Artigo de Ana Maria Machado

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING CENTRO DE CINCIAS HUMANAS,LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS (MESTRADO)

SLVIA MARIA RODRIGUES NUNES CANTARIN

E AS MENINAS CRESCERAM: A CONSTRUO DA PERSONAGEM FEMININA NAS OBRAS DE ANA MARIA MACHADO

MARING - PR 2008

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SLVIA MARIA RODRIGUES NUNES CANTARIN

E AS MENINAS CRESCERAM: A CONSTRUO DA PERSONAGEM FEMININA NAS OBRAS DE ANA MARIA MACHADO

Dissertao apresentada Universidade Estadual de Maring, como parte das exigncias para a obteno do grau de Mestre em Letras (rea de concentrao: Estudos Literrios). Orientadora: Prof. Dr. Alice urea Penteado Martha.

MARING 2008

Dedico este trabalho

minha querida amiga Penha Lucilda de Souza Silvestre por ter acreditado em mim e pelo incentivo que me deu para transformar um sonho em realidade.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, Prof Dr Alice urea Penteado Martha, minha orientadora, pela compreenso, firmeza e segurana.

Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Letras (Mestrado), pela dedicao.

Aos meus pais que me incentivaram.

Aos meus irmos, Emerson e rika, pelo carinho.

Ao meu marido pelo apoio e compreenso para a realizao deste trabalho.

s minhas filhas, Brbara e Beatriz, pelo tempo em que no estive ao lado delas.

Aos meus amigos e amigas, companheiros de todas as horas.

Aos colegas de turma pela amizade.

Adriana Paula dos Santos, pelo companheirismo e confiana.

s irms Mrcia e Martha, pela hospitalidade e compreenso.

Halina, pela inestimvel companhia. minha querida Roseli, pelo tempo dedicado s minhas filhas.

Cida Flore pela reviso deste trabalho.

muito comum que os romancistas contem como seus personagens os surpreendem, de vez em quando, agindo por conta prpria. E verdade, a gente no manda neles e tem que permitir que sigam por onde queiram. De certo modo, essa experincia de criar vidas alheias se parece muito com o trabalho do sonho [...] Mas digo isso tambm porque no quero mentir para quem me l, no alm do inevitvel ato de fingimento que qualquer fico. honesto lembrarmos que essas vidas so inventadas, essas situaes so criadas, mas nosso encontro nestas pginas, seu e meu real. Ana Maria Machado

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RESUMO

E AS MENINAS CRESCERAM: A CONSTRUO DA PERSONAGEM FEMININA NAS OBRAS DE ANA MARIA MACHADO

Nesta dissertao, o objetivo investigar a construo das personagens femininas por Ana Maria Machado (1942 ), em textos literrios para leitores diferenciados. Para tanto, analisamos nove livros de literatura para crianas, jovens e adultos: Bem do seu tamanho (1980), Bisa Bia, Bisa Bel (1982), Menina bonita do lao de fita (1984), Isso ningum me tira (1994), Tudo ao mesmo tempo agora (1997), Amigo comigo (1999), Alice e Ulisses (1983), Tropical sol da liberdade (1988) e A audcia dessa mulher (1999). Verificamos aspectos da construo das personagens femininas, por meio de elementos estruturais e temtico-formais dos textos, bem como o carter emancipatrio da produo literria da escritora, j que a estrutura dos textos lidos possibilita a interao entre texto e leitor. Consideramos como os leitores so convidados a experienciar e questionar valores estabelecidos pela sociedade em que vivem e elucidar como a leitura dessas narrativas influencia na formao do leitor, pois elas criam espaos e lacunas que podem ser preenchidos com os dados da experincia de cada indivduo. Com base nas anlises realizadas, percebemos a presena relevante da figura feminina, no mundo ficcional de Ana Maria Machado, j que as crianas se confirmam nas personagens adolescentes e nas adultas. Diante do estudo empreendido observamos que o leitor no sai ileso, pois seu horizonte de expectativas, ao incorporar-se ao horizonte oferecido pelas obras, propicia um novo conhecimento, promovendo a ampliao de seu horizonte inicial de expectativas. Esta pesquisa, de carter qualitativo-interpretativo e bibliogrfico, tambm contribuir para a ampliao dos estudos de literatura dessa natureza. PalavrasChave: Literatura; Literatura Infanto-juvenil; Ana Maria Machado; Personagens femininas.

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ABSTRACT AND THE GIRLS GREW UP: THE FEMALE CHARACTERIN THE MASTERPIECE BY ANA MARIA MACHADO In this essay, the aim is investigate the construction of female characters by Ana Maria Machado (1942 -) in literary texts to differentiated readers. So, we analysed nine books of children literature, adolescents and adults: Bem do seu tamanho (1980), Bisa Bia, Bisa Bel (1982), Menina bonita do lao de fita (1984), Isso ningum me tira (1994), Tudo ao mesmo tempo agora (1997), Amigo comigo (1999), Alice e Ulisses (1983), Tropical sol da liberdade (1988) e Audcia dessa mulher (1999). We verified aspects of female characters construction through structural elements and formal-thematic of the texts as well as the emancipatory character of writers literary production seeing that the textss struture read have facilitated the interaction between text and reader. Then, we considered how the readers are invited to experiment (practice) and discuss valuables established by society that theyre living now and clarify how the reading of these narratives inspire readers formation, because they create spaces and blanks that can be filled with experience of each person. According to the analysis realized we understood the relevant presence of female figure in the ficcional world by Ana Maria Machado seeing that the children identify themselves in the adolescents and adults characters. Before undertaken studies, we observed the reader doesnt out unharmed because his expectation horizon when uncorporate himself to horizon offered by masterpieces, it propitiates a new knowledge promoting the extension of his initial expectation horizon. Therefore, this research, qualitative-interpretative and bibliographic character, itll also contribute to extension of the literature studies of this nature. Key-Words: Literature; Adolescence Literature; Ana Maria Machado; Female characters.

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SUMRIO

CAPTULO I CONSIDERAES INICIAIS ....................................................11 1.1.Como tudo comeou..................................................................................11

CAPTULO II FUNDAMENTOS HISTRICO TERICOS....................232.1. Um encontro com a literatura...................................................................23 2.1.1.Concepes de Literatura e Literatura Infanto-Juvenil.......................27 2.1.2. Literatura Infanto-Juvenil e sua origem ..............................................27 2.1.3.Literatura:pontos e contrapontos..........................................................30 2.1.4. Literatura infanto-juvenil e ps-modernidade.....................................36 2.1.5. Literatura e formao do leitor ............................................................38 2.2. Os caminhos da teoria: a recepo e o efeito .......................................41 2.2.1. Jauss e a esttica da recepo ............................................................41 2.2.2. Iser e a teoria do efeito .........................................................................45 CAPTULO III CONTEXTUALIZAO DE ANA ...............................................50 3.1. Caminhos de Ana.....................................................................................50 3.2. Ana produzindo conhecimento ..............................................................52 3.3. Leitores de Ana o interesse da crtica sobre Ana Maria Machado.......54 CAPTULO IV NA TRILHA DAS PERSONAGENS FEMININAS DE ANA........68 4.1. Ana e as meninas arrojadas....................................................................69 4.1.1.As crianas.............................................................................................70 4.1.2.Bem do seu tamanho:perspectivas do tamanho grande ou pequena?. ............................................................................................................................70

4.1.3.Bisa Bia Bisa Bel: menina moleca.. .....................................................82 4.1.4.Menina bonita do lao de fita desconstruo do preconceito........89 4.2. As adolescentes decididas de Ana ........................................................97 4.2.1. Isso ningum me tira emancipao feminina e adolescncia.......98 4.2.2. Tudo ao mesmo tempo agora incluso social...............................102 4.2.3. Amigo Comigo: adolescncia e amizade ......................................107 4.3. As mulheres audaciosas de Ana ..........................................................114 4.3.1. Alice e Ulisses: tradio e ruptura ....................................................114 4.3.2.Tropical sol da liberdade: exlio poltico e reencontro .................... 127 4.3.3.A audcia dessa mulher: histrias dentro da histria .................... 136

CAPTULO V: CONSIDERAES FINAIS........................................................ 145 5.1.As semelhanas e diferenas entre as personagens femininas de Ana ...................................................................................................................... 145 5.2.E as meninas cresceram ......................................................................151

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS....................................................................157

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CAPTULO I - CONSIDERAES INICIAISA literatura uma das mais antigas e mais duradouras manifestaes do esprito humano.

Ana Maria Machado - 1999. 1.1. Como tudo comeou... No h nenhuma definio de arte que seja acabada ou definitiva. Isso revela que a convivncia com a criao e com o conhecimento artstico uma experincia sem fim: quanto mais indagamos e identificamos a singularidade da arte, mais questionamos a natureza da criao. Acontece que ela, tentando sempre fisgar o que h de mais relevante na realidade, parece seguir o prprio curso da vida no que ela tem de mltiplo e varivel, transitrio e absoluto, imediato e universal. Entretanto, a arte tem traos bastante caractersticos e registrar a condio humana a sua prpria razo de ser, pois uma das suas mais legtimas funes atuar no processo de humanizao do indivduo. No caso especfico da arte literria, Candido (1982, p. 249) ressalta: A literatura desenvolve em ns a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. No que a literatura modifique imediatamente o mundo em que vivemos, mas, ao menos, ela aprofunda e inquieta a sensibilidade do leitor para uma vida que pode sempre ser humanamente modificada. sob o ponto de vista do potencial humanizador da literatura que propomos esta dissertao. Este trabalho pretende estudar, na obra de Ana Maria Machado, questes relacionadas construo da personagem feminina. Para tanto, sero analisados nove ttulos da escritora: Bem do seu tamanho (1980), Bisa Bia, Bisa Bel (1982), Menina bonita do lao de fita (1984), Isso ningum me tira (1994), Tudo ao mesmo tempo agora (1997), Amigo comigo (1999), Alice e Ulisses (1983), Tropical sol da liberdade (1988) e Audcia dessa mulher (1999). O nome de Ana Maria Machado surgiu no somente pela projeo que a escritora tem na literatura brasileira, reconhecida por diversas premiaes nacionais e internacionais. Na verdade, o interesse pela obra da escritora data do Cur-

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so de Especializao1, especificamente, devido ao livro Bisa Bia Bisa Bel (1982). Em consonncia com a proposta defendida por esta dissertao, tal leitura, na infncia, pode influenciar na formao de seres humanos mais sensveis e crticos. Com a crena de que um indivduo de qualquer idade, ao ler ou ouvir uma histria, dialoga no s com quem escreve, mas com uma viso de mundo, enfatizamos a preocupao especial com a formao do leitor de qualquer fase, seja ela infantil, juvenil ou adulta. Nessa linha, afirma-se o essencial: a literatura como manifestao da arte. Assim, a leitura ultrapassa o simples olhar e vai alm, o leitor se aventura no desconhecido em busca de uma melhor compreenso do mundo. A base dessa relao est em que, num texto, h duas pontas importantes: autor e leitor. Se, por um lado, a escrita se configura como um veculo transmissor de informao, a leitura um meio de aquisio do que passa ao redor das pessoas no contexto em que vivem. A leitura no se restringe palavra escrita, , portanto, um ato social. Trataremos, nesta dissertao, de um tipo de leitura textual mais ampla que a busca de informaes em um jornal ou a depreenso de implcitos em uma propaganda. O objeto de estudo para os prximos captulos so textos plurissignificativos, literatura, portanto, arte. No inteno, nesta pesquisa, discutir se devem ser usados ou no os adjetivos infantil e juvenil, e toda a carga semntica que eles abarcam, aos textos literrios selecionados para esse pblico. A escolha das nove obras analisadas advm da importncia que elas tm na produo literria da escritora e do intuito de observar as construes das personagens femininas em momentos diferentes desse percurso. Estas histrias, na maioria das vezes, protagonizadas por crianas, adolescentes e adultos, so produzidas por adultos que transmitem, consciente ou inconscientemente, valores e padres de comportamento que podero ser assimilados pelos leitores. A partir da leitura dos textos de Ana Maria Machado, percebemos a riqueza de sua produo literria e a importncia das obras dirigidas ao leitor, seja ele1

Curso de Ps-Graduao Lato Sensu, Especializao em Literatura e Ensino: A formao do leitor, rea de concentrao de Letras, com carga horria de 360 horas, nas FIO - Faculdades Integradas de Ourinhos, com incio em 09 de maro de 2002 e trmino em 06 de setembro de 2003.

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criana, jovem ou adulto. As narrativas da autora aguam a imaginao do leitor, levam-no a vivncias inusitadas e provocam, ainda, um olhar mltiplo sobre as possveis e diversas realidades sugeridas por seus textos. Ao privilegiar o estudo da personagem, compreendemos como Antonio Candido, que:

Em todas as artes literrias e nas que exprimem, narram ou representam um estado ou estria, a personagem realmente constitui a fico (CANDIDO, 1968, p. 31, grifo do autor). O enredo existe atravs das personagens; as personagens vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a viso da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam (CANDIDO, 1968, p.54).

Sem a personagem, o texto no flui, no tem vida, no h ritmo, pois em torno dela que giram as aes e intrigas relatadas e toda a ateno do leitor est centrada no desfecho que ela ter na histria. O leitor tenta rastrear, ao longo da narrativa, os segredos das personagens, podendo at ocorrer certa identificao dele com algumas delas, assim como confirma Beth Brait (2004, p. 9):

[...] Curiosamente, esses mesmos leitores que acreditam separar com clareza a vida da fico, mesmo que muitas vezes apreciem mais a fico que a vida, teriam algumas dificuldades para negar que j se surpreenderam chorando diante da morte de uma personagem.

As personagens de uma narrativa so seres fictcios, criaturas de papel e tinta moldadas pelo escritor por meio de traos recolhidos da realidade e trabalhados pela imaginao. Inseridas em um mundo construdo que segue uma coerncia interna, as personagens se subordinam a ela, agindo e reagindo de acordo com as regras de funcionamento desse universo possvel. Sua movimentao determina o andamento da ao - o enredo existe por meio das personagens que nele ganham vida. Portanto, pretendemos encontrar nessas obras personagens femininas mltiplas e complexas, caractersticas muito comuns no romance moderno, como esclarece Candido (1968, p. 59): o romance moderno procurou, justamente

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aumentar cada vez mais esse sentimento de dificuldade do ser fictcio, diminuir a idia do esquema fixo, de ente delimitado, que decorre do trabalho de seleo do romancista. A realizao desta dissertao se justifica pela importncia da autora e de sua obra no contexto da produo contempornea de literatura infanto-juvenil e adulta, pois ela uma das mais importantes escritoras do pas. A partir de sua extensa produo, do valor qualitativo presente em suas obras e da constatao de que conta com uma produo significativa tambm do ponto de vista quantitativo, sentimos a necessidade de desenvolver um trabalho sobre o enfoque dado construo das personagens femininas em suas obras. Estabelecendo um recorte nas possibilidades de leitura que o conjunto da obra da escritora carioca provoca, pretendemos avaliar o modo de construo da figura feminina, considerando, especialmente, se estereotipada ou se exerce uma funo emancipadora no mundo ficcional, ou, ainda, se esse conjunto de informaes sobre a menina, a adolescente e a mulher denunciam uma sociedade plena de preconceitos e desrespeito s diferenas. Pretendemos, ainda, elucidar como a leitura das obras constantes no corpus desta dissertao pode influenciar a formao do leitor, pois elas criam espaos e lacunas que leitores de qualquer idade podem preencher com os dados da prpria experincia. Dessa forma, foram formulados os seguintes questionamentos: Como essas personagens so compostas: de forma estereotipada

ou inseridas no seu tempo, questionadoras, emancipadoras? Quais estratgias, apelos formais e temticos conferem o carter

emancipatrio e renovador a suas obras? Quais os recursos estilsticos utilizados na construo dessas per-

sonagens, bem como sua densidade psicolgica? Quais traos das personagens infantis podem ser observados nas

personagens adolescentes e adultas? O objetivo geral desta pesquisa reconhecer o processo de construo das personagens femininas em obras infantis, juvenis e adultas, e o estudo dessas personagens, considerando aspectos estticos, estruturais e temticos.

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Tais estudos esto embasados teoricamente na Esttica da Recepo e na Teoria do Efeito, em obras de Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser e Regina Zilberman; em autores que enfocam o estudo da personagem, tais como Antonio Candido e Beth Brait; e no estudo do narrador, como Mieke Bal. Como reconhecimento da importncia da escritora para a literatura destinada a pblicos diferenciados, no Brasil, crescente o nmero de pesquisas que abordam temticas relacionadas aos seus livros. Na coleta de dados, constatamos que a produo literria de Ana Maria Machado vem despertando interesse como objeto relevante de estudo no mbito acadmico, como atestam as vrias pesquisas suscitadas, que podem ser catalogadas sob a forma de Dissertaes de Mestrado e de Teses de Doutorado. Segundo a pesquisa realizada no banco de teses da CAPES, foram encontradas vinte Dissertaes e quatro Teses sobre Ana Maria Machado, sendo que uma delas foi defendida na Alemanha ou que estudam obras escritas pela autora, conforme discriminao abaixo, segundo uma ordem cronolgica:

1. CERBINO VICTORIA WILSON COELHO. A seriedade do brinquedo - Era uma vez um tirano. 01/06/1987; Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE LETRAS.

2. SUELY DA FONSECA QUINTANA. Trana de gente Ana Maria Machado na curva do arco-ris. 01/11/1989; Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - LETRAS (LETRAS VERNCULAS).

3. WALTINA DE ALMEIDA LARA DOS REIS. Entre drages e cavaleiros. 01/09/1990; Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE LETRAS.

4. MARIA TERESA GONALVES PEREIRA. Recursos lingsticos expressivos da obra infanto-juvenil de Ana Maria Machado. 01/09/1990; Doutorado. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - LETRAS (LETRAS VERNCULAS).

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5. CASSANDRA G. MEDEIROS CRUZ. Dzias de sorrisos, dezenas de risadas, centenas de gargalhadas - O riso na obra de Ana Maria Machado. 01/12/1991; Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE LETRAS.

6. BETTINA NEUMANN. Literatura infantil brasileira: Lygia Bojunga Nunes e Ana Maria Machado.1994; Doutorado. UNIVERSIDADE LIVRE DE BERLIM (NEUERE PREMDSPRACHLICHE PHILOLOGIEN).

7. SENISE CAMARGO LIMA. Bem do seu tamanho (1980) de Ana Maria Machado: afirmao de um gnero literrio. 01/03/1999; Mestrado. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA FILHO/ASSIS LETRAS.

8. ILMA SOCORRO GONALVES VIEIRA. O tema da viagem na obra de Ana Maria Machado. 01/01/2001; Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS LETRAS.

9. ANETE MARIZA TORRES DI GREGRIO. A (re) utilizao esttica do adjetivo e suas manifestaes: lngua e estilo em Ana Maria Machado. 01/10/2001; Mestrado. UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO LETRAS.

10. CLEIA GARCIA DA CRUZ MILAN. Dialogismo, intertextualidade e hipertextualidade em Amigos Secretos de Ana Maria Machado: uma proposta de leitura para alunos da 6 srie do Ensino Fundamental. 01/05/2002; Mestrado. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA LETRAS.

11. DANIELE BARBOSA BEZERRA. As meninas atrevidas de Ana Maria Machado - imagens femininas. 01/07/2002; Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR LETRAS.

12. ANA CRELIA PENHA DIAS DOS SANTOS. Nem tudo o que seu mestre mandar: (des) construo do discurso ideolgico em textos infantis.

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01/08/2003; Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - LETRAS (LETRAS VERNCULAS).

13. LUCIANA FARIA LE-ROY. A representao da mulher na literatura para crianas: um estudo de obras de Jlia Lopes, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga Nunes e Marina Colasanti. 01/12/2003; Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - LETRAS (LETRAS VERNCULAS).

14. RICARDO BENEVIDES. O tamanho na literatura: os efeitos das mudanas de dimenso nas obras de Jonathan Swift, Lewis Carroll, Monteiro Lobato e Ana Maria Machado. 01/03/2004; Mestrado. UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO LETRAS.

15. DARLENE VIANNA GAUDIO ANGELO. A ertica da narrativa: a escrita criativa de Ana Maria Machado. 01/03/2004; Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO LETRAS.

16. MARIA CRISTINA CONDURU VILLAA. Novos finais felizes: a mulher e o casamento em Ana Maria Machado, Ruth Rocha e Sylvia Orthof. 01/08/2004; Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - LETRAS (LETRAS VERNCULAS).

17. CLAUDIOMIRO VIEIRA DA SILVA. A reinveno do passado em Tropical sol da liberdade. 01/11/2005; Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN LETRAS.

18. ANNA CLAUDIA DE MORAES RAMOS. A esttica do imaginrio: um olhar sobre a literatura infantil e juvenil. 01/12/2005; Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - LETRAS (CINCIA DA LITERATURA).

19. LUIZ FERNANDO DE FRANA. Personagens negras na literatura infantil brasileira: da manuteno desconstruo do esteretipo. 01/02/2006; Mes-

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trado. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO - ESTUDOS DE LINGUAGEM.

20. ETIENE MENDES RODRIGUES. Bem do seu tamanho e Bento-que-bento-o-frade: da anlise sala de aula. 01/03/2006; Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA/JOO PESSOA LETRAS.

21. SUSANA RAMOS VENTURA. Trs romances em dilogo: Estudo comparado entre Manual de pintura e caligrafia, de Jos Saramago, Tropical sol da liberdade, de Ana Maria Machado e Terra sonmbula, de Mia Couto. 01/04/2006; Doutorado. UNIVERSIDADE DE SO PAULO - LETRAS (ESTUDOS COMPARADOS DE LITERATURA DE LNGUA PORTUGUESA).

22. MRIO FEIJ BORGES MONTEIRO. Permanncia e mutaes: o desafio de escrever adaptaes escolares baseadas em clssicos da literatura. 01/05/2006; Doutorado. PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO DE JANEIRO Letras.

23. CRISTIANE MADANELO DE OLIVEIRA. Brincando de desconsertar o masculino: um olhar sobre a produo para crianas de Ana Maria Machado. 01/08/2006; Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - LETRAS (LETRAS VERNCULAS).

24. Diogenes Buenos Aires de Carvalho. A adaptao literria para crianas e jovens: Robinson Cruso no Brasil. 01/09/2006; Doutorado. PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL - LINGSTICA E LETRAS. As dissertaes e as teses especificadas acima contriburam para esta pesquisa, pois contm dados esclarecedores sobre as obras da autora, inclusive, sobre os recursos estticos por ela utilizados que auxiliaram e ampliaram os estudos aqui propostos. Ressaltamos, ainda, obras publicadas especialmente com estudos da produo literria e a vida da autora:

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Ana e Ruth: 25 anos de literatura (1995); Ana Maria Machado (2000); Mundos e submundos Estudos sobre Ana Maria Machado (2003); Trana de Histrias A criao literria de Ana Maria Machado (2004); Nos bastidores do imaginrio Criao e literatura infantil e juvenil (2006). Ana e Ruth: 25 anos de literatura (1995), publicao da Editora Salamandra, que comemorava vinte e cinco anos de existncia, assim como Ana Maria Machado e Ruth Rocha comemoravam vinte e cinco anos de produo literria. Ana Maria Machado (2000), escrita por Amlia Lacombe, essa obra relaciona as histrias de Machado e sua infncia, e assim, podemos conhecer como foram os primeiros contatos da escritora com os livros e palavras. Mundos e submundos Estudos sobre Ana Maria Machado (2003), livro que rene vinte artigos crticos, escritos por estudantes da Universidade Federal de Gois,que concluram o curso em 2004, sob a orientao da professora Vera Maria Tietzmann Silva. Trana de Histrias A criao literria de Ana Maria Machado (2004), rene dez estudiosos que mergulham nas diversas facetas da autora e revelam em profundidade suas obras. Os textos foram organizados por Maria Teresa Gonalves Pereira e Benedito Antunes. Nos bastidores do imaginrio Criao e literatura infantil e juvenil (2006), escrito por Anna Cludia Ramos que prope um estudo da Literatura Infantil e Juvenil sob vrios olhares, analisando narrativas de Ana Maria Machado. Esta obra traa percursos para se alcanar uma Literatura Infantil e Juvenil de qualidade. A fim de delimitar o corpus de anlise, uma vez que a escritora possui mais de 150 obras publicadas, foi feita, inicialmente, uma leitura de vrios ttulos de Ana Maria Machado, foram desconsideradas obras de adaptao e traduo. A autora tambm tem um nmero significativo de livros em que todas as personagens so animais. Ainda que, muitas vezes, tenha sido possvel identificarmos certa antropomorfizao de animais, optamos por desconsiderar tais histrias. Houve a preocupao de escolher textos que ilustrassem melhor a questo da construo das personagens femininas, mesmo aqueles em que a persona-

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gem feminina no a protagonista. O material selecionado traz sempre personagens humanas que interagem de alguma forma com as questes aqui propostas. Embora, no total, tenha sido feita a leitura de vrias obras, certos textos no apresentavam, aps um tratamento mais aprofundado, potencialidade para a abordagem do assunto aqui proposto. O intuito refletir sobre questes que marcam possveis semelhanas e diferenas na construo das personagens femininas infantis, juvenis e adultas. Como j mencionado, abordaremos, ainda, aspectos relacionados linguagem das narrativas em questo, cuja finalidade ser realar a construo dessas personagens, pois as narrativas esto pautadas na oralizao do discurso, aproximando-se da linguagem coloquial de leitores distintos, garantindo, assim, a coerncia das personagens no mundo ficcional. O corpus da pesquisa est assim delimitado:

Obras Infantis: Bem do seu tamanho (1980) Bisa Bia Bisa Bel (1982) Menina bonita do lao de fita (1984)

Obras Juvenis: Isso ningum me tira (1994) Tudo ao mesmo tempo agora (1997) Amigo comigo (1999)

Obras Adultas: Alice e Ulisses (1983) Tropical sol da liberdade (1988) A audcia dessa mulher (1999)

O critrio de seleo das obras foi pautado na idade das personagens das narrativas elencadas, a fim de embasar as possveis semelhanas e diferenas entre as trs modalidades em que Ana Maria Machado escreve. Portanto, a escolha dos livros analisados advm da importncia que eles tm na produo literria

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da escritora e da tentativa de observar a construo dessas personagens em momentos diferentes desse percurso. Essa abordagem marca o diferencial dessa dissertao, pois no h, at o momento, nenhuma pesquisa que tenha trabalhado com esse enfoque. Enveredamos por tal percurso pelo carter diferenciador em relao aos numerosos trabalhos acadmicos que se debruam sobre as representaes femininas nas obras de Ana Maria Machado. Alm disso, a recorrncia da temtica ligada ao ato de ludismo, em vrios ttulos da escritora, revela uma preocupao com o assunto, que brinca com as palavras. Essa necessria delimitao no ser impedimento, no entanto, para referncias a outras personagens da escritora em estudo durante a anlise. Para realizar a proposta, foi empreendido um levantamento de ttulos em que figurassem, de maneira significativa, personagens femininas. Assim, abordamos, neste primeiro captulo, os motivos pelos quais escolhemos trabalhar com obras para leitores diferenciados escritas por Ana Maria Machado, destacamos sua importncia no cenrio literrio nacional e internacional e qual ser o foco principal a ser pesquisado. Relacionamos, ainda, o corpus que ser analisado e elencamos as Dissertaes e Teses realizadas at o presente momento sobre a produo da autora, ressaltando ainda o trabalho defendido no exterior como a Tese apresentada na Universidade Livre de Berlim (Neuere Premdsprachliche Philologien), Alemanha 1994, por Bettina Neumann, com o ttulo: Literatura infantil brasileira: Lygia Bojunga Nunes e Ana Maria Machado. De acordo com a justificativa, os objetivos e a metodologia apresentados neste primeiro captulo, esta dissertao conta, ainda, com mais quatro captulos, entrelaados entre si: dois de teor terico, um das anlises baseadas nas teorias estudadas, um dedicado avaliao das obras estudadas e o ltimo direcionado concluso do trabalho. No segundo captulo, intitulado: Fundamentos Histrico-Tericos, o estudo aborda as diversas concepes de literatura, destacando as divergncias que o tema suscita quanto a sua conceituao. Em seguida, fazemos uma explanao sobre concepes relacionadas Literatura Infanto-Juvenil e sua origem, a Literatura Infanto-Juvenil e a Ps-Modernidade, bem como acerca da Literatura e formao do leitor. Em uma segunda etapa, adentramos nos caminhos da teoria que

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norteia este trabalho, canalizando nossa ateno na Esttica da Recepo e na Teoria do Efeito. No captulo trs: Ana Maria Machado: os caminhos de Ana - apresentamos dados biogrficos da autora e caractersticas gerais pertinentes sua produo literria, enfocamos, ainda, sua fortuna crtica e os livros direcionados produo de conhecimento. O captulo quatro: Na trilha das personagens femininas de Ana, dedicamos anlise do corpus, mediante a aplicao dos pressupostos tericos j apresentados. No quinto e ltimo captulo: Consideraes Finais: E as meninas cresceram: resgatamos as obras analisadas entrelaadas ao embasamento terico proposto para salientarmos as semelhanas e diferenas na construo das personagens femininas direcionadas a pblicos diferenciados e explanamos as concluses finais para tentarmos responder s questes iniciais que impulsionaram este estudo.

23 [Di gite um CAPTULO II FUNDAMENTOS HISTRICO-TERICOS a cita tao Por sua prpria natureza, a criao artstido ca procura caminhos de inconformidade e doruptura. cu Ana Maria Machado, 1999. me nto ou o Quando resolvemos realizar esta pesquisa, consideramos importante, nesrete captulo, enfocar questes sobre a natureza e as funes do texto literrio e os su aspectos referentes leitura e ao leitor, o qual d vida e significao obra mo de de arte. Com isso em mente, empreendemos uma abordagem crtico-terica, resgaum tando conceitos sobre literatura, literatura infanto-juvenil e formao do leitor. a que Este estudo est dividido em duas partes que se ligam e se encontram no st o sentido de um gradativo estreitamento do assunto em questo. No tpico intitulaindo: Um encontro com a literatura - enfocamos algumas concepes de literatura e teres a polmica engendrada pelas contradies existentes no interior das prprias san conceituaes de literatura. te. Vo Em seguida, apresentamos abordagens de carter mais geral sobre conc ceitos relacionados literatura infantil e juvenil, bem como seu surgimento na Eupo de ropa e no Brasil e, na seqncia, a literatura infanto-juvenil e a ps modernidade poe a formao do leitor. sici cio Neste mesmo captulo, abordamos a esttica da recepo, a teoria do efeioto e os leitores. Para empreender esse percurso, explanamos, inicialmente, acernar a ca de como a esttica da recepo e a teoria do efeito podem contribuir para a cai formao dos futuros atores sociais. xa de tex 2.1. Um encontro com a literatura to em qua lqu [...] a literatura, por fazer um uso esttico er da palavra, experimenta o que ainda no lufoi dito, inventa algo novo, prope prottigar pos [...] do Ana Maria Machado, 2001. docu me nto . Us ea

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No encontro com qualquer forma de arte (re-presente-ao da realidade), os seres humanos tm a oportunidade de ampliar, transformar e enriquecer sua prpria experincia de vida. Dentre as manifestaes artsticas, a literatura ocupa um papel de destaque, porque tem como matria-prima a palavra. exatamente a palavra que garante especificidade ao humano, por ser o veculo de elaborao e sistematizao do pensamento. Em face da realidade transitria, passageira e, at mesmo, fugaz, a literatura a possibilidade de representar simbolicamente, na dimenso de quem escreve e no ngulo de quem l, a vida que realmente vivemos ou as personagens que, imaginariamente, inventamos dentro de ns. De certa forma, pode se dizer que a literatura motivada pelo medo ancestral de esquecer, recuperando, na arte da palavra, um modo de ser feliz. Como inveno, como fico, como criao, a literatura aponta para o que poderia ter sido e s provisoriamente ainda no . No ensaio A literatura contra o efmero (2001), o escritor e crtico italiano Umberto Eco lana luzes sobre as funes da arte da palavra, um bem imaterial. Em seu percurso, reafirma que a literatura, em princpio, no serve para nada, mas uma viso to crua do prazer literrio corre o risco de igualar a literatura ao jogging ou s palavras cruzadas (p. 12). A gratuidade da arte da palavra, entretanto, no to simples como aparenta, por extrapolar finalidades meramente informativas e de fruio. Ainda, acrescenta Eco, os grandes livros contriburam para formar o mundo (2001, p. 12, grifo nosso). Essa especial forma de arte convida o leitor ao exerccio da imaginao e da recriao de significados, de modo que se possam estabelecer novas relaes entre as pessoas e o mundo, intermediadas pela palavra. Conceituar literatura instiga tericos e crticos desde a Antigidade grecolatina. Pode-se dizer que Aristteles (384 a.C.) com o conceito de mimese (do grego mmesis imitao), destacou-se nos estudos acerca do assunto. A partir desse princpio, enfatizou-se o vis cognitivo da literatura, uma vez que se entendia a arte como recriao da realidade. Nessa linha, sculos depois, o crtico e professor de teoria cultural da Universidade de Oxford, Terry Eagleton, detm-se na mesma questo. Em um livro de referncia na rea de estudos literrios, Teoria da literatura: uma introduo (1997), o crtico dedica toda a parte inicial da o-

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bra a um percurso histrico sobre os conceitos atribudos literatura. Para o enfoque desta dissertao, interessa o fechamento do captulo, transcrito a seguir:

Portanto, o que descobrimos at agora no apenas que a literatura no existe da mesma maneira que os insetos, e que os juzos de valor que a constituem so historicamente variveis, mas que esses juzos tm, eles prprios, uma estreita relao com as ideologias sociais. Eles se referem, em ltima anlise, no apenas ao gosto particular, mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantm o poder sobre outros (EAGLETON, 1997, p. 22).

Nesta leitura, cumpre destacar a relao estabelecida por Eagleton (1997) entre literatura, ideologia e poder. Esse trinmio enfatiza a importncia da literatura, sobretudo, no que diz respeito construo de valores que uma sociedade vai adotar como parmetro, em um determinado momento histrico. Para Antonio Candido (1982), a literatura promove um espao de derivao e retorno. Por ser um movimento dialtico, proporciona um espao de debate entre pessoas diferentes, j que o texto literrio configura-se como uma transposio do real a partir de como o autor v o mundo. Teresa Colomer (2001), concebe literatura de modo singular: a literatura porosa. Assim como Antonio Candido, trata a literatura como reconfigurao do real, pois ela muda o mundo a partir de seu ponto de vista a literatura e no o mundo. Enfatiza, ainda, a capacidade formativa da literatura, pois todo o conhecimento do mundo est no texto. Como prope debates humanos, tem de ser considerada um patrimnio extremamente positivo, porque possibilita um reconhecer-se. Para Antoine Compagnon (2001), literatura um conhecimento especial e, segundo Aristteles, tem duas finalidades: instruir ou agradar e o prazer de aprender na origem da arte potica. Tambm absorve a funo de compreender e regular o comportamento humano e a vida social. Para Zilberman (1990), a literatura, alm de despertar a fantasia no leitor, provocando seu mundo interior, tambm faz nascer um posicionamento intelectual. Mesmo que o mundo representado no texto parea afastado no tempo, produz um reconhecimento em quem l e faz o leitor refletir sobre seu cotidiano. Ao acrescentar conhecimentos diferenciados, ele ir socializar sua prtica com a leitu-

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ra, tirar concluses com outros leitores, enfim, a leitura promove o dilogo, a troca de experincias e a diversidade de preferncias. Sabemos do elo fraternal que a literatura estabelece entre os seres humanos e faz transcender as barreiras do tempo, pois propicia a sensao de sermos parte da experincia coletiva atravs do tempo e do espao. Portanto, a maior conquista da cultura e nada contribui mais para renov-la, a cada gerao, do que a literatura. O que a literatura deu humanidade, ento? Um de seus primeiros legados foi, sem dvida, a linguagem. O que seria da humanidade sem romances? Isso tambm vale para o indivduo, pois pessoas que nunca lem ou lem muito pouco, podem at falar muito, mas dispem de um repertrio mnimo de palavras para se expressar. Assim, nenhuma disciplina substitui a literatura na formao da linguagem. Outro motivo para se conferir a ela um lugar de destaque na vida das pessoas o fato de que, sem ela, no haveria senso crtico - verdadeiro motivador de mudanas histricas e de liberdade, pois a literatura prope mudanas histricas e questionamentos acerca do mundo em que vivemos. Podemos dizer que, de certa forma, a literatura apazigua a insatisfao existencial, nem que seja apenas por um momento. No momento da leitura, o leitor se considera diferente: mais rico, feliz, intenso, complexo e lcido, porque a literatura permite viver em um mundo onde as regras inflexveis da vida real podem ser quebradas, onde o sujeito se liberta do tempo e do espao, onde se podem cometer excessos sem castigo. Desta maneira, a vida imaginada dos romances provavelmente melhor: mais bonita, diversa, compreensvel, at perfeita, e, quem sabe, seja esta a maior contribuio da literatura: lembrar que o mundo pode ser melhor, mais parecido com o que a imaginao capaz de criar. O texto literrio estimula a imaginao e a insatisfao, refina a sensibilidade e ensina o caminho para a liberdade, garante uma vida mais rica e intensa. Por toda sua capacidade inventiva, a arte literria sempre fico, no sentido de realidade imaginada e criada pela palavra, sem necessariamente precisar ser comprovada com o real. Entretanto, por mais alegrico, fantasioso, absurdo que seja um conto, um poema ou uma novela, o texto literrio mantm estreitos

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vnculos com a realidade humana e s o homem, na sua existncia real, seu foco de interesses e ateno. Este talvez seja o trao mais generosamente humano da literatura e sua prpria razo de existir expressar a profundidade da dor e da alegria, a luta e a desistncia, o amor e o desencontro, a morte e o retorno, o misterioso e o prosaico, o desejo e a frustrao, a liberdade e a descoberta, a fome e os excessos, a persistncia e a fuga, a imobilidade e a peregrinao, contribuindo, assim, para a formao tica, esttica e histrica do homem em permanente processo de descoberta e revelao.

2.1.1. Concepes de literatura e literatura infanto-juvenil

Mergulhar no universo da literatura infanto-juvenil adentrar a magia, o religioso, o filosfico, o mundo real e imaginrio, a arte e a cincia. Ana Jlia Gonalves Matiazo, 2003.

2.1.2. Literatura Infanto-juvenil e sua origem

A Literatura Infantil surgiu como reflexo de transformaes sociais e, desde sua origem, estimula uma reflexo que procura definir suas normas no contexto das artes em geral. Essa preocupao se deve especificidade do gnero, pois destoa de outras formas de manifestao artstica, j que em sua g marcada pelo adjetivo que a caracteriza. Por isso, observamos uma luta entre o conceito de literatura enquanto construo lingstica, definida por sua autonomia, e o designativo infantil que invoca um leitor determinado, assim, o gnero obrigado a atender aos interesses desse receptor. A compreenso desse impasse comea a se delinear com traos mais ntidos, quando nos situamos na origem da questo, no momento em que surgem na Europa, textos escritos destinados ao pblico jovem. A origem da literatura para crianas est associada a fatos econmicos e sociais. Os primeiros escritos liter-

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rios para o pblico infantil foram produzidos, no final do sculo XVII e durante o sculo XVIII, perodo em que a Revoluo Industrial deflagrada. A Revoluo Industrial determinou o crescimento poltico e financeiro das cidades e a industrializao teve como reflexo direto a decadncia do sistema medieval, baseado no feudalismo e na valorizao do poder rural. Substituindo os senhores feudais, a burguesia se afirma como classe social urbana, incentivando a consolidao de instituies que a auxiliem a atingir as metas desejadas. Entre essas instituies, destacam-se a famlia e a escola, porque surgia, naquele momento, uma nova concepo de criana e de famlia. O Estado Absolutista, interessado em romper a unidade do poder dos feudos, passa a estimular um modo de vida mais domstico e menos participativo publicamente. Para tanto, surge um esteretipo familiar baseado na organizao patriarcal e no modelo familiar nuclear. Com a desestruturao da famlia burguesa, que agora no mais se importava com os elos de parentesco para a sua ascenso, surgiu a estrutura unifamiliar privada. Esse novo ideal familiar mantinha vnculos afetivos mais fortes entre seus membros. Somente depois dessa mudana de concepo, comeou a se pensar em uma literatura para as crianas, pois, at o sculo XVII, elas eram vistas como adultos em miniatura, portanto era inevitvel uma educao dirigida a elas, surgindo, ento, a organizao escolar. Todavia, naquela poca, a literatura baseava-se em uma formao de cunho pedaggico, ou seja, incutia normas e valores a serem seguidos pelas pessoas para poderem viver de maneira correta no meio social em que se encontravam. Isso pode ser percebido pela posio hierrquica do adulto frente s crianas. Naquele contexto social, conforme destaca Zilberman (1987, p. 18): [...] Criana , assim, o reflexo do que o adulto e a sociedade querem que ela seja e temem que ela se torne, isto , do que o adulto e a sociedade querem, eles prprios, ser e temem tornar-se. Essa postura tpica da classe burguesa que desejava, com tais atitudes, manter a dominao das camadas sociais inferiores, a fim de que elas a servissem e continuassem agindo de acordo com seus interesses e ideais. Em uma sociedade em que o processo de modernizao flagrante em virtude da industrializao, cabe escola adequar o jovem a esse novo quadro

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social. Isso feito, inicialmente, por meio da alfabetizao, habilitando a criana a consumir as obras impressas que proliferavam no sculo XVIII. Com essa viso, abre-se um espao novo para a criana. No mbito escolar, ela passa a ter acesso a uma literatura previamente selecionada pelo adulto, com o intuito de reafirmar valores e normas e assegurar a formao de indivduos passivos e obedientes. Dessa forma, a escola tambm participou de uma ao manipuladora que foi introduzida atravs da prpria literatura, reproduzindo o mundo dos adultos. Os primeiros escritos literrios feitos para as crianas foram produzidos por educadores, tendo um forte carter educativo, j que visavam manipulao do indivduo. Por conseqncia, essa produo literria no entendida como arte, pois ela possui uma finalidade pragmtica. As relaes estabelecidas entre literatura e educao nem sempre foram positivas, j que as crianas e os jovens no querem aprender somente por meio dela. Por outro lado, a escola um excelente lugar para que se desenvolva o gosto pela leitura e se mantenha um saudvel dilogo entre o livro e seu destinatrio mirim. Na literatura infantil, essa negatividade est fortemente presente, pois suas contribuies eram, inicialmente, apenas de cunho pedaggico, como j foi salientado. Tanto na literatura quanto na escola, a criana era vista como um ser inferior, que obedecia s normas e aos valores ditados pelos adultos, no caso da escola, pelo professor. Com essa formao pedaggica incutida nos livros de literatura infantil que, em sua grande maioria, trabalhava o individual atravs de personagens do tipo super-heris, tanto a sociedade como a escola, negavam o aspecto social, afetivo, familiar e econmico das crianas. No momento em que se negava uma educao voltada para o desenvolvimento da inteireza do ser, tambm se negava o direito de livre expresso. Isso, por sua vez, novamente, contribua para a classe dominante continuar em evidncia e, tanto a sociedade como a escola eram partcipes do processo de manipulao das crianas, conduzindo-as ao acatamento das normas, sem question-las. Assim, de forma inquestionvel e praticamente natural, estabeleceu-se um vnculo entre dominador e dominado que reproduzia o modelo capitalista de organizao social. Portanto, a emergncia dessa literatura associa-se, desde as origens, a uma funo utilitrio-pedaggica, as histrias eram elaboradas para se converte-

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rem em divulgadoras dos novos ideais burgueses. Dessa forma, a literatura infantil esteve, durante praticamente todo seu percurso histrico, a servio da ratificao do cnone do poder: heterossexual, adulto e jovem, europeu, burgus, capitalista, branco, catlico e ocidental. Surge, ento, o grande impasse que acompanhar todo o percurso de evoluo do gnero: arte literria ou produto pedaggico - comercial? Tal impasse faz surgir um questionamento incmodo: se, de um lado, tantas concesses interferem na qualidade artstica dos textos, de outro, denunciam, sem concesses de qualquer grau, que a literatura no subsiste como ofcio. Ou seja, sem abrir espao para a mediao do leitor no seu processo de elaborao, a literatura no se socializa. No intuito de solucionar toda essa problemtica, a literatura Infantil e seus estudos ganham importncia.

2.1.3. Literatura: pontos e contrapontosA literatura infantil, adulta ou senil, esses adjetivos no tm a menor importncia constituda por textos que rejeitam esteretipos. Ana Maria Machado, 2001.

A literatura infanto-juvenil uma das mais recentes formas literrias existentes. No Brasil, surgiu quase na metade do sculo XIX. Em 1808, ao iniciar-se a atividade editorial no pas, comea a publicao de livros traduzidos para as crianas. As tradues dos livros infantis, inicialmente, no eram adaptadas realidade lingstica brasileira. Alm disso, havia a preocupao pedaggica e a necessidade de consolidao dos valores da aristocracia. De carter universal, prevalecia uma literatura de cunho moralista, prpria do sculo XIX, direcionada infncia e adolescncia: formadora de carter, de moral identificvel, com modelos de virtude, amor e desprendimento a serem seguidos pelas crianas e jovens. Os ttulos j indicam o seu contedo: Modelos para os meninos ou rasgos de humanidade, piedade filial e de amor fraterno, publicado em Recife em 1869 e que consiste numa coleo de historietas recheadas do cdigo moral vigente; e As manhs da av : leitura para a infncia, publicado

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pela Garnier em 1877, com vrias histrias morais dedicadas s mes de famlia que norteariam seus filhos nos princpios , usos e costumes de nossa terra. Dentre os autores pioneiros que efetuaram uma Literatura comprometida com a transmisso de valores da poca e com o didatismo escolar, destacam-se: Csar Borges (1824 -1891), com O livro do povo (1861); Ablio Antnio Marques Rodrigues (1826-1873), que publicou O mtodo Ablio (1869); Hilrio Ribeiro de Andrada e Silva (1847-1886), com A Srie Instrutiva (1882); Jlia Lopes de Almeida (1862-1934), com a obra Contos Infantis (1886); Zalina Rolim (1869-1961) e Francisca Jlia (1871-1920), com as obras Livro das crianas (1897) e O livro da Infncia (1899). Outros nomes de grande destaque no universo escolar, durante o entre sculos, foram: Felisberto de Carvalho - Livros de Leitura e Srie Didtica (1890); Romo Puiggari - Coisas Brasileiras (1893); Romo Puiggari e Arnaldo de Oliveira Barreto - Srie Puiggari - Barreto (1895); Arnaldo de Oliveira Barreto - Cartilha das Mes (1895); Joo Kopke - Livros de Leitura (1895); Fausto Barreto e Carlos Laet - Antologia Nacional (1895) e Figueiredo Pimentel - Contos de Carochinha (1896). Outros escritores tambm se evidenciaram abundantemente na Literatura infanto-juvenil brasileira : Viriato Correia - Era uma vez (1908); Arnaldo de Oliveira Barreto - Biblioteca Infantil (1915) e Tales de Andrade - Saudade (1919) , mas, fora, sem sombra de dvida, o escritor Olavo Bilac (1865-1918) uma das maiores expresses literrias do gnero infantil, no Brasil, no incio do sculo XX. Olavo Bilac expressa bem a linha nacionalista no panorama do gnero infantil, onde se observam os esforos do escritor em disseminar uma cultura de civismo e patriotismo. Seu nome, conjuntamente com o de Afonso Celso, exprime os ideais do nacionalismo ufano, cujas idias centrais giram em torno do amor Ptria e evocao ao militarismo. Um dos grandes sucessos na literatura escolar brasileira fora Atravs do Brasil (1910), obra escrita conjuntamente com o educador Manuel Bonfim (1868/1932). O livro estrutura-se mediante a orientao nacionalista e segue o gnero viagem pedaggica, que iniciara na Europa, na segunda metade do sculo XIX. A grande novidade que o livro traz, poca, a unidade narrativa. Unindo o til e o agradvel, os autores desenvolvem as aventuras de dois irmos

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rfos e um amigo que, por vrias circunstncias, viajam pelo Pas. A narrativa, dando maior nfase s terras do So Francisco, desencadeia informaes histricas, geogrficas ou de cincias naturais, e situaes dramticas e/ou pitorescas. Os valores ideolgicos imbudos em Atravs do Brasil expressam o idealismo da poca, valores que se manifestam em torno do iderio nacionalista amparado nas concepes filosfico-educacionais modernas, associados ao processo de expanso da escola, difuso e massificao da leitura literria s classes populares. Os intelectuais compartilhavam das mesmas inquietaes sobre a problemtica educacional; dedicando-se ao trabalho de escrever livros instruo primria. Para Lajolo (1982), Bilac e Bonfim detinham a faca e o queijo na mo: alm de uma edificante tarefa patritica, uma promissora fonte de renda, assegurada pela facilidade com que seus livros seriam adotados. Alm de Atravs do Brasil, Bilac escreve, em parceria com Coelho Neto, Contos Ptrios e A Ptria Brasileira. No gnero poesia infantil, publica Poesias Infantis (1904), obra de grande sucesso at a segunda metade do Sc. XX. E somente em 1920, Monteiro Lobato realiza um projeto diferente das produes anteriores. Conforme Zilberman e Lajolo (1986) ressaltam, a produo literria de Monteiro Lobato confirma a preocupao esttica e emancipadora do texto voltado para o pblico infantil em oposio ao projeto pedaggico. O Stio do Pica-pau Amarelo, criao lobatiana, o ponto de entrada de todas as narrativas, como exemplo: O saci (1921), Reinaes de Narizinho (1931), O pica-pau amarelo (1939), A chave do tamanho (1942), entre outras. Com efeito, uma contribuio lobatiana para a literatura brasileira est em no subestimar a capacidade de entendimento das crianas frente realidade. Assim, o idealizador do Stio assumiu uma posio ativa em relao ao quadro social e mostrou o mundo ao pblico infantil. Tal posicionamento esttico e ideolgico expresso pelo filsofo e escritor francs, Jean-Paul Sartre, no livro Que a literatura, de 1989 (p. 21):

O escritor decidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade. [...] a fun-

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o do escritor fazer com que ningum possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele.

No livro, em que discute sobre quem escreve e para quem se escreve, Sartre aponta a necessidade de engajamento por parte do escritor, sugerindo justamente o posicionamento assumido por Lobato, que manifesta, sobretudo, atravs das contundentes perguntas de Emlia, a idia do questionamento de valores por parte de todos, inclusive, das crianas. Nessa mesma perspectiva, em um livro de referncia para os estudos de literatura para crianas e jovens, Literatura infantil: teoria, anlise, didtica (2000), Coelho enfatiza o potencial da arte da palavra como agente de transformaes da mentalidade:

no sentido dessa transformao necessria e essencial (cujo processo comeou no incio do sculo XX e agora chega, sem dvida, s etapas finais e decisivas) que vemos na literatura infantil o agente ideal para a formao da nova mentalidade que se faz urgente (p. 16).

Nas dcadas posteriores, ocorre crescente produo literria que responde aos mecanismos culturais, polticos e econmicos e se apresenta uma expanso no consumo e na produo de livros. A partir dos anos 60, surge, na literatura, uma multiplicidade de recursos que parece recuperar imagens de um pas dividido: de um lado, os que se beneficiavam das novas medidas implantadas pelo regime militar, de outro, aqueles que o combatiam mo armada e a maioria da populao que sofria com os baixos salrios. Assim como a literatura no infantil, cujo espao era a representao crtica da realidade, a Literatura Infantil da poca procura ingressar nesta tendncia. A aproximao entre a literatura infantil de hoje da no infantil aconteceu por meio da temtica urbana, da linguagem e da maneira de produo e circulao dos livros. Segundo Zilberman e Lajolo (1986) foi por meio das imagens construdas do Brasil presentes nas obras escritas para crianas, que se identificam ideologia pela qual a literatura infantil contempornea aproxima-se da no infantil. Para a felicidade do mercado editorial e dos leitores, muitos escritores de qualidade se destacaram com ttulos para o pblico infantil, porque resolveram

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investir na formao de uma nova mentalidade. De fato, nesse cenrio, so muitos os nomes que anunciam a influncia lobatiana, como Ruth Rocha, Lygia Bojunga, Ziraldo e, dentre outros, a autora escolhida para este trabalho. A esse respeito, Ana Maria Machado reflete:

Somos um pas que teve Monteiro Lobato, ento um bando de gente que cresceu lendo e vivendo o universo lobatiano foi virando gente grande e comeou a mostrar as marcas disso justamente essa capacidade de no se isolar a fantasia do real (1995, p. 51apud BASTOS).

O dilogo da literatura infantil contempornea com a literatura adulta se d, ainda, atravs de recursos semelhantes, tais como o resgate de formas regionais de cultura, como fizeram Jorge Amado e Ariano Suassuna, reelaborando formas de novelas antigas e a estrutura de cordel. A literatura infantil tambm lana mo dessas recriaes nos anos 70. No caminho da metalinguagem, a literatura se tematiza, como nas obras de Clarice Lispector, ou patrocina dilogos e reescritas como em Ana Maria Machado, em Histria meio ao contrrio (1978). Nessa narrativa, h reverso das expectativas, garantindo a receptividade do texto, invertendo e revertendo os elementos dos contos de fadas tradicionais. No entanto, a partir dos anos 80 que se d o boom da literatura infantojuvenil. Nesse panorama, contextualiza-se a produo literria de Ana Maria Machado, tanto nas obras de cunho infantil e juvenil quanto nas de temas diversos. As obras da escritora, atravs das personagens e das situaes criadas, questionam valores, desmantelando preconceitos, principalmente, sobre o enfoque dado mulher. Cabe literatura infantil no s iniciar o ser humano no mundo literrio, mas ser um instrumento de sensibilidade e uma possibilidade de despertar a conscincia, expandindo a capacidade de ver o mundo, sem que, para isso, esteja a servio de algum intuito. At bem pouco tempo, a literatura infantil era considerada como um gnero secundrio, vista pelo adulto como algo pueril (nivelada ao brinquedo) ou til (forma de doutrinao). A valorizao da literatura infantil, como formadora de conscincia dentro da vida cultural das sociedades, bem recente. Com base

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nessas consideraes, pode-se depreender a importncia da literatura infantil, pois apresenta um potencial de manipulao de ideologias em formao. O movimento da ps-modernidade que, simbolicamente, nasceu com o estouro da bomba de Hiroshima sobre as rupturas modernas, trouxe mudana de perspectiva nas artes e nas sociedades. A profuso de notcias, a tecnologia virtual, o simulacro, a erotizao, a ausncia de valores e o individualismo so algumas marcas dessas transformaes do pensamento ocidental. Em plena era da informao, do chamado "Quarto Poder" - os meios de comunicao, os valores passam a ser questionados, dentre eles, a noo de centro. Percebe-se um movimento descentralista e uma valorizao dos grupos marginais, das minorias. Nesse sentido, os silenciados pelo cnone, como minorias tnicas e mulheres, comeam a questionar suas posies em relao ao poder. Abordar qualquer assunto ligado criana, em se tratando de ocidente, significa tematizar uma minoria, desconsiderada na viso elitista e cannica. Como outras minorias, a criana no tem direito voz, no dita valores; pelo contrrio, dependente e conduzida por quem detm o poder econmico: os adultos. A literatura para crianas, por muito tempo, reproduziu esse modelo cannico. A ps-modernidade, com toda sua linha crtica, incita aos questionamentos em qualquer manifestao da cultura, inclusive, no mbito da literatura. Dentre nomes de relevo na produo literria infantil brasileira contempornea, figuram autores como Ligia Bojunga, Ruth Rocha, Ziraldo e Ana Maria Machado, j citados, e Sylvia Orthof, Ricardo Azevedo e outros. Os textos desses escritores no apresentam uma viso pronta, mas um convite para partir "do mundo da leitura para a leitura do mundo". Como esta dissertao privilegia Ana Maria Machado, cabe destacar sua declarao no prefcio do livro Contracorrente (1999, p. 7):

Sou mesmo contra a corrente. Contra toda e qualquer corrente, alis. Contra os elos de ferro que formam cadeias e servem para impedir o movimento livre. E contra a correnteza que na gua tenta nos levar para onde no queremos ir. No fundo, tenho lutado contra correntes a vida toda. E remado contra a corrente, na maioria das vezes. Quando as maiorias comeam a virar uma avassaladora uniformidade de pensamento, tenho um especial prazer em imaginar como aquilo poderia ser diferente.

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Vale destacar que Ana Maria Machado tanto em Contracorrente (1999) como em Texturas (2001), destaca que o importante realmente, ao abordar literatura infantil, o substantivo literatura e no o adjetivo infantil. Assim, ressalta que literatura infantil diz respeito quela que tambm pode ser lida por crianas. Segundo a escritora permite aumentar o campo semntico do substantivo literatura, j que de maneira geral no carrega a noo de que inclui livros destinados aos jovens. Portanto, no se trata pura e simplesmente de livros somente para crianas, porm antes de tudo, trata-se de literatura - de narrativas que ao rejeitar o esteretipo, primam pela inveno.

2.1.4. A literatura infanto-juvenil e ps-modernidade

Entre 1950 e 1960, notou-se que o Modernismo tinha se tornado centralizador, clssico e cannico. O Ps-modernismo caracteriza-se como uma reao ao elitismo do Modernismo. Conforme Leyla Perrone-Moiss (1998, p. 183): A definio do ps-moderno se faz, quase sempre, pela forma negativa, a partir de um feixe de traos filosficos ou estilsticos opostos aos modernos. O psmodernismo pode ser considerado um movimento esttico e filosfico, com Nietzsche, Lyotard, Foster e outros, que comeou na segunda metade do sculo XIX e vem, talvez, at os dias de hoje. A literatura ps-moderna mostra um rompimento com a desconstruo da linguagem, da identidade e da prpria escrita. Os traos ditos ps-modernos so: heterogeneidade, diferena, fragmentao, indeterminao, relativismo, desconfiana nos discursos universais dos metarrelatos, identificados como totalitrios, e o abandono das utopias artsticas e polticas. O ps-modernismo pode ser visto sob duas vertentes, denotando um perodo que analisa a situao da cultura da sociedade ocidental a fim de mostrar o conjunto da expresso popular e da comunicao de massa, bem como destacar as manifestaes culturais da poca atual na histria da infra-estrutura econmica e industrial. A segunda vertente seria como gnero ou estilo esttico: termo anal-

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tico-descritivo com convenes tcnicas e metodolgicas prprias, crtica linguagem, identidade, verdade. Podendo ainda ser aplicado a outras manifestaes culturais alm da fico, como arquitetura, pintura, etc. Percebe-se que, no final do sculo anterior, transformou-se a concepo de identidade que sofreu sensveis mudanas por influncia do descentramento. Essa mudana de eixo em relao ao cnone implica dissoluo de fronteiras e imprime transformaes essenciais no campo cultural, com reflexos na literatura. Em funo da fragmentao tambm no mbito social, h um descentramento do sujeito e uma interpenetrao dos discursos. Atravs dos mltiplos olhares sobre a realidade, a filosofia ocidental se baseia na legitimao interesseira das estruturas de poder: a oposio binria entre o bem e o mal justifica e perpetua a diviso da sociedade em um grupo de homens poderosos e em uma maioria de outros, constitudos de negros, pobres e mulheres. Toda a filosofia ocidental se constitui em um artifcio para servir os interesses dessa minoria que detm o poder econmico mutuamente excludente. Pela tica do ps-moderno, o ser fragmentrio por excelncia e o discurso oficial subvertido por vozes minoritrias deixadas, at ento, margem. Dessa forma, as tendncias multiculturalistas intensificadas a partir da dcada de 80 promovem o descentramento cultural, emergindo a preocupao com a valorizao dos produtos culturais locais e sua relao com as demais culturas, sem hegemonias. Como resultado, outros estados, fora do binmio Rio de Janeiro - So Paulo, esto se assumindo enquanto produtores de cultura brasileira e no como meros receptores. Assim, o mundo contemporneo se v aniquilado em indcios mltiplos e fragmentrios, enquanto o ser humano encontra-se em uma busca intensa de si mesmo. Nessas inmeras possibilidades, promove-se uma unio entre a arte e a vida, o cotidiano est sendo desnudado nas nfimas peculiaridades e crueldades. A mdia se encarrega disso. As adversidades polticas no mergulharam o pas em uma calmaria cultural, ao contrrio, as dcadas de sessenta e setenta assistiram a uma produo cultural bastante intensa em todos os setores. Assim, a produo contempornea deve ser entendida como as obras e movimentos literrios surgidos nessas dcadas e que refletiram um momento histrico caracterizado, inicialmente, pelo auto-

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ritarismo, por uma rgida censura e enraizada autocensura. Seu perodo mais crtico ocorreu entre os anos de 1968 e 1978, durante a vigncia do Ato Institucional n 5 (AI-5). Somente aps sua extino, o pas passou por uma progressiva normalizao. No que diz respeito literatura, na ps-modernidade, as formas no esto prontas nem definidas e a fragmentao da narrativa latente. O pluralismo e o ecletismo de estilos so a norma, por isso o leitor ps-moderno deve preencher as suas lacunas, uma vez que as produes so intertextuais e reinventam um novo real. Diante do exposto, o leitor deve usar sua imaginao, interagir com os sentidos. Acontece, ento, uma excelente unio entre as propostas ps-modernas e o real propsito da literatura infantil, juvenil e adulta, pois seu objetivo primordial mexer com o imaginrio de crianas, adolescentes e adultos, bem como contribuir para formar leitores crticos e criativos.

2.1.5. Literatura e formao do leitor

Celebrar a democracia significa tambm no tolerar a intolerncia. Ana Maria Machado, 2001

Durante a ditadura militar no Brasil (1964 1985), muitos autores brasileiros encontraram na literatura infantil o espao para expor seus questionamentos e protestos contra a poltica de represso imposta pelo governo. Tudo isso s foi possvel porque a literatura infantil sempre foi considerada um gnero menor, sem maiores perigos, coisa de mulher e, portanto, no era alvo do olhar incisivo dos censores. Vrios autores denunciavam, atravs de textos dirigidos ao pblico infantil, os abusos de poder e a realidade poltico-social do pas. Ana Maria Machado, em seu livro de artigos, Texturas (2001, p. 81), registra bem esse momento do qual participou ativamente:

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[...] por incrvel que parea, os militares no deram a menor importncia aos livros para criana. [...] E acabou ocorrendo algo inesperado: foi justamente a partir do AI-5 que houve o chamado boom da literatura infantil brasileira [...].

A responsabilidade de produzir para o pblico infantil e juvenil muito mais preocupante, pois as histrias revelam, em suas entrelinhas, todo um cdigo de tica. O conceito de infncia mudou, as relaes culturais mudaram e, como reflexo de tudo isso, a literatura mudou. No se entendia mais a criana como um ser a ser moldado em um adulto exemplar. Sempre que se discutem questes relativas ao incentivo leitura, surge o problema do valor financeiro de cada exemplar e da falta de poder aquisitivo da maioria da populao brasileira. No por falta de dinheiro que no se l e, sim, por falta de uma tradio cultural nesse sentido. Ana Maria Machado revela seu percurso de leitora a escritora e frisa que sua famlia era de origem humilde, mas valorizava a leitura como ferramenta de ascenso social. A perspectiva de Ana Maria Machado sobre o poder da leitura perpassa por essa formao familiar. Em Texturas (2001), revela-se uma concepo de leitura que acaba por se tornar o cerne da potica de Ana Maria Machado enquanto escritora para crianas:

Se a boa leitura garante a possibilidade de ascenso social e a tomada de uma parcela de poder, desenvolvendo a capacidade de ler entrelinhas e pensar pela prpria cabea, pode ser muito perigoso para os privilegiados assegurar a imerso da populao em um ambiente de bons livros (MACHADO, 2001, p.184).

Nelly Novaes Coelho (2000) levanta vrias caractersticas de estilo e estrutura referentes literatura infantil / juvenil contempornea. A maioria delas reflexo das tendncias ps-modernas, como a abordagem de temas e recursos antigos a fim de integr-los as novas estruturas. Algumas particularidades sobre tema e forma de traos ps-modernos, segundo Coelho (2000):

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Seqncia narrativa procuram-se propor problemas a serem solucionados de maneiras diferentes, muitas vezes, co-participativamente, ao invs de apresentar respostas prontas.

Personagens emergem as individualidades que se incorporam ao grupopersonagem, com tendncia valorizao de grupos, patotas, a personagem-coletiva. Surge o esprito comunitrio e a individualidade do heri est pouco presente. As solues apresentadas durante a efabulao dependem da colaborao de todos. Identifica-se, por vezes, uma individualidade no integrada no grupo. Nesse caso, presencifica-se a personagem questionadora que pe em xeque as estruturas prontas, um convite reflexo.

Voz narradora mostra-se mais consciente da presena de um leitor possvel, em um tom mais familiar e at de dilogo. No cabe mais tratar o leitor como receptor da mensagem, pois no h passividade. A perspectiva de interlocutor, em tempos de valorizao da anlise do discurso e da pragmtica.

Ato de contar crescente valorizao da linguagem e todos os processos a ela relacionados. So freqentes as abordagens metalingsticas, com histrias falando de si mesmas e de seu fazer-se.

Espao pode ser um simples pano de fundo para personagens ou participar da dinmica da ao narrativa. Percebe-se uma preocupao crescente de mostrar as relaes existentes nesse espao, a fim de conduzir reflexo.

Nacionalismo busca das origens para definir a brasilidade em suas multiplicidades culturais, com identificao no s sul-americana como africana. Procura delimitar uma nova maneira de ser no mundo: a brasileira.

Exemplaridade deixa de ser usada somente com inteno pedaggica e passa a revelar a ambigidade natural do ser humano, sem maniquesmos. Tende a ser uma maneira de propor problemas a serem resolvidos e estimular a optar conscientemente nos momentos de agir. Muitas caractersticas apresentam-se como marcas ps-modernas e as

encontramos na maioria das obras infantis, juvenis e adultas de Ana Maria Machado.

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2.2. Os caminhos da teoria: a recepo e o efeito

Como nosso objetivo de anlise consiste em reconhecer a construo das personagens femininas nas obras de Machado, no podemos deixar de destacar a recepo crtica do corpus delimitado, a fim de observarmos se os textos conformam o leitor, traduzem regras de conduta, por meio de um narrador autoritrio, ou, mesmo, se as narrativas apresentam um carter emancipatrio, pela organizao e multiplicidade de pontos de vista que emergem do texto, assegurando ao leitor a liberdade de escolha. Sob esse aspecto, valemo-nos dos estudos de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, sobre a Esttica da Recepo e a Teoria do Efeito, que atribuem leitura uma natureza emancipatria, quando: A experincia da leitura logra libert-lo [o leitor] das opresses e dilemas de sua prxis de vida, na medida em que o obriga a uma nova percepo das coisas (JAUSS, 1994, p. 52). Para Jauss2, a literatura no desempenha um papel meramente reprodutor, pois pode modificar as percepes de vida do leitor, uma vez que ele o responsvel pela atualizao da obra literria.

2.2.1. Jauss e a esttica da recepo

A esttica da recepo a teoria da literatura formulada por Hans Robert Jauss e seus colegas da Escola de Constana, no final da dcada de 60, desenvolvida a partir do trabalho A histria da literatura como provocao teoria da literatura (1994) que retoma a problemtica da histria da literatura. Jauss coloca em discusso, por no compartilhar com a orientao da escola idealista ou da escola positivista, a construo de uma histria literria, uma vez que ambas no realizam seus estudos embasados na convergncia entre o aspecto histrico e o esttico, criando, assim, um vazio entre a literatura e a histria. A inexistncia desse nexo resulta, portanto, em pesquisas que se preocupam

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Terico alemo Hans Robert Jauss proferiu uma aula inaugural na Universidade de Constana, em 1967, em que elaborava pesada crtica s formas tradicionais da Histria da Literatura e lanava as bases do que viria a ser a Esttica da Recepo.

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apenas com as obras e seus autores, deixando margem o terceiro elemento do circuito literrio, os leitores. Segundo Jauss, as demais teorias limitam-se a compreender o fato literrio no mbito da esttica da representao e da produo, isso significa a excluso da dimenso da leitura e do efeito, que a privilegiada pela Esttica da Recepo. O propsito desta apresentar uma viso diferenciada da histria da literatura pautada na historicidade da obra de arte literria, j que ela no repousa em uma conexo de fatos literrios estabelecida post festum, mas no experienciar dinmico da obra literria por parte de seus leitores (JAUSS, 1994, p. 25, grifo do autor). Sob esse ponto de vista, a esttica da recepo toma como objeto de investigao o receptor. Isso exige dela a construo de uma nova concepo de leitor que assume, ento, seu papel genuno, imprescindvel tanto para o conhecimento esttico quanto para o conhecimento histrico: o papel de destinatrio a quem, primordialmente, a obra literria visa (JAUSS, 1994, p. 23). Com a mudana do foco de investigao para a recepo, o fato literrio passa a ser descrito a partir da histria das sucessivas leituras por que passam as obras, as quais se realizam de um modo diferenciado atravs dos tempos, porque,

a obra literria no um objeto que exista por si s, oferecendo a cada observador em cada poca um mesmo aspecto. No se trata de um moem umento a revelar monologicamente seu Ser atemporal. Ela , antes, como uma partitura voltada para a ressonncia sempre renovada da leitura, libertando o texto da matria das palavras e conferindo-lhe existncia atual (JAUSS, 1994, p. 25).

Desse modo, a obra literria condicionada pela relao dialgica entre literatura e leitor, acarretando um processo de interao entre eles, cujo grau de perenidade depende dos referenciais esttico-ideolgicos que os configuram. Em face da natureza dialgica dessa relao, a obra literria s permanece em evidncia enquanto puder interagir com o receptor. O parmetro de aceitao o horizonte de expectativas, composto pelo sistema de referncias que resulta do conhecimento prvio que o leitor possui do gnero, da forma, da temtica das o-

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bras j conhecidas e lidas e da oposio entre as linguagens potica e pragmtica. O sistema de referncias, contudo, no se restringe aos aspectos estticos da obra, pois, no ato da leitura, tambm entra em jogo a experincia de vida do leitor. Entre a leitura de uma obra e o efeito pretendido ocorre o processo da compreenso, exigindo do leitor no s a utilizao do conhecimento filolgico, mas de todo o seu conhecimento de mundo acumulado. No processo de realizao da leitura literria, o horizonte de expectativas do leitor pode ser satisfeito ou quebrado por uma determinada obra. Dessa relao de satisfao ou ruptura de horizontes, pode-se estabelecer a distncia entre a expectativa do leitor e sua realizao, denominada por Jauss de distncia esttica, que indicar o carter artstico da obra. Ocorrendo a satisfao, a obra caracteriza-se como sendo arte culinria, ou de mera diverso, isto , literatura de massa, visto que no exige nenhuma mudana de horizonte, servindo apenas para reforar as normas literrias e sociais em vigor. Em virtude dessas reaes, Jauss formula a seguinte teoria: somente a quebra ou a ruptura de expectativas ser indicativa do valor esttico de um texto, cuja avaliao, a partir da distncia esttica, se torna bastante independente da viso particular do crtico. Tal postura, para Regina Zilberman (1989), aproxima Jauss dos formalistas e estruturalistas, pois esse critrio recupera o efeito de estranhamento da obra de arte literria proposto por tais teorias. Portanto, a reconstruo do horizonte de expectativas possibilita, s obras consideradas clssicas, o retorno do seu vis emancipador, perdido por causa do processo de canonizao, que as tornaram incapazes de suscitar novos questionamentos. Reconstruir os horizontes de expectativas de uma obra em relao ao processo de produo e recepo sofrido por ela em pocas distintas significa encontrar as perguntas para as quais o texto constitui uma ou mais respostas. A lgica da pergunta e da resposta o mecanismo da hermenutica que permite identificar o horizonte de expectativas do leitor e as questes inovadoras a que o texto apresenta uma ou mais respostas, como tambm mostrar como as compreenses variam no tempo. Assim, o sentido de um texto construdo historicamen-

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te, descartando-se a idia de sua atemporalidade. a partir do confronto desses dois plos que a distncia esttica pode ser estabelecida. Partindo desses princpios, as grandes obras so as que, permanentemente, provocam nos leitores, de diferentes momentos histricos, a formulao de novas indagaes que os levem a se emanciparem em relao ao sistema de normas estticas e sociais vigentes. O efeito libertador provocado pela literatura fruto do seu carter social, pois, para Jauss, a interao do indivduo com o texto faz com que o sujeito reconhea o outro, rompendo, assim, com o seu individualismo e promovendo a ampliao dos seus horizontes, proporcionada pela obra literria.

A experincia da leitura logra libert-lo das opresses e dos dilemas de sua prxis de vida, na medida em que o obriga a uma nova percepo das coisas. O horizonte de expectativas da literatura distingue-se daquele da prxis histrica pelo fato de no apenas conservar as experincias vividas, mas tambm antecipar possibilidades no concretizadas, expandir o espao limitado do comportamento social rumo a novos desejos, pretenses e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experincia futura (JAUSS, 1994, p. 52).

A esttica da recepo, portanto, o instrumental terico adequado para fundamentar, a partir dos conceitos de recepo, horizonte de expectativas, distncia esttica e lgica da pergunta e da resposta, a anlise das personagens femininas nas narrativas de Ana Maria Machado, que constituem o corpus deste trabalho. A fim de se compreender o processo de produo - recepo da obra literria infantil, juvenil e adulta, tendo como referncia o leitor e com base nos conceitos selecionados da esttica da recepo, possvel delinear o horizonte de expectativas das crianas, adolescentes e adultos de diferentes classes sociais. Esse horizonte materializado em normas literrias e concepes de mundo, presentes nas narrativas infantis, juvenis e adultas reproduzidas nos textos literrios escolhidos. Uma das tarefas da teoria recepcional, em conformidade com Zilberman (1989), a reconstruo desse horizonte, objetivando explicitar a relao da obra literria com o seu pblico.

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2.2.2. Iser e a teoria do efeito O conceito de leitor implcito, desenvolvido por Wolfgang Iser3, representa uma conquista importante para a esttica da recepo. Para ele, a fonte de autoridade da interpretao tanto o texto como o leitor, pois se trata de uma construo. Assim, o texto busca designar instrues para a produo de um significado e o leitor produz o seu prprio significado, j que o sentido do texto algo produzido por um processo de interao entre as duas partes (texto e leitor) independentes. O papel do texto designar orientaes para a produo de um sentido, que, no caso da literatura, o objeto esttico:

Nesse sentido, a seleo, a partir do qual se constri o texto literrio, possui carter de acontecimento, e isso porque ele, ao intervir em uma determinada organizao, elimina sua referncia (ISER, 1996, p. 11).

Dessa forma, o papel do leitor seguir tais instrues ou orientaes e produzir o seu significado. Ento, "sentido" no representa algo, um acontecimento: O carter de acontecimento do texto se intensifica pelo fato de que os elementos selecionados do ambiente do texto so por sua vez combinados entre si (ISER, 1996, p. 11), pois o texto no pode ser visto como um todo, mas como a convivncia de vrios pontos de vista. O leitor o percebe de uma maneira global, uma vez que a experincia da leitura no se d apenas pelo texto em si, nem s pela subjetividade do leitor, porque se trata da juno destes dois fatores que permite o processo de construo de significado, ou sentido, no texto. Para Iser, os textos literrios so distintos dos no literrios, especialmente dos cientficos, pela presena de "vazios" ou "intervalos" que acabam sendo preenchidos pela "disposio individual" do leitor. Assim, a estrutura do texto permite modos diferentes de alcanar seu potencial, o leitor deve construir suas conexes, as snteses que individualizam o objeto esttico. Ento, o autor valoriza a imaginao criativa do leitor, por exemplo, ao lermos um romance, deparamos3

Wolfgang Iser, explorando os caminhos abertos por Hans Robert Jauss, percebe que uma teoria da recepo conduz, necessariamente, a uma reflexo sobre o imaginrio: a recepo no primariamente um processo semntico, mas sim o processo de experimentao da configurao do imaginrio projetado no texto. Pois, na recepo se trata de produzir, na conscincia do receptor, o objeto imaginrio do texto, a partir de certas indicaes estruturais e funcionais. Por este caminho se vem experincia do texto.

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com espaos a serem preenchidos pelo leitor. Diante da obra abstrata, cada espectador se projeta e interpreta de forma diferente, de acordo com seu prprio repertrio. O autor concebe o texto como um objeto, sob um aspecto espacial, com uma determinada forma, e, sob um aspecto temporal, em que a produo de significado literrio um processo que o texto pe em movimento. O elemento subjetivo no arbitrrio, pois guiado ou moldado pelas estruturas do texto. E, mesmo dentro desses limites, ele exige o exerccio da liberdade de interpretao. Como o texto literrio detentor de sentidos mltiplos, sua teoria responde s crticas que realam o papel dos leitores, pois estes possuem uma atuao predominante. Assim, o texto no contm um significado, e esse significado no uma entidade, mas, sim, um acontecimento dinmico. Por isso o texto desperta, no leitor "implcito", uma interpretao, a partir de seu prprio repertrio, e esse repertrio constitudo de experincias da vida social, cultural, comunitria. Afinal, como toda linguagem eminentemente social, o leitor passa a ter um papel mais atuante quando guiado pelas direes indicadas pelo texto, que uma espcie de guia de orientao, ou seja, algo que se instrumentaliza para possibilitar encontrar o sentido. Para Iser, no preciso escolher entre o significado planejado e os significados de nossas subjetividades, pois, quando o leitor constri sua estrutura de sentidos, ele est sendo fiel ao significado autoral, pois o significado de interpretao necessrio para a sua existncia. Iser considera vlido o estudo das diferentes interpretaes do texto de um autor ao longo do tempo, como um estudo da esttica. Ento:

[...] o texto o processo integral, que abrange desde a reao do autor ao mundo at sua experincia pelo leitor.Nesse processo, no entanto, fases podem ser distinguidas, pois nelas acontece uma mudana daquilo que as precede (ISER, 1996, p. 13).

A importncia do papel do leitor faz com que ele se beneficie mais da experincia literria, abrindo a oportunidade de olhar as "foras" que o guiam e o orientam. Essas foras so sistemas de pensamento que refletem a realidade e for-

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mam a base para a conduta de relaes humanas. O distanciamento permite uma melhor viso dessas foras. Iser acredita que a literatura e a vida se completam, entretanto, a literatura no mimtica, ou seja, no uma mera cpia representativa da vida. Ela permite um distanciamento que possibilita reconhecer as deficincias e os mecanismos do sistema social. Salienta, ainda, que a literatura pe em cheque noes convencionais de validez e coerncia, promove mudanas e crescimento no indivduo, uma vez que a autoconscincia se desenvolve no processo da leitura. O significado do texto no est marcado dentro dele, mas sim no fato de liberar o que est preso dentro de ns. Cada texto novo constitui seu prprio leitor, definindo a reciprocidade existente entre o significado constitudo e o dado pelo autor e sua conscincia no processo da leitura. Esta noo de concretizao refere-se atividade do leitor, responsvel pelo preenchimento dos espaos de indeterminao contidos na obra. O texto prev um leitor, implicitamente, que seria mais adequado para definir as estruturas de sua pr-compreenso. Iser acentua um dos pontos tericos bsicos da Esttica da Recepo, salientando que a obra literria comunicativa desde a sua estrutura, pois necessita do leitor para a constituio de seu sentido. O autor trabalha com a noo de "estruturas de apelo do texto" que predeterminam as reaes do leitor. Por causa dessas estruturas, o leitor converte-se em um ponto chave da obra que s pode ser compreendida enquanto uma modalidade de comunicao (ZILBERMAN, 1989). O conceito de leitor implcito, evocado pela esttica da recepo, dirige uma abertura ao leitor, deixando claro que no se trata de abordar empiricamente a entidade leitor, mas diz respeito a um ser virtual, imprescindvel para dar constituio e sentido obra que, isolada, no possui significado algum, torna-se inerte. O conceito de Wolfgang Iser de leitor implcito, contrariamente, enfatiza a dimenso comunicativa inerente aos prprios textos. Desse modo, o leitor implcito de Iser no se refere a um leitor individual, emprico, ou a um leitor ideal do texto literrio, mas sim a estratgias de comunicao do texto, que exercem certo controle, por convidar ou privilegiar especficas respostas.

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O leitor implcito uma ao textual que, ativamente, confirma, interfere e rompe com um padro de comunicao de uma cultura que est, presumidamente, internalizado por seu leitor. Iser se preocupa com o aspecto interativo da leitura, em detrimento da tentativa de compreender a ao de leitores individuais que nunca podero verificar suas respostas em uma situao face a face: Pois s na leitura que os textos se tornam efetivos [...] (1996, p. 48). Para o autor, a interao texto e leitor se refere a um leitor individual. O texto comea a transferncia que, somente ser bem-sucedida, se conseguir ativar certas disposies da conscincia do leitor a capacidade de apreenso e de processamento. Portanto, as estratgias narrativas e as estruturas de apelo do texto constituem-se de regras e instrues predeterminadas que auxiliam o leitor no processo de compreenso do texto. Para ativar a leitura, essas estratgias e estruturas dispem de mecanismos de orientao, uma espcie de "modos de usar", que guiam o leitor interpretao, transformando o destinatrio em uma pea bsica para constituir sentido obra, concebida enquanto modalidade de comunicao. Essas estratgias, alm de contriburem para discutir o campo da recepo na literatura, tornam-se relevantes. Os procedimentos terico-metodolgicos utilizados para se entender essa relao dialgica sujeito-objeto esttico podem servir como referenciais para investigar o processo de construo das personagens femininas nas obras do corpus desta dissertao. Ao encerrar este captulo, podemos detectar a importncia da literatura na formao do ser humano, uma vez que possibilita reflexes, desde o momento em que tentamos defini-la: A historicidade da leitura refora as transformaes por que passa a literatura (ZILBERMAN e MAGALHES, 1982, p. 78). As indagaes suscitadas pelos textos literrios, que inquietam a alma humana, fazem com que reflitamos sobre a importncia do seu estudo. O prazer de sua leitura deve ser propiciado para a maioria das pessoas, pois o leitor no um ente passivo; a obra dirige-se a ele e a seus valores, sob a forma de um questionamento (ZILBERMAN e MAGALHES, 1982, p. 78). Para que isso ocorra, devemos investir na formao do leitor. Para tanto, abordamos a teoria da esttica da recepo e a teoria do efeito, pois nos do sustentao para prosseguir os estudos aqui propostos.

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Passaremos agora para a contextualizao da autora em foco, pois isso possibilitar uma aproximao maior do leitor, no momento em que as obras forem abordadas.

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CAPTULO III CONTEXTUALIZAO DE ANAEscrever um ato solitrio, um momento individual de expresso, uma trajetria particular e nica de quem escreve. Ana Maria Machado, 1999.

Conclumos o captulo anterior discorrendo sobre a literatura, literatura infantil e juvenil, desde seu surgimento, na Europa e no Brasil, at os dias atuais, a formao do leitor, bem como a importncia da Esttica da Recepo e da Teoria do Efeito para embasar nossos estudos, encerrando, assim, o panorama histrico da literatura e da produo literria direcionada para diferentes leitores. Agora, canalizamos nossa ateno para a apresentao da escritora. Este captulo est dividido em trs partes, enfocamos, primeiramente, os dados gerais de Machado e de sua obra, a fim de melhor situar o leitor, no tpico intitulado: Caminhos de Ana. Uma vez apresentada a trajetria da autora, discorremos sobre as obras em que a escritora se dedica a produzir conhecimento: Ana produzindo conhecimento. Na seqncia, abordamos o interesse da crtica sobre sua produo literria: Ana e seus leitores.

3.1. Caminhos de Ana

Todo cidado tem o direito de ter acesso literatura e de descobrir como partilhar essa herana humana comum. Ana Maria Machado, 2001.

De acordo com o site www.anamariamachado.com/biografia/biografia Ana Maria Machado (Rio de janeiro RJ, 1941), na vida da escritora, os nmeros so generosos, pois so 33 anos de carreira, em torno de 130 livros publicados no Brasil e em mais de 17 pases, somando mais de dezoito milhes de exemplares vendidos. Os prmios conquistados ao longo de sua carreira tambm so muitos; tudo impressiona na vida dessa carioca nascida em Santa Tereza, em pleno dia 24 de dezembro, vspera de Natal. Vivendo atualmente no Rio de Janeiro,

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comeou a carreira como pintora, objetivo primeiro, mas optou por privilegiar as palavras, apesar de continuar pintando at hoje. Durante a ditadura, no final do ano de 1969, depois de ser presa e ter diversos amigos detidos, partiu para o exlio. Na Frana, tornou-se professora na Sorbonne. Nesse perodo, participou de um seleto grupo de estudantes, cujo mestre era Roland Barthes, e terminou sua tese de doutorado em Lingstica e Semiologia sob a sua orientao. A tese resultou no livro Recado do Nome, que trata da obra de Guimares Rosa. Voltou ao Brasil em 1972, e, escondida por um pseudnimo, ganhou o prmio Joo de Barro, por ter escrito o livro Histria Meio ao Contrrio, publicado em 1978. O sucesso foi imenso, gerando muitos livros e prmios. Em 1993, tornou-se hors-concours dos prmios da Fundao Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNL