetição, imagens. De modo análogo, talvez se deva dizer que asvárias formas de composição interagem constantemente no interiorda peça cinematográfica, mas que, tendencialmente, há pelo menosuma forma que controla as outras composições e sobre elaspredomina. Assim, reclamar de um melodrama que ele não real izedenúncia socia l , por exemplo, é exig i r do f i lme que ele renuncie aoseu código dominante, a composição poética, e as suas estratégias decomoção, para assumir um código que nele certamente não éestratégia importante. Estuda-se pouquíssimo, em teoria e estéticado cinema, as composição estéticas e poétÍcas dos f i lmes. Porconseqüência, elas são aplicadas rara e desordenadamente na análisee interpretação de f i lmes. E fazem falta. Se por um lado, a instâncÍada realização manipula os recursos e materiais do f i lme para produziroS efeitos desejados porque certamente conhece e domina acomposição poetica como tecnologia e savoir faire, a teoria e aanálise não sabem muito o que fazer com esses materiais e os acabadesperdiçando em Sua abordagem teórica ou em sua aproximaçãoanalít ica. A semiótica aplicada ao cinema, por exemplo, tem serevelado eficiente como estudo interno da mecânica dos f i lmes,naquilo que neles é a estratégia de produção de sentido e

t 2

Page 13: A Poetica Do Cinema Wilson Gomes

significação. A sua meta é perfeitamente compreensível se forcompreendida como a proposição de modelos habil i tados a explicarcomo um fi lme adquire signif icado no ato da sua apreciação ouinterpretação. Estará fora da sua órbita específica de competência,todavia, pretender examinar o f i lme como estratégia sensorial ousentimental. Trata-se, portanto, de dimensões ainda a explorar. Nohorizonte teórico e metodológico da poética do cinema, atividadefundamental do analista é, portanto, movimentar-se entre aapreciação e o texto do filme, identificando os efeitos que cada filmerealiza sobre O apreciadOr para, entãO, remontar aos progrAmasdispostos na composição da obra.

Wilson Gomes é professor da Universidade Federal da Bahia ecoordenador da Área de Ciências Sociais Aplicadas I junto à CAPES.