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DUAS COISAS SOBRE A FORMAÇÃO DO HOMEM MODERNO

Arthur Grupillo* [email protected]

A primeira coisa que seria preciso dizer sobre a formação do

homem moderno diz respeito à própria idéia de formação e pode ser

assim enunciada: seja da perspectiva do gênero, seja da do

indivíduo, a formação depende da perda do respeito pela linguagem.

Gostaríamos de elucidar essa proposição com uma digressão em

torno da ética antiga. Ao buscar compreender a célebre e polêmica

Ética a Nicômacos, alguns comentadores perspicazes foram levados,

pelas dificuldades da matéria, a um primeiro contexto da ética,

protagonizado pelos poemas homéricos, que tentaremos resumir.

Fundamentalmente, o comportamento humano desenhado por

Homero tem a marca da moral do guerreiro. Numa sociedade

promotora de eventos agonísticos, ao lado das tão festejadas

olimpíadas se impõem os gládios dos heróis. Sob o auspício das

infindáveis tensões bélicas, destaca-se o herói como indivíduo capaz

de dominar as circunstâncias, aquele que dá conteúdo à moral com

seus próprios atos de proeza e coragem. Aquilo que podemos

compreender por Virtude, ou Excelência, encontra-se personificado

pelo guerreiro; Aquiles é o verdadeiro virtuoso e é o herói quem

define os valores. Se quisermos utilizar a metáfora nietzscheana do

espelho, diremos que o impulso apolíneo da perfeição, do modelo, ao

qual se contrapõe um espírito mimético do grego, se faz aqui

presente como o ideal a que o homem estava destinado unicamente a

admirar. E isso será, em sua consciência, os significados da

submissão. A ética homérica representa uma Grécia aristocrática. O

modelo deve seu valor exclusivamente à fama, à bem-aventurança,

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não a um aprendizado, a um esforço. Não se adquire o espírito

heróico. Ou se é áristos, ou se renuncia à ética homérica. Impedida

de toda possibilidade – impedido Narciso de pelo menos mergulhar

para o afogamento, apaixonado pela imagem – a ética do guerreiro

sucumbe às necessidades de uma Atenas corriqueira. E se a

linguagem é condição de possibilidade da nossa experiência do

mundo, eleva-se ao estatuto do transcendental a atitude sofística de

desrespeito pelo significado das palavras. Mais precisamente, pelo

significado homérico do vocabulário moral.

O privilégio da opinião se deve ao direito de opinar; é a energia

transformadora do dêmos. A ética homérica evolui, portanto, através

de dois estágios essenciais: a desconstrução pelos sofistas, admirada

por Sócrates e transmitida a Platão, que por sua vez se apropria

desse espírito para elevar a Razão ao antigo estatuto do guerreiro,

abrindo caminho à reconstrução da ética aristocrática, continuada por

Aristóteles.

O tí estín, o “que é” que se fecha num conceito, põe nele uma insegurança. Dela parte um ulterior perguntar na busca de outra forma de assentimento que não consistia na inércia e na autoridade da tradição. Conseqüência deste incessante diálogo com a linguagem mesma, os velhos conceitos éticos começam também a perder seu poder. (ÍÑIGO, 1998, p.42)

De acordo com o espírito sofista, toda definição pode ser

questionada, toda resposta pode ser ironizada. Dessa possibilidade se

alimenta a ironia socrática; mas é claro que diante da destruição do

vocabulário mítico, Sócrates e Platão assumiram a tarefa de

reestabilizar, através dos conceitos e das definições sempre

perseguidas nos diálogos platônicos, a linguagem destruída,

superando a arbitrariedade e o relativismo sofistas. “É preciso outra

engrenagem social que não seja a da admiração e, sobretudo, o do

acatamento. A aprendizagem, a teoria da paideía, será, efetivamente,

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o motor que permita à sociedade seu imprescindível dinamismo.”

(Íñigo, 1998, p.43)

Um dos mais interessantes filósofos morais do séc. XX, R. M.

Hare chamou atenção para a importância da história da Grécia

contada por Tucídides na boa compreensão do pensamento de Platão.

Até sua derrota em 405 a.C., Atenas dividia com Esparta os lados

opostos de um combate constante. Hare nos lembra de que, na

República, Platão fala do bom desempenho de seus irmãos na guerra,

embora não haja registro suficiente para falarmos de um Platão

soldado. Platão era um aristocrata e poderia ter servido na cavalaria

ateniense; mas afora as especulações, já basta saber de sua posição

social. Entre outras mudanças que provocou na Atenas derrotada,

Esparta nomeou “Trinta Tiranos” para o novo governo oligárquico,

entre os quais dois parentes de Platão: Crítias, primo de segundo

grau, e Cármides, tio materno. Os democratas passam a demagogos,

e o desrespeito sofista pela linguagem moral sofre um duro golpe:

Esses fatores – o conflito político inescrupuloso e a expansão do relativismo moral – se reforçavam mutuamente. Tucídides, numa passagem filosoficamente penetrante, assinala que isso afetava até a linguagem em que se tinha de pensar. Em sua discussão dos efeitos da violência política, ele diz: “Ao justificar suas ações, eles [os políticos] revertiam os sentidos descritivos costumeiros das palavras”. Ele dá exemplos: o que teria sido chamado “uma negociata irresponsável” passou a ser chamado de “um empreendimento corajoso e amigável”. Esse processo, referido em termos similares na República (560d), é o mesmo que recebeu em tempos recentes o nome de “definição persuasiva”. Seu resultado imediato foi revirar a moralidade; porém, indiretamente, teve o efeito de estimular Sócrates e Platão a procurarem, em contrapartida, uma maneira de descobrir definições seguras das palavras morais ou das coisas que estas conotam. É por isso que os vemos perguntar: “O que então é a coragem?”; “O que é a retidão?”; e, de modo geral, “O que é o bem?” (Hare, 2000, p.14)

Nessa tensão – e na busca de uma solução dialética – entre

uma ética do guerreiro presenteada pelos deuses e um relativismo

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moral que fez da Atenas democrática uma cidade indefesa, não

surpreende que um dos principais problemas da ética platônica seja

aquela tão conhecida pergunta de Sócrates a Mênon: “Pode a

Excelência ser ensinada?” (Platão, 2001, p.19). O que está em tensão

aqui é, de um lado, a excelência moral do guerreiro, bendito pelas

divindades, e, de outro, a excelência moral buscada por Platão, que

não poderia depender de um arbítrio dos deuses. Para que a paideía

pudesse existir e o homem grego pudesse ser formado, pelo esforço,

pela aprendizagem, é preciso pedir licença aos deuses. A virilidade da

ética aristocrática do indivíduo não pode ficar sem reformulações

numa sociedade que descobriu a força transformadora do dêmos, as

coisas da coletividade. Um problema filosófico vem à tona: aquilo que

deve ser formado não pode ser do domínio da phýsis.

Para Gregory Vlastos, phýsis é o termo chave na transição do

mundo de Homero, Hesíodo, Arquíloco, Safo, Ésquilo, Sófocles,

Aristófanes, Heródoto e dos oradores para o mundo de Tucídides e,

acrescentaríamos, de Platão. (Vlastos, 1987, p.21) Para o primeiro

grupo, phýsis é um conjunto de características fixas e estáveis de

uma coisa que estabelece os limites dentro do qual ela pode agir.

Assim, em seu capítulo sobre o Egito, Heródoto apresenta a seus leitores gregos dois animais desconhecidos, através de descrições que começam: “A phýsis do crocodilo é deste tipo...”; “o hipopótamo tem uma phýsis desta forma...”. Ora, a partir do fato de que uma dada coisa tem uma phýsis, Heródoto não nos permite inferir que sempre a veremos na posse total dessa phýsis. Assim, é da phýsis de um crocodilo ter um rabo, mas não se segue daí que este crocodilo o terá: ele pode tê-lo perdido em uma briga ou de qualquer outra maneira. A única coisa certa para Heródoto é que, exceto pela intervenção do sobrenatural, sempre que as coisas interagem, as suas phýseis estabelecem os limites do que pode acontecer. (Vlastos, 1987, p.21-2)

Ora, é justamente esse determinismo garantido pela phýsis,

que só pode ser vencido “pela intervenção do sobrenatural”, que

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permite a valorização da ética do guerreiro e a interpretação de suas

façanhas como intervenções divinas.

Assim, quando ele ouve a história de que Hércules, quando veio ao Egito, foi agarrado por uma multidão e erguido a um altar para ser sacrificado, e então “mostrou sua força e matou a todos”, Heródoto pergunta: “Se Hércules era um homem, como eles admitem, como seria natural (κως φύσιν έχει) para ele [um só homem] matar muitos milhares?” Observe-se a força do condicional. Se Hércules não fosse homem, mas o semideus que se tornou depois de sua morte, essa pergunta não teria sido feita. Nisto Heródoto permanece dentro da visão tradicional, em que a phýsis estabelece os limites do possível para tudo, exceto para o sobrenatural. (Vlastos, 1987, p.22)

Em Platão, essa imanência da phýsis dá lugar ao kosmos. É

preciso garantir que não haverá nenhuma intervenção divina na

natureza, senão a regularidade do universo não pode ser

experimentada. Quando se fala, nas aulas de introdução à filosofia,

da passagem do mito ao logos, se esquece de que por trás do

kosmos platônico está o artista metafísico, o Demiurgo. A diferença,

aqui, é simplesmente a garantia de que o Demiurgo já realizou o que

deveria ser realizado, e não intervém arbitrariamente no mundo. Ora,

por um momento poderíamos pensar estar falando de Leibniz. Além

disso, ouvi do meu nobre colega, Prof. Fábio Tenório, que este estado

de coisas explica melhor o espanto grego ao qual se atribui o

nascimento da filosofia. Se um deus pode intervir arbitrariamente no

mundo, não há razão para espantos. Portanto, está dado o primeiro

passo na reconstrução da ética desconstruída pelos sofistas: mesmo

que haja deuses, e eles realmente existem, não ocorre que eles

intervenham no mundo, na phýsis de cada coisa nem na regularidade

do kosmos.

Mas, se exclusivamente a intervenção sobrenatural pode

explicar a perturbação da imanência da phýsis, para reconstruir a

ética e afiançar a formação do homem grego, não basta que a moral

seja sonegada das mãos dos deuses, como bem-aventurança, é

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preciso ainda postular uma instância que escape ao enclave regular e

austero da phýsis. Noutras palavras, para que a ética possa ser

ensinada e adquirida por esforço e aprendizagem, pela formação, é

necessário não apenas interpretá-la como assunto humano, mas

também como algo não encerrado nos limites do preestabelecido pela

natureza. O homem deve ser mais que phýsis. Deve ser natureza e

mais alguma coisa capaz de desenvolvimento e aprendizado. Esse

segundo componente será a alma.

Como narra o mito da expiação de Perséfone, uma alma ainda

maculada por um velho erro, regressava à Terra no nono ano,

condenada a passar novamente pelo desafio de viver de modo

correto. Nasce, então, o dualismo essencial do platonismo. Com a

alma aparece a solução daquela aporia da impossibilidade de

conhecer o Ser a partir do nada. O conhecimento é possível mediante

a retrovisão da verdade que a alma experimentou no Hades. A ciência

é rememoração dessa passagem. A psiché é imortal e, tendo nascido

muitas vezes, não há nada que ela não tenha aprendido, tanto das

coisas da Terra quanto das coisas do Hades. Como bem sentenciou

Pe. Vaz, no tema da psiché socrática, vemos lançado o pressuposto

antropológico que acompanhará doravante, num sem-número de

concepções do homem, a história da Ética. (Vaz, 1999, p.96).

Entra em cena, neste momento, o escravo de Mênon; e é em

diálogo com o escravo que Sócrates consegue convencer Mênon de

que o conhecimento é rememoração, somente pelo método da

inquirição contínua e direcionada, pela qual o escravo acaba

chegando à verdade “por si mesmo”. Nesse ponto, a virtude é

identificada com a alma, quer dizer, pertence às questões da alma,

cuja verdade está nela. O problema colocado por Sócrates é aceito de

bom grado por Mênon, a saber, o de poder a virtude ser ensinada

caso pertença àquelas coisas da alma que se possa chamar de

ciência. A natureza não aprende, a psiché aprende. O determinismo

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da phýsis dá lugar à liberdade da alma. Não há nada de novo debaixo

do sol, apenas na mente do homem.

Aparece, pois, na intimidade do homem, um espaço não preenchido pela phýsis, um amplo domínio de possibilidade que temos que quebrar, abonar e construir. O termo eleuthería (liberdade) encontra aqui seu adequado contexto. Provavelmente, se deve à sofística o descobrimento da maleabilidade da psiché. (Íñigo, 1998, p.43)

A primeira coisa sobre a formação moderna diz respeito,

portanto, à própria idéia de formação em geral. A segunda coisa que

seria preciso dizer sobre a formação do homem moderno, esta sim,

estritamente moderna, é que a arte tornou-se o melhor modo de

desrespeitar a linguagem. Para bem compreender esta segunda

formulação é preciso aceitar a inevitável mudança que provocou, na

nossa relação com a linguagem moral, a queda da visão de mundo

tradicional durante o Renascimento.

Tornaram-se bem conhecidas as análises de Weber sobre o

processo de “desencantamento do mundo”, pelo qual as imagens

religiosas dão lugar a domínios axiológicos distintos racionalmente

motivados. Consolidam-se, no mundo moderno, a ciência de cunho

objetivista, a moral universalista e a arte autônoma. Cada uma

dessas esferas enfrenta um processo de autonomização e

especialização crescentes. Filosoficamente, o principal problema

desse processo são as crises sistemáticas de legitimidade tanto na

justificação da objetividade do conhecimento científico, quanto na

justificação das ações morais e das normas jurídicas e, ainda, na

justificação da pretensão de autenticidade das obras de arte e do

discurso da crítica estética. A gênese dessa situação é interpretada,

pela filosofia do discurso, como dupla: de um lado, o distanciamento

do vocabulário e do jogo de linguagem de cada uma destas esferas

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em relação ao pano de fundo normativo da comunicação cotidiana, o

mundo da vida. Trata-se de uma cultura de experts ; de outro lado, a

necessidade de mecanismos de integração sócio-lingüística falhos,

como o dinheiro e o poder. Jürgen Habermas, por exemplo, acolhe o

acontecimento moderno como irreversível, mas isso não quer dizer

que o desenvolvimento das esferas autônomas, seja no nível

individual (ontogenético), seja no nível do gênero humano

(filogenético), obedeça a uma lógica austera, como no modelo da

dialética hegeliana. O conceito hegeliano de formação (Bildung) não

seduz uma modernidade fragilizada por processos de

desaprendizagem, uma modernidade que sofreu intensos golpes

tanto da dialética imanente do esclarecimento quanto da crítica

desconstrucionista. Pelo contrário, Habermas rejeita uma lógica

estritamente organizada do aprendizado, mas não pode deixar de

estabelecer uma perspectiva genética da formação do moderno

espírito científico, da moderna consciência moral e da arte moderna,

sob o preço de recair em problemas de auto-fundamentação ou

fundamentação última. É então que ele se apropria das pesquisas

psico-empíricas de Piaget sobre a formação da consciência teórica, e

de Kohlberg, sobre a formação da consciência moral.

As pesquisas de Piaget com crianças, ao identificar etapas e

esquemas na transição de formas elementares da inteligência até as

mais maduras, apóia uma certa hierarquia dos estágios cognitivos

que sustenta o interesse de Habermas pela reconstrução de uma

ciência objetiva. Da mesma forma, os estágios descritos por Kohlberg

na formação da consciência moral apontam para uma consolidação,

tanto em nível ontogenético quanto filogenético, da perspectiva

universalista da moral.

Aqui poderiam-se encontrar fundamentos para rejeitar o

relativismo neo-sofístico de um Rorty, por exemplo. Nossa

perspectiva é a de que o desrespeito pela linguagem esbarra nos

limites de um mundo da vida intersubjetivamente compartilhado e na

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imposição fática de um télos imanente ao uso lingüístico, o consenso.

Consideramos, porém, a abordagem genética suficiente para estes

problemas filosóficos, uma vez verificadas as etapas de

desenvolvimento no interior qual não podemos regredir. Isso significa

que o desrespeito pela linguagem deixou de ser possível? Não.

Tentarei demonstrar que este migrou para a esfera estética.

Farei conduzir o leitor, a partir daqui, a uma etapa na história

do aprendizado estético. Isso não significa uma reconstrução

genética, no modelo de Piaget e Kohlberg. O próprio Habermas viu-se

cético em relação a esta possibilidade. Parece-me realmente difícil

falar de estruturas formais do aprendizado estético, seria muito mais

adequado chamar as reflexões que farei a seguir de “história das

idéias”, pois se trata, não de um aprendizado estético, mas de uma

história do vocabulário que a filosofia dedicou a este domínio de

valor.

Resumidamente, no período da Restauração inglesa (1660-

1685), iniciou-se uma reação contundente às regras estéticas

acadêmicas herdadas da antiguidade. Isto aconteceu, principalmente,

porque os poetas da época exerciam também a árdua tarefa, não

menos impetuosa, da crítica literária. É o caso de John Dryden (1631-

1700), Sir Willian Temple (1628-1699), Willian Wotton (1666-1727),

Alexander Pope (1688-1744), por exemplo, todos expoentes da

famosa querelle des anciens et des modernes. Neste ambiente, pois,

tem origem a idéia de que a beleza e a qualidade literárias não se

baseavam nas rígidas regras acadêmicas. No entanto, contra a

paupérrima alternativa de reduzir a crítica literária às preferências

pessoais, continuavam a acreditar que uma avaliação objetiva era

possível. Neste contexto, Anthony Ashley Cooper, conhecido como

Conde de Shaftesbury (1671-1713), aparece com uma poderosa

solução ao problema (cf. Brett, 1951).

A descoberta do conceito de sensus communis pela estética foi,

na verdade, um reaproveitamento de sua influente função na filosofia

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moral através do conceito de “moral sense”. Algum conteúdo

semântico deste conceito já se encontrava na característica de

sociabilidade contida na idéia de urbanitas de Cícero, que significava

um espírito urbano cheio de espirituosidade, inventividade e bom

senso (cf. Schaeffer, 1990). Com efeito, em sua história, o sensus

communis mostrou-se tão bem apropriado à constituição de um

princípio estético que foi perdendo, pouco a pouco, a importância que

representava, inicialmente, nas questões morais. Esta passagem

decorre da instabilidade genérica do problema da prática, que inclui

não somente a moralidade, mas tudo o que escapa ao horizonte

teórico. Diante das circunstâncias concretas, que nem sempre

estavam pressionadas por decisões morais, necessitava-se mais de

sensibilidade do que de regras gerais. É assim que o conceito de

sensus communis imiscui-se à noção integral de gosto, que inclui a

idéia de um são entendimento capaz de julgar com bom senso o que

é bom ou mau para o homem.

Outro fenômeno que começa a perturbar o vocabulário moral é

o aparecimento da moda (modus), referindo-se a um produto do

gosto que rapidamente alcança uniformidade no comportamento da

maioria ávida por distinções sociais (Gadamer, 2004, p.77),

sobretudo aquele que é o mais recente produto da vida industrial: a

classe média. (Eagleton, 1993, p.33) O gosto entendido como

armazém de saber tradicional pleno de conteúdo, crítico em relação

ao vocabulário teórico, passa a ser compreendido em termos de uma

faculdade de distinção estética, crítica em relação ao gosto vulgar.

Para desempenhar esta versatilidade, o gosto mistura-se à idéia de

gênio, e a esfera estética se autonomiza como domínio de uma

racionalidade cujo conteúdo normativo pode ser verificado no

conceito kantiano de uma conformidade a regras sem regra. (Kant,

1995) Entende-se assim a beleza como autenticidade, como o que

está arranjado conforme a regras, mas cuja regra não pode ser

explicitada num conceito, numa definição segura, como queria

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Sócrates nos diálogos platônicos. Resume-se assim a passagem da

arte tradicional à arte moderna, que é ao mesmo tempo uma

passagem da perfeição à autenticidade. Da segurança à perturbação.

Da fixidez à flexibilidade.

Isso significa que só podemos desrespeitar a linguagem

estética? Não, podemos desrespeitar qualquer vocabulário, em

termos semânticos, mas traduzidos numa sintaxe estética. Isto é, a

obra de arte entendida como abertura semântica ao mundo, como

abertura lingüística de mundos possíveis, força as portas do sentido

usual e tradicional do vocabulário tanto cognitivo quanto moral, na

medida em que joga com ele numa sintaxe estética, nos arranjos de

um jogo não completamente racionalizado, mas que mantém um

namoro secreto com a natureza interna e os interesses mais íntimos

do homem. Se a insujeição sofística contra o vocabulário moral está

intimamente relacionada aos significados da submissão que a ética do

guerreiro representava, não surpreende que o aprendizado estético,

que representa hoje a abertura da linguagem e o espaço-tempo onde

ela admite ser desrespeitada, seja tão obstruído em nossa cultura. O

empobrecimento crescente da população engabelada com produtos

culturais é digno de nota. Maior impedimento, ainda, representa

nossa estrutura pedagógica e nossa relação com a capacidade

estética das crianças, que impressionou Piaget:

Dois fatos paradoxais surpreendem todos que estão acostumados a estudar o desenvolvimento das funções mentais e aptidões da criança. O primeiro é que muito freqüentemente a criança pequena parece mais talentosa do que a criança mais velha nos campos do desenho, da expressão simbólica como a representação plástica, participação em atividades coletivas espontaneamente organizadas e assim por diante, e, às vezes, no domínio da música. Se estudamos as funções intelectuais ou os sentimentos sociais da criança, o desenvolvimento parece ser mais ou menos uma progressão contínua, ao passo que, na esfera da expressão artística, pelo contrário, freqüentemente ficamos com a impressão de retrocesso (...). O segundo desses fatos, que em parte pode ser igualado ao primeiro, é que é muito mais difícil

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estabelecer estágios regulares de desenvolvimento no caso das tendências artísticas do que no caso das outras funções mentais (...) Sem uma educação artística adequada que consiga cultivar esses meios de expressão e encorajar essas primeiras manifestações de criação estética, as ações dos adultos e as restrições da escola e da vida familiar muitas vezes conseguem refrear ou impedir essas tendências, ao invés de enriquecê-las. (Piaget, apud Gardner, 1997, p.43-4)

O psicólogo estadunidense Howard Gardner, que aqui cita

Piaget, preocupado em reconstruir, no modelo do mestre francês, as

etapas do aprendizado estético, aproveitou para apontar um fator

imprescindível: a integração entre afeto e cognição. Julgo sintomática

a crítica dos freudianos a Piaget, de ter negligenciado o elemento

afetivo nas etapas do aprendizado cognitivo, para compreender as

dificuldades apontadas por este no estudo do desenvolvimento da

competência estética. De acordo com Gardner, “é mais provável

conseguirmos a integração do afeto e da cognição se buscarmos as

atividades em que o sentir e o saber são reconhecidos como estando

entrelaçados, como as artes” (Gardner, 1997, p.34). Lembro ter

ouvido uma vez de um antropólogo respeitado que as raízes

etimológicas de “saber” e de “sabor” remetem no latim a uma origem

muito aproximada.

Mas, então, falta apenas definir o que é uma “educação artística

adequada”. Precisamos voltar, acredito eu, a Kant. Com ele,

descobrimos na definição do prazer na beleza como livre jogo entre

imaginação e entendimento o elemento lúdico que precisamos para

pensar a ligação entre saber e sabor. Para Kant, o homem é a única

criatura que precisa ser educada e “por educação entende-se o

cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a disciplina e a

instrução com a formação”. (Kant, 2002, p.11) Duas considerações

antropológicas devem ser feitas. A primeira diz respeito ao fato de a

beleza compartilhar com a educação a peculiar característica de ser

um assunto exclusivamente humano. Do ponto de vista do animal,

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tudo é sensação sem forma, objeto do mero agradável dos sentidos.

Do ponto de vista de Deus, tudo é conhecido. Ora, a beleza necessita

de uma certa “ignorância”, de um certo vazio que reside na

impossibilidade de explicitar a regra que produziu a beleza que

ajuizamos conforme a regras em geral. A beleza e a educação

dependem da finitude humana. A segunda consideração é que elas

compartilham a propriedade de ser uma capacidade do homem

mobilizadora de todo seu ânimo (Gemüt). “Gemüt” em Kant significa

o que entendemos por psiché, isto é, “alma”, “espírito”, “mente”, do

latim animus. Em resumo, uma capacidade disposta em nós pela

natureza para ser desenvolvida, aperfeiçoada, exercida e cultivada.

Em suma, a alma é aquilo que em nós é capaz de cultura, é o que

deve ser formado. Todas as faculdades transcendentais –

sensibilidade, imaginação, entendimento, razão – estão reunidas no

ânimo. Curiosamente, a definição kantiana da beleza como jogo livre

entre as faculdades, contém justamente a idéia de uma atividade

exercida conforme a regras, mas cuja regra não pode ser explicitada.

Como já disse, trata-se do domínio da autenticidade. Na experiência

da beleza, tanto natural quanto artística, nenhuma faculdade do

ânimo sobrepõe as outras, pois ocorre um jogo livre entre elas,

donde a possibilidade abertura semântica de mundos possíveis. É o

oposto da cognição efetiva, que só acontece na presença de um

conceito do objeto, caso em que o entendimento exerce domínio

sobre a totalidade do ânimo, limitando a sensibilidade e a completa

capacidade de síntese da imaginação. No gosto, a validade universal

não é garantida pela objetividade do conceito, mas pelo caráter

comunitário, isto é, comunicativo de um sentimento conseguido

livremente, pois, assim como não há coerção do entendimento,

também não há coerção da sensibilidade e, portanto, a experiência

da beleza não tem fundamento apenas privado. A relação do gosto

com o aprendizado em Kant é impressionante. O ajuizamento da

beleza só é possível na medida em que o ânimo joga livremente, sem

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coerção do gosto meramente sensível, que é justamente aquele de

que são capazes os outros animais. A capacidade de experimentar

beleza distingue o homem do animal, assim como o distingue de

Deus. É uma compensação pela finitude humana, uma freie Gunst,

como apontou Heidegger, uma dádiva, uma graça. Vejamos o que diz

Kant em suas lições de pedagogia: “A parte positiva da educação

física é a cultura. Por ela o homem se distingue do animal. A cultura

consiste notadamente no exercício das forças do ânimo (Gemüt)”.

(Kant, 2002, p.53) Portanto, o cultivo das forças da alma não diz

respeito apenas ao aprendizado teórico ou à formação da consciência

moral. Se não queremos que nossos jovens sejam formados por

estruturas conceituais estanques, urge a investigação do que seja

uma “educação artística adequada”, pois, tendo em vista o estado de

coisas descrito acima, apenas pela capacidade de jogar livremente

com as representações científicas e morais, argumentativamente

seguras, podemos torná-las maleáveis e prontas para a novidade e

para uma abertura semântica. Isso dependerá do desenvolvimento de

uma competência estética que estamos até agora acostumados a

desestimular nos mais jovens.1

Bibliografia

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1 Julgo apropriado assumir aqui a minha dívida para com o texto profundo e instigante do Prof. Ricardo Barbosa acerca da possibilidade de reconstrução de um aprendizado estético. (BARBOSA, 2003). Aproveito para remeter o leitor às publicações do Prof. Barbosa sobre Schiller e sua contribuição a uma “educação artística adequada”. Gostaria de mencionar também o meu amigo Pablo Holmes, cujo manuscrito de um artigo sobre a aplicação da epistemologia genética ao discurso jurídico me foi muito valioso.

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