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105 Da Criminologia à Política Criminal: Direito Penal Econômico e o novo Direito Penal ARTUR DE BRITO GUEIROS SOUZA 1 Introdução Existem disposições que, desde épocas remotas, procuram reprimir infrações nas atividades econômicas, tais como as fraudes no pagamento de impostos, usura e açambarcamento de matérias-primas essenciais ou gêneros alimentícios. No entanto, pode-se afirmar que o Direito Penal Econômico, como conjunto de normas relativamente homogêneas e destacadas do Direito Penal nuclear, somente surgiu no século XX 1 . As grandes guerras mundiais 2 ; as alterações de um modelo de Estado liberal, característico do século XIX, para um Estado social e in- terventor no contexto socioeconômico, conforme, é claro, as circunstân- 1 Conforme João Marcello de Araújo Júnior (1986, p. 242): “É verdade que sempre tivemos em nossa doutrina uma preocupação com a penalização das condutas violadoras da ordem eco- nômica, que ontem consistiam na usura e, hoje, na especulação, mas, como lembra Touffait, foram razões de ordem prática e não a elaboração doutrinária que inspiraram o surgimento do Direito Penal Econômico”. No mesmo sentido: GIUDICELLI-DELAGE, 2006, p. 10; JAPIASSÚ, 1999, p. 6; TIEDEMANN, 2007, p. 4. 2 TIEDEMANN, 1986, p. 72. Em sentido inverso, Miguel Bajo e Silvina Bacigalupo (2010, p. 12) sustentam que o papel das guerras e das revoluções limitou-se, tão somente, a provocar uma elevação na massa do material jurídico-penal econômico. Todo mundo diz que o comércio é a única forma de fazer fortuna, mas ninguém sabe quantos encontram nele sua ruína. Honoré de Balzac

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    Da Criminologia Poltica Criminal: Direito Penal Econmico e o novo Direito Penal

    artur De brito gueiros souza

    1 Introduo

    Existem disposies que, desde pocas remotas, procuram reprimir infraes nas atividades econmicas, tais como as fraudes no pagamento de impostos, usura e aambarcamento de matrias-primas essenciais ou gneros alimentcios. No entanto, pode-se afirmar que o Direito Penal Econmico, como conjunto de normas relativamente homogneas e destacadas do Direito Penal nuclear, somente surgiu no sculo XX1.

    As grandes guerras mundiais2; as alteraes de um modelo de Estado liberal, caracterstico do sculo XIX, para um Estado social e in-terventor no contexto socioeconmico, conforme, claro, as circunstn-

    1 Conforme Joo Marcello de Arajo Jnior (1986, p. 242): verdade que sempre tivemos em nossa doutrina uma preocupao com a penalizao das condutas violadoras da ordem eco-nmica, que ontem consistiam na usura e, hoje, na especulao, mas, como lembra Touffait, foram razes de ordem prtica e no a elaborao doutrinria que inspiraram o surgimento do Direito Penal Econmico. No mesmo sentido: Giudicelli-Delage, 2006, p. 10; JapiaSS, 1999, p. 6; TiedemaNN, 2007, p. 4.

    2 TiedemaNN, 1986, p. 72. Em sentido inverso, Miguel Bajo e Silvina Bacigalupo (2010, p. 12) sustentam que o papel das guerras e das revolues limitou-se, to somente, a provocar uma elevao na massa do material jurdico-penal econmico.

    Todo mundo diz que o comrcio a nica forma de fazer fortuna, mas ningum sabe

    quantos encontram nele sua runa.Honor de Balzac

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    cias de cada pas3; a ampliao do referencial criminolgico, at ento focado em tipologias de pobreza ou patologias biolgicas, psquicas ou sociais4; uma voz mais ativa na defesa dos interesses de grupos explorados economicamente, tais como pequenos investidores ou consumidores5; a incapacidade de outros ramos do Direito para imposio de limites aos abusos no e do mercado; a constatao, por parte dos penalistas, da existncia de peculiaridades destoantes do paradigma clssico do homic-dio de autoria individual6; o incremento das relaes comerciais e finan-ceiras internacionais, que redundaram no fenmeno da globalizao7 e do Direito Comunitrio8; a constatao de que a criminalidade organizada possui, de fato, estreita conexo com a criminalidade econmica9, ao lado de tantos outros fenmenos e fatores, expressam e justificam o Direito Penal Econmico10.

    Consoante a conhecida lio de Klaus Tiedemann, pode-se situar o incio da disciplina no conjunto da normatizao havida no primeiro quarto do sculo XX, quando surgiu um direito econmico e industrial, ten-do ela se amplificado nas pocas de penria decorrentes das aludidas guerras mundiais, chegando a existir, em certo momento, na Alemanha, cerca de quarenta mil disposies penais em matria econmica (tiedemaNN, 1986, p. 71)11. Ressalta, ainda, aquele autor que, aps a Segunda Grande Guerra, buscou-se suprimir os excessos estatais das disposies penais da era precedente, simplificando-se e sistematizando-se seus princpios,

    3 Conforme Eduardo Novoa Monreal (1982, p. 56): O fenmeno da interveno do Estado na fiscalizao, regulao e gesto de atividades econmicas ocorreu, modernamente, na maior parte dos Estados, durante o ltimo meio sculo [...].

    4 Cf. Willen A. Bonger, Edwin H. Sutherland, Thorstein Veblen, Robert K. Merton, entre outros.5 Reconhecidamente, foi o presidente John F. Kennedy que ressaltou, em 1962, a relevncia de

    se assegurarem os direitos dos consumidores, considerando-os um novo desafio necessrio para o mercado. A partir de ento, iniciou-se a reflexo jurdica mais profunda sobre este tema (BeNjamiN; MarqueS; BeSSa, 2007, p. 24).

    6 TiedemaNN, 1993, p. 157.7 Observa Jos de Faria Costa (2001, p. 14) que a criminalidade econmica tem cada vez menos

    um espao, um territrio nacional, onde se desenvolva e perpetre. Efectivamente, se at os anos 80 essa mesma criminalidade j tinha plrimos territrios onde se desenvolvia, hoje, est, cada vez mais, em lugar nenhum.

    8 Detalhadamente sobre o Direito Penal comunitrio europeu: MiraNda, Anabela Rodrigues. O direito penal europeu emergente (nesta publicao). Sobre o Direito Penal comunitrio africano: Miguel, Ildio Jos. Harmonizao do Direito Penal Econmico em face da integrao regional na frica Austral (nesta publicao).

    9 Salienta Luigi Foffani (2007, p. 56) a existncia de uma osmose substancial entre os dois fen-menos, na medida em que a criminalidade organizada , por natureza, econmica, e de que a criminalidade econmica cada vez mais organizada.

    10 Figuram como expresses equivalentes: direito penal socioeconmico, direito penal antieconmico, direito penal dos negcios, direito penal da empresa, delitos corporativos, delitos ocupacionais etc.

    11 TiedemaNN, 1986, p. 71. No mesmo sentido: LouiS; WaSSmer, 2002, p. 165.

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    o que contribuiu para consolidar o Direito Penal Econmico em um ambiente prprio da economia social de mercado (tiedemaNN, 2007, p. 6).

    Ao lado dos conflitos blicos, os conflitos financeiros, em especial aqueles desencadeados com a depresso econmica gerada pelo crack da Bolsa de Valores de Nova York (1929), fizeram-se igualmente relevantes para o Direito Penal Econmico, pois seus efeitos perversos destruram a cultura de lenincia de criminlogos, dogmticos e prticos para com os abusos, a falta de escrpulos ou mesmo a autofagia dos detentores do poder e do capital especulativo12. Isso acarretou inovaes legislativas ou agravamento de penas para os responsveis pelos ilcitos de concorrn-cia desleal, cartelizao de produtos e servios, fraudes financeiras, viola-es sistemticas de interesses dos trabalhadores, dos consumidores, dos probos contribuintes, dos acionistas minoritrios etc.13

    Assistiu-se, assim, a uma mudana de preocupaes nas chamadas Cincias Criminais ou seja, Direito Penal, Poltica Criminal e Crimino-logia , agregando-se, como objeto de cada qual, no somente os delitos e os delinquentes clssicos da Ilustrao, mas tambm novos atores e no-vas figuras delituosas, bem como necessidades de reformas legislativas e abordagens empricas anteriormente ignoradas no cenrio acadmico. Na Criminologia, em particular, o ponto de viragem foram os trabalhos de Edwin H. Sutherland, abaixo pormenorizados e elaborados a partir da famosa conferncia proferida na Sociedade Americana de Sociolo-gia (1939) e da publicao do livro White-Collar Crime (1949) (virgoliNi, 1989, p. 353). Para a Dogmtica Penal, o marco decisivo foi o VI Congresso da Associao Internacional de Direito Penal, em Roma (1953), quando no somente a delinquncia econmica, mas tambm a disciplina Direito Pe-nal Econmico foram reconhecidas ainda que com certa ambiguidade com status normativo14. Por sua vez, para a Poltica Criminal, merece destaque a realizao do Congresso de Juristas Alemes (1972), cujas con-cluses, preparadas e inspiradas por Klaus Tiedemann, foram levadas

    12 Sobre as cclicas crises financeiras importa agregar que a mais recente, desencadeada a partir da insuficincia de liquidez no sistema bancrio internacional, mais especificamente em razo do colapso da bolha do mercado subprime, j teria acarretado imensos prejuzos a instituies financeiras, em valores estimados em US$ 1 trilho, para bancos norte-americanos, e US$ 1,6 trilho, para bancos europeus, entre 2007 e 2010. Disponvel em: . Acesso em: 1 mar. 2010.

    13 Jos de Faria Costa e Manuel da Costa Andrade (2000, p. 101) aludem, como uma das razes para o maior incremento da disciplina, a uma transformao social, consubstanciada em uma mudana de ethos, axiolgico e poltico, aos comportamentos desviantes em matria de orde-nao econmica, at ento valorados, no consciente coletivo, como meros Kavaliersdelikte.

    14 Cf. JapiaSS, Carlos Eduardo A.; Pereira, Daniel Queiroz. Direito penal econmico e tributrio: uma anlise histrica e comparada (nesta publicao). Detalhadamente sobre isso: JimNeZ de ASa, 1964, p. 61-63.

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    adiante pelos trabalhos de comisses de especialistas, materializando-se em leis destinadas a combater a delinquncia econmica, tanto na Alemanha como em outros pases (SchNemaNN, 2002, p. 186).

    Diante de todo esse quadro de transformaes, cabe indagar: que papel possui, na atualidade, o Direito Penal Econmico, nas trs ver-tentes assinaladas Criminologia, Dogmtica e Poltica Criminal? Ou, ainda: nesse mundo de gigantescas corporaes transnacionais; de queda ou esfacelamento de barreiras legais, polticas e financeiras; de vertiginoso avano tecnolgico e de telecomunicaes; de gravssimas degradaes ambientais; de foroso deslocamento de populaes in-terna e externamente; e, obviamente, do incremento ou surgimento de ris-cos provenientes das atividades empresariais, financeiras e econmicas, estar o Direito Penal Econmico forjado, como visto, ao longo do sculo XX, legitimado a reprimir aquele universo de violaes socioeconmicas transcendentes das esferas patrimoniais individuais?

    sobre isso que se tenciona, brevemente, discorrer.

    2 Abordagem criminolgica ao Direito Penal Econmico

    Tendo em conta os limites de espao, no se pode aqui aprofundar a grande contribuio que a Criminologia trouxe e ainda traz para o objeto do estudo. No obstante, necessrio efetuar algumas con-sideraes sobre Edwin H. Sutherland, tendo em vista a importncia transcendental de sua produo bibliogrfica. Contudo, para o correto entendimento da relevncia de Sutherland, faz-se necessrio retroceder a outro criminlogo que influenciou esse pensador norte-americano: Gabriel Tarde.

    Com efeito, Gabriel Tarde (1843-1904) foi um pioneiro no desen-volvimento de reflexes cientficas acerca da criminalidade em funo da varivel origem social15. Crtico de primeira hora do ento incensado Cesare Lombroso, Tarde buscou alternativas para a influente perspec-tiva antropolgica do comportamento criminoso. Segundo ele, por exemplo, as tatuagens uma das marcas do criminoso lombrosiano , explicar-se-iam no como evidncias atvicas ao delito, mas como fruto do convvio em determinados grupos. As incises figurativas na pele no eram um privilgio de malfaiteurs, sendo um hbito tambm cultiva-do entre militares e, especialmente, marinheiros que travavam contato cada vez maior com povos africanos e polinsios. Isso tambm valia para

    15 NeveS, Eduardo Viana Portela. A atualidade de Edwin H. Sutherland (nesta publicao).

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    inmeros outros traos imitativos em um grupo, como, por exemplo, os jarges (largot) de soldados, operrios, maons, advogados, comer-ciantes e ladres e assassinos (tarde, 1890, p. 43)16.

    Como ressaltado por Eduardo Viana Neves (2009, p. 5), Tarde afir-mou no haver qualquer comprovao cientfico-causal entre anomalia e delinquncia, residindo a explicao para a propagao de ilcitos no fenmeno humano da imitao. Dessa maneira, as condicionantes da delin-quncia no seriam atavismos, causas climticas, tez da pele, pobreza etc., mas, na verdade, fatores muito mais intensos como, v.g., o sentimento de satisfao ou de insatisfao, a busca da felicidade, de prazeres etc. Para ele, os influxos e os valores da sociedade seriam mais determinantes para o desenvolvimento do crime do que o calor ou o frio, a hereditariedade, o tamanho do crnio ou a circunstncia de residir em certas regies do globo terrestre.

    Ao escrever Les lois de limitation, Gabriel Tarde desenvolveu a ideia de que os dogmas, os sentimentos, os costumes e as aes so transmiti-dos pelo exemplo. Dito de outra maneira, todos os atos importantes da vida social so executados sob o imprio do exemplo (boNger, 1905, p. 206, grifo nosso)17.

    Ao desprezar fatores atvico-biolgicos, Gabriel Tarde abriu uma ciso na nascente Escola, permitindo que vicejassem correntes crimi-nolgicas fundadas em variveis sociais que operariam segundo ele como verdadeiras etiologias criminais. Por conta disso, pode-se afirmar que Gabriel Tarde, dentro daquilo que a cincia da sua poca permitia, antecipou os fundamentos da associao diferencial, desenvolvida, dcadas depois, por Sutherland, para quem, entretanto, o comportamento crimi-noso no proviria simplesmente da ideia de imitao, mas de algo mais complexo: o aprendizado.

    16 Detalhadamente sobre isso: NeveS, 2009. 17 Segundo Tarde (1890, p. 158), haveria trs grandes leis da imitao: 1a) fator proximidade: os

    indivduos imitam os outros na relao diretamente proporcional intensidade dos contatos e na razo inversa da distncia; quanto mais prximo, maior a imitao. 2a) fator hierarquia: a imitao feita de baixo para cima os indivduos das classes mais baixas imitam os das classes superiores; os habitantes de pases pobres imitam os dos pases ricos; o filho imita o pai; o aluno o professor; as pessoas do interior imitam as da cidade etc.; 3a) fator cronolgico: quando h uma contradio entre dois modelos de comportamento, o novo substitui o antigo os homicdios por arma de fogo substituram os homicdios faca, os crimes na conduo de veculos substituram os crimes dos carros de trao animal etc.

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    2.1 Edwin H. Sutherland e a teoria da associao diferencial

    Apesar dos estudos de Tarde e de outros opositores da Scuola Positiva italiana18, a Criminologia, no incio do sculo XX, ainda se baseava forte-mente em paradigmas biolgicos (patologias, em sua maioria, transmissveis por herana) ou sociopatolgicos (pobreza, desemprego, desagregao familiar, moradias em guetos etc.), que predisporiam o homem delin-quncia. A rigor, a Criminologia encontrava-se impregnada de precon-ceitos, imprecises, ambiguidades, generalizaes, sendo a investigao criminolgica para muitos acadmicos um desperdcio de tempo e de dinheiro, que poderiam ser mais bem empregados em outros setores efetivamente cientficos nas universidades e nas administraes pblicas19.

    Preocupado com esse contexto adverso, Edwin Hardin Sutherland (1883-1950) dedicou-se construo de um estatuto epistemolgico que pudesse defender a Criminologia de seus detratores. Para tanto, fez-se necessrio o desenvolvimento de uma teoria que servisse para explicar todas as modalidades de delitos e todas as modalidades de delinquentes. Se-gundo Adolfo Ceretti, Sutherland afirmava que, para compreender e controlar a criminalidade, era necessria uma proposio terica que pudesse lhe fornecer uma explicao necessria e suficiente, identifican-do as condies que estavam sempre presentes no fenmeno da crimi-nalidade e, ao mesmo tempo, ausentes quando a criminalidade tambm o estava (Ceretti, 2008, p. 54).

    18 Conforme Jos Cid Molin e Elena Larrauri Pijoan (2001, p. 57-58): A Escola Positiva se enquadrou no movimento cultural do positivismo filosfico e, por isso, tratou de aplicar os mtodos das cincias naturais para explicar a delinquncia. Porm, certamente, a originali-dade da Escola Positiva no consistiu tanto em aplicar mtodos experimentais para conhecer o fenmeno delitivo (pois nisso haviam sido precedidos por Quetelet e Guerry, os chamados estatsticos morais), mas por defender a revolucionria ideia de que a delinquncia est deter-minada biologicamente. Os autores da Escola Positiva no sustentavam que a criminalidade se devia unicamente a fatores biolgicos seriam at mais relevantes fatores de carter ambien-tal , mas, sim, postulavam que quando uma determinada pessoa carecesse de predisposio biolgica em nenhum caso ela delinquiria. por essa razo que uma ideia chave da Escola Positiva a defesa da anormalidade do delinquente.

    19 Adolfo Ceretti (2008, p. 42-43) alude ao denso estudo, conhecido como Michael-Adler Report, publicado pela School of Law da Columbia University (1939), em que os subscritores negavam categoricamente a possibilidade de a Criminologia ser reconhecida como uma cincia: Vale a pena deter-se nas passagens mais significativas com as quais o Report se despede do leitor: Deve-se ser consciente quando no se est em condies de construir uma cincia criminolgica por-que, at que no saibamos se estamos ou no altura de verificar as causas do comportamento criminal, nosso contato com os problemas prticos do crime ser confuso e incerto, como ocor-re hoje [...] Se soubssemos que impossvel determinar com exatido as causas da criminali-dade poderamos, ao menos, poupar o tempo, assim como o dinheiro, que hoje se investe em inteis tentativas de resolver esse problema. [...] Por isso recomendamos que a investigao criminolgica, tal como aquela que tem sido conduzida at hoje, seja interrompida.

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    Ainda que no admitido, Sutherland foi buscar nas leis da imitao de Tarde a inspirao para esse novo modelo cient-fico. Sobre essa assertiva, embora partilhada por muitos criminlo-gos (maNNheim, 1985, p. 903), cumpre registrar que h quem no reconhea uma conexo to intensa entre ambos, como, v.g., Eduardo Viana Neves, que leciona: H apenas alguma semelhana entre as ex-plicaes. Pode-se dizer que as teorias partem dos mesmos pressupostos, no entanto, por caminhos diferentes chegam a concluses semelhantes, mas so, por isso mesmo, diferentes (NeveS, 2009, p. 6)20.

    Polmicas parte, a teoria desenvolvida por Sutherland como cau-sa explicativo-geral da criminalidade foi por ele denominada de teoria da associao diferencial (theory of differential association). Segundo ele, o comportamento criminoso, como qualquer outro, consequncia de um processo que se desenvolve no meio de um grupo social, ou seja, algo que se produz por intermdio da interao com indivduos que, no caso, violam determinadas normas. Sendo assim, a causa geral para o delito, em todo o agrupamento social, seria a aprendizagem. Cuidar-se-ia, segundo Sutherland, no de um formal processo pedaggico, mas do resultado do contato com atitudes, valores, pautas de conduta e com definies favorveis desobedincia da lei. Consoante suas pala-vras, pode-se afirmar que uma pessoa se torna delinquente quando as definies favorveis transgresso da lei superam sobre as definies favorveis obedincia da lei este o princpio da associao diferen-cial (SutherlaNd; creSSey, 1992, p. 87).

    Como dito, o preponderante a frequncia, prioridade, durao e intensidade com que a pessoa est em contato com as definies desfa-vorveis ou no obedincia da lei. A criminalidade no o resultado de um dficit de socializao, mas, ao revs, de uma socializao dife-rencial. Essa formulao significou uma mudana radical no paradigma ento imperante de explicao do fenmeno da criminalidade, seja com patologias individuais, seja com patologias sociais.

    Concebida a teoria, necessitava ser posta ao respectivo banco de provas, ou seja, realidade emprica21. Ao fazer isso, chamou a ateno de Sutherland o contraste entre sua teoria geral (associao diferencial),

    20 Eduardo Viana Neves (nesta publicao) reafirmou: Estas constataes do pensamento impli-cam reconhecer uma similitude entre o seu pensamento [de Tarde] e o de Sutherland, contu-do h uma nodal diferena nas duas teorizaes: para Tarde, o criminoso mero receptor passivo de impulsos delitivos ou no delitivos, no havendo interao ou contribuio para o influenciado. Ao passo que para Sutherland [...] h um necessrio processo de comunicao pessoal.

    21 Conforme o famoso aforismo de Lewin (apud Vold; BerNard; SNipeS, 1998, p. 317): No h nada mais prtico do que uma boa teoria.

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    que se aplicaria integralidade da populao, e os dados estatsticos, que apresentavam uma criminalidade alta nas classes sociais mais baixas e uma incidncia baixa nos estratos superiores. Portanto, das duas uma: ou sua teoria etiolgico-geral estava errada, visto que apenas uma parte da sociedade, i.e., os mais pobres, delinquiria necessitando, pois, ser reformulada ou mesmo abandonada ou eram os dados estatsticos ofi-ciais que estavam errados ou eram tendenciosos ao sobrevalorizar certa categoria de delinquentes em detrimento de outras demandando, assim, ser investigada a razo para os erros ou falseamentos estatsticos.

    Disposto a resolver tal dilema, Sutherland (1983, p. 14) decidiu investigar as infraes cometidas por integrantes da alta classe socio-econmica por meio do levantamento de 980 decises de cortes judi-ciais e administrativas contra as 70 maiores companhias comerciais e industriais norte-americanas22. Seu estudo ocupou-se dos seguintes ilci-tos: concorrncia desleal, publicidade enganosa, violao de patentes, marcas e direitos autorais, violaes de leis trabalhistas, fraudes financei-ras, abusos de confiana, violaes de embargos de guerra, entre outros. Aps coletar, tabular e analisar os dados, constatou que, de fato, os em-presrios e homens de negcios perpetraram tais aes contra consumi-dores, concorrentes, acionistas, investidores, inventores, trabalhadores e o pblico em geral, assim como o prprio Estado (fraudes fiscais e cor-rupo de servidores), conquanto no figurassem nas estatsticas oficiais nem fossem classificados como delinquentes por acadmicos ou pelos rgos de represso penal. Segundo ele, esses fatos no so discretas violaes de regulamentos tcnicos. So aes criminais deliberadas e possuem relativa unidade e consistncia (SutherlaNd, 1983, p. 227).

    Dessa maneira, a sua teoria geral no estava errada. No entanto, cumpria que fosse desdobrada em uma outra vertente, especificamente destinada a compreender o porqu do tratamento diferenciado entre infratores de distintos estratos sociais, surgindo, assim, a teoria do crimi-noso do colarinho-branco. Conforme exposto por Marc Ancel, no h, na verdade, contradio entre a teoria do colarinho-branco e a teoria da associao diferencial: esta ltima, por sua generalidade, no se limita aos subgrupos socioeconmicos, pois, justamente, uma das preocupa-es de Sutherland foi a de aplicar a sua teoria principal (associao diferencial) ao White-collar crime (aNgel, 1966, p. 5, grifo do original).

    22 Detalhadamente sobre isso: CoSta, Gisela Frana da. Breve panorama do pensamento de Edwin H. Sutherland e a nova etiologia da criminalidade (nesta publicao).

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    Encerra-se esse tpico afirmando que a teoria da associao dife-rencial reafirmou o carter cientfico da Criminologia, salvando-a dos opositores que queriam a sua extino. Alm disso, forneceu uma etio-logia verdadeiramente mensurvel sobre a criminalidade e seu controle, alm de permitir que a reflexo criminolgica tambm abrangesse as infraes perpetradas pelos altos executivos e homens de negcios (by persons in the upper socioeconomic class).

    2.2 Da associao diferencial definio do white-collar criminal

    A breve anlise da teoria da associao diferencial deixou patente no existir uma relao emprica direta entre fatores biolgicos ou pato-logias sociais e a delinquncia. Na verdade, a criminalidade manifestava-se como ainda se manifesta em todas as classes sociais, incluindo aquelas economicamente mais favorecidas, muito embora as estatsticas e as agncias formais de controle dissessem o contrrio.

    Como visto, o passo seguinte foi o de buscar uma definio da de-linquncia perpetrada pelo alto empresariado. Para tanto, Sutherland elaborou uma teoria compreensiva deste fenmeno especfico, conver-tendo-a numa explicao do comportamento delinquente econmico (maNNheim, 1985, p. 722).

    Cunhou-se, para tanto, a expresso white-collar crime23.

    Essas violaes da lei por parte de pessoas da alta classe socio-econmica so, por convenincia, chamadas de crimes do cola-rinho-branco. Esse conceito no pretende ser definitivo, mas visa to-somente chamar a ateno para os crimes que no so nor-malmente includos dentro do mbito da criminologia. Crime do colarinho-branco pode ser definido aproximadamente como um crime cometido por uma pessoa de respeitabilidade e status so-

    23 A expresso White-Collar Crime pode ter sido, na verdade, uma das muitas ironias de Edwin H. Sutherland, no caso inspirada nas palavras usadas por Alfred Sloan Jr. o ento todo-poderoso presidente da General Motors, uma das 70 empresas por ele investigadas , no ttulo do livro autobiogrfico Adventures of a White-Collar Man (SutherlaNd, 1983, p. 7). Em sentido contrrio, Germn Aller (2005, p. 13) afirma que a expresso surgiu em 1932, quando Sutherland pu-blicou um artigo e referiu s white-collar classes, certamente influenciado pelo pensamento de Veblen, tendo, numa obra editada em 1936, utilizado a expresso white-collar worker referindo-se aos diferentes tipos de residentes em Chicago que dispunham de certo status por suas ativi-dades (professores universitrios, homens de negcios, clrigos, vendedores). Seja como for, notrio que a expresso tornou-se paradigmtica, tendo sido amplamente incorporada na linguagem acadmica e vulgar, tanto dentro como fora dos Estados Unidos, sendo vertida para inmeras outras lnguas: crime en col blanc, criminalit in colletti bianchi, weisse-kragen-kriminalitt, delito de cuello blanco e crime do colarinho-branco.

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    cial elevado no curso de sua ocupao profissional. Consequente-mente, excluem-se outros crimes da classe social alta, como a maio-ria dos casos de homicdio, intoxicao ou adultrio, na medida em que estes casos no so geralmente parte de suas atividades profissionais. Excluem-se tambm os abusos de confiana de altos integrantes do submundo, j que no se trata de pessoas de res-peitabilidade e status social elevado (SutherlaNd, 1983, p. 7).

    Didaticamente, Hermann Mannheim discriminou os elemen-tos daquela nova categoria: a) um crime; b) cometido por pessoas respeitveis; c) com elevado status social; d) no exerccio da sua pro-fisso. Para alm, constitui, normalmente, uma violao da confiana (maNNheim, 1985, p. 724). Diversos elementos foram, subsequente-mente, agregados a tal tipologia, a saber: danosidade social (com viti-mizao difusa), impunidade da conduta e ausncia de notoriedade do fato, entre outros colacionados pela literatura cientfico-criminolgica (NeveS, 2009, p. 22).

    Como observado, a teoria do crime do colarinho-branco foi um desdobramento da teoria da associao diferencial, j que os infratores pertencentes quela categoria so pessoas integrantes dos altos estratos sociais que, como quaisquer outras, violam as leis penais em razo de um processo de aprendizagem no seu respectivo segmento social (atividade econmica). A rigor, a conduta do empresrio ideal, apreendida na cul-tura do mundo dos negcios, em nada diferia do aprendizado existente no mbito dos ladres profissionais aproveitamento inescrupuloso de bens e pessoas para seus prprios interesses, insensibilidade para com os sentimentos e as expectativas de terceiros, indiferena com os efeitos futuros e deletrios das suas aes , exceo do fato de aquele ter uma noo mais organizada de suas atividades e uma viso mais a longo prazo de seus empreendimentos (SutherlaNd, 1983, p. 227).

    Sutherland (1983, p. 227-229) pde, portanto, concluir:

    1o) A delinquncia nas grandes corporaes, assim como nos negcios dos ladres profissionais, persistente: uma grande proporo de am-bos reincide. Entre as 70 maiores companhias industriais e comerciais dos Estados Unidos, 97,1% dos seus dirigentes reincidiu, uma vez que cada um deles teve duas ou mais decises adversas.

    2o) O comportamento ilegal dos empresrios muito mais extenso do que os que constam nos procedimentos, nos registros e nas denncias formalizadas.

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    3o) Os empresrios que violam as normas editadas para regular seus neg-cios no costumam perder seu status junto aos seus scios e colegas comerciais.

    4o) Os empresrios geralmente sentem e expressam desprezo para com a lei, com o governo e com os servidores pblicos.

    Ademais, segundo ele, outra diferena entre ladres (ou gngs-teres) e os criminosos do colarinho-branco que estes, diferentemente daqueles, no se consideravam como criminosos, mesmo violando as leis penais. Nem eles, tampouco os criminlogos, as agncias formais de controle ou a populao em geral viam, nas suas infraes, algo que pudesse ser enquadrado no esteretipo de delinquente.

    As concluses dos estudos de Sutherland comprovaram a pertinn-cia da etiologia geral que concebera. De fato, o resultado da anlise das atividades das grandes corporaes norte-americanas comprovou a veracidade de sua explicao cientfica. Conforme suas palavras e sua fina ironia:

    Se as precedentes definies de crime de colarinho-branco e os argumentos utilizados so justificados, o conceito de crime de co-larinho-branco tem uma grande relevncia do ponto de vista das teorias da conduta delinqente, uma vez que volta a ateno para uma ampla rea da conduta criminal que tem sido descuidada pe-los crimonlogos. Os criminlogos tm posto nfase na pobreza e em patologias sociais e pessoais que habitualmente associam com a criminalidade. Os criminlogos tm ressaltado estes fatores porque haviam centralizado seus estudos em criminosos das clas-ses socioeconmicas baixas e basearam, deste modo, suas teorias numa amostra parcial de todos os criminosos. Os respeitveis ho-mens de negcios que violam as leis raramente so pobres e rara-mente apresentam patologias sociais e pessoais. Os dirigentes da General Motors no violam a lei devido a um Complexo de dipo, tampouco os administradores da General Eletric o fazem porque so emocionalmente instveis. Os donos da Anaconda Copper Company no violam as leis porque vivem em ms condies, nem os donos da Armour & Company porque vm de lares desestrutu-rados, nem os donos da Standard Oil porque careceram de ativi-dades recreativas na infncia, ou quaisquer deles por uma causa relacionada com a pobreza, tal como ela entendida habitual-mente. Estas etiologias no servem para explicar aquelas violaes da lei, na medida em que tais violaes se consideram condutas prprias das companhias ou das pessoas que diretamente as ad-ministram (SutherlaNd, 1999, p. 337).

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    Com efeito, a partir de Sutherland, a Criminologia deixou defini-tivamente de associar, com exclusividade, delinquentes a fatores biolgi-cos, psicolgicos ou sociais de baixos estratos sociais, sendo, portanto, o acontecer criminal, algo inerente ao ser humano (rico ou pobre) que vive em sociedade24.

    Acrescente-se que, posteriormente, no ambiente de contestao que eclodiu na sociedade norte-americana a partir dos anos 1960 do s-culo passado, os revolucionrios estudos de Edwin H. Sutherland propi-ciaram suporte cientfico para o surgimento da teoria do labeling aproach e, a partir dos anos 1970, da prpria Criminologia Crtica.

    Com propriedade, Hermann Mannheim (1985, p. 722):

    O conceito de crime de colarinhos-brancos andar sempre e a justo ttulo associado ao nome e aos escritos de Edwin H. Sutherland, da Universidade de Indiana. No h por enquanto, e provavelmente nunca haver, um prmio Nobel para crimi-nlogos. Se o houvesse, Sutherland teria sido, pelo seu trabalho sobre o crime de colarinhos-brancos, um dos candidatos mais credenciados.

    Alis, o papel acadmico de Sutherland foi to marcante que mui-tos afirmam que o Direito Penal Econmico, sob sua vertente crimi-nolgica, um raro exemplo de disciplina comprovadamente datada: nasceu s 20h do dia 27 de dezembro de 1939, no 34o Encontro Anual da American Sociological Society, realizado na Filadlfia, entre o recesso acadmico de Natal e Ano Novo, quando Jacob Viner, ento presiden-te dos trabalhos, chamou tribuna Edwin H. Sutherland para que ele proferisse sua impactante conferncia: The White-Collar Criminal (Aller, 2005, p. 15)25.

    24 Conforme Antonio Garca-Pablos de Molina (2007, p. 94): Buscar em alguma misteriosa pato-logia do delinquente a razo ltima do comportamento criminal uma velha estratgia tran-quilizadora. [...] Dificilmente cabe afirmar hoje em dia que somente um ser patolgico pode atrever-se a infringir as leis, quando a experincia diria constata justamente o contrrio: que cada vez mais so os indivduos normais que delinquem. A criminalidade econmico-financei-ra, a de funcionrios pblicos e outros profissionais, a juvenil, a do trfego virio, avalizam esta evidncia.

    25 No sentido do texto, Miguel Bajo e Silvina Bacigalupo (2010, p. 21) afirmam que o discurso de Sutherland, diante do pblico presente quele encontro anual da Sociedade Americana de Sociologia, significou, para a Criminologia, uma comoo similar que foi causada com a publicao de LUomo delinquente, de Lombroso, em 1876.

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    2.3 A teoria do colarinho-branco nos dias de hoje

    Indiscutivelmente, os aportes criminolgicos, as investigaes e as teorias desenvolvidas por Edwin H. Sutherland influenciaram a ideia geral que se formou sobre a criminalidade econmica. No entanto, a prpria evoluo das sociedades fez com que a tipologia do criminoso do colarinho-branco sofresse transformaes.

    Na atualidade, o que se observa que a delinquncia econmica, conquanto mais intensa nos estratos superiores, espraia-se por todas as camadas sociais. Infraes penais nas relaes de consumo, modalidades de concorrncia desleal i.e., produtos piratas ou mesmo ilcitos tribu-trios como, v.g., o descaminho so protagonizados no somente por pessoas de alta respeitabilidade ou de status social elevado. No por outra razo, a reflexo cientfica passou a se preocupar mais com a danosi-dade social da infrao em si isto , vitimizao primria difusa do que, aparentemente, com a procedncia social do infrator26.

    Sendo assim, respeitados a contribuio revolucionria e o legado histrico, cumpre perguntar: qual a importncia de se rediscutir um criminlogo cujos estudos tm mais de meio sculo de existncia? Como ser visto, a resposta reside na constatao de que, baldados os muitos anos transcorridos desde a publicao dos trabalhos sobre o crimino-so do colarinho-branco, subjacente a toda uma multiplicidade de dis-cusses dogmtico-penais e poltico-criminais particularmente acerca da legitimidade do Direito Penal Econmico e do novo Direito Penal faz-se latente o rano ideolgico h tempos detectado por Sutherland. Dito de forma exemplificativa, ainda hoje, o original criminoso do colarinho-branco no se considera criminoso. Igualmente, doutrinadores, cientistas e mesmo prticos da justia criminal tm dificuldades em identificar suas aes como efetivamente merecedoras de reprovao penal. Ao contrrio, vicejam teses deslegitimadoras ou criativas construes normativas tendentes, mais ou menos explicitamente, a mant-los fora do alcance punitivo estatal. O resultado, como verificado adiante, seria uma insis-tente manuteno, no mbito das agncias formais de controle pol-cia, justia e penitenciria , de uma opo preferencial pelos baixos estra-tos sociais, em um cenrio no muito distinto daquele detectado pelo grande criminlogo da Universidade de Indiana.

    26 Sobre o perfil do delinquente econmico, informa Hans-Jrg Albrecht que, na atualidade, se cuida, preferencialmente, de um homem casado na faixa de 40 anos de idade (Albrecht, 2000, p. 277, grifo nosso).

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    Enquanto essa realidade emprica de um delabeling no se alterar, enquanto uma lacuna de impunidade continuar como uma tnica social, enquanto dogmticas sem consequncias ou moral insanity, nas palavras de Bernd Schnemann ou, mesmo, segundo Julio Maier, uma descrimina-lizao de fato, no deixarem de preponderar no contexto poltico-crimi-nal referente ao Direito Penal Econmico, o pensamento de Edwin H. Sutherland permanecer atual27.

    3 Abordagem dogmtica ao Direito Penal Econmico

    Passando da teoria criminolgica para a teoria da conduta, pode-se afirmar que o Direito Penal Econmico representa muito mais do que uma mera especializao do Direito Penal clssico ou comum. Na ver-dade, em torno dele aglutinam-se importantes problemas dogmticos, cuja soluo se faz relevante para todo sistema normativo penal28.

    Conquanto possua inequvoco relevo, parece que no se deve ir ao extremo de postular para o Direito Penal Econmico uma comple-ta desvinculao com o Direito Penal nuclear, na medida em que, para a maioria dos doutrinadores, ele se encontra atrelado e bom que assim continue aos mesmos princpios dogmticos fundamentais, a comear pelo princpio da reserva legal, as regras de imputao obje-tiva e subjetiva e a sistemtica de penas29.

    27 Sobre delabeling: MiraNda, 1999, p. 484. Sobre moral insanity, identificada por Bernd Schne-mann, vide item 4.3, adiante. Sobre descriminalizao ftica, Julio Maier leciona que o sistema penal criminaliza eficientemente os setores da populao socialmente menos favorecidos, em razo de delitos patrimoniais de menor gravidade, ao passo que fomenta a impunidade em outras franjas sociais da mesma populao, relativamente a delitos de maior contedo gravoso, tendo em conta, entre outros fatores, o fato de seus autores agirem geralmente escudados atrs de uma organizao social, inclusive transnacional, bem como por no atingirem clara-mente uma vtima individual, como ocorre com as fraudes fiscais ou de subvenes estatais, abusos do poder econmico e infraes financeiras: Pode-se concluir, sem medo de errar, que a chamada criminalidade econmica no precisa, em termos gerais e estatsticos, de um processo de descriminalizao concreto e muito menos de um de iure; a forma em que opera o sistema de administrao da justia penal tradicional lhe garante, de facto, um grau de descriminalizao suficientemente grande para os fatos delituosos nela compreendidos, bem como para os partcipes desses delitos (Maier, 1989, p. 516, grifo nosso).

    28 Conforme Klaus Tiedemann (2007, p. 23): O Direito Penal Econmico apresenta particula-ridades tradicionais que so ao mesmo tempo relevantes para a dogmtica da parte geral. [...] Dessa forma, o Direito Penal Econmico no poucas vezes se converte em precursor e motor de novos desenvolvimentos penais e na legislao penal. Basta recordar, por exemplo, que a famosa deciso de 1915 do Bundesrat sobre o erro, que permitiu, pela primeira vez, considerar penalmente relevante o erro de proibio, deve sua existncia solicitao efetuada pela C-mara de Comrcio de Berlim [...].

    29 Conforme Anabela Miranda Rodrigues (1999, p. 489): Parece que o caminho foi de aproxi-mao ao direito penal geral, a justificar que se fale aqui apenas de autonomia relativa. Pois que, sendo as mesmas as penas principais e os mesmos os fins que elas servem, as especificidades a existir correspondero s especificidades da prpria ordem legal de valores que se querem

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    No obstante, h, de fato, particularidades cientficas. Por essa razo, faz-se necessrio apresentar, para fins de registro, as peculiari-dades que, nas palavras de Carlos Martnez-Bujn Prez (2007, p. 72), explicam a insistncia doutrinria em individualizar esse setor do Di-reito Penal e, paralelamente, a tendncia de lhe configurar como um objeto de estudo que pode ser analisado de forma separada do Direito Penal clssico.

    Em termos gerais, a doutrina especializada aponta: bens jurdicos supraindividuais ou coletivos e correspondente utilizao de delitos de perigo abstrato; tcnicas especiais de tipificao (leis penais em branco e elementos normativos do tipo) e erro de proibio; critrios de auto-ria e participao nos crimes empresariais; responsabilidade penal da pessoa jurdica; e, por fim, escolha da sano adequada ao delinquente econmico30.

    3.1 Conceito normativo de Direito Penal Econmico

    O conceito de Direito Penal Econmico , em si, controvertido. Embora alguns paream no se preocupar com tal questo, outros se esmeram em traar o seu exato contorno cientfico, a fim de evitar definies imprecisas, equvocas e, portanto, inteis (bajo FerNNdeZ; bagigalupo, 2010, p. 11).

    Nesse diapaso, na doutrina francesa, h dificuldades sobre o exato alcance do Droit pnal des affaires literalmente, Direito Penal dos negcios. Segundo Michel Vern, de maneira geral, os doutrinadores e profes-sores esto de acordo ao nele incluir as grandes infraes econmicas do Direito comum, bem como o Direito Penal empresarial. De resto, o termo negcios (affaires) bastante vago, a ponto de englobar qualquer infrao que se queira porventura incluir31.

    proteger [grifo do original]. Criticando a sistemtica punitiva brasileira para os delinquentes econmicos: PalhareS, Cinthia R. Menescal. Aspectos poltico-criminais das sanes penais econmi-cas no Direito Brasileiro (nesta publicao).

    30 Detalhadamente sobre isso: TiedemaNN, 2010, passim.31 Segundo o autor: Assim, por exemplo, no h negcios sem publicidade, pois as empresas

    de publicidade constituem um dos motores dos negcios; no h negcios sem se recorrer informtica, pois as empresas de informtica tm um lugar importante na vida dos negcios; no h negcios sem crdito na medida em que as empresas de crdito so um instrumento necessrio queles que se aventuram no mundo dos negcios. Isso justificaria incluir o Direito Penal da publicidade, o Direito Penal da informtica e o Direito Penal do crdito dentro do objeto do Direito Penal dos negcios [...]. E, se formos tentados pelo gosto pelo paradoxo, pode-se sustentar que, em razo das somas de dinheiro recicladas ou lavadas, as infraes que sancionam o proxenetismo empresarial ou o trfico de drogas tm, igualmente, um perfume de Direito Penal dos negcios (VerN, 2007, p. 15-16).

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    Noutro quadrante dogmtico ao qual nos filiamos o Direito Penal Econmico segue a disjuntiva ampla e estrita (bajo FerNNdeZ, 2008, p. 168). Dessa maneira, Direito Penal Econmico em sentido estrito compreenderia a parte do Direito Penal que refora com ameaas pe-nais o Direito Administrativo Econmico. dizer, o direito da direo estatal e do controle da economia (tiedemaNN, 2007, p. 2). Cuida-se nas palavras de Miguel Bajo e Silvina Bacigalupo (2010, p. 13) do grau mais intenso do intervencionismo estatal na economia, qual seja, medi-ante o exerccio do ius puniendi. Consequentemente, delito econmico em sentido estrito a infrao jurdico-penal que lesiona ou pe em perigo a ordem econmica entendida como regulao jurdica do interven-cionismo estatal na economia de um pas (bajo FerNNdeZ; bacigalupo, 2010, p. 13).

    Por sua vez, o Direito Penal Econmico em sentido amplo que, segun-do Tiedemann, foi embalado pelos aportes criminolgicos ressaltados acima , compreende a regulao jurdico-penal de toda a cadeia de produo, fabricao, circulao e consumo de bens e servios, ou, vale dizer, todo o acontecer econmico (tiedemaNN, 1986, p. 74). Para Carlos Martnez-Bujn Prez (2007, p. 95), cuida-se de um conceito

    caracterizado por incluir, de pronto, as infraes violadoras de bens jurdicos supraindividuais de contedo econmico que, em-bora no afetem diretamente a regulao jurdica do interven-cionismo estatal na economia, transcendem dimenso pura-mente patrimonial individual.

    Sendo assim, delito econmico em sentido amplo aquela infrao que, afetando um bem jurdico patrimonial individual, lesiona ou pe em perigo, igualmente, a regulao jurdica da produo, distribuio e consumo de bens e servios (bajo FerNNdeZ; bacigalupo, 2010, p. 14).

    Registre-se, contudo, que h doutrinadores que veem com ce-ticismo esse vis amplo do Direito Penal Econmico. Eduardo Novoa Moreal, v.g., ao observar a impreciso do conceito extensivo, afirma restar ofuscada a sua identidade e limites, convertendo-se numa espcie de traje de arlequim, no qual se costuram caprichosamente inmeros panos cortados de outros ramos tradicionais do Direito (Novoa moN-real, 1982, p. 46)32. Henrique Bacigalupo, a seu turno, considera existir dificuldades, ao menos nos aspectos limtrofes entre as citadas catego-rias, preferindo seguir o marco axiolgico da violao da confiana. Esse

    32 Demonstrando igual preocupao com o conceito amplo: Arajo JNior, 1986, p. 240.

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    autor considera que, de fato, a disciplina regula o delito econmico enten-dido como o comportamento que lesiona a confiana na ordem vigente em termos gerais ou em algumas de suas instituies em particular, e, assim, pe em perigo a prpria existncia e as formas de atividade dessa ordem econmica. Portanto, o Direito Penal Econmico est dedicado ao es-tudo destes delitos e das conseqncias jurdicas que as leis prevem para os seus autores (bacigalupo, 2005, p. 35).

    Crticas parte, o fato que no se pode prescindir do conceito amplo, na medida em que exatamente no seu raio de ao que se de-brua a modernizao do Direito Penal Econmico, cuja legitimidade analisada no presente texto.

    3.2 Princpio da ultima ratio e o Direito Penal Econmico

    Segundo Luis Arroyo Zapateiro, a primeira condio de legitimi-dade de uma infrao penal que ela se dirija tutela de um bem ju-rdico. Segundo o autor, o mal causado por intermdio da imposio de uma pena somente se conforma com o princpio da proporcionalidade se, como ele, se protege um interesse essencial para o cidado ou vida em comunidade (arroyo Zapateiro, 1998, p. 2). Isso se estende, claro, ao Direito Penal Econmico, razo pela qual, no seu entender, suas in-criminaes devem assegurar:

    A capacidade de interveno financeira do Estado frente diminuio fraudulenta de seus ingressos fiscais e de seguridade social, bem como a obteno e desfrute, sem fraudes, de suas subvenes e prestaes.

    As regras, estabelecidas por disposies legais, de comportamento dos agentes econmicos nos mercados.

    Os bens e direitos especficos da participao dos indivduos como agentes da vida econmica (arroyo Zapateiro, 1998, p. 3).

    Esse espectro de interesses sociais desemboca na construo nor-mativa de uma teoria dos bens jurdicos coletivos, objeto, como se ver adi-ante, de grande discusso poltico-criminal, ao lado do recurso tc-nica de delitos de perigo abstrato, nos quais no interessa a produo e com isso tampouco a prova de um prejuzo ou de um perigo concreto (tiedemaNN, 2007, p. 33).

    De todo modo, analisando a vinculao do Direito Penal Econmi-co para com os interesses acima indicados, Arroyo Zapatero observa que o princpio da proporcionalidade obriga o legislador a fazer a opo, dentre as diversas medidas ao seu dispor para alcanar um determinado

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    fim, por aquela que venha a ser menos gravosa para o cidado. Cuida-se, pois, do atendimento ao critrio de ultima ratio ou subsidiariedade, obviamente incidente nas incriminaes socioeconmicas (arroyo Zapateiro, 1998, p. 5).

    No entanto o que s vezes no parece to bvio , como bem res-saltado por Luis Arroyo Zapatero, quando se prope que determinada tipificao penal seja substituda por meios preventivos menos gravosos, situados nos mbitos do Direito Administrativo ou Civil, deve-se previa-mente enfrentar a seguinte pergunta: para quem h de ser menos gra-voso? Para o concreto cidado que ir ser sancionado ou para a totalidade dos membros da comunidade?

    O Estado, com o fim de evitar delitos, poderia arbitrar medidas quase ilimitadas que, do ponto de vista daquele que vai ser cas-tigado, poderiam ser consideradas como menos gravosas. Assim, por exemplo, para evitar a fraude fiscal, poderia incrementar a presso fiscal formal sobre todos os cidados, criando mltiplas obrigaes contbeis e abolindo, em absoluto, o sigilo bancrio; ou para que no ocorressem condutas de administrao desleal de sociedades, poderia estabelecer mecanismos de controle ex-terno, encarregando a administrao da fiscalizao da legalidade das diversas decises adotadas pelos rgos de direo das empre-sas. Da perspectiva do sujeito que vai ser sancionado, tudo isso pode ser considerado como menos gravoso do que a pena a lhe ser imposta (arroyo Zapateiro, 1998, p. 5).

    Para aquele doutrinador, a avaliao sobre meios mais ou menos gra-vosos do que o Direito Penal deve ser feita, necessariamente a partir de uma perspectiva coletiva. Por esse vis, Arroyo Zapatero afirma que o incremento, at limites insuportveis, de medidas civis ou administrati-vas de fiscalizao, pressupe uma restrio mais grave liberdade dos cidados do que a hipottica ameaa de pena, alm, evidentemente, do aumento do custo financeiro que, seguramente, seria exigido para o aparelhamento de uma burocracia voltada a tal atividade, como nos exemplos acima ilustrados.

    Desse modo, para comprovar se uma incriminao est em con-sonncia com o princpio da ultima ratio, o preponderante definir se a s ameaa de pena consegue evitar condutas lesivas para um bem jurdico, com um custo menor para a liberdade dos cidados do que a criao de meios preventivos alternativos ao Direito Penal. Se esse ponto de vista estiver correto, induvidoso que as medidas preventivas no penais aquilo que Hassemer de-nomina de Direito de Interveno , tm tambm seus limites

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    derivados do princpio da proporcionalidade penal (arroyo Za-pateiro, 1998, p. 5)33.

    4 Abordagem poltico-criminal ao Direito Penal Econmico

    A expresso Poltica Criminal (Kriminalpolitik) foi concebida, no final do sculo XVIII, pelos juristas alemes Kleinschrod e Feuerbach, com o sentido filosfico da busca de uma sabedoria para o Estado legi-ferante (polaiNo Navarrete, 2004, p. 57). No entanto, por intermdio dos estudos de Franz von Liszt, o termo deixou de servir a uma abstrata arte de legislar para conformar-se ao sentido racional de uma disciplina cientfica posto que no autnoma estribada em dois eixos: a crtica e a reforma do Direito Penal. Conforme sentenciado por von Liszt (1899, p. 30): A esta cincia incumbe dar-nos o critrio para apreciarmos o valor do direito que vigora e revelar-nos o direito que deve vigorar.

    No mesmo sentido, Alfonso Serrano Gmez (1980, p. 616) assinala que, no obstante existir grande divergncia sobre sua natureza cient-fica, h consenso doutrinrio no sentido de cumprir Poltica Criminal a tradicional misso de crtica e reforma das leis penais34. Semelhante-mente, Jess-Mara Silva Snchez afirma que Poltica Criminal desin-cumbe a tarefa de orientar a evoluo da legislao penal perspectiva de lege ferenda ou sua prpria aplicao no presente perspectiva de lege lata , conectando-as s finalidades materiais do Direito Penal (Silva SNcheZ, 2010, p. 71).

    No caso vertente, a discusso poltico-criminal refere-se legitimi-dade lata et ferenda do Direito Penal Econmico, isto , seu movimento longitudinal de ampliao paulatina do mbito interventivo, por inter-mdio da criao ou majorao de figuras delitivas, numa tendncia que o distanciaria do que historicamente constituiu o ncleo do Di-reito Penal (martNeZ-bujN preZ, 2007, p. 73).

    Naquilo que possvel generalizar tendo em conta os limites de espao , h trs grandes proposies poltico-criminais envolvendo o Direito Penal Econmico: uma corrente deslegitimadora da regulao

    33 Bernd Schnemann elabora crtica semelhante ao mencionado Direito de Interveno (item 4.3.2).

    34 Sobre a natureza cientfica da Poltica Criminal, observa Miguel Polaino Navarrete (2004, p. 57) que se cuida de questo altamente controvertida: Enquanto alguns autores defendem que se trata de uma disciplina jurdica, outros sustentam que essencialmente uma matria poltica, e, finalmente, h outros que se posicionam por consider-la como cincia sociolgica [grifo do original].

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    penal de novas reas, particularmente econmicas; uma corrente inter-mediria, que reconhece como inevitvel tal regulao, mas, contudo, prope que seja feita dentro de uma disjuntiva punitiva; e, por fim, uma corrente legitimadora dessa tendncia interventivo-penal econmica35.

    Segundo Tiedemann (2007, p. 10), o enfrentamento dessa dis-cusso se faz premente na atualidade, ou seja, no momento em que empresrios e homens de negcios sentem os efeitos de fortes ventos relacionados com uma persecuo penal mais intensa e uma prtica judicial que, no poucas vezes, rigorosa.

    4.1 Posio deslegitimadora e a Escola de Frankfurt do Direito Penal

    A proposio deslegitimadora ou reducionista provm, basica-mente, da produo acadmica do Instituto Cientfico Criminal de Frank-furt tambm conhecido como Grupo de Professores ou, simplesmente, Escola de Frankfurt do Direito Penal 36.

    A preocupao central dessa corrente seria a de que, numa tendn-cia marcadamente expansiva, reguladora de atividades que at ento no cuidava, a disciplina venha a se tornar algo totalmente diferente do que foi, na medida em que, embora possa conservar o rtulo Direito Penal, restar, na prtica, completamente distanciada de tudo aquilo que historicamente representou o saber jurdico-penal. Sofreria uma metamorfose, convertendo-se, enfim, na sua prpria autonegao (Silva SNcheZ, 2010, p. 9). De maneira curta e breve: tornar-se- puramente funcionalista (simblico).

    Produo de leis penais e aplicao do Direito Penal como blefe: no preciso demonstrar em profundidade por que esta sada de salvao do dilema da preveno do Direito Penal moderno um caminho equivocado. O Direito Penal simblico, que tendencial-mente abre mo de suas funes manifestas em favor das laten-tes, trai as tradies liberais do Estado de Direito, em especial o conceito de proteo de bens jurdicos, e frauda a confiana da populao na tutela penal (haSSemer, 2007, p. 230).

    35 Detalhadamente sobre o leque de correntes que vo desde o abolicionismo penal, num extremo, at a doutrina da law and order, de outro, vide: Demetrio CreSpo, 2004.

    36 Embora alguns considerem inadequada a denominao genrica Escola de Frankfurt, tendo em vista que os penalistas que compem o Instituto Cientfico Criminal de Frankfurt (v.g. Hassemer, L-derssen, Naucke, Herzog, Albrecht e Prittwitz) no partilham de uma completa uniformidade ideolgica ou metodolgica, certo que tal expresso encontra-se consagrada doutrinariamen-te. Conforme Bernd Schnemann (2002, p. 49): Esta Escola [de Frankfurt], apesar de possuir diferenas em alguns detalhes, tem, contudo, uma grande homogeneidade em suas convices fundamentais e em suas posies principais sobre a discusso poltico-criminal [...].

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    Sendo assim, a utilizao do Direito Penal em novos setores impor-taria, segundo a Escola de Frankfurt, no sacrifcio de garantias essenciais do Estado de Direito. Repudia-se o que se considera o abandono de uma estrita observncia das regras de imputao objetiva e subjetiva e dos princpios penais e processuais penais de garantia elaborados pela Cin-cia Penal desde a Ilustrao, em prol de uma duvidosa funo preventiva que possa vir a desempenhar diante dos riscos derivados das disfunes dos modernos sistemas sociais (martNeZ-bujN preZ, 2007, p. 75).

    O Direito Penal deixa sua modesta casinha de paz liberal, onde se contentava com o asseguramento do mnimo tico, para se converter num poderoso instrumento de domnio das grandes perturbaes, sociais ou estatais. O combate, ou melhor, o trata-mento do crime parece muito pequeno como tarefa do Direito Penal. Agora, trata-se de guarnecer as polticas de subsdios, do ambiente, da sade e das relaes internacionais. De represso pontual a ofensas concretas a bens jurdicos, converte-se em pre-veno abrangente de situaes problemticas (haSSemer, 2007, p. 227).

    Porm, o que pretende, objetivamente, a Escola de Frankfurt? Se-gundo a sntese de Martnez-Bujn Prez (2007, p. 74), a essncia polti-co-criminal lata et ferenda desta corrente de pensamento centra-se em dois aspectos complementares entre si: de um lado, restringir a seleo de bens jurdico-penais queles bens que se qualificam como clssicos, na medida em que se articulam sobre a base da proteo dos direitos bsicos do indivduo; de outro, respeitar ao mximo todas as regras de imputao e todos os princpios poltico-criminais de garantia caracte-rsticos do Direito Penal da Ilustrao.

    Cumpre atentar, porm, que Hassemer e, em regra, os demais in-tegrantes daquela Escola, no propem uma absoluta desregulamentao de condutas que vulneram a ordem econmica. No se cuida, assim, de uma doutrina abolicionista, como alguns, equivocadamente, a adjetivam37. Segundo Hassemer, deveria retroceder-se para onde funciona bem, isto , ao denominado Direito Penal clssico ou nuclear ou seja, ao mbito das infraes que mais afetam os interesses fundamentais do indivduo , ao passo que as infraes concernentes s violaes desses novos interesses sociais v.g., ordem econmica e meio ambiente deveriam ser preve-nidas por aquilo que ele, Herzog e Lderssen denominam de Direito de Interveno, que seria um direito de cunho sancionador situado a meio caminho entre as normas penais e extrapenais.

    37 Sustentando tratar-se de uma corrente abolicionista do direito penal da empresa, RodrigueZ EStveZ, 2000, p. 38.

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    Seria altamente recomendvel que fossem retirados da esfera do Direito Penal os problemas que lhe foram trazidos nos ltimos tempos. O Direito das contravenes, o Direito Civil, o Direito Administrativo e tambm o mercado e as precaues das prprias vtimas so campos onde muitos dos problemas de que o Direito Penal moderno se apropriou seriam mais bem gerenciados. Po-der-se-ia tambm sugerir que aqueles problemas das sociedades modernas que levaram modernizao do Direito Penal fossem disciplinados por um especfico Direito de Interveno, situado entre o Direito Penal e o Direito das Contravenes, entre o Di-reito Civil e o Direito Administrativo. Decerto, ele poderia con-tar com garantias e formalidades processuais menos exigentes, mas tambm seria provido com sanes menos intensas contra o indivduo. Tal Direito moderno seria normativamente menos censurvel e, ao mesmo tempo, faticamente melhor equipado para lidar com os problemas especficos da sociedade moderna (haSSemer, 2007, p. 262).

    Conforme se observa, o proposto Direito de Interveno se carac-terizaria por conter garantias menos rigorosas do que o Direito Penal e sanes mais moderadas, ou seja, menos lesivas para os direitos indivi-duais, destitudas, pois, da etiqueta de sanes penais, e que seriam se-gundo Hassemer mais eficazes.

    Registre-se que alguns consideram esta corrente associada ao chamado garantismo penal formulado, como se sabe, por Luigi Ferrajoli (2002) , tendo em vista partilharem de premissas restritivas dos excessos punitivistas estatais. Ocorre, contudo, que, enquanto o discurso reducionista da Escola de Frankfurt volta-se defesa de um modelo ultraliberal do Direito Penal tutela de bens jurdicos persona-lssimos, como vida, integridade fsica, patrimnio individual etc. , a proposio garantista de Ferrajoli exige que sejam observados rigida-mente no s os direitos fundamentais (individuais e tambm coletivos), mas inclusive os deveres fundamentais (do Estado e dos cidados), previs-tos na Constituio. a leitura que fizemos da ntegra dos postulados do garantismo penal 38.

    Curioso observar, por fim, que a corrente deslegitimadora do Di-reito Penal Econmico parece estar adquirindo cada vez mais flego e adeptos no Brasil, no raro de maneira irrefletida, sendo at o caso de se perguntar: o que est, de fato, em expanso, ao menos no meio acadmico brasileiro, o Direito Penal ou, na verdade, o discurso redu-cionista personificado por Winfried Hassemer?

    38 FiScher, Douglas. O custo social da criminalidade econmica (nesta publicao).

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    4.2 Proposio intermediria: o modelo penal dual

    Uma construo intermediria que merece destaque, em razo do seu rigor cientfico, encontra-se inserida entre as antpodas poltico-criminais ora assinaladas. Denomina-se modelo penal dual ou Direito Pe-nal de duas velocidades e foi desenvolvida por Jess-Mara Silva Snchez. Segundo ele, a expanso do Direito Penal, conquanto evidente, no se-ria, to somente, o produto de uma perversidade estatal ou da busca demaggica por soluo fcil para os problemas das sociedades ps-indus-triais, mas corresponderia, tambm, ao reflexo de profundas transforma-es vinculadas s expectativas que amplas camadas sociais tm em relao ao papel que cabe ao Direito Penal. Em suma, seriam respostas, de cunho penal, s demandas sociais por mais proteo (Silva SNcheZ, 2002, p. 23).

    Diagnosticado o fenmeno, o autor discorre sobre algumas das suas causas:

    O aparecimento de novos interesses ou novas valoraes de interesses pre-existentes, como, v.g., tutela do meio ambiente ou de atividades lesivas economia, tais como a lavagem de dinheiro sujo.

    O efetivo surgimento de uma sociedade de riscos, riscos derivados de ativi-dades impulsionadas por avanos econmicos e tecnolgicos, mais ou menos intensos para os cidados (consumidores, manipulaes gen-ticas, ciberdelinquncia, criminalidade organizada transnacional etc.).

    A institucionalizao de uma sociedade de insegurana objetiva, em funo do incremento de decises humanas que no s geram riscos nocivos, mas, agora, que os distribuem indistintamente entre annimos cidados. Em suma, vive-se em uma sociedade de enorme complexidade, na qual a interao social alcanou nveis e perigos jamais vistos.

    O surgimento de uma sociedade de insegurana subjetiva, na qual, por mltiplos e diversos fatores (figurando, dentre os principais, a explora-o do medo coletivo pelas mass media), a sensao ou vivncia subjetiva dos riscos claramente superior sua prpria existncia objetiva.

    A configurao de uma sociedade de classes passivas (pensionistas, desempregados, destinatrios de servios pblicos essenciais, pes-soas fsicas ou jurdicas subvencionadas etc.), que se convertem em cidados-eleitores, cada vez mais intolerantes com o custo do progresso econmico-industrial, vale dizer, com os efeitos derivados dos espaos de risco permitido, razo pela qual se incrementariam infraes de deveres de cuidado, alm do catlogo de crimes de perigo presumido.

    O sentimento de identificao da maioria com a vtima do delito mais do que com o delinquente, em especial o delinquente poderoso. No raro,

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    surgem casos de vtimas ou grupo de vtimas que se tornam, por fora da opinio pblica, verdadeiras celebridades nacionais ou internacionais.

    O descrdito de outras instncias de proteo (tica social, Direito Civil e Direito Administrativo), fazendo com que a demanda social de punio se dirija precisa e necessariamente para o Direito Penal (tor-nando-o, desalentadoramente, o principal instrumento de pedagogia poltico-social).

    A influncia dos denominados gestores atpicos da moral (movimentos feministas, verdes, pacifistas ou grupos discriminados), secundados, aca-demicamente, pelas mudanas havidas na criminologia de esquerda (neorrealismos), fazendo com que aqueles que outrora repudiavam o Di-reito Penal como brao armado das classes poderosas contra as subalternas, agora clamam por mais Direito Penal contra as classes poderosas (Silva SNcheZ, 2002 passim).

    Evidentemente, tais fatores no so exaustivos; tampouco so isola-dos, visto que alguns deles, inclusive, se interpenetram. Seja como for, Silva Snchez concorda com a corrente reducionista no sentido de que a expanso implica uma suposta desnaturalizao ou administrativizao do Direito Penal. No entanto, apesar de considerar louvvel a proposta acadmica de uma devoluo ao Direito de Interveno de todo o novo Direito Penal, o autor a considera invivel dir-se-ia utpica , na me-dida em que, de um Direito Penal com vocao racionalizadora, h de acolherem-se as demandas sociais de proteo precisamente penal (Silva SNcheZ, 2002, p. 137).

    Resignadamente, Silva Snchez prope como soluo a bipartio do sistema jurdico-penal de imputao do fato ao autor, assim como do sistema geral de garantias, consoante a natureza das consequncias jurdicas cominadas aos tipos penais incriminadores: pena privativa de liberdade ou pena alternativa. Isso, porque o verdadeiro problema no tanto a expanso do Direito Penal, mas, especificamente, a expanso da pena privativa de liberdade: essa ltima que deve realmente ser contida (Silva SNcheZ, 2002, p. 139).

    Prope-se, como j adiantado, a construo de um modelo dual ou de duas velocidades do sistema normativo-penal. No primeiro bloco ou nvel, se incluiriam os delitos aos quais so cominadas penas privativas de liberdade, para os quais se respeitariam escrupulosas regras de impu-tao e de garantias penais e processuais penais; e, no segundo, aqueles que conteriam sanes pecunirias ou restritivas de direitos ou aquilo que ele prefere de reparao penal no lugar da priso, e que recebe-riam regras mais flexveis. De toda sorte, ambas as velocidades dentro do

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    Direito Penal, com sua carga comunicativo-simblica e processamento judicializado.

    O significado exato de tal proposta pode ser apreendido se se leva em conta que os delitos muito especialmente os socioeconmi-cos nos quais se manifesta a expanso do Direito Penal con-tinuam sendo delitos sancionados com penas privativas de liber-dade, de considervel durao em alguns casos, nos quais, sem embargo, os princpios poltico-criminais sofrem uma acelerada perda de rigor. Se nos ativermos ao modelo sugerido, somente h duas opes: a primeira, que tais delitos se integrem no ncleo do Direito Penal, com as mximas garantias (no relativo a legalidade, a proporcionalidade, a lesividade, a prova etc.) e as mais rigorosas regras de imputao (da imputao objetiva, autoria, a comisso por omisso etc.); e a segunda, que se mantenha a linha de relati-vizao de princpios de garantia que hoje j acompanha tais deli-tos, em cujo caso se deveriam renunciar a cominao das penas de priso que agora existem (Silva SNcheZ, 2002, p. 143)39.

    Recentemente, Jess-Mara Silva Snchez teve a oportunidade de re-visitar sua proposta de Direito Penal de duas velocidades, ratificando-a.

    Minha posio, exposta em distintos lugares ao longo dos ltimos dez anos, se situa em um ponto mdio. Talvez por isso lhe caiba a (duvidosa) honra de ter sido criticada pelos dois pontos de vista extremos. Demonstro ceticismo sobre se a melhor forma de en-frentar o Direito Penal expansivo seja a adoo de construes puristas, insustentveis no atual estado de desenvolvimento econmico e social. Contudo, por outro lado, rechao, como al-guns pretendem, que se faa tbula rasa de boa parte do patri-mnio institucional (dogmtico e poltico criminal) do Direito Penal tradicional em nome de no se sabe qual progresso (Silva SNcheZ, 2010, p. 9-10).

    39 E ele prossegue: Definitivamente, portanto, a proposta [...] parte da constatao de uma realidade a respeito da qual se considera impossvel voltar atrs. Essa realidade a expanso do Direito Penal e a coexistncia, portanto, de vrios Direitos Penais distintos, com estruturas tpicas, regras de imputao, princpios processuais e sanes substancialmente diversas. A par-tir da referida constatao, postula-se uma opo alternativa. Considerando improvvel (talvez impossvel) um movimento de despenalizao, prope-se que as sanes penais que se imponham ali onde tm se flexibilizado as garantias no sejam penas de priso. Isso tem duas consequncias. Por um lado, naturalmente, admitir as penas no privativas de liberdade, como mal menor, dadas as circunstncias, para as infraes nas quais tm se flexibilizado os pressupostos de atribui-o de responsabilidade. Mas, sobretudo, exigir que ali onde se impem penas de priso, e especialmente penas de priso de larga durao, se mantenha todo o rigor dos pressupostos clssicos de imputao de responsabilidade (Silva SNcheZ, 2002, p. 143, grifo do original).

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    Outrossim, o autor no deixa de reconhecer que a sua tese poltico-criminal pode deixar o flanco aberto crtica de servir a um Direito Penal s para as classes desfavorecidas (Silva SNcheZ, 2010, p. 53). To- davia, Silva Snchez rechaa um possvel vis classista afirmando que seu modelo terico no significa distinguir segundo sujeitos, seno segundo fatos e segundo consequncias jurdicas (Silva SNcheZ, 2002, p. 144).

    4.3 A legitimao do Direito Penal Econmico

    A terceira corrente sob anlise parte da premissa de que aquilo eti-quetado por muitos como perversa expanso corresponde, na realidade, necessria modernizao do Direito Penal ou, como preferem alguns, ao novo Direito Penal. Apesar de possurem fundamentos epistemolgicos diversos, aqueles que se filiam a esse entendimento consideram que no se pode prescindir do Direito Penal no enfrentamento das graves questes econmicas que pem em causa a sociedade moderna.

    4.3.1 Luis Gracia Martn e a luta contra o discurso de

    resistncia e pela modernizao do Direito Penal

    Em obra dedicada ao presente tema, Luis Gracia Martn (2005, p. 33) sustenta a ocorrncia de uma ruptura com um modelo histrico anterior, ou seja, passa-se do Direito Penal liberal para o novo Direito Penal. Segundo ele, a ruptura diga-se, ainda em desenvolvimento , envolve duas ordens de consideraes: formal e material. De todo modo, j seria plenamente possvel afirmar que o que foi j no ; vive-se novos tempos (gracia martN, 2005, p. 37, grifo nosso).

    No que concerne ruptura sob a vertente formal, Gracia Martn identifica, precisamente, o novo Direito Penal como sendo o Direito Penal Econmico. Nele estariam, ainda, inseridos, o Direito Penal do meio ambiente, o Direito Penal comunitrio, o Direito Penal da globalizao, entre outras ramificaes formais. Basicamente, aquele autor assinala que, na generalidade das legislaes, detecta-se um incremento quantitativo do catlogo de figuras delitivas, alm de uma amplificao da esfera de aplica-o e/ou de agravao punitiva de alguns tipos tradicionais (gracia martN, 2005, p. 45).

    As razes desse fenmeno coincidem, em larga medida, com aquelas supra identificadas por Silva Snchez. Agrega, no entanto, Gracia Mar-tn, que a expanso ou modernizao, ao contrrio do insistentemente apregoado como uma espcie de mantra pelos adeptos das correntes precedentes , em nada acarreta um rebaixamento ou esfacelamento

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    de institutos dogmtico-penais ou de sistemas penais e processuais de garantias, elaborados a partir do Direito Penal liberal da Ilustrao. Ao revs, em certas hipteses, como, v.g. no moderno direito penal da empresa, exige-se uma intensificao de aportes dogmticos na correta soluo para uma adequada imputao jurdico-penal40.

    Ademais, cumpriria atentar que o modelo penal anterior, a rigor, nada tinha de clssico, no sentido de um ideal inspirador do passado, uma vez que, naquela poca no Estado liberal burgus , o Direito Penal servia precipuamente para excluir os estratos sociais mais abastados das suas garras, reprimindo e oprimindo as classes baixas41.

    O estado atual das legislaes penais, por um lado e, sobretudo, o fato de que, por outro lado, importantes e qualificados setores da doutrina e, ademais, escrupulosamente respeitosos das garan-tias penais do Estado de Direito desenvolvam argumentaes favorveis legitimidade da assuno pelo Direito Penal de no-vos contedos, ou de sua extenso a novos mbitos que, segundo o discurso crtico do Direito Penal moderno de Hassemer e de seus seguidores, no poderiam ser assimilados pelo modelo pe-nal da Ilustrao, so provas claras de que o que aqui est em jogo e em discusso precisamente a validez desse modelo de Direito Penal ou de um determinado modo de compreend-lo, e, por conseguinte, uma razo mais do que suficiente para negar a esse modelo o atributo de clssico no sentido definido e preten-dido por Hassemer (gracia martN, 2005, p. 41).

    Sob a vertente material, a ruptura se completaria, segundo Gracia Martn, com a alterao poltico-criminal de uma histrica predileo

    40 Conforme Gracia Martn (2005, p. 64): O moderno Direito Penal da empresa prope, sem dvida, Cincia Penal do presente um de seus desafios mais importantes. Alm das questes poltico-criminais que suscita no mbito da Parte Especial, os problemas que origina no plano da imputao constituem sobretudo um duro teste para a validade de uma teoria geral da respon-sabilidade penal que, como aquela vigente at agora, foi construda sobre a base de um modelo de criminalidade violenta e individual. Esta ltima tem muito pouco em comum com o modelo na nova criminalidade econmico-empresarial, pois esta se desenvolve em contextos de uma ati-vidade coletiva realizada por uma pluralidade de sujeitos que atuam de acordo com o princpio da diviso de trabalho e funes e em posies de superioridade e de subordinao hierrquica. Detalhadamente sobre isso: Dutra, Bruna Martins Amorim. A aplicabilidade da teoria do domnio da organizao no mbito da criminalidade empresarial brasileira (nesta publicao) e de GraNdiS, Rodrigo. A responsabilidade penal dos dirigentes nos delitos empresariais (nesta publicao).

    41 Segundo a edio francesa La Ruche populaire (1842), resgatada do anonimato por Michel Fou-cault (apud Gracia MartN, 2005, p. 130): Enquanto a misria cobre vossos assoalhos de cad-veres, e vossas prises de ladres e de assassinos, o que estamos vendo com relao aos estelio-natrios do mundo? Os exemplos mais corruptos, o cinismo mais indignante, a bandidagem mais desavergonhada... No temeis que o pobre levado ao banco dos rus por ter subtrado um pedao de po de uma padaria chegue a indignar-se o bastante, algum dia, para demolir pedra por pedra a Bolsa, antro selvagem onde so roubados impunemente os tesouros do Estado e a riqueza das famlias?.

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    pelos pobres, ou seja, a modernizao s pode dir-se-ia s deve ser apreendida como a recuperao da totalidade da matria criminal, inclusive da multiplicidade de infraes especialmente no mbito econmico que ficaram discursiva e ideologicamente excludas pelo liberal Di-reito Penal. Para alm do velho delito de roubo, devem ser agregadas disciplina as olvidadas formas de abuso dos detentores do capital. Cuida-se, conforme seu raciocnio, de um embate pela criminalizao das aes reprovveis das camadas sociais mais elevadas. Em outras palavras:

    A modernizao do Direito Penal a luta pela integrao no dis-curso penal da criminalidade material das classes sociais podero-sas que elas mesmas conseguiram at agora excluir daquele dis-curso graas sua posio de poder de disposio absoluto sobre o princpio da legalidade penal desde a sua inveno pelo iderio poltico ilustrado liberal da burguesia capitalista (gracia martN, 2005, p. 116).

    Sendo assim, a existncia do novo Direito Penal no se concretizaria caso se limitasse introduo de catlogos de novos tipos penais da moderni-dade, visto que, para se produzir a ruptura total com o antigo, exige-se, materialmente, que a criminalizao de condutas das classes poderosas tenha uma dimenso abrangente, isto , tem que ser fundado e estrutura-do um sistema que classifique em tipos delitivos ordenados segundo os bens jurdicos, a totalidade do universo de aes tico-socialmente prejudi-ciais prprias e caractersticas do sistema de ao das classes poderosas (gracia martN, 2005, p. 135, grifo do original)42.

    4.3.2 Bernd Schnemann e a crtica aos

    integrantes da Escola de Frankfurt

    Bernd Schnemann trata, igualmente, da mudana de paradigma, consubstanciada em reformas legislativas levadas a efeito no escopo de melhor tutelar bens jurdicos supraindividuais, ante as atividades em-presariais danosas, bem como de uma prxis judicial mais intensa contra membros das elites poltica e socioeconmica.

    Segundo ele, o Direito Penal que, desde a Ilustrao, teve por caracterstica basilar a sobrerrepresentao das classes socioeconmicas baixas, tanto em condutas tipificadas como em condenaes a mltiplas pe-

    42 A exigncia de vinculao a valores tico-sociais evidencia seus fortes vnculos com a doutrina da ao final. No sem razo, Luis Gracia Martn observa que Hans Welzel muito mais citado e deturpado do que efetivamente lido. Detalhadamente sobre isso: Gracia MartN, 2004, passim.

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    nas privativas de liberdade sinaliza, presentemente, naqueles dois eixos transformaes legislativas e jurisprudenciais , uma mudana de tendn-cia, aproximando-se mais e mais da classe mdia, da classe mdia alta e, em alguns casos, at mesmo da classe alta (SchNemaNN, 2002, p. 50-51).

    Se, de fato, h essa inverso nas estruturas profundas da disciplina, Bernd Schnemann questiona se ela seria legtima, podendo-se, assim, falar no surgimento de um Direito Penal da classe alta. Como se sabe, par-te da doutrina ou melhor, os integrantes da Escola de Frankfurt pe em causa essa hipottica legitimidade do novo Direito Penal. Embora com algumas variveis, as oposies de Hassemer, Lderssen, Herzog, Albrecht e, inclusive, Naucke podem ser, segundo Schnemann, agru-padas em quatro diferentes tpicos:

    ilegtimo porque o novo Direito Penal , em realidade, uma perverso do verdadeiro e clssico Direito Penal.

    ilegtimo porque essas transformaes afrontam rgidas regras de imputao exigveis pelo atual Estado de Direito.

    ilegtimo porque perfeitamente constatvel a existncia de medidas menos intromissivas e que so, por isso, mais preferveis e eficientes.

    ilegtimo porque o legislador se impacienta ao recorrer logo ao Di-reito Penal, ao passo que outros sistemas normativos no o acompa-nham na mesma velocidade (SchNemaNN, 2002, p. 52).

    Schnemann rebate todos esses argumentos. Sobre o primeiro, o autor denuncia a quimera do propalado Direito Penal clssico, con-trrio necessria modernizao. Para ele, com os trabalhos da Escola de Frankfurt, tornou-se lugar comum etiquetar o Direito Penal de hoje como uma perversa interveno estatal antagnica de um Direito Penal liberal clssico localizado na poca da Ilustrao. Para Schnemann, sob a perspectiva histrica, essa assertiva , no mnimo, extremamente proble-mtica inclusive, confrontado com os registros historiogrficos por ele apresentados, Winfried Hassemer teria reconhecido, de certo modo, que tal perodo clssico no seria algo histrico-real, mas, to somente, histrico-ideal. De toda sorte, Schnemann insiste que a contraposio do moderno com um inspirador passado parece olvidar o que, de fato, foi o Direito Penal de antanho:

    O Direito Penal estatal se originou como um instrumento espe-cfico contra a criminalidade dos aventureiros e dos pobres; e tampouco se alterou na poca da Ilustrao [...]. A proteo da propriedade privada de coisas mveis contra o roubo foi o ponto central do Direito Penal clssico e continua a ser, at hoje, a razo pela qual os membros da classe baixa, caracterizados, em primeiro

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    lugar, por sua falta de bens, e, no geral, por seus baixos rendimen-tos, forneam justia penal prtica sua clientela preferente, ou, menos eufemisticamente formulado, encontrem-se consideravel-mente representados nas estatsticas criminais e nos estabeleci-mentos penitencirios (SchNemaNN, 2002, p. 54).

    Dessa maneira, o propalado Direito Penal clssico era, na verdade, o Direito Penal liberal, obviamente atrelado ao conceito liberal de Es-tado e de propriedade privada. Com as transformaes sociais intensifi-cadas nas ltimas dcadas, por razes de igualdade material e de justia social, detecta-se, na legislao e nos tribunais, o intento de no apenas defender a propriedade privada, mas, agora, de defender a sociedade contra o uso indevido dessa mesma propriedade privada (lesividade so-cial). E essa finalidade significa, de certo modo, um cmbio de tendn-cia de um Direito Penal da classe baixa para um Direito Penal da classe mdia, media alta e alta (SchNemaNN, 2002, p. 55).

    Com relao violao de escrupulosas garantias penais por meio do arbitrrio invento do bem jurdico coletivo e da indevida antecipao de penalidade por intermdio dos delitos de perigo abstrato supostamente presente nas modernas leis de luta contra a delinquncia econmica e de proteo ao meio ambiente, Schnemann denomina essa insistente oposio de Cassandra do Estado de Direito, por simplesmente ignorar que aquelas leis foram cuidadosa e legitimamente elaboradas por comisses de penalistas sobrelevando-se, entre todos, o nome de Klaus Tiedemann , alm de serem aplicadas pela justia penal de um Estado democrtico. Ademais, a exigncia de rgidas regras de imputao sequer encontraria parmetro na prtica do (antigo) Direito Penal clssico (SchNemaNN, 2002, p. 55)43.

    Em relao tese de que, ao invs de trabalhar com o Direito Pe-nal e suas sanes que depreciam o ser humano, dever-se-ia empregar um Direito de Interveno o qual, para Hassemer e Lderssen, entre outros, seria mais moderado e ao mesmo tempo mais eficaz do que o Direito Pe-nal , Bernd Schnemann observa que, lamentavelmente, o conceito desse novo instrumento, localizado em algum lugar entre os ramos penal e administrativo, no foi at agora completamente detalhado. Segundo ele, existem, sim, exemplos de intervencionismos feitos por uma infinidade de funcionrios pblicos fiscalizadores do cotidiano do cidado, como a famosa Stasi (Staatssicherheitdienst) servio de segurana da antiga

    43 A propsito, no Direito Penal Econmico, pode-se afirmar que Klaus Tiedemann representa para a Dogmtica o mesmo que Edwin H. Sutherland representou para Criminologia (Nieto MartN, 2010).

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    Repblica Democrtica da Alemanha , onde, inclusive, havia uma criminali-dade mais baixa, mas ao preo de um Estado policial total. Lderssen, que insiste, ainda, no emprego mais eficiente do Direito Civil, ignora, se-gundo Schnemann, que a crise da administrao da justia civil to ou mais aguda do que a crise da justia penal.

    O criminoso do colarinho-branco est protegido, na maioria das vezes, por uma empresa econmica prspera e lucrativa, de forma que poder esperar tranqilo, caso tenha que responder a um processo civil, pois os custos para ele na maioria dos casos sero muito mais baixos do que o benefcio total de sua atividade crimi-nosa (SchNemaNN, 2002, p. 64).

    Sobre a ltima das quatro objees acima alinhavadas, Bernd Schnemann concorda com a preocupao dos representantes da Es-cola de Frankfurt em relao ao risco de o legislador deixar-se seduzir pela ideia da utilizao aodada do Direito Penal como uma espcie de panaceia dos problemas urgentes da modernidade econmica e da tutela ambiental, esquecendo-se, pois, que o Direito Penal deve ser o ltimo recurso normativo para a preveno dos graves danos sociais (princpio da ultima ratio). Mas, apesar de partilhar de tal preocupao, o autor considera quase como uma moral insanity a proposta de refutar-se globalmente a modernizao da disciplina, ou seja, rejeita-se a tese de enfrentamento da criminalidade do sculo XXI com os meios de um Direito Penal do sculo XIX. Em suma, defende que no ser o abandono, mas, sim, o aperfeioamento da mudana de tendncia do Direito Penal da classe baixa para o Direito Penal da classe alta o nico meio apropriado para a defesa efetiva ante as ameaas especficas da sociedade industrial ps-moderna (SchNemaNN, 2002, p. 69).

    4.3.3 Carlos Martnez-Bujn Prez e o moderno

    Direito Penal Econmico e da empresa

    Partindo do marco da concepo significativa da ao44, Carlos Martnez-Bujn Prez desenvolve uma admirvel teoria geral dos delitos econmicos ou socioeconmicos, como ele prefere , no sem antes

    44 A teoria significativa da ao, inspirada na filosofia de Wittgenstein e na teoria da ao co-municativa de Habermas, foi elaborada, na Espanha, por Toms Salvador Vives Antn (ViveS ANtN, 1996). Com efeito, no escopo de efetuar uma reconstruo terica das categorias da ao e da norma, sugere-se um novo modelo de anlise e soluo dos problemas da teoria do delito, partindo da premissa normativa de que ao no algo que os homens fazem, mas, sim, o significado do que fazem; no um substrato, mas sim um sentido (MartNeZ-BujN PreZ, 1999).

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    deter-se sobre a presente discusso (martNeZ-bujN preZ, 2007). Aps discorrer sobre as correntes reducionistas e penal dual, Martnez-Bujn Prez as rejeita, associando-se, pois, queles que propugnam pela legi-timidade da modernizao do Direito Penal. Ele adverte, porm, que isso no importa em aceitar acriticamente toda e qualquer novidade, tanto legislativa como interpretativa, que possa porventura aparecer (mart-NeZ-bujN preZ, 2007, p. 85).

    Todavia e isso importante , no h que se confundir a crtica pontual com a desqualificao total do Direito Penal Econmico. Nesse par-ticular, Martnez-Bujn Prez aponta o grave equvoco metodolgico dos detratores do novo Direito Penal, nomeadamente os integrantes da Escola de Frankfurt e Silva Snchez, a saber:

    Partir da existncia de determinadas modificaes legais que, indubitavelmente, meream ser criticadas e elev-las, a seguir, a uma categoria geral (com ajuda de argumentos retricos e peties de princpio), construindo artificialmente um modelo de Direito Penal moderno, com o fim de efetuar, ao final, uma censura indiscriminada que, sob a cortina de fumaa da defesa dos princpios penais garantistas, pretende desqualific-lo global-mente, querendo inviabilizar, desde o incio, a possibilidade de uma poltica criminal que legitime a interveno do Direito Penal na vida social e o que aqui especialmente interessa no mbito econmico (martNeZ-bujN preZ, 2007, p. 85)45.

    Dessa maneira, Martnez-Bujn Prez concorda com Schnemann e Gracia Martn relativamente rejeio do cerne das correntes desle-gitimadoras da modernizao do Direito Penal, conquanto divirja das premissas epistemolgicas desse ltimo.

    A princpio, no me parece que deva ser acolhida a premissa maior da argumentao poltico-criminal da Escola de Frankfurt, nem sequer a verso mais matizada de Silva. Regressar nos tempos atuais ao ncleo histrico do Direito Penal [...] uma deciso que me parece totalmente incompatvel afora injusta do ponto de vista ideolgico, alm de contrrio ao princpio constitucio-nal de igualdade perante a lei. evidente que o que se qualifica de ncleo histrico do Direito Penal em matria patrimonial e econmica se identifica com um Direito Penal classista, que serve somente para castigar os setores da populao sociologicamente mais desfavorecidos (martNeZ-bujN preZ, 2007, p. 87)46.

    45 Registre-se, en passant, que parte da doutrina penal brasileira propende para a mesma (e equi-vocada) estratgia metodolgica de desqualificar o todo pela parte.

    46 Sobre as divergncias epistemolgicas, Martinez-Bujn Prez (2007, p. 86) no aceita a ideia

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    Segundo o autor, o Direito Penal no pode estribar-se em um pensamento individualista a fim de proteger, exclusivamente, aes que atentem contra bens jurdicos cuja natureza seja estritamente individual. Isso porque, da mesma forma que ocorre com outros setores do Direito Pe-nal, no mbito econmico

    h bens jurdicos de natureza coletiva, interesses de todos, que indiscutivelmente devem ser tutelados pelo Direito Penal nuclear frente s modalidades de agresso mais intolerveis; e, inclusive, existem bens jurdicos que, sem ser interesse geral, so bens de carter supraindividual que afetam a amplos setores da populao e que, sob determinadas condies, tambm podem ser merece-dores de tutela penal (martNeZ-bujN preZ, 2007, p. 88).

    No se pode, portanto, concordar com uma postura ideolgica fun-dada numa concepo liberal que, segundo Martnez-Bujn Prez, no cor-responde aos estudos empricos que denotam um alto grau de conscientiza-o cidad ante novos interesses coletivos submetidos regulao penal. Ademais, cumpre salientar que as crticas de lege lata, baseadas em supostas vulne-raes dos princpios bsicos e das regras de imputao, simplesmente, carecem de suficiente fundamento (martNeZ-bujN preZ, 2007, p. 88).

    Todavia, no h que se aplaudir uma suposta estratgia de criminali-zao indiscriminada. Ao contrrio: resulta imprescindvel fundamentar poltico-criminalmente e, sobretudo, dogmaticamente, a legitimidade de cada interveno penal no mbito socioeconmico como, acresa-se, deve ocorrer em quaisquer outros segmentos da regulao social.

    Entabulando um dilogo com as teses antipodais, para Martnez-Bujn Prez, de lege ferenda, entre os pretendidos Direito de Interveno e Direito Penal de duas velocidades, deve-se considerar mais adequado este ao invs daquele. Isso porque, primeiramente, o corpo legislativo inter-medirio, composto pelo propalado Direito de Interveno, no foi sequer devidamente aclarado por Hassemer ou qualquer outro integrante da Es-cola de Frankfurt, sendo certo, em segundo lugar, que o cidado comum teria grande dificuldade de compreender um novo setor do ordenamento

    de Gracia Martn no sentido de que, para ser racional, a Cincia Penal deve possuir um carter cientfico e um contedo de verdade. Para Martinez-Bujn Prez, o correto partir da premis-sa de que tanto a Cincia Penal (dogmtica jurdica) como com mais razo ainda a Poltica Criminal no podem ser inscritas na racionalidade terica (assinalando norma penal e s propostas poltico-criminais uma pretenso de verdade, como se se tratassem de um objeto de estudo cientfico), mas, sim, no mbito da racionalidade prtica (que se assenta numa pretenso de justia), de tal maneira que nem a pretenso de validez na norma penal nem as propostas poltico-criminais se constituem em proposies sobre fatos e, consequentemente, no so suscetveis de verdade ou falsidade [grifo do original].

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    jurdico que no possui raiz alguma em nossa tradio jurdica. Diversamente, ainda que possa vir a discordar do contedo de um corpo normativo acessrio, Martinez-Bujn Prez no v maiores inconvenientes na adoo de um modelo que, ancorado no Direito Penal, possa vir a tipificar infraes econmicas de menor gravidade, com penas no privativas de liberdade e com regras de imputao mais flexveis do que aquelas atualmente exis-tentes. Para tanto, seria crucial a elaborao de uma lei penal especial em matria econmica, dotada de uma parte geral que discriminasse to-das as regras de imputao aplicveis ao respectivo catlogo de delitos (martNeZ-bujN preZ, 2007, p. 92-93).

    Em concluso, respeitadas as correntes doutrinrias divergentes, Carlos Martinez-Bujn Prez defende a ideia de que, em termos gerais, as infraes econmicas revestidas de maior gravidade devem estar in-tegradas ao Direito Penal localizadas, sistematicamente, no Cdigo Penal ou numa legislao especial , e ser castigadas com penas priva-tivas de liberdade, isoladas o