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1435 ARTICULAÇÕES DO CORPOESPAÇO: OBJETOS E CHEIROS Luisa Paraguai / Pontificia Universidade Católica de Campinas Comitê de Poéticas Artísticas ARTICULAÇÕES DO CORPOESPAÇO: OBJETOS E CHEIROS Luisa Paraguai / Pontificia Universidade Católica de Campinas RESUMO O texto busca compreender as relações interpessoais e cheiros zonas de proximidade aceitável ou desconfortável, enquanto limites sociais e fronteiras culturais. Considerando a dimensão do olfato para atribuir memórias e emoções às construções simbólicas, nomeiam- se primeiramente, alguns objetos femininos para abordar historicamente as construções sociais e rituais do cotidiano feminino. Por exemplo os frascos de perfume do período de 350-300 aC, as bolas musk do período de 1500-1854, produzidos com diferentes materiais e tecnologias. Em seguida, apresentam-se o designer Daniele Bortotto, e as artistas Sofie Boons e Jenny Tillotson, e os respectivos projetos Silicone Dispensers (2012), Scent Jewer- ly (2012) e SCENTence (2012), e e.Scent device Project (2006), que exploram configura- ções sensoriais para evocarem espacialidades do corpo, empregando o cheiro como um meio efêmero de trocas. PALAVRAS-CHAVE arte e tecnologia; espacialidades e cheiros; objetos sensoriais; modos de comportamento. ABSTRACT The text is concerned with interpersonal relationships and smells acceptable or uncomfort- able areas of proximity, understood as social bonds and cultural boundaries. Considering the dimension of the smell to assign memories and emotions to the symbolic constructions, first of all, some historic objects are going to be presented, since they can address social con- structions of women's daily lives and rituals. For example perfume bottles from the period of 350-300 BC, musk balls from the period of 1500-1854, produced with different materials and technologies. After, it will present the designer Daniele Bortotto, and artists Sofie Boons and Jenny Tillotson, and their projects Silicone Dispensers (2012), Scent Jewerly (2012) and SCENTence (2012), and e.Scent device Project (2006), respectively, since they explore sen- sory settings to evoke body spatialities, using smell as an ephemeral medium of exchange. KEYWORDS art and technology; spatialities and smells; sensorial objects; modes of behaving.

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ARTICULAÇÕES DO CORPOESPAÇO: OBJETOS E CHEIROS Luisa Paraguai / Pontificia Universidade Católica de Campinas RESUMO

O texto busca compreender as relações interpessoais e cheiros – zonas de proximidade aceitável ou desconfortável, enquanto limites sociais e fronteiras culturais. Considerando a dimensão do olfato para atribuir memórias e emoções às construções simbólicas, nomeiam-se primeiramente, alguns objetos femininos para abordar historicamente as construções sociais e rituais do cotidiano feminino. Por exemplo os frascos de perfume do período de 350-300 aC, as bolas musk do período de 1500-1854, produzidos com diferentes materiais e tecnologias. Em seguida, apresentam-se o designer Daniele Bortotto, e as artistas Sofie Boons e Jenny Tillotson, e os respectivos projetos Silicone Dispensers (2012), Scent Jewer-ly (2012) e SCENTence (2012), e e.Scent device Project (2006), que exploram configura-ções sensoriais para evocarem espacialidades do corpo, empregando o cheiro como um meio efêmero de trocas.

PALAVRAS-CHAVE

arte e tecnologia; espacialidades e cheiros; objetos sensoriais; modos de comportamento. ABSTRACT

The text is concerned with interpersonal relationships and smells – acceptable or uncomfort-able areas of proximity, understood as social bonds and cultural boundaries. Considering the dimension of the smell to assign memories and emotions to the symbolic constructions, first of all, some historic objects are going to be presented, since they can address social con-structions of women's daily lives and rituals. For example perfume bottles from the period of 350-300 BC, musk balls from the period of 1500-1854, produced with different materials and technologies. After, it will present the designer Daniele Bortotto, and artists Sofie Boons and Jenny Tillotson, and their projects Silicone Dispensers (2012), Scent Jewerly (2012) and SCENTence (2012), and e.Scent device Project (2006), respectively, since they explore sen-sory settings to evoke body spatialities, using smell as an ephemeral medium of exchange. KEYWORDS

art and technology; spatialities and smells; sensorial objects; modes of behaving.

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Introdução

Considerando a experiência humana como uma construção cultural dos sentidos,

investigam-se neste texto as práticas espaciais a partir do olfato, de modo a signifi-

car e para adquirir senso de direção. Parece que nosso nariz, não menos do que os

nossos olhos, pode ampliar e fornecer dados de leituras sobre o mundo, sugerindo

outros modos possíveis para ocupar o espaço. “The world is present, in perception,

not by being present (e.g. represented or depicted) in consciousness all at once, as it

were, but by being available all at once to the skilful perceiver” (NOE, 2012, p.58).

Assim, pretende-se compreender compreender as relações interpessoais e cheiros –

zonas de proximidade aceitável ou desconfortável, enquanto limites sociais e frontei-

ras culturais. Considerando que “os ambientes, os interiores em que vivemos, são

uma extensão do corpo, não apenas dos movimentos dos nossos corpos, dos mo-

dos como nos movemos nos ambientes, mas são também prolongamentos do nosso

cheiro” (SANTAELLA, 2009, p.43), pesquisaram-se objetos pessoais relacionados a

um determinado local, período histórico e rituais sociais.

Ao compreender o termo corpoespaço como inscrições culturais, articuladas dinami-

camente em contato com os objetos, foram escolhidos para apresentar frascos pes-

soais de períodos históricos distintos (por exemplo de 350-300 aC; bolas musk

1500-1854), de diferentes materiais e tecnologias (por exemplo metal, polímero, vi-

dro). “Scents are episodic; they have a point source, dissipate in space and are as-

sociative. (…) Scents are subliminally immersive; we readily become part of the invis-

ible scent of a landscape” (LAURIAULT e LINDGAARD, 2006, p.73).

A proposta é pesquisar os cheiros, inspirador de presenças, de reações emocionais

– como atitudes de atração ou repulsão, enquanto movimentos corpóreos explorató-

rios e fronteiriços, que evocam um sistema de comunicação entre estados poten-

ciais de mobilidade e estabilidade. Valendo-se dos atributos perceptivos de adapta-

ção e habituação, apresentam-se o designer e artistas Daniele Bortotto, Sofie Boons

e Jenny Tillotson, e os respectivos projetos Silicone Dispensers (2012), Scent Jewer-

ly (2012) e SCENTence (2012), e e.Scent device Project (2006), que exploram con-

figurações sensoriais tomando o cheiro como um meio efêmero de trocas para defi-

nir uma experiência estética.

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Objetos e cheiros

Começando com a designer Marije Vogelzang, que investiga experiências do cheiro

com o paladar no projeto headspace, é pensar sobre a possibilidade de perfumar os

objetos que usamos para comer. Ela criou talheres de madeira, que permitem aos

usuários degustar os sabores de coisas que eles não podem ou não querem real-

mente consumir, como a folha do tomate, e de sentir o cheiro delicioso ainda que

venenoso para ingerir. Pensar objetos que se apresentam sensorialmente pode po-

tencializar significados e modos de usos, reelaborando dinamicamente o corpo. Ci-

tando Williams (1990, p.158) “to the sight three things are required the object, the

organ and the medium”, o meio é como uma abstração da relação prática entre o

órgão da visão e coisas vistas. Assim, o objeto é entendido como a forma - a media-

ção, em que uma atividade humana constitui-se, é captada e coisificada. Também

para Mazzio (2005, p.87) “as textual artefact, stage property, object of exchange,

cultural spectacle, sumptuary habit – we might consider what happens to the tangible

object in the domain of sensory perception”, em particular hoje, no universo olfativo.

Assim, busca-se neste texto reunir objetos específicos do universo dos cheiros, e

principalmente projetos artísticos, nos quais a materialidade física conforma a práti-

ca do olfato, da mesma forma, que o sentido do olfato e estruturas fisiológicas codifi-

cam padrões para modelar os objetos e seus usos, e muito mais especificamente

comportamentos.

Considerando a experiência humana como uma construção cultural dos sentidos -

ver, tocar e ouvir, os cheiros evocam limites corporais e práticas espaciais, criando

zonas de proximidade aceitáveis ou desconfortáveis. Trabalhando com um perfumis-

ta, Daniele Bortotto desenvolveu o projeto silicon dispensers (2012), com três obje-

tos de silicone, cada um destinado a um local e propósito específicos. Infundidos

com uma fragrância específica para cada peça, durante o processo de moldagem, o

aroma está contido literalmente no objeto, ao contrário de difusor padrão. A cor, for-

ma e material são elementos plásticos (eau d’orange busca energia e concentração,

pillow n.5 pretende minimizar a falta de sono, e air de provence traz o frescor do

campo para o morador de grandes cidades), que o designer organiza através do

cheiro para aproximar as pessoas corporalmente do objeto, como quando somos

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atraídos pelas flores. O projeto silicon dispensers (figura1) explora a interação entre

objeto e indivíduo norteada pelo seu olfato, subvertendo o que Borboto (2012) cha-

ma de "tipologia de objetos”. Citando Rodaway (1994) “scent may add a novel di-

mension to primarily visual representations of space by evoking the memory or emo-

tions associated to it”, entendemos que o cheiro pode adicionar uma outra camada

para a construção da representação e narrativa do objeto, evocando uma dimensão

ritualística, e não somente a sua estrutura espacial.

Silicone Dispensers, 2012 Fonte: http://daniele-bortotto.com/4458291

A partir dessa idéia de incorporar o cheiro em artefatos físicos, alguns objetos pes-

soais serão apresentados para refletir sobre a “cultura da proximidade” na sociedade

(SANTAELLA, 2009), enquanto o que é ou não vivenciado conforme as “distancias

pessoais e sociais” (HALL, 1966). Lefebvre (1991, p.197) escreveu “where an inti-

macy occurs between ‘subject’ and ‘object’, it must surely be the world of smell and

the places where they reside”. Reafirmando a relação entre corpo e objeto como

uma construção social, para pensar que os cheiros promovem transições, situações

limiares e marginais, que revelam os processos pelos quais outros indivíduos, coisas

e o mundo são reconhecidos e transformados.

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Na Grécia e Roma, o uso pessoal do perfume era comum, definindo aromas diferen-

tes para partes específicas do corpo. O ambiente familiar foi também fortemente per-

fumado e até os animais, como cães e cavalos, por conta de motivos estéticos e prá-

ticos: o cedro mantinha longe as traças, enquanto o fumo (de queimar incenso) afas-

tava os roedores. A Idade Média, marcada por calamidades, incluindo fome, a peste

e a guerra, confrontou a ordem social com o odor fétido dos dejetos e corpos apo-

drecidos, já que entre 1347 e 1350, a peste negra matou cerca de um terço dos eu-

ropeus. Concomitantemente, durante este período, viu-se “uma dupla valorização

dos odores: a fetidez reflete a desorganização, o arômata abre caminho para o prin-

cipio vital” (CORBIN, 1987, p.27).

O final do século XVIII viu uma revolução sanitária: limpeza das ruas, projetos para

conter o lixo e o esgoto, e por fim, os balneários, movendo-se em direção aos ba-

nheiros privativos, começando com as classes mais altas e, gradativamente, para as

mais baixas. Compreendido que “o fluxo que se deve controlar, antes de mais nada,

é o do ar” (Ibid., p.15), a ventilação tornou-se o eixo estratégico de higiene, promo-

vendo a inserção de vários objetos e máquinas nos ambientes internos, como o fole.

Com este processo de crescente atenção à limpeza e saneamento, o uso das flores

e seu comercio impõem-se como definição e reconhecimento de classes sociais, de

maneira pessoal e até na arquitetura, com a construção dos jardins de inverno e es-

tufas. Reconhece-se esta condição crescente na cidade contemporânea, resultando

em ambientes e modos de circulação cada vez mais homogeneizados e descritos

por Sennett (1994, p.15) como “…the dullness, the monotony, and the tactile sterility

which afflicts the urban environment”.

Importa focar neste texto, os objetos aromáticos pessoais no contexto do espaço

privado, que desde o século XIII, como os pomanders, ball for musk e vinaigrettes

(figura 2), recipientes emissores decorativos com frutas, ervas e flores e vinagre

aromático para curar desmaios, buscavam modos de aliviar e manter distantes os

odores desagradáveis. De maneira similar, observam-se hoje, projetos de designers

como, Growing Jewerly (2009) de Hafsteinn Juliusson, blossom pendant (2009-

2010) de Izik Levy, e o scent vessel ring (2013) de Anna Brimley, enquanto contai-

ners de flores frescas e secas (figura 3).

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[a] Pomander 1600–1700; [b] Ball for musk 1500; [c] Vinaigrette 1890

Fonte: http://www.vam.ac.uk/page/j/jewellery/

[a] Growing Jewerly, 2009; [b] Blossom pendant (2009–2010); [c] Scent vessel ring (2013)

Fonte: http://www.hafstudio.is/growing-jewelry/, http://www.iziklevy.com/product/the-original-blossom-pendant, http://annabrimley.co.uk/work/scent-vessels/

Mais recentemente, Jenny Tillotson, Ben Hughes, Gareth Jenkins, e Andreas Manz,

projetam e.Scent device (2006) (figura4), valendo-se de tecnologias interativas criam

uma experiência pela estimulação olfativa do sistema nervoso autônomo. A proposta

dos artistas é explorar o mecanismo de defesa de besouros, desenvolvendo um sis-

tema de comunicação sem fio para enviar uma mensagem perfumada com fins tera-

pêuticos; a partir de biosensores mapeiam os usuários e produzem “datasensing”,

que articulam fragrâncias visando comportamentos específicos (TILLOTSON, 2006).

Comunicação química: poéticas do olfato

Entendendo o olfato e o paladar como sentidos viscerais que reagem à estímulos

químicos, interessa neste texto salientar as características matéricas no processo de

leitura e reconhecimento dos cheiros pelas pessoas, assumindo como afirma Roda-

way (1994)

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smells do not offer scenes or views, objects arranged and set a dis-tance from the observer. Rather, smells are present or not present, in varying degrees of intensity and subject to the movements of air. Smells infiltrate or linger, appear or fade, rather than take place or situate themselves as a composition. (RODAWAY, 1994, p.64)

Neste texto, tomam-se os cheiros como elemento da poética, e portanto definidores

dos modos operativos das trocas entre indivíduo e obra, sabendo que as moléculas

de odor devem ter baixo peso molecular para serem voláteis e poderem chegar à

mucosa do nariz, enquanto moléculas mais pesadas permanecem no substrato e

não se vaporizam. Isso implica que o cheiro, ao contrário do sabor, pode sinalizar a

certa distancia uma determinada condição do ambiente e ou indivíduos, mas para

que se mantenha íntegro o sinal no ar, é preciso uma reposição mais freqüente. Esta

condição instável, instiga o projeto Scent Jewerly (2012), da artista Sofie Boons, que

contempla a tradução da transitoriedade dos cheiros em uma série de anéis de vi-

dro, preenchidos por óleos essenciais (Figura 4). Para a artista, eles brincam com a

dualidade entre o desejo de preservar o ornamento e a tentação de sentir o perfume,

e reforçam a condição de existência da obra somente na e pela experiência (BO-

ONS, 2012a).

Scent Jewerly, 2012 Fonte: http://sofieboons.com/catalog/alchemy-of-scent/#all

A artista Susanne Sous trabalha também com a natureza efêmera do odor na mate-

rialidade das peças ao projetar anéis de sabão e de cera. O olfato enfatiza a relação

temporal, tanto quanto na duração dos odores no espaço, enquanto combinação

química, quanto na persistência dos mesmos na memória dos indivíduos. A transito-

riedade provoca uma tensão entre as exigências da eternidade exigiram normalmen-

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te e, no passado, a partir do valor de uma peça de joalharia (SOUS, 2015).

Outra relevante referência é o projeto SCENTence (2012), da artista Sofie Boons,

que com o seu formato investiga uma forma alternativa de aplicar o perfume sobre a

pele (Figura 5). A função do objeto é criar um selo invisível, cuja presença da escrita

acontece somente quando inalado. A proposta é questionar os métodos de escolha

de um perfume hoje em dia e estuda a relação entre as palavras e os cheiros. O

perfume concebido pela perfumista foi uma resposta direta para a citação, incorpo-

rada na concepção (BOONS, 2012b).

SCENTence, 2012 Fonte: http://sofieboons.com/portfolio/scentence/

Como escreve Gilbert (2008, p.85), quanto mais tempo exposto a um odor, maior a

adaptação, “it is a temporary change - it does not erase permanently the ability to

smell. Fragrances are not written in disappearing ink. The extent of adaptation de-

pends on the nature of the smelling being done”. Quando a fonte de odor é removi-

da, o nariz recupera gradualmente a sua sensibilidade. Assim,

adaptation is a two-way street: odour strength and odour specific. The stronger the smell, the more you adapt. Ten minutes on the pro-cessing floor of the garlic factory will cause more adaptation than ten minutes talking to someone with garlic breath. But, if you work in a garlic factory, your nose will selectively tune out garlic, but your sensi-tivity to roses, sour milk, beer nuts, and other un-garlic-like smells will be unaffected. (Ibid., p.86)

Como a adaptação auditiva possibilita uma conversa no meio de um show de rock, a

adaptação olfativa constantemente re-calibra nossos narizes às condições de

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background. Acontece uma sintonia seletiva, colocando cheiros reconhecidos em se-

gundo plano, para liberar a nossa atenção em busca de um novo. Esta condição mo-

difica-se com o estímulo, mas não é uma alteração física. Assim, a adaptação senso-

rial envolve a diminuição gradual da resposta comportamental diante da repetição de

um estímulo particular ao longo do tempo. A habituação é algo que acontece essenci-

almente no Sistema Nervoso: não é adaptação sensorial, pois variando-se o estímulo

a resposta inicial reaparece, o que não ocorreria se fosse adaptação sensorial (o ór-

gão sensorial continua capaz de captar os estímulos). “From sniff to spin, the nose

and brain constantly reshape our awareness of the smellscape” (Ibidem, p.90).

Importa compreender como o cérebro regula ativamente os aspectos físicos e cogni-

tivos de percepção do olfato para preparar uma resposta comportamental, e aqui

nomeiam-se algumas maneiras: controle momento-a-momento para administrar o

quanto de cheiro entra no nariz; redução sistemática da intensidade de um cheiro

preparando para o próximo evento olfativo; interpretação provisória automática de

um cheiro, com base nas informações específicas do contexto. Assim, o processo de

adaptação resulta em um sistema conduzido eficazmente pelas mudanças dos estí-

mulos – enquanto odores fixos no background são monitorados, novos odores ou

outros flutuantes quanto à intensidade são capazes de serem filtrados.

Considerações finais

Importa-nos nesta pesquisa contextualizar a construção de espacialidades depen-

dentes destas dinâmicas perceptivas, a partir do que Tuan (1977, p.12) compreende

como espaço: “it is experienced directly as having room in which to move. Moreover,

by shifting from one place to another, a person acquires a sense of direction”. Este

movimento de ir e vir entre contextos espaciais pode ser norteado por uma inscrição

odorífera, “a group of molecules present in certain ratios that might be quantitatively

different for each individual on the planet (…)” (AMATO, 2009). Interessa-nos abor-

dar este dado como informação, que instiga e confronta uma outra percepção do

corpo, envolvido em uma troca constante com os seus arredores, na medida em que

alguns pesquisadores do Centro Monell Chemical Senses, como George Preti, Gary

Beauchamp, reconhecem “odourprint” como uma informação semelhante a outros

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atributos humanos de caráter único e pessoal, e que pode ser usado para definir e

reconhecer um indivíduo. Todos nós temos uma própria composição química.

Inscrições odoríferas demarcam limites, e mesmo que voláteis, podem evocar outras

maneiras de deslocamento nos territorios, pois anunciam atributos de cada indivíduo

participante neste processo cultural. Importa-nos investigar as rotinas e percursos do

cotidiano, e as possíveis marcas de cheiro para criar poeticamente modalidades dis-

tintas de presença como uma "pluralidade de momentos relativamente privilegiadas",

citando Lefebvre (1960). A proposta é revelar elementos ocultos do espaço e do lu-

gar - qualidades ambientais, que podem ser usadas para conduzir, persuadir, indu-

zir, ou criar uma experiência cartográfica.

Citando Stewart (2007, p.90) “without action there is no world nor perception”,

compreende-se o domínio olfativo como possíveis relações entre as formas dos ob-

jetos e nossa construção espacial. Com a investigação de objetos no campo do de-

sign e da arte percebem-se as formas enquanto modulações oriundas de atributos

do cheiro. E como escreve Tuan (1977, p.10) “Like the intellectual acts of seeing and

hearing, the senses of smell and touch can be improved with practice so as to dis-

cern significant worlds”. Assim, a forma acontece como expressão e dependente do

movimento, implicando que a mesma estará disponível somente no acontecimento

da experiência (NOE, 2012).

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Luisa Paraguai / Pontificia Universidade Católica de Campinas Comitê de Poéticas Artísticas

Luisa Paraguai

Docente e pesquisadora na Faculdade de Artes Visuais, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, e artista nas interlocuções entre arte, design e tecnologia. Possui graduação em Engenharia Civil pela Universidade de São Paulo USP, mestrado e doutorado em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas UNICAMP, e pós-doutorado no Planetary Collegium, Nuova Accademia di Belle Arti NABA, Milão. Consultora Ad Hoc da CAPES e FAPESP. Colaboradora da Leonardo Digital Review. Investiga interfaces multisensoriais e espacialidades urbanas.