Artigo - Desigualdade No Brasil

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Artigo acadêmico que visa a dar uma nova percepção para a origem das desigualdades no Brasil.

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IntroduoA anlise desse trabalho parte do pressuposto de que a colonizao America pelos europeus trouxe para o novo mundo mais do que os brancos, mas tambm todos os conceitos sociais, polticos e econmicos existentes na Europa at ento. As origens destas ideias, por sua vez, remontam Idade Antiga e Idade Mdia, perodo no qual adquiriram as caractersticas principais que influenciaram e desestruturam o continente americano.Thomaz Hobbes, em Leviat, apresenta-nos a ideia da criao do Estado como uma necessidade de os indivduos se organizarem em uma sociedade para pr fim ao estado de caos existente. A segurana e a preservao da vida so as duas necessidades que os guiam para esse momento. Entretanto, um questionamento a ser feito o porqu de esses homens em sociedade viverem em conflito.Hobbes credita esse atrito ao interesse comum que os homens possuem, ou seja, todos querem as mesmas coisas ao mesmo tempo. [..] Desta igualdade quanto capacidade deriva a igualdade quanto esperana de atingirmos nossos fins. Portanto, se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo, que impossvel ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que principalmente sua prpria conservao, e s vezes apenas seu deleite) esforam-se por se destruir ou subjugar um ao outro e disto se segue que, quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um nico outro homem, se algum planta, semeia, constri ou possui um lugar conveniente, provavelmente de esperar que outros venham preparados com foras conjugadas, para desaposs-lo e priv-lo, no apenas do fruto de seu trabalho, mas tambm de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficar no mesmo perigo em relao aos outros.E contra esta desconfiana de uns em relao aos outros, nenhuma maneira de se garantir to razovel como a antecipao; isto , pela fora ou pela astcia, subjugar as pessoas de todos os homens que puder, durante o tempo necessrio para chegar ao momento em que no veja qualquer outro poder suficientemente grande para amea-lo. E isto no mais do que sua prpria conservao exige, conforme geralmente admitido. Tambm por causa de alguns que, comprazendo-se em contemplar seu prprio poder nos atos de conquista, levam estes atos mais longe do que sua segurana exige, se outros que, do contrrio, se contentariam em manter-se tranquilamente dentro de modestos limites, no aumentarem seu poder por meio de invases, eles sero incapazes de subsistir durante muito tempo, se limitarem apenas a uma atitude de defesa. Consequentemente esse aumento do domnio sobre os homens, sendo necessrio para a conservao de cada um, deve ser por todos admitidos. (HOBBES, Thomaz. p. 45-46).

Assim, parece-nos evidente que esse desejo comum resultante de uma diferenciao social que h entre as pessoas no mundo de Hobbes, ainda que esses homens almejem to somente a glria (e no bens materiais como nos dias atuais). Neste sentido, o Estado surge para ordenar a desigualdade existente na sociedade e no tendo a funo precpua de extirp-la, como sugere a doutrina marxista. E a sua criao deve ser aceita por todos.Por este vis, podemos perceber nos grandes Imprios do Mundo Antigo que a criao de Estados deriva de um aumento da desigualdade entre os respectivos membros daquela sociedade. A histria de Roma, por exemplo, conta a trajetria de um povo que habitava a regio do Reno e que, ao se desenvolver, modifica suas formas de organizao at constituir-se em um estado politicamente organizado capaz de regular as diferentes classes sociais que o compe. Processo semelhante tambm ocorrera no Egito antigo e no continente americano, com os povos Incas e Astecas.No obstante, o que nos interessa aqui perceber que no mundo antigo foi a necessidade regular as desigualdades que fomentou o desenvolvimento do Estado politicamente organizado. Na Europa, essa ideia alcanou seu auge durante o j citado Imprio Romano, o qual, por sua vez, configurava-se como uma sociedade altamente hierarquizada, tendo no topo a figura do Imperador rodeado por uma nobreza detentora de terras e que tambm ocupava os principais cargos polticos e administrativos. Com o fim do Imprio Romano, no sculo V D.C., a Europa perdeu um smbolo de distino social, a qual no foi eliminada pelos invasores germnicos. Adotando o caminho inverso, eles buscaram absorver parte desta cultura e mantiveram vrios traos da sociedade romana.Historiograficamente, a queda do Imprio Romano do Ocidente marca o fim da Idade Antiga e o incio da Idade Mdia. Este novo perodo histrico, por sua vez, no se construiu sem as marcas ideolgicas de diferenciaes sociais presentes na Idade Antiga. Antonio Manuel Hespanha, em sua obra Imbecilitas As bemaventuranas da inferioridade nas Sociedades do Antigo Regime -, nos diz que a Idade Mdia absorveu toda essa carga de diferenciao social do mundo antigo, mas a fundiu em um sincretismo difcil de identificar, cuja resultante norteou os homens a terem uma vida honesta (aceitando as coisas como elas so), honrosa (respeitando a verdade do mundo) e verdadeira (havendo correlao com a aparncia, isto , ser e parecer algo consiste em ser verdadeiro). Honestidade, honra e verdade, palavras centrais na linguagem poltica e jurdica da poca, remetiam para esta ideia corrente de que o comportamento justo era o que aguardava a proporo, o equilbrio, o modo (moderao) ou a verdade do mundo, das pessoas, das coisas. Viver honestamente que passava por ser um dos preceitos bsicos do direito (cf. D., 1,1,10, PR) era aderir natureza das coisas, da ordem natural do mundo. Ser honrado era respeitar a verdade das coisas e esta era a sua natureza profunda, qual devia corresponder a sua aparncia. Por isso que o comportamento manifestava a natureza, a honestidade e a verdade eram as qualidades daquele que se portava como devia, como lhe era pedido pela natureza. Assim, o nobre no se devia comportar como plebeu, se queria manter a honra. Que a mulher honesta (que respeita a sua natureza) se devia comportar com tal, sob pena de no ser tida como honrada. E por a adiante. (HESPANHA, Antonio Manuel. Imbecilitas. P. 50).Todos esses conceitos passaram para a ordenao da sociedade medieval, na qual os homens eram tratados desigualmente segundo ordenao divina e isso deveria ser legitimado pelo Estado. Entretanto, uma das principais caractersticas desta poca ausncia de um poder politicamente centralizado. Deste modo, coube a Igreja ficar responsvel por legitimar as distines sociais. E ela o fez ao dividir a sociedade em trs estamentos baseados nas trs funes essenciais para a poca: clero, nobreza e servos eram a representao em classes das funes de rezar, lutar e trabalhar, respectivamente. Assim, por meio de uma ideologia religiosa, tinha-se uma maneira de impedir o estado de selvageria e de caos, garantindo a sobrevivncia das distines sociais.A igreja valeu-se ento da Bblia para cumprir a tarefa de legitimar aquilo que o Estado ausente estava impossibilitado de fazer. Baseando-se na perfeio divina da criao, segundo a qual os homens foram criados a imagem e semelhana de Deus para viverem na terra e promoverem a sua perpetuao, sendo, apesar disso, diferentes entre si, pois, tal qual o corpo que, ainda que uno, composto por diversos rgos com funes distintas, a Terra era composta por seres humanos diferentes em que cada um cumpria a sua funo na medida de sua capacidade.Essa distino medieval ultrapassou sua prpria poca, sendo inegvel a existncia de resqucios ideolgicos na Idade Moderna. Portugal, em pleno sculo XVI, ainda apresentava uma legislao na qual os nobres distinguiam-se entre si e perante as demais classes por formas de tratamento, ttulos, status e vestimentas, havendo, inclusive, punies para aqueles que no respeitassem tais institutos. Assim, qualquer atitude de mudana era malquista, pois estava indo contra aquilo que Deus estabelecera para cada individuo segundo a razo de sua natureza e condio, conforme afirmava So Toms de Aquino.

Captulo I - Os conceitos sociais medievais na Idade ModernaA historiografia, ainda que haja pontos divergentes, marca o fim da Idade Mdia no sculo XV. No entanto, percebemos que essa diviso aborda to somente aspectos econmicos e polticos, relegando, erroneamente, as caractersticas sociais e culturais do perodo medieval, to importantes para aquela poca como para as seguintes.Pensar que, por exemplo, pela simples queda do Imprio Romano Oriental em 1453 para os turcos otomanos, o homem medieval perdeu toda a carga ideolgica que o envolvia e passou a ter um pensamento moderno como que por um passe de mgica, ter uma viso distorcida da realidade. O pensamento do homem do medievo sobreviveu ao fim de sua poca, trazendo consigo parte das caractersticas sociais dos sculos IV ao XV.Ainda que o Renascimento tenha depreciado a ideia do mundo medieval, os smbolos ideolgicos deste perodo permaneceram por muitos sculos. O prprio movimento renascentista deve parte de seu desenvolvimento aos trabalhos feitos na Idade Mdia pelos monges copistas na preservao de documentos clssicos. No entanto, no so somente esses aspectos que mostram a prevalncia medieval na idade moderna. A primazia do pensamento religioso cristo persistiu no mundo moderno, apesar de ter sido abalado, em parte, pelo prprio Renascimento e, principalmente, pela Reforma Protestante. A igreja, que no perodo anterior representava o elo e a unidade entre os feudos, estava agora tendo essa funo substituda pelo nascente Estado Moderno Absolutista. Este, por sua vez, necessitava e muito do poder do clero para conseguir se instalar e permanecer com o poder. Neste sentido, a aliana que o Rei e o Papa fizeram foi de suma importncia para ambas as partes: para o Rei, o apoio clrigo garantia a sobrevivncia do Estado; ao Clero foi garantido um lugar acima do Rei, legitimando o seu poder como o representante de Deus na Terra.Citando novamente o livro Imbecilitas, de Antonio Manuel Hespanha, temos uma explicao de que a hierarquia resultava da ordem do mundo, pela qual cada coisa ocupa o seu lugar no espao e exercendo assim suas funes.Qualquer que tenha sido a fora desta ideia de que todos os seres tinham, no plano global da ordem da criao, uma igual dignidade, uma avaliao mais matizada exige que se diga que a ideia de ordem sugeriu tambm outras perspectivas mais hierarquizadas. Nomeadamente, a perspectiva de que a criao era como que um corpo, em que a cada rgo competia uma funo, e que estas funes estavam hierarquizadas segundo a sua importncia para a subsistncia do todo.Esse tpico j levava a uma viso diferente da criao, legitimando uma distino das coisas e das pessoas em termos de hierarquia e de dignidade. (HESPANHA, Antonio Manuel. Imbecilitas. p. 57). Essa era a ideia pregada pela Igreja para justificar a instituio do poder estatal, isto , Deus criara o homem a sua imagem e semelhana, mas o fizera impondo funes e condies diferenciadas a este, cuja chefia (cargo maior) cabia ao seu representante na terra: o Rei, o Monarca ou o Imperador. Neste momento, o chefe de estado ungido pela Igreja, que tambm representa Deus, como lder material do mundo, mas ao mesmo tempo, est subordinado ao poder espiritual daquela. Isso uma caracterstica medieval que, ganhando nova roupagem, vigora durante a Idade Moderna; o poder religioso permanece perante os homens, ainda que agora haja instituies que o intermedeie.Esse carter divino da realeza ganhou conotaes astronmicas e que, de uma maneira geral, s chegaram ao fim no sculo XVIII com a Revoluo Francesa, a qual, historiograficamente, ps fim ao Antigo Regime e, embasada nos ideais iluministas, tirou o monoplio intelectual das mos da Igreja e o ps a servio da razo e das cincias. Percebemos ento que o carter religioso da Idade Mdia s teve seu fim s portas do sculo XIX, uma vez que o referido movimento revolucionrio data do ano de 1789.Em processo semelhante podemos incluir o conceito de hierarquia social. A clssica diviso medieval em clero, nobreza e povo no encontrou seu fim no sculo XV. Ainda que a reativao do comrcio e o renascimento urbano tenham dado um carter mais dinmico ao cotidiano europeu, eles no foram suficientes para promover uma modificao profunda na estrutura social. A Revoluo Comercial do sculo XI permitiu que a atividade comercial perdesse seu carter de subsistncia e passasse a ser atividade laboral. O Renascimento urbano deslocou o centro de deciso do campo para as cidades, porm, nenhum dos dois processos modificou a estrutura social da poca, embora, com o comrcio, tenha comeado a surgir uma nova classe social: a burguesia, mas sem fora suficiente para se impor como classe social autnoma, o que s seria logrado com a Revoluo Francesa no sculo XIX.Neste sentido, o aspecto social medieval, assim como o religioso, no se extinguiu no sculo XV, persistindo at o sculo XVIII quando a Revoluo Francesa ps fim estamentao institucionalizada, arquitetados pelos os burgueses, a nova classe que ascendia oficialmente ao poder e se institucionalizava naquele momento.

Captulo II - Portugal: uma nao cavaleira mercadora.Pensar nas relaes sociais na transio da Idade Mdia para a Idade Moderna no Brasil , antes de tudo, entender como esse mesmo processo se desenvolveu em Portugal, pois foi este pas que nos colocou na rota das relaes sociais do sculo XVI.A histria de Portugal se confunde, inicialmente, com a do Imprio Romano, pois o futuro Condado Portucalense foi, at o sculo V D.C., uma provncia de Roma. Tal vnculo, s encontrou fim devido s invases brbaras que, nas palavras de Paulo Osrio, presbtero de Braga na poca das invases, ocorreu porque os senhores romanos eram mais brbaros do que os prprios Brbaros (SARAIVA, Jos Hermano. Histria Concisa de Portugal. p.29) e a nova sociedade crist que nascia no aceitava conviver com o instituto da escravatura, to essencial para a economia do povo romano. Segundo o clrigo, a civilizao romana tinha por alicerce a injustia e a misria das populaes. Inicialmente foram os suevos que ocuparam a regio da Pennsula Ibrica. J no final do sculo VI, porm, os Visigodos ocuparam a regio com o ttulo de federados tendo como funo expulsar dali os suevos, alanos e vndalos. Sua misso foi cumprida e eles se mantiveram na regio por quase trs sculos, perodo suficiente para, nas palavras do historiador Jos Hermano Saraiva, formar os traos fundamentais do que viria a ser a sociedade medieval portuguesa: uma sociedade tripartida, formada por clero, nobreza e povo (SARAIVA, Jos Hermano. Histria Concisa de Portugal. p.30). Esse quadro permaneceu assim at o sculo VIII, quando os Mouros, atravessando o estreito de Gibraltar, dominaram a regio. Por um tempo, este tipo de relao social manteve-se em segundo plano.Com a expulso dos rabes, surgiram novos poderes que ia se moldando ao sabor das circunstncias, pelos quais os nobres governavam terras por nomeao dos reis ou por as terem eles prprios conquistado ou ocupado. Foi por meio dessas condies que foi fundado o Condado Portucalense e que, posteriormente, tornou-se Portugal.O que nos interessa nessa curta analise da historia portuguesa o fato de que a sua transformao em pas foi fruto de um esforo conjunto da nobreza daquela regio e no to somente de um nico individuo iluminado. Neste sentido, as relaes sociais se mantiveram concentradas em torno de uma elite excludente, da qual tambm fazia parte o clero. nisso que se funda a afirmao de que em Portugal e em boa parte da Europa a Idade Mdia no acabou no sculo XVI, pois, ainda que tenha havido a expulso dos mouros, as distines sociais s foram acentuadas at chegarem ao ponto de o prprio territrio luso no poder mais suport-la. A sada encontrada foi lanar ao Atlntico parte da sociedade que dificultava a manuteno do status quo por querer pertencer quele nicho j saturado. Assim, o Brasil e outras localidades da terra passaram a fazer parte deste jogo.

Captulo III - Brasil: o nascimento de um pas distinto.

A colonizao do Brasil fez parte de um projeto maior pelo qual tambm passaram os continentes africano e asitico. Quando os colonizadores/invasores chegaram ao continente americano, eles, apesar de cientes da existncia de outros mundos, se depararam pela primeira vez, com um ambiente verdadeiramente novo. Para podermos ter uma ideia do tamanho impacto cultural sentido por eles, basta nos imaginarmos em uma viagem espacial a um planeta habitado, considerando estar provada a tese de que h vida em ouros planetas. Pode at ser que achemos que no sofreramos um choque to grande de incio, porm, ao vermos a diferena fsica entre o seus habitantes e ns, no os consideraramos seres humanos, isto , diramos que eles so ETs (Extra Terrestres), no mesmo? Um processo semelhante ocorreu com os europeus quando chegaram Amrica. Muitos europeus chegaram a afirmar que os ndios no eram seres humanos! Que no possuam alma! No tinham inteligncia! E reforaram seus argumentos citando a bblia! Esta no afirmava que eram brancos, amarelos e negros os homens criados por Deus? Se os ndios possuam peles avermelhadas, no podiam ser criaturas de Deus! Tanto assim que adoravam o Sol, a Lua, as foras da natureza, e at era comum a prtica de sacrifcios. Voltando ao nosso caso, se dssemos de cara com ETs verdes e com anteninhas, possivelmente tambm nos os consideraramos seres humanos! (AQUINO, Rubim Santos Leo de; VIEIRA, Fernando Antnio da Costa; AGOSTINHO, Carlos Gilberto Werneck; e ROEDEL, Hiran. Sociedade Brasileira: Uma Histria. p.14)Quanto a esse aspecto, contudo, o papa Paulo III, na bula Universis Christi Fidelibus, de 1536, considerou os indgenas verdadeiros homens e, assim sendo, constituam seres racionais e aptos a serem convertidos ao catolicismo. Tal orientao pontifical vai ao encontro do interesse da igreja catlica em buscar compensaes no continente americano para as perdas que sofria com a expanso da Reforma Protestante na Europa.De fato, na poca, os Estados Nacionais Absolutistas empenhavamse em preservar a unidade religiosa, considerada fundamental para a continuidade da unidade poltica, haja vista que a Europa com um todo ainda encontravase fortemente influenciada pelo teocentrismo da Idade Mdia, perodo no qual a nica ideia de unidade prevalecente foi a religiosa crist catlica apostlica romana. Nesses Estados, era evidente o esforo dos reis em colocar sob o seu controle a Igreja e o clero presentes em seus domnios e, por isso, aceitaram, ainda que s do aspecto formal, demonstrar que os indgenas americanos eram descendentes dos povos citados na Bblia. De acordo com essa concepo, os indgenas seriam alctones, ou seja, teriam chegado ao continente americano procedentes de outras terras.A forte carga ideolgica religiosa, por outro lado, impedia, ainda que indiretamente, que os europeus cumprissem seu objetivo econmico no Brasil. sabido que, ao desembarcarem em terras brasileiras, os portugueses no encontraram nenhum produto que lhes desse retorno financeiro semelhante aos obtidos com as colnias africanas. No havia ouro a olhos vistos e tampouco pessoas com as quais pudessem comercializar, pois, como dito acima, havia at a dvida inicial acerca da humanidade dos ndios. Contudo, no demorou muito tempo para que os portugueses descobrissem uma rvore da qual puderam extrair um lquido vermelho que servia de corante para tecidos. O pau-brasil, como ficara conhecido, foi o primeiro produto de exportao do Brasil e serviu para manter, ainda que de forma espordica, o interesse luso nas novas terras. A obteno desse produto se dava mais ou menos da seguinte forma: os europeus construam uma feitoria prxima ao litoral para servir de armazm e, de certa forma, fortaleza; aos nativos cabia a tarefa de cortar a madeira e lev-la aos portugueses para que estes, da feitoria, a pusessem nos navios que iam para a Europa. De remunerao pelos servios prestados, os colonizadores davam aos ndios produtos que lhes interessassem, como facas, espelhos, galinhas, entre outros.O quadro retratado acima parece simples, mas ajuda bastante a entender como o conceito de distino social chegou ao Brasil, ainda que historiograficamente no tenhamos conhecimento de sua existncia por aqui antes de 1500. No Brasil, mais especificamente, os grupos amerndios vivam sob o modelo de comunidade primitiva, caracterizada pela inexistncia de propriedade privada, pelo trabalho coletivo, pela partilha comunitria dos frutos obtidos pela pesca, coleta e caa e pela diviso sexual do trabalho.A sociedade era nmade ou seminmade, indicando a ausncia da domesticao das plantas, isto , a agricultura. O carter comunitrio da produo implicava uma economia que buscava assegurar estritamente o que consumia, e, nos raros momentos marcados pelo aparecimento de um excedente, realizar a troca de mercadorias entre comunidades.O litoral brasileiro, de uma maneira geral, era povoado pelos ndios tupi guarani, que ocupavam o atual Amap at So Vicente. Entre os mais conhecidos destes estavam os tupinambs. Para os tupinambs, todos os grupos indgenas que estivessem no litoral, que no falassem a sua lngua e no praticassem os seus costumes, eram denominados tapuias, isto , os que falavam uma lngua enrolada. Interessante notar neste ato prepotente a semelhana com uma atitude de outro povo quase dois mil anos antes: assim como os tupinambs, os romanos (isso mesmo, o povo romano que formara um dos maiores imprios da histria da humanidade) na Idade Antiga denominaram de Brbaros todos aqueles povos que no falassem latim e nem partilhassem de seus hbitos. Interessante, no? Um povo tido por aculturado pelos europeus, como foram os ndios, eram capazes de discriminar como o lendrio povo romano. Essa uma das muitas coincidncias da Histria...Os tapuias, geograficamente, localizavamse entre Ilhus (sul da Bahia) e o Esprito Santo, embora a maior parte ocupasse as terras interioranas do territrio brasileiro. Isso se deve ao fato de eles terem sido expulsos de seu habitat natural pelos Tupinambs, quando estes invadiram o litoral e expulsaram as tribos inimigas, com a exceo de alguns grupos, encaminhandoos para o serto (RIBEIRO, BERTA, O ndio na histria do Brasil, So Paulo, Global Editora, 1987, pg. 19.). No obstante, destacavamse entre os tapuias a tribo dos aimors, que ops feroz resistncia aos portugueses.Os tupinambs, por sua vez, viviam em uma rea entre o litoral de Sergipe e o sul da Bahia, habitando aldeias cuja populao oscilava entre 400 e 800 indivduos, divididos em grandes unidades familiares que residiam em cerca de quatro a oito malocas (SCHWARTZ, STUART B., op. cit., pg. 41).Uma das caractersticas dos tupinambs que os diferenciou dos outros grupos encontrados no litoral foi a prtica da agricultura, centrada na produo de milho, feijo, abbora e, principalmente, no cultivo de mandioca, o que os enquadra como um povo semi sedentrio. A atividade agrcola no exclua a caa, a peca e a coleta, que complementavam a culinria indgena e se intercalavam sazonalmente.Alis, a integrao do tupi ao mundo colonial do portugus garantiu aos colonizadores lusitanos a sobrevivncia na terra atravs da adaptao cozinha das comunidades indgenas. O desconhecimento do ambiente florestal tornou os portugueses dependentes de informaes transmitidas pelos indgenas, capacitandoos a uma efetiva adaptao ao territrio que lhes era estranho. Dessa forma, perfeitamente aceitvel dizer que o fato de esse aspecto cultural dos tupinambs ter atendido aos interesses dos portugueses possibilitou que esses hbitos de alimentao sobrevivessem at hoje, impedindo, assim, que fossem soterrados como o foram outros elementos culturais indgenas pelos portugueses no af de legitimar o seu projeto colonizador. (AQUINO, Rubim Santos Leo de; VIEIRA, Fernando Antnio da Costa; AGOSTINHO, Carlos Gilberto Werneck; e ROEDEL, Hiran. Sociedade Brasileira: Uma Histria. p.22).O legado cultural indgena na sociedade brasileira iniciouse, ento, com a prpria conquista portuguesa, quando os ndios ensinaram os colonizadores a alimentaremse com os frutos da terra, a pescar por tarrafa (com rede), a usar a coivara nos campos (essa tcnica consiste em clarear os campos com fogo e hoje mais conhecida como queimada) e a trabalhar por mutiro (originado na prtica tupi da realizao coletiva de determinada atividade necessria para a organizao da tribo).Sabemos que nas demais partes do continente americano existiram povos indgenas que construram grandes imprios e dominaram outros povos. Como exemplos, podemos citar os Incas e os Astecas. No Brasil, porm, no encontramos esse tipo de organizao, pois os ndios eram majoritariamente semissedentrios ou nmades.Neste sentido, podemos perceber que a colonizao da Amrica na qual se inclui a brasileira no se tratou de um caminho de fluxo nico, no qual os europeus chegaram, desenvolveram o capital mercantilista sobre um povo nscio que aceitou a dominao sem resistir. Muito pelo contrrio, como veremos a seguir, os colonizadores encontraram sociedades em vrios nveis de desenvolvimento, mas que sucumbiram ante o seu poderio blico, as doenas e as modificaes provocadas em suas vidas. A historiadora Manuela Carneiro da Cunha, em sua obra Introduo a Uma Histria Indgena, trabalha com a ideia de que no foram apenas as armas de fogo e os micro-organismos que derrotaram os ndios. Segundo elaO exarcebamento da guerra da guerra indgena provocada pela sede de escravos, as guerras de conquista e de apresamento em que os ndios das aldeias eram alistados contra ndios ditos hostis, as grandes fomes que tradicionalmente acompanhavam as guerras, a desestruturao social, a fuga para novas regies das quais se desconheciam os recursos ou se tinha de enfrentar os habitantes (vide, por exemplo, Franchetto e Wright), a explorao do trabalho indgena, tudo isso pesou decisivamente na dizimao dos ndios. (CUNHA. Manuela. Histria dos ndios no Brasil. p. 13-14).Neste sentido, as relaes de escambo teriam se tornado mais profissional com a chegada de Martim Afonso de Souza. Com o primeiro governo geral do Brasil, a Colnia se instalou enquanto tal e as relaes alteraram-se, tensionadas pelo interesse em jogo que, do lado europeu, envolviam colonos, governo e missionrios, mantendo entre si, como assinala Taylor, uma complexa relao feita de conflito e de simbiose.No eram mais parceiros para escambo que desejam os colonos, mas mo de obra para as empresas coloniais que incluam sua prpria reproduo na forma de canoeiros e soldados para o apresamento de mais ndios: problema estrutural e no de alguma ndole ibrica. Quem melhor o expressou foi aquele velho ndio Tupinamb do Maranho que, por volta de 1610, teria feito o seguinte discurso aos franceses que ensaiavam o estabelecimento de uma colnia: Vi a chegada dos per [portugueses] em Pernambuco e Poti; e comearam eles como vs, franceses, fazeis agora. De incio, os per no faziam seno traficar sem pretenderem fixar residncia [...] Mais tarde, disseram que nos devamos acostumar a eles e que precisavam construir fortalezas, para se defenderem, e cidades, para morarem conosco [...] Mais tarde afirmaram que nem eles nem os pa [padres] podiam viver sem escravos para os servirem e por eles trabalharem. Mas no satisfeitos com os escravos capturados na guerra, quiseram tambm os filhos dos nossos e acabaram escravizando toda a nao [...] Assim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vs o fizeste somente para traficar [...] Nessa poca no falveis em aqui vos fixar; apenas vos contentveis com visitar-nos uma vez por ano [...] Regressveis ento a vosso pas, levando nossos gneros para troc-los com aquilo de que carecamos. Agora j nos falais de vos estabelecerdes aqui, de construirdes fortalezas para defender-nos contra os nossos inimigos. Para isso, trouxestes um Morubixaba e vrios Pa. Em verdade, estamos satisfeitos, mas os per fizeram o mesmo [...] Como estes, vs no quereis escravos, a princpio; agora os pedis e os quereis como eles no fim [...] (Abbeville, trad. Srgio Milliet, 1975 [1614]: 115-6 apud CUNHA. Manuela. Histria dos ndios no Brasil. p. 15).Esse depoimento de suma importncia para percebermos que os ndios tinham conscincia do que lhes estava sendo imposto, eram agentes de sua histria. Ainda assim, no puderam lutar contra esse movimento genocida.O que se busca chamar ateno aqui o fato de que, antes dos portugueses chegarem ao Brasil, havia controle das entre os habitantes dessas terras. Eram indivduos que se estabeleceram em sociedades igualitrias ou comunitrias, que exerciam atividades econmicas visando, preponderantemente, a obteno de alimentos e de proteo contra aes naturais. Os povos do velho continente, por sua vez, no. Vivam em uma sociedade diferente, cujas classes sociais eram distintas e excludentes, nas quais o trabalho ainda que essa ideia possusse uma carga negativa e no fosse praticado pela a nobreza era voltado para propiciar ou manter riqueza e status. Essas diferenas eram marcantes no choque entre os dois mundos (europeus e amerndios) e, como em todo conflito, o vencedor subjuga o derrotado, eliminado suas formas de vida. Neste caso no foi diferente.Decididos a dominar e explorar o novo territrio, os portugueses se encarregaram de justificar suas atitudes. Por serem constitudos por uma sociedade extremamente religiosa, os lusitanos buscaram na f e na igreja razes que justificassem a sua empreitada. A expanso da f crist era a primeira delas, seguida pela necessidade de converso de novos fiis e pela prpria salvao das almas dos ndios, que, antes da chegada dos messias portugueses, estavam condenados ao inferno. No obstante, a existncia de um poder central exigia mais do que justificativas teolgicas. Aos homens daqueles tempos era preciso uma ordem real. Uma legislao que, apesar de abaixo moralmente da Igreja, atendessem-lhes o anseio de legitimar a dominao sobre os indgenas.A historiadora Maria Beatriz-Perrone, em sua obra Os Princpios da Legislao Indigenista do Perodo Colonial trata deste tema. Segundo a autora, na Amrica Portuguesa no existiu um direito colonial brasileiro independente do direito portugus. O Brasil era regido basicamente pelas mesmas leis que a metrpole (compiladas nas Ordenaes Manuelinas e, a partir de 1603, nas Ordenaes Filipinas), acrescidas de legislao especfica para questes locais. Na colnia, o principal documento legal eram os Regimentos dos governadores gerais. O Rei os assinava, assim como as Cartas Rgias, Leis, Alvars em forma de lei e Provises Rgias, auxiliado por corpos consultivos dedicados a questes coloniais. Quanto questo indgena no era diferente, sendo esta, por sua vez, considerada contraditria e oscilante. Tomada em conjunto, a legislao indgena dava liberdades com restries do cativeiro a alguns determinados casos, abolia totalmente a liberdade em outros para em seguida restaur-los.Havia, no Brasil Colonial, ndios aldeados e aliados dos portugueses, e ndios inimigos espalhados pelos sertes. A diferena irredutvel entre ndios amigos e gentio bravo corresponde a um corte na legislao e poltica indigenistas que, encaradas sob esse prisma j no aparecem como uma linha tortuosa crivada de contradies, e sim duas, com oscilaes menos fundamentais. Nesse sentido, pode-se seguir uma linha de poltica indigenista que se aplica aos ndios aldeados e aliados e outra, relativa aos inimigos, cujos princpios se mantm ao longo da colonizao. Nas grandes leis de liberdade, a distino entre aliados e inimigos anulada e as duas polticas se sobrepem.Aos ndios aldeados e aliados, garantida a liberdade ao longo de toda a colonizao. Afirma-se desde o inicio que, livres, so senhores de suas terras nas aldeias, passiveis de serem requisitados para trabalharem para os moradores mediante pagamento de salrio e devem ser muito bem tratados. Deles dependem reconhecidamente o sustento e defesa da colnia.A poltica para eles segue o seguinte itinerrio ideal: em primeiro lugar, devem ser descidos, isto , trazidos de suas aldeias no interior (serto) para junto das povoaes portuguesas; l devem ser catequizados e civilizados, de modo a tornarem-se vassalos teis, como diro documentos do sculo XVIII.A localizao dos aldeamentos obedece a consideraes de vrias ordens. Para incentivar o contato com os portugueses, facilitando assim tanto a civilizao dos ndios quanto a utilizao de seus servios, so em geral situados prximo das povoaes coloniais. Nelas vivem apenas os ndios e os missionrios, a no ser quando as leis instituem a administrao leiga.O aldeamento , pois, a realizao do projeto colonial, pois garante a converso, a ocupao do territrio, sua defesa e uma constante reserva de mo de obra para o desenvolvimento econmico da colnia.Uma das principais funes atribudas aos ndios aldeados a de lutar nas guerras movidas pelos portugueses contra ndios hostis e estrangeiros. Alm dos ndios das aldeias, so tambm chamados a lutar nessas guerras naes aliadas, cuja aliana deve ser reafirmada nos momentos em que h necessidade de grandes contingentes de guerreiros. Os ndios aldeados so encarregados de defender as vilas e plantaes dos ataques do gentio e as fronteiras dos ataques dos inimigos europeus. Povos estratgicos, so muralhas dos sertes, barreira viva penetrao de inimigos de todo tipo.Como os aldeados, os aliados so homens que devem ser bem tratados. E porque a segurana dos sertes e das mesmas povoaes do Maranho e de toda a Amrica consiste na amizade dos ndios, como diz Carta Rgia de 24/02/1686, preciso manter essa amizade, evitando qualquer tipo de agresso e providenciando recompensas para sel-la.Mas, se por um lado, a liberdade sempre garantida aos aliados e aldeados, a escravido , por outro lado, o destino dos ndios inimigos. As justas razes do direito para a escravizao dos indgenas so a guerra justa e o resgate.As causas legtimas da guerra justa seriam a recusa converso ou o impedimento de propagao da F, a prtica de hostilidades contra vassalos e aliados portugueses (especialmente a violncia contra pregadores, ligados primeira causa) e a quebra de pactos celebrados.Em pesquisa realizada pela historiadora Ana Beatriz, percebeu-se que a mera recusa aceitao da f no parece ter sido reconhecida legalmente como motivo de guerra justa. J o impedimento pregao apontado como causa justificada da guerra justa, reconhecendo ao rei o direito de punir e castigar todos aqueles que pusessem obstculos propagao da f.Dois outros motivos tambm apareceram nas discusses sobre a guerra justa: a salvao das almas e a antropofagia. A ltima, alis, constituiu uma questo mais complicada e controversa, mas no parece que tenha sido causa suficiente de guerra. A questo pode, portanto, ser encarada sob dois aspectos: o direito/dever de se impedir o canibalismo, enquanto tal, e uma suposta obrigao que teriam os cristos de salvar os inocentes que seriam sacrificados ou punidos.No obstante, os reis, em geral, recomendam que se tente a pacificao antes de qualquer guerra, pois, como dito acima, o aldeamento a realizao do projeto colonial, a guerra, ao contrrio, sua negao. Neste sentido, eles vo limitando cada vez mais a possibilidade de declarar guerras justas, chegando a estabelecer que estas s se configurassem como tal se o prprio rei as declarasse de seus punhos e exigindo tambm testemunhos, documentos e pareceres que comprovem as causas alegadas para tal declarao.A preexistncia de hostilidades por parte do inimigo ser, sempre, a principal justificativa de guerra. Hostilidades so invocadas por todos os documentos que se referem s guerras contra os ndios, desde o Regimento de Tom de Sousa (15/12/1548). Neles, trata-se de provar a presena de um inimigo real. Tudo leva a crer que muitos desses inimigos foram construdos pelos colonizadores cobiosos de obter braos escravos para suas fazendas e indstrias. Com essa suspeita, a Coroa chegou a proibir totalmente as guerras e escravizaes de indgenas, serrando a porta aos pretextos, simulaes e dolo com que a malicia, abusando dos casos em que os cativeiros so justos, introduz os injustos, como diz a Lei 1/4/1680.Assim, uma vez estabelecida a hostilidade e configurado o brbaro inimigo, preciso conter a fereza dos contrrios e a guerra que se lhes pode mover arrasadora. Uma carta do governador geral do Brasil sobre a assim chamada Guerra dos Brbaros na capitania do Rio Grande, de 14/3/1688, recomenda a um dos capites-mores que dirija a entrada e guerra que h de fazer aos brbaros como bem entender que possa ser mais ofensiva, degolando-os, e seguindo-os at os extinguir, de maneira que fique exemplo desse castigo a todas as demais naes que confederadas com eles no temiam as armas de sua majestade.Importante, por fim, destacar que a escravido no licita apenas para os brbaros hostis. Tambm podem ser escravos homens que no so inimigos, mas sendo cativos dos ndios forem comprados, ou resgatados, para serem salvos. O resgate , como a guerra justa, um caso de escravido fundamentado por regras de direito correntes, sendo sua liceidade aceita at mesmo pelo padre Vieira (cf. Carta de 20/5/1653 in Vieira, 1948).Essa interao entre amerndios e europeus, como vista acima, provou modificaes sociais nos dois grupos, sendo suas consequncias mais fortes nos grupos indgenas, razo pela qual procederemos a sua analise neste trabalho.A diferenciao entre ndios amigos e ndios inimigos parte do pressuposto de distinguir quais grupos aceitaram ou no a dominao europeia. Neste sentido, nos possvel deduzir que aqueles que a aceitaram tiveram de modificar muitos de seus hbitos culturais, organizacionais e cotidianos. O ponto de vista religioso ser o primeiro a ser analisado. As justificativas da igreja de expanso da f crist foram prontamente atendidas com a expanso martima. No entanto, para os ndios esse movimento trouxe consequncias impagveis para a sua cultura. Se antes os ndios eram politestas, aps a pregao da doutrina apostlica romana tiveram de abandonar a adorao de vrios deuses para centrar sua f em um nico senhor, o qual lhes era apresentado como criador do universo onipresente e onipotente. Assim, foram forados a abandonar as prticas antropofgicas, que no condiziam com a sua nova doutrina. Tambm passaram a ver na poligamia um ato contrrio aos ensinamentos bblicos e tornaram-se monogmicos. Enfim, os ndios tornaram-se cada vez mais parecidos com os homens medievais.No plano econmico, a chegada dos portugueses introduziu na sociedade indgena conceitos mercantis que eram totalmente incompatveis com aquela sociedade. Sabemos que os ndios viviam em comunidades ditas primitivas e que o modo de produo era igualitrio, isto , tudo que era produzido o era feito por todos os membros do grupo e divididos entre eles tambm, de modo que no lhes faltassem elementos bsicos de sobrevivncia, nem sobrassem. O trabalho, por assim dizer, s era praticado quando havia necessidade. Nas sociedades europeias, por sua vez, sabemos que os objetivos eram outros. Para os europeus, o trabalho (ainda que fossem outros a pratica-los) era concebido como um meio de manter ou aumentar a riqueza e o poder. Essa diferena conceitual, por sua vez, desestruturou o modo de organizao dos indgenas brasileiros, pois, em contato com os lusitanos, foram submetidos a formas extenuantes de trabalho, as quais no estavam acostumados e, principalmente, no viam razo de ser. Neste sentido, houve uma queda demogrfica que desestruturou a sociedade at ento instalada, extinguindo para sempre este modo de vida do Brasil e implantando, a partir de ento, um sistema econmico no qual o trabalho era necessrio para a manuteno das distines sociais determinadas pelo acumulo de capital (riquezas) dos indivduos.Isso refletiu diretamente no prprio cotidiano das tribos, haja vista que desde aquele momento tiveram que trabalhar cada vez mais, pois, com a diferenciao feita entre os membros dessa nova sociedade criada pela fuso de americanos e europeus, e com a reduo de mo de obra os ndios deveriam trabalhar mais para prover meios de subsistncias dos demais.

ConclusoTradicionalmente, aprendemos que os indgenas eram indivduos to puros que no puderam e nem entenderam a colonizao que lhes foi submetida pelos europeus. Os ndios seriam, ento, as vtimas do Velho Mundo, o qual, devido sua ganncia, os destruiu. Tal ideia no de todo verdadeira, nem totalmente falaciosa.Conceber o povo indgena como sujeito autor de sua histria dar a ele o status de sociedade organizada, antes mesmo da chegada de Colombo. E isso muito importante para entendermos o que, de fato, a introduo europeia na Amrica trouxe como consequncia aos seus habitantes.O modo de vida igualitrio amerndio no o mesmo pregado pelo marxismo, muito porque no havia o capitalismo propriamente dito naquele momento histrico. Os ndios viviam de um modo que lhes parecia mais racional. Quando tinham fome, caavam, quando sentiam sede, iam aos rios e lagos e bebiam gua; praticavam a religio que tinham por sagrada; organizavam-se em aldeias que os protegia das agresses naturais e de outros grupos e animais; em sntese, viviam da forma mais tranquila possvel. Apesar de serem desconhecedores da pratica de acumulao de riquezas e distines sociais, eles no eram totalmente adversos a essas prticas, tendo em vista que o excedente de sua produo era trocado com outras tribos por produtos diversos. O que, em especial, os difere nesses aspectos dos europeus que seus atos tm um fim imediato.Toda a ordem social existente no velho mundo na Idade Antiga, Idade Mdia e Idade Moderna nada mais foi do que a forma que aquela cultura tinha para permitir que todo o seu universo funcionasse. Era assim que eles explicavam e viviam tudo que conheciam. Com as tribos indgenas, o conceito central era o mesmo, mas a forma de faz-lo era diferente. Os ndios tinham um jeito mais simples de se explicar e de viver.Hierarquicamente, a sociedade indgena distinguia-se quanto ao sexo e idade. No eram todos tratados igualmente, mas tambm no o eram to diferenciados quanto os membros da sociedade europeia. Neste sentido, a introduo da viso social europeia, a qual est presente desde que o homem descobriu que era igual ao seu semelhante, desregulou toda a organizao das tribos, o seu modo de vida e mudou para sempre a histria do que viria a ser o Brasil. A ideia de distino social europeia foi germe do que hoje chamamos de desigualdade social; se antes as diferenas eram legitimadas e reguladas pelo Estado; hoje elas so negadas pelo Estado, que, ainda que indiretamente, as regula. Sendo assim, um ponto bsico a destacar questionar qual a funo primordial do Estado: regular e, posteriormente, eliminar as desigualdades existentes? Se fosse esta, no haveria razo para modificar a estrutura das sociedades indgenas do Brasil no inicio do sculo XVI, j que tal processo ocorria nelas. Entretanto, diante do fato de dizimao desta forma organizacional, o argumento de Hobbes de que o Estado o regulador da propriedade e daquilo que o individuo tem e quer defender, bem como daquilo que ele almeja e lutar para obter, ganha importncia. Foi em torno desse objetivo que o modelo estatal europeu destruiu os dos indgenas e comeou a determinar a forma de ao do Estado brasileiro.

Referencias Bibliogrficas:

Abbeville, trad. Srgio Milliet, 1975 [1614]:115-6 apud CUNHA.Manuela. Histria dos ndios no Brasil. p. 15;AQUINO, Rubim Santos Leo de; VIEIRA, Fernando Antnio da Costa; AGOSTINHO, Carlos Gilberto Werneck; e ROEDEL, Hiran. Sociedade Brasileira: Uma Histria. p.14 - 22;CUNHA.Manuela. Histria dos ndios no Brasil. p. 13-14;HESPANHA, Antonio Manuel. Imbecilitas As bem aventuranas da inferioridade nas sociedades do antigo Regime. p. 50 - 57;HOBBES, Thomaz. Leviat. p. 45-46;RIBEIRO, BERTA, O ndio na histria do Brasil, So Paulo, Global Editora, 1987, pg. 19.SCHWARTZ, STUART B., op. cit., pg. 41

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