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Artes poéticas em diálogo Longino e Fernado Pessoa

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ARTES POÉTICAS EM DIÁLOGO: LONGINO E FERNANDO PESSOA.

Luiz Roberto Zanotti

(PG-UFPR)

Assumindo a premissa que as mais diversas concepções poéticas, ainda que distantes no tempo e no espaço, geralmente continuam dialogando; o objetivo da nossa reflexão é a verificação de até que ponto os conceitos apresentados na arte poética clássica de Longino, Do sublime (séc. I d.c.); continua presente na arte poética contemporânea de Fernando Pessoa, em sua obra Livro do desassossego (1982). Para a consecução deste objetivo, usamos a metodologia comparativa que apresenta semelhanças, diferenças, re-apropriações, numa análise sincrônica. Apesar das semelhanças entre as obras analisadas, pois ambas se apresentam como a resultante do processo criativo que opera sob o impulso da emoção e concretiza as percepções, sentimentos e pensamentos dos poetas, existe uma importante diferença, pois enquanto Longino, através de sua arte poética está se rebelando contra o status quo da sua época, e em particular, à poética de Cícero, que não tratava da emoção (inspiração), Pessoa parece estar mais preocupado em definir sua posição entre as artes poéticas de seus contemporâneos, através da subversão e negação. Assim, podemos afirmar que, apesar de separados por um período de quase vinte séculos, existem vários conceitos de Longino que podem ser averiguados em Pessoa, sobretudo pelo fato de mostrarem que é absolutamente necessário que haja uma perfeita sintonia entre o dom e o método para que seja possível a construção do sublime (obra de arte).

RESUMO: Este artigo analisa os conceitos apresentados na arte poética clássica de

Longino, Do sublime (séc.I) em comparação com a(s) arte(s) poética(s) de Pessoa,

presente em fragmentos de “O livro do desassossego” (....), a fim de mostrar sua relevância

na função que esta “nova” arte poética cumpre na obra de Pessoa e, conseqüentemente, no

contexto do Modernismo português. Tanto Longino como Pessoa compartilham a firme

convicção de prescrever regras em suas poéticas, apesar de elas também possuírem

elementos descritivos e, igualmente, a convicção de que, se o método (técnica) é de suma

importância, não existe poesia sem o dom (inspiração).

ABSTRACT: This article analyses the concepts presented in the classic poetic art of

Longino, Do sublime (séc. I) in comparison with the poetic art of Pessoa, observed

through fragments of “O livro do desassossego” (....), in order to show his relevance in

the function that this "new" poetic art carries out in the work of Pessoa and,

consequently, in the context of the Modernism in Portugal. As many Longino as Pessoa

shares the firm conviction of prescribing rules in his poetics, in spite of them also have

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descriptive elements and, equally, the conviction of which, if the method (technique) is

of abridgement importance, there is not poetry without the gift (inspiration)

Palavras-chave: Longino, Pessoa, Arte poética prescritiva, Modernismo Português.

Key Words: Longino, Pessoa, Prescriptive poetic art, Modernism in Portugal.

Hoje o termo “poética”i vem sendo usado pelas mais diversas áreas do

conhecimento humano com um significado que não vai muito além de “teoria”. Porém,

no decorrer deste ensaio, o termo será focado como uma teoria geral de poesia que

define a poesia, suas várias ramificações e subdivisões, formas e recursos técnicos,

discutindo os princípios que  a regem  e a distinguem de outras atividades criativas

(PREMINGER e BROGAN, 1974, p. 636). Dentro dessa concepção, pode-se notar a

existência do que poderíamos chamar de duas correntes de “artes poéticas”: a que está

mais focada em formular uma regra geral para a produção da poesia e, portanto, dá mais

valor à sua definição, o que se denomina arte prescritiva, e a que dá mais ênfase à sua

discussão, ou seja, a arte descritiva.

Sejam prescritivas, descritivas ou um meio termo entre essas vertentes, pode-se

observar que as artes poéticas antigas ressoam nas poéticas concebidas posteriormente,

às vezes se somando a estas, enquanto que outras vezes; colocam-se em absoluta

contradição. Segundo Abrahmsii, tais poéticas podem ser classificadas como teoria

mimética ─ a arte como imitação de aspectos do universo – que está presente em

Aristóteles; teoria pragmática ─ em que o poema é construído com o objetivo de surtir

efeitos nos leitores – que pode ser encontrada em Horácio; teoria expressiva – a obra de

arte como resultante do processo criativo que opera sob o impulso do sentimento e

concretiza as percepções, sentimentos e pensamentos do poeta – poética de Longino; ou

ainda a teoria objetiva ─ a obra de arte como entidade autônoma, julgada somente por

critérios intrínsecos a seu modo de ser – encontrada em Landino.

Apesar de essa classificação buscar estabelecer uma clara distinção entre as

várias formas que as poéticas podem assumir, não se pode levar totalmente em conta

que essas teorias são mutuamente exclusivas, e o que Abrahms sugere é que o elemento

básico para a classificação é o elemento dominante dentro de uma poética.

Neste ensaio, a proposta é buscar uma das diversas possibilidades da relação

dialética entre uma poética antiga e uma atual, uma vez que elas ─ apesar de terem sido

produzidas com quase vinte séculos de diferença ─ parecem compartilhar de uma

poética prescritiva. Para isso, comparou-se a arte poética Do Sublime , de Longino - que

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estudiosos acreditam ser datada do séc. I d.C. – com a(s) arte(s) poética(s) presentes no

Livro do Desassossego, escrito por Pessoa, publicado em .

O fato de escolhermos O Livro do desassossego − um livro inacabado que pode

ser classificado como de prosa poética e/ou poema em prosa − como fonte para

evidenciar uma poética se deve ao fato que existem fragmentos neste trabalho sobre a

arte poética de Pessoa, e também pelo fato, de apesar das poesias de Caeiro, Reis e

Álvaro de Campos, representarem concepções do mundo diversas e até opostas entre si,

todas elas apontam para um caráter prescritivo.

Todos estes ideais, essa profusão de ecos, esboços, recortes, extensões,

repetições, variações e respostas nos leva a pensar que esse Livro, espaço esquivo às

descrições fixas de nossos outros livros, é um modo de realização, em que a diversidade

parece estar em harmonia justamente pela ausência de qualquer força externa que a

impeça de se afirmar como diversidade. Considere-se que, enquanto componente de

uma obra, é para muito além da mistificação em torno da figura de “Bernando Soares”

que a prosa do Livro do Desassossego reflete a dinâmica das linguagens e idéias que se

atribui como característica da obra pessoana. Como seu grande espelho, a prosa do

Livro demonstra, para além da fabulação artificial dos nomes e das biografias, que essa

diversidade é, afinal, um movimento próprio da escrita de Pessoa. (GAGLIARDI, 2009)

Ainda é significativo a característica observada por Massaud Moisés (...) que

afirma que este livro se encontra entre o “livro-caixa” e o “livro-sensação”, o que em

nossa analise ganha a significação de razão e emoção, ou ainda, de technée e dom. É

curioso notar que assim como outras poéticas, como a própria de Longino, mas também

a de Aristóteles, também chegaram até nós como obras inacabadas.

O seguinte trecho do Livro talvez seja aquele que sintetize com maior riqueza o

que podemos chamar de “poética” na obra de Pessoa. Revela-se aqui a proximidade real

e latente entre “Pessoa” e “Campos”, duas vozes que ressoam por todo o Livro, e que,

em suas páginas, se misturam sob a assinatura “Soares”:

Sentir tudo de todas as maneiras; saber pensar com as emoções e sentir com o

pensamento; não desejar muito se não com a imaginação; sofrer com coquetterie; ver

claro para escrever justo; conhecer-se com fingimento e tática, naturalizar- se diferente e

com todos os documentos; em suma, usar por dentro todas as sensações, descascando-as

até Deus; mas embrulhar de novo e repor na montra como aquele caixeiro que de aqui

estou vendo com as latas pequenas da graxa da nova marca. (p. 157-158).

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As poéticas de Longino e Pessoa, além de possuírem um caráter prescritivo,

apresentam com clareza a suma importância da téchne e do dom na elaboração de uma

poesia. A téchne, ou seja, o método, ou ainda a imaginação e a reflexão apresentam-se

todas elas, como o caráter formal de uma criação artística, em contrapartida a uma

espécie de genialidade inata em Longino, que na analise da poéticaiii de Pessoa aponta

para a emoção. Seja qual for a qualificação para esta relação dialética, fica claro que

para os dois poetas, é impossível, sem uma perfeita harmonia entre a téchne e o dom, ou

entre a razão e o sentimento, atingir-se o sublime, que pode ser designado como uma

verdadeira criação literária aliada à grandeza da concepção e emoção.

Assim, apesar do caráter prescritivo das duas artes poéticas, a importância da

téchne não elimina o dom, e a da razão não elimina o sentimento, ambos importantes

para se produzir uma obra de arte. Essas artes poéticas prescrevem a necessidade de

uma relação dialética para se obter a poesiaiv, e que tanto o método e o dom sozinhos,

como a reflexão e a emoção tão somente não são suficientes; portanto, é o poeta que,

mediando as duas propriedades, vai produzir a obra de arte, o que permite inferir que

essas duas poéticas ─ como representativas do conjunto da obra desses dois autores –

têm uma predominância para a orientação dentro de uma arte poética expressiva.

A poesia de Pessoa engendra a introspecção reflexiva. Estabelecem-se profundas

dialéticas, como entre sentir e pensar, que se amplifica para a sua arte poética que é

também corrente no Livro: “O devaneio, em que naturalmente se perde quem não pensa,

perco-me eu nele por escrito, pois sei sonhar em prosa. E há muito sentimento sincero,

muita emoção legítima que tiro de não estar sentindo” (FP, p. 368).

O “sublime” de Longinov pode ser considerado como um conceito anticlássico e

está associado à grandiosidade, elevação e transcendência. Esse conceito vai ser de

grande importância na passagem do neoclassicismo para o romantismo, ocupando um

local central na estética do século XVIII. Longino inicia a sua poética criticando o

mestre da retórica, Cecílio, porque julgava a sua obra insuficiente, no que diz respeito à

essência da arte, por haver apresentado o “sublime” somente através de exemplos, não

se preocupando em estabelecer “como” e por quais métodos poderia ser obtido. Para

Longino, Cecílio teria se limitado a mostrar o “sublime”, sem manifestar como a própria

natureza chegaria a determinada elevação.

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Desse modo, em seu tratado, Longino não pretende nem definir o sublime ─

uma qualidade inefável ─, nem apresentá-lo através de exemplos, mas sim identificar as

suas fontes. Para o autor, tais fontes estão divididas em dois grupos de capacidades: as

que dizem respeito ao gênio inato, e as capacidades ligadas às fontes práticas. No

primeiro grupo, considera uma determinada elevação do espírito para formular elevadas

concepções, e o afeto veemente e cheio de entusiasmo, capaz de provocar paixões

inspiradas. No segundo, leva em conta a disposição das figuras de pensamento e de

dicção, que seriam uma espécie de desvios provenientes da imaginação e criatividade, a

formulação nobre e a composição magnífica, dignificante e elevada.

O sublime aparece como a principal virtude literária, como o eco da grandeza do

espírito, o poder moral e imaginativo do escritor presente no seu trabalho, trazendo pela

primeira vez a importância das qualidades inatas desse escritor (dom) e não somente as

da sua arte (téchne). Longino constata ainda que, na criação da arte, existe natureza e

técnica e que é preciso pensar no seu encontro, o que corrobora Pigeaud que, na

introdução à Do Sublime (LONGINO, 1996, p. 9-39), observa que o autor encontra,

evidentemente, a questão da fronteira, da passagem entre o inato e o adquirido, entre o

dom e a técnica, avatar da oposição entre physis e nômos, a natureza e a norma, o dom

biológico e a regra, o sentimento e a razão. Elabora a sua questão teórica sobre como

podemos estimular os dons naturais para a obtenção do sublime:

(...) se examinarmos a natureza, embora quase sempre siga leis próprias nas emoções elevadas, não costuma ser tão fortuita e totalmente sem método (...), compete ao método estabelecer âmbito e conveniência (...), os gênios correm perigo maior, pois se às vezes precisam de espora, muitas outras, de freio.(II,2)

O Livro do Desassossego, de autoria do quarto heterônimo de Pessoa, − o

funcionário de escritório comercial Bernardo Soares −, mostra vários conteúdos tais

como: a misantropia, a misoginia e homossexualidade, relatando a amarga experiência

existencial do poeta e sua franca descrença na humanidade num livro nu e cru. Num

livro com tantas perspectivas a serem exploradas, nos ateremos a sua análise da sua arte

poética através de alguns fragmentos.

Apesar, deste lado depressivo de Pessoa, é possível notar ainda o interesse do

autor em discutir a dialética sentimento-razão numa perspectiva poética que faz com

que o autor transforme uma curta viagem entre a Baixa Lisboa e Cascais numa

emocionante aventura na selva.

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Pessoa, diferentemente de Longino, que contrapõe sua poética à de Cecílio, cria

a poética de uma forma multifacetada: inicialmente em contato passageiro com a

fimbria do saudosismo, - movimento liderado, à volta de 1912, por Teixeira de Pascoaes

– para depois incorporar, tanto a musicalidade aprendida em Garret, como toda uma

herança poética moderna, acumulada desde Baudelaire, e recolhida por Antonio Nobre,

Cesário Verde e Camilo Peçanha, os prediletos do nosso poeta na língua portuguesa

(NUNES, ).

A partir destes registros, a poética de Pessoa se dá num tortuoso conflito entre a

realidade interior e exterior, mas jamais deixando que a emoção vá ser o único fio

condutor de sua poética, pois o poeta vai fundi-las, de tal maneira que as coisas, ora

indistintas, ora permutantes, integrassem uma paisagem interna única e movediça.

Dessa forma, o poeta recorre a um mecanismo associativo, por meio do qual a realidade

interna e a externa, traspassam-se como feixes de sensações intercruzadas:

Remoinhos, redemoinhos, na futilidade fluida da vida! Na grande praça ao centro da

cidade, a água sobriamente multicolor da gente passa, desvia-se, faz poças, abre-se em

riachos, junta-se em ribeiros. Os meus olhos vêem-se desatentamente, e construo em

mim essa imagem áquea [sic] que, melhor que qualquer outra, e porque pensei que viria

chuva, se ajusta a estes incertos movimentos. (PESSOA, p. 148)

Este poema exemplifica essa necessidade do que Benedito Nunes chama de

interseccionismo, onde os aspectos objetivos do mundo, suspensos entre o lado de fora e

o lado de dentro da consciência, são dissolvidos na subjetividade do autor. O autor

“sente” a futilidade da vida, mas precisa que os olhos − num sentido de visão e reflexão

− transforme aquele sentimento numa imagem áqüea da razão. Ai se manifesta o

processo que determinou, na expressão poética de Fernando Pessoa, a ascendência do

pensamento sobre a sensibilidade, ou em outras palavras, da technée sobre o dom.

i Usaremos durante este ensaio os termos “poética” e “arte poética” indistintamente, como sinônimos.ii Essa classificação diz respeito à orientação que um autor dá para a sua obra como um todo (ABRAHMS, 1953, p. 3-29) iii Englobamos as diversas artes poéticas possíveis de Pessoa como se fossem uma única poética, pois o objetivo do trabalho, mais do que discutir a diferença entre elas, é mostrar que todas possuem um caráter prescritivo.iv Neste trabalho apesar de cientes da grande diferença de definição entre poesia e sublime, usamos os termos como correspondentes, pois o objetivo de ambos os poetas é a obtenção do sublime através das obras de artes (por exemplo, a poesia).v Apesar da autoria de Do sublime ser ainda discutida, e podendo ter a autoria de Cassius Longinus, Dionysius Longinus ou até mesmo Dionysius de Halicarnassus, entre outros, adotaremos Longino como o autor “anônimo” do tratado.

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Assim, a poética pessoana se aproxima da poética de Longino, na medida em que recusa

a simples imitação da realidade.

Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida

humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma

sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem

passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente

a de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna — a fortuna

autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem,

porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à

alegria e à dor.(p. 60)

Para o poeta português, a poesia deve ser encontrada na relação dicotômica entre

o pensamento e a sensibilidade, uma vez que é, ao mesmo tempo, a linguagem de

determinados instantes, sem dúvida os mais densos e importantes da existência ─ o que

denota a importância da inspiração ─ e também o trabalho com palavras, com o

compromisso com a linguagem, isto é, baseia-se numa oposição entre o sentir e o

pensar. A partir desta oposição, tantas vezes refletida por Fernando Pessoa, convém

saber, exatamente, o que é que ele entendia por pensamento.

A filosofia cartesiana, fonte dos problemas da consciência e da natureza do Eu, com os quais se relaciona intimamente a poesia e a experiência do nosso poeta, pode ajudar-nos a dar resposta. "Com o nome de pensamento, escreveu Descartes no parágrafo IX de seus Principia Philosophiae, entendo tudo o que ocorre em nós quando estamos conscientes e até onde há em nós consciência desses fatos." Compreender, querer, imaginar, mas também sentir, são fatos de consciência e, assim, constituem aspectos do pensamento. Mas o conceito cartesiano, que inclui o sentir na órbita do pensar, pressupõe a existência do Eu pensante, reduto da consciência, sem o qual seriam inconcebíveis as sensações propriamente ditas e os estados afetivos, estes últimos compreendendo, de acordo com a terminologia dos séculos XVII e XVIII, as paixões e os sentimentos. (NUNES

O que quer que possamos experimentar ou sentir depende, pois, da prévia

consciência que temos de nós mesmos. O pensar, que é a atividade do Eu substancial,

como saber reflexivo das nossas vivências, abrange o sentir, não podendo este ocorrer

separadamente daquele. Dessa forma, a qualquer conteúdo da sensibilidade corresponde

uma forma de pensamento. Quando sentimos, manifesta-se, concomitantemente ao

curso das vivências, o conhecimento que o Eu tem de si mesmo, e' por efeito do qual a

consciência se divide em dois planos, que jamais coincidem: um, espontâneo, da

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experiência imediata em seu- transcurso; outro, reflexivo, que sobre aquele se volta para

focar as idéias, os sentimentos e as recordações que aí aparecem.

Em Fernando Pessoa,o pensamento que a sensibilidade se sobrepõe, freando no

poeta a capacidade para entregar-se aos fluxos das sensações e para concentrar-se

inteiramente naquilo que sentia, é, em primeiro lugar, o primado da consciência

reflexiva:

De tal modo me converti na ficção de mim mesmo que qualquer sentimento natural, que

eu tenho, desde logo, desde que nasce, se me transtorna num sentimento da imaginação

— a memória em sonho, o sonho em esquecer-me dele, o conhecer-me em não pensar

em mim.

De tal modo me desvesti do meu próprio ser, que existir é vestir-me. Só disfarçado é que

sou eu. E, em torno de mim, todos poentes incógnitos douram, morrendo, as paisagens

que nunca verei. (PESSOA, p.163)

Pessoa confessa que os sentimentos que sente não são frutos do seu ser, que é

como se não houvesse ocorrido e fosse apenas imaginação, fazendo com que os estados

afetivos tornavam-se impressões distantes, paisagens que nunca irá ver. “[...] a vida

interior, rapidamente desgastada, só na imaginação poderia encontrar um terreno firme.

É fácil compreender o mecanismo desse desgaste” (NUNES, ).

Esta necessidade de se afastar do sensível para obter a poesia, parece também

possuir eco na poesia de Carlos Drummond de Andrade que traz a prescrição para não

se escrever sobre a sentimentalidade de uma forma direta e cotidiana, pois os temas do

dia-a-dia e da expressão verbal cotidiana devem passar pela mediação da reflexão (o

que os transcrevem para o plano das artes). O poeta mineiro quer deixar claro, é que a

simples emoção que as coisas do dia-a-dia podem evocar no chamado poeta, ou seja, o

simples falar das coisas do cotidiano, um falar sem estar sendo regido pelo método, não

pode ser confundido com a verdadeira poesia:

Não faças versos sobre acontecimentos.Não há criação nem morte perante a poesia.Diante dela, a vida é um sol estático,não aquece nem ilumina.As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.Não faças poesia com o corpo,esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escurosão indiferentes.

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Não me reveles teus sentimentos,que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. (DRUMMOND,

Da mesma forma, que para Drummond, os sentimentos e os pensamentos

equivocados ainda não são de fato, poesia, Fernando Pessoa prescreve a importância da

reflexão, pois em relação aos sentimentos vividos: “[...] esses sentimentos já eram

passados quando lhes dava expressão. E toda expressão ocorre se, e apenas se estamos

desincorporados ou distanciados daquilo que sentimos” (PESSOA citado em NUNES,

p.).

É a inteligência reflexiva que opera o distanciamento, possibilitando a expressão

poética. Conseqüentemente, o simples fato dos sentimentos vividos, sem o dinamismo

da consciência, do qual a reflexão decorre acaba por determinar a impossibilidade da

poesia, que é apresentada por Pessoa em “O problema da sinceridade do poeta”, pois:

O poeta superior diz o que efectivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir. [...] Tanto assim é que não creio que haja, em toda a já longa história da Poesia, mais que uns quatro ou cinco poetas, que dissessem o que verdadeiramente, e não só efectivamente, sentiam. Há alguns, muito grandes, que nunca o disseram, que foram sempre incapazes de o dizer. Quando muito há, em certos poetas, momentos em que dizem o que sentem. [...] Quando um poeta inferior sente, sente sempre por caderno de encargos. Pode ser sincero na emoção: que importa, se o não é na poesia?

Para Pessoa, a verdadeira poesia proveniente do “poeta superior” se dá através

de um sentimento que acontece a partir da reflexão e que o previne contra a "mentira da

emoção", pois a sinceridade intelectual leva-nos a refletir e, refletindo, nos distanciamos

da simplicidade da experiência vivida: das afinidades, dos aniversários, dos incidentes

pessoais, do próprio corpo físico, da gota de bile, da careta de gozo ou dor no escuro,

que, como vimos, para Drummond, ainda não são poesia, e ainda, de acordo com

Pessoa, exprimir-se é dizer o que se não sente. "A conclusão é paradoxal, mas correta,

uma vez que somente a expressão poética, que se afasta da experiência imediata, pode

manifestar o seu sentido, e conseqüentemente, a sua verdade” (NUNES, p).

Com relação à emoção, a crítica que Longino faz à poética de Cecílio está

baseada, sobretudo, no fato de Cecílio ter omitido a emoção em sua poética. Longino

não deixa de advertir que a inclusão da emoção num poema pode ser vista como uma

das inúmeras possibilidades de se obter o sublime; essa simples inclusão, porém, não

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significa de forma alguma que o sublime e o patético devam andar sempre juntos como

se fosse uma regra geral. Pois assim, como Pessoa, que só admite a emoção na poesia a

partir de sua mediação pela razão, para o poeta da Antigüidade, algumas emoções estão

separadas do sublime e são totalmente sem grandeza, tais como a pena, o sofrimento e

os temores (VIII, 2). Essas emoções tão reais, tão “miméticas”, não são uma garantia

para se atingir o sublime, o que também pode ser constatado em Pessoa ao apresentar as

suas prescrições poéticas:

Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que eu queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer. De tanto recompor-me destruí-me. De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora senão o olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que me contempla contemplá-lo.(PESSOA, p. 180)

Mais uma vez a advertência de que a simples emoção, sem estar fortemente

apoiada do dom e do método, jamais atingirá o sublime se faz presente. Para ele (o

poeta), a experiência não é autêntica em si, mas na medida em que pode ser refeita no

universo do verbo. A idéia só existe como palavra, porque só recebe vida, isto é,

significado, graças à escolha de uma palavra que a designa e à posição desta na estrutura

do poema.

O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A

Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus

próprios olhos.

Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha

de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se

ver.

O criador do espelho envenenou a alma humana. (p. 208)

Este espelho entre os textos talvez se resuma o marco da concisão especulativa do

existencialismo e da metalinguagem que caracterizam a poética pessoana, e parece estar

ligado ao trabalho poético que produz uma espécie de volta ou refluxo da palavra sobre

a idéia, que então ganha uma segunda natureza, uma segunda inteligibilidade.

Tanto assim, que o poema é geralmente feito com o lugar-comum (...). Nas mãos do

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poeta o lugar- comum se torna revelação, graças à palavra na qual se encarnou

(CANDIDO, 2004, p.92).

Nessa perspectiva, a poesia não pode ser criada apenas a partir de uma das

variáveis mencionadas. Não se constrói só com a emoção, nem tampouco só com o

razão, mas sim com o perfeito trabalho de harmonização entre ambos; ou, como nos

ensina Pessoa, na eterna luta entre a emoção e a razão, no conflito, na ambigüidade,

numa guerra contínua, que acaba por partir o poeta ao meio:

Tão dado como sou ao tédio, é curioso que nunca, até hoje, me lembrou de meditar em que consiste. Estou hoje, deveras, nesse estado intermédio da alma em que nem apetecea vida nem outra coisa. E emprego a súbita lembrança, de que nunca pensei em o que fosse, em sonhar, ao longo de pensamentos meio impressões, a análise, sempre um pouco factícia, do que ele seja. (p. 194)

Longino, na sua busca pelo sublime, apresenta a inspiração (imaginação) como a

chave para a colheita dos poemas e, portanto, do sublime, para ele: educar as almas em

direção ao grande e torná-las prenhes, se pode assim dizer, de uma exaltação genuína.

(...) De que maneira dirás? Escrevi em algum lugar: o sublime é o eco da grandeza da

alma. Disso decorre que mesmo sem voz seja admirado às vezes o pensamento

totalmente nu, em si mesmo, pela própria grandeza da alma (...) (LONGINO, IX, 1 e 2).

O poeta português mostra a importância da imaginação na utilização das

palavras em suas relações umas com as outras, a necessidade de se ordenar estruturas e

de se associar vocábulos que transformam o lugar-comum em revelação,

Talvez porque eu pense demais ou sonhe demais, o certo é que não distingo entre a realidade que existe e o sonho, que é a realidade que não existe. E assim intercalo nas minhas meditações do céu e da terra coisas que não brilham de sol ou se pisam com pés — maravilhas fluidas da imaginação. Douro-me de poentes supostos, mas o suposto é vivo na suposição. Alegro-me de brisas imaginárias, mas o imaginário vive quando se imagina. Tenho alma por hipóteses várias, mas essas hipóteses têm alma própria, e me dão portanto a que têm. [...]Que é isto? Sou eu que, sozinho no escritório deserto, posso viver imaginando sem desvantagem da inteligência. (p. 97-98)

Nessa passagem, este sonho, que pode ser aproximado como uma metáfora para

a poesia “maravilhas fluídas da imaginação”, o que para Antonio Candido (2004, p.93),

significa que:

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(...) o poema é, para além das palavras, uma conquista do inexprimível que elas

não contêm e diante do qual devem capitular, mas que pode manifestar-se como

sugestão misteriosa nas ressonâncias que elas despertam, uma vez combinadas

adequadamente; e que, indo perder-se nas áreas de silêncio que as cercam e se insinuam

entre elas, são uma propriedade do poema no seu todo.

Para fazer frente a toda essa forma (espaço) inexprimível e torná-la definitiva e

concentrada, Pessoa mais uma vez recorre a um tempo que também não pode ser

contabilizado, pois é um tempo de convivência, um tempo de paciência, que encontra

eco na arte poética de Horácio, para quem não se deve contrariar Minerva, a deusa da

sabedoria: “Se (...) escrever algo, sujeite-o aos ouvidos do crítico Mécio, aos de seu pai

e aos meus e retenha-o por oito anos, guardando os pergaminhos; o que você não tiver

publicado poderá ser destruído; a palavra lançada não sabe voltar atrás” (HORACIO,

1992, p.67).

Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais — se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.(p. 53)

Após essa breve análise, pode-se afirmar que esse compartilhamento de idéias

sobre a necessidade de uma dialética, seja entre a technée e o dom, seja entre o

sentimento e a razão, contidas nas poéticas de Longino e Pessoa podemos afirmar, que

ambos poetas são de fundamental importância, não só para o entendimento da poesia

como processo, como também para fazer um alerta aos poetas pós-modernos da

fundamental importância dessas dialéticas no sentido da frágil fronteira entre a poesia e

a “não poesia”, ou como diz Pessoa entre o poeta inferior e o poeta superior.

Enfim, as poéticas de Longino e Pessoa parecem trazer em seu cerne a

mensagem preconizada por Zaratustra” (NIETZSCHE, s/d, p.49): “Uma nova altivez

ensinou-me o meu eu, e eu a ensino aos homens: não mais enfiar a cabeça na areia das

coisas celestes, mas sim, trazê-la erguida e livre, uma cabeça terrena, que cria o sentido

da terra. (...) Assim falou Zaratustra”.

Entendemos a poesia pessoana como fruto de uma presença de gênio, de uma escrita persistentemente laboriosa, e não como o resultado de uma falta, como acredita Perrone-Moisés e provavelmente grande parte dos psicanalistas que se aventuram em explicar o porquê da poesia. Pessoa tem a falta, sim, de uma estética clássica que reverenciasse o

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pensamento perante o sentimento, logo, de uma emoção intelectualizada, e não de um preenchimento do desejo e das vontades inconscientes; interpretação que poderia se adequar ao vazio de Álvaro de Campos, mas não à poética de Fernando Pessoa. Segundo Bernardo Soares, “há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve” (Pessoa, 1999, §230). Considerando o trabalho teórico de Pessoa em torno da capacidade intelectual de um poeta em fabricar emoções a partir das que ele tem, Pessoa se encontra no segundo tipo de artista; se seguirmos a lógica da noção de falta de Perrone-Moisés, seria ele o do primeiro tipo. Nietzsche tem um aforismo que elucida perfeitamente essa idéia: “Um artista que não quer descarregar seu sentimento acumulado em obras e aliviar-se, mas sim transmitir o sentimento de acumulação, é bombástico, e seu estilo é aquele inflado” (Nietzsche, 2004, §332). (HENRIQUES, 1986)

Ver comentador: relacionar a mimesis aos sentimentos naturais, falar deles é simplesmente praticar a mimesis.

Ver comentador 1 Imaginário

Referencias

GAGLIARDI, Caio. O Livro do Desassossego: Uma prateleira de frascos vazios. Disponível em http://www.criticaecompanhia.com/caio.htm em 5 de setembro de 2009.HENRIQUES, Vitor. “O que são os eus dramáticos de Fernando Pessoa?”, in Morpheus - Revista Eletrônica em Ciências Humanas - Ano 05, número 09, 2006. PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: Brasiliense, 1986.