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Leitura excelente.
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Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 83
A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO THE RELIGION BETWEEN THE HUMAN BEEN AND THE STATE
EMERSON GARCIA
Recebido para publicao em maio de 2011.
RESUMO: O direito fundamental de professar, ou no, uma crena, tem se mostrado essencial ao pleno desenvolvimento da personalidade individual, permitindo que referenciais morais e espirituais atuem de modo concorrente no delineamento de suas linhas estruturais. Direitos dessa natureza, num Estado laico, como a Repblica Federativa do Brasil, terminam por se defrontar, no mbito dos poderes constitudos, com uma evidente tenso dialtica entre a obrigao de proteger e a vedao de se integrar ao fenmeno religioso. O objetivo dessas breves linhas identificar as situaes em que essa tenso se manifesta de modo mais acentuado, com o consequente delineamento de solues de cunho harmonizador.
PALAVRAS-CHAVE: ensino religioso; liberdade de crena; objeo de conscincia e religio.
ABSTRACT: The fundamental right of professing, or no, a faith, is essential to the full development of the individual personality, allowing moral and spiritual factors to act in a competitive way in the drawing of their structural lines. Rights of that nature, in a neutral State, as the Federal Republic of Brazil, confront, in the extent of the constituted powers, with an evident dialectic tension among the obligation of protecting and the prohibition of integrating to the religious phenomenon. The objective of these brief lines is to identify the situations in that the tension shows in an accentuated way, with the consequent identification of solutions.
KEY WORDS: religious teaching; freedom of faith; objection of conscience and religion.
1. Delimitao do plano de estudo
A evoluo da humanidade tem demonstrado que o pleno desenvolvimento da
personalidade individual e a harmnica convivncia social, longe de estarem alicerados num
padro de pura juridicidade, so diretamente influenciados por referenciais de moralidade e
de espiritualidade.
Apesar da universalidade que ostenta, a idia de moral assume contornos
eminentemente volteis, apresentando contedo compatvel com a poca, o local e os
mentores de sua densificao. conceito mais fcil de ser sentido que propriamente definido,
o que no afasta a constatao de que, no ambiente social, so formulados conceitos
abstratos, que condensam, de forma sinttica, a experincia auferida com a convivncia em
Doutorando e Mestre em Cincias Jurdico-Polticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Anturpia Blgica) e em Cincias Polticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro do Ministrio Pblico do Estado do Rio de Janeiro. Assessor Jurdico da Associao Nacional dos Membros do Ministrio Pblico (CONAMP). Ex-Consultor Jurdico da Procuradoria Geral de Justia (2005-2009). Membro da International Association of Prosecutors (The Hague Holanda).
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sociedade, terminando por estabelecer concepes dotadas de certa estabilidade e com ampla
aceitao entre todos, o que contribui para a manuteno do bem-estar geral. justamente a
moral que aglutina tais concepes, podendo ser concebida como o conjunto de valores
comuns entre os membros da coletividade em determinada poca, ou, sob uma tica
restritiva, o manancial de valores que informam o atuar do indivduo, estabelecendo os seus
deveres para consigo e a sua prpria conscincia sobre o bem e o mal. No primeiro caso,
conforme a distino realizada pelo filsofo Brgson (1977: 34 e ss.), tem-se o que se
convencionou chamar de moral fechada, e, no segundo, a moral aberta (GARCIA, 2002: 153).
A espiritualidade, diversamente da moralidade, no reflete a mera aceitao de
standards de bem comum, colhidos no ambiente social ou desenvolvidos a partir do livre juzo
valorativo que cada indivduo dotado de plena capacidade intelectiva pode realizar.1 A
espiritualidade, em verdade, encontra-se alicerada em referenciais superiores, que agem na
formao dos standards que direcionaro o pensar e o agir da pessoa humana, sendo por ela
apreendidos, no propriamente criados. Esses standards, por sua vez, que tm reconhecida a
sua imperatividade, importncia ou mero valor a partir de um estado mental baseado na f,
vale dizer, na crena de sua infalibilidade e correo, apresentam inmeras variaes. O
pluralismo conduz necessidade de separao e individualizao, de modo que cada conjunto
de standards possa ser agrupado sob um designativo especfico, permitindo o seu
reconhecimento e, para aqueles que assim o desejarem, o seu acolhimento. nesse contexto
que surgem e se propagam as religies, desenvolvendo-se margem da razo, no plano da
espiritualidade, e encontrando sustentao na f.
Questes de ndole religiosa costumam ser foco de incontveis polmicas em qualquer
Estado de Direito e, no Brasil, no poderia ser diferente. A religio, ao ser vista com as lentas
da juridicidade, assume feies bipolares: deve ser analisada tanto sob o prisma da pessoa
humana, como sob a tica do Estado. justamente essa anlise que permitir seja aferido se
h algum limite para a manifestao da f individual e de que modo o Estado deve lidar com a
laicidade, com o pluralismo religioso e com a proteo dos direitos individuais, valores de
indiscutvel relevncia na modernidade.
O objetivo dessas breves linhas identificar os limites e as potencialidades da relao
triangular mantida entre pessoa humana, religio e Estado de Direito.
2. Liberdade de conscincia e de crena
1 a moral crtica a que se referia Hart (2001: 201).
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A Constituio brasileira de 1988, preservando a tradio republicana2 e mantendo-se
fiel aos valores acolhidos pela sociedade internacional3 e pela maioria dos Estados modernos,4
disps, no inciso VI de seu art. 5, que inviolvel a liberdade de conscincia e de crena,
sendo assegurado o livre exerccio dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteo
aos locais de culto e a suas liturgias.
Como projeo da racionalidade do ser humano, a liberdade de conscincia lhe assegura
o pleno juzo valorativo a respeito de sua existncia e do mundo em que inserido. O indivduo
estabelece os seus prprios critrios de bom ou ruim e orienta as suas decises de acordo
com eles (STARCK e SCHMIDT, 2008: 158), tendo a dignidade afirmada com o reconhecimento
de sua capacidade em formular juzos morais sobre suas aes e de direcionar a sua conduta
de acordo com esses juzos (FAVRE, 1970: 279).
Em relao ao alcance da liberdade de conscincia e sua necessria coexistncia com
os demais valores protegidos pela ordem jurdica, o Tribunal Constitucional Federal alemo
(Bundesverfassungsgericht)5 teve oportunidade de apreciar o seguinte caso: numa rea,
vizinha propriedade de um indivduo protetor dos animais, eram regularmente organizadas
caadas, o que lhe obrigava a, constantemente, ver os animais mortos, afrontando, assim, os
valores que vinha seguindo durante toda a sua vida. Entendendo violada a sua liberdade de
conscincia (Gewissensfreiheit), pleiteou a paralisao das atividades. O Tribunal, no entanto,
no visualizou qualquer ofensa a esse direito fundamental, isto porque o protetor dos animais
no era obrigado a tomar parte nas caadas, elas no se desenvolviam em sua propriedade e,
alm disso, eram igualmente protegidas pela ordem jurdica, o que assegurava aos caadores o
2 Constituies de 1891 (art. 72, 3); 1934 (art. 113, n 5); 1937 (art. 122, n 4); 1946 (art. 141, 7); 1967 (art.
150, 5); e Emenda Constitucional n 1/1969 (art. 153, 5). No Imprio, face adoo de uma religio oficial, a catlica apostlica romana, eram impostas restries manifestao pblica de outras crenas: Constituio de 1824, arts. 5 e 179, n 5. 3 Conveno Americana de Direitos Humanos Pacto de So Jos da Costa Rica, adotada em 22/11/1969 e
promulgada pelo Decreto n 678/1992 (arts. 5, 1; e 12, 1); Declarao Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resoluo 217 A (III) da Assemblia Geral das Naes Unidas, de 10 de dezembro de 1948 (art. 18); e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos, adotado em 16/12/1966 e promulgada pelo Decreto n 592/1992 (arts. 18, 1; e 27). 4 Vide Primeira Emenda Constituio norte-americana de 1787, adotada em 1791; e Constituies alem de 1949
(art. 4); andorrana de 1993 (art. 11, 1 e pargrafo nico); argentina de 1853 (art. 14); belga de 1994 (arts. 19; e 20); cubana de 1976 (art. 54); espanhola de 1978 (arts. 16 e 20 (1, d)); francesa de 1958 (prembulo, art. 2); holandesa de 1983 (art. 6, 2); italiana de 1947 (arts. 8, 19 e 20); japonesa de 1946 (art. 20); portuguesa de 1976 (art. 41); russa de 1993 (arts. 14, 2; 28; e 29, 2); sua de 1874 (art. 49) e de 1999 (arts. 8, 2; 15; e 72); e turca de 1982 (art. 15, 2); Declarao de Direitos da Virgnia (EUA) de 1776 (Seo 16); Declarao Dignitatis Humanae sobre Liberdade Religiosa, do Conclio Vaticano II, de 1965; Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado (Frana) de 1789 (art. 10). 5 1 BvR 2084/2005, j. em 13/12/2006, in Neue Zeitschrifit fr Verwaltungsrecht, 2007, p. 808.
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direito de caar. Observa-se, assim, que a conscincia individual, ao romper o psiquismo e
alcanar a realidade, deve coexistir com os padres de juridicidade.
A liberdade de crena, por sua vez, contextualizada no plano da f, que pode ser
livremente escolhida e professada, sem qualquer interferncia do Estado ou de outros
particulares. Como limite, tem-se a necessidade de resguardar a ordem pblica e assegurar
igual liberdade aos demais componentes do grupamento, que no podem ser compelidos a
violentar a sua conscincia e a professar f alheia. A preocupao com a preservao da ordem
pblica, alis, remonta clebre Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789
(art. 10).6 A liberdade de crena pode ser concebida como a face intrnseca da liberdade
religiosa, afeta intimidade do ser humano, enquanto a liberdade de culto a sua face
extrnseca, momento em que ocorre a exteriorizao da f.
A respeito da liberdade religiosa, tambm assegurada pela Primeira Emenda
Constituio norte-americana, o Justice William Douglas (1966: 91-92) nela visualizava as
seguintes facetas: nenhuma autoridade sectria deve ser investida do poder do governo; o
governo no tem influncia direta nos assuntos de nenhuma igreja; os cidados no so
taxados por auxiliarem uma instituio religiosa e nenhuma igreja deve receber recursos
pblicos; as pessoas podem pertencer igreja que desejarem, ou a nenhuma, e ningum pode
ser obrigado a participar de cerimnias religiosas, como o casamento; nas disputas internas
entre seguimentos da igreja, os juzes devem observar sua disciplina interna; escolas pblicas
no so agncias de ensino religioso, no havendo razo para que o Estado no ajuste os
horrios das escolas de modo que os estudantes obtenham tal ensino em outro lugar; pais e
crianas tem o direito de frequentar escolas privadas religiosas; o exerccio de um ritual no
pode ser imposto, pelo Estado, ao indivduo, se isto caminha contra as suas convices
religiosas; a liberdade religiosa engloba os mtodos convencionais e os ortodoxos, como o de
distribuir literatura religiosa de porta em porta; o funcionamento de uma igreja no deve ser
condicionado concesso de licena ou ao pagamento de taxas ao Estado; a liberdade
religiosas deve alcanar tanto aqueles que fundam sua crena num ser supremo, como aqueles
que a buscam na tica e na moral; o que pode configurar prtica pag para uma pessoa pode
ser religiosa para outra, no sendo funo do Estado realizar aferies dessa natureza,
inclusive para fins punitivos.
6 A Declarao Dignitatis Humanae, do Conclio Vaticano II, disps que a liberdade religiosa um direito civil de
todos os seres humanos, o que lhes assegura estarem imunes de coero tanto por parte de pessoas particulares, como de grupos sociais e de qualquer autoridade humana (n 1); acrescendo-se que, em matria religiosa, nem se obriga algum a obrar contra sua conscincia, nem se impede que atue em conformidade com ela, em ambiente privado ou pblico, s ou associado com outros, dentro dos limites devidos (n 2).
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A liberdade religiosa, em suas distintas formas de manifestao, sempre estar lastreada
no ideal de tolerncia, que antecede e d sustentao sua juridicidade. Essa constatao
torna-se particularmente clara ao verificarmos a falibilidade humana na formao e na
identificao da verdade, de todo acentuada em questes de estrita racionalidade, impossvel
de ser alcanada em relao ao que ultrapassa os liames da razo, como a f e os distintos
modos de manifest-la (Cf. VERA URBANO, 1971: 22-23).
As liberdades de crena e de culto tambm trazem consigo um aspecto negativo ou,
melhor dizendo, neutral, nsito e indissocivel de qualquer direito fundamental, que consiste
justamente na possibilidade de no exerc-lo. A pessoa livre para ter ou no uma crena,
realizar ou no um culto. Nesse sentido, a Constituio andorrana de 1993 (art. 11, 1) tornou
expresso o que nela j estaria nsito, vale dizer, a Constituio garante a liberdade de
pensamento, de religio e de culto, e o direito de toda pessoa de no declarar ou manifestar
seu pensamento, sua religio ou suas crenas.
Deve-se observar, ainda, que nem tudo aquilo que emana de um religioso ou de uma
instituio religiosa deve ser indistintamente enquadrado sob a epgrafe da liberdade de
crena ou do livre exerccio dos cultos religiosos. Nesse sentido, pode-se mencionar o exemplo
de uma igreja que faa soar seus sinos, por poucos segundos, a cada hora completa e, aos
domingos, no incio do culto religioso, por cinco minutos: enquanto a segunda conduta est
nitidamente associada liberdade de crena e culto, a primeira deles se distancia e se
enquadra na clusula geral de liberdade,7 cujo potencial expansivo somente limitado pela
necessidade de resguardar os direitos alheios e de assegurar a integridade da ordem jurdica
(STARCK e SCHMIDT, 2008: 159). A lei, em qualquer caso, deve assegurar a proteo aos
locais de culto e a suas liturgias (CR/1988, art. 5, VI), evitando seja afetada a integridade das
instalaes religiosas ou comprometida a transmisso dos dogmas que justificam a sua
existncia.
A correta compreenso da inviolabilidade da liberdade de conscincia e de crena ainda
exige seja devidamente delimitado o seu objeto. Em outras palavras, essa liberdade alcana
apenas a manifestao de f e religiosidade ou tambm se projeta sobre as manifestaes
negativas a respeito do fenmeno religioso? possvel difundir os aspectos negativos das
religies e a crena de que o melhor no ter crena alguma? Num Estado pluralista e de
acentuados contornos liberais, como si ser a Repblica Federativa do Brasil, a resposta
positiva h de prevalecer. Uma verdadeira liberdade religiosa somente poder existir em
7 Constituio brasileira de 1988, art. 5, II.
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estando presente a plena liberdade individual para adotar uma opo em matria de f; e isto
somente ser possvel caso a pessoa receba todas as informaes necessrias formao do
seu juzo de valor, o que, evidncia, pressupe seja reconhecido o direito de algum
transmitir tanto as opinies favorveis, como as desfavorveis, a respeito de uma religio (Cf.
CIURRIZ, 1984: 103-105). O autor das crticas, no entanto, deve arcar com todas as
consequncias decorrentes do excesso de linguagem ou do vilipndio de smbolos ou dogmas
alheios, j que ultrapassam os limites do livre exerccio do seu direito individual.
importante observar que tanto a liberdade de conscincia, como a de crena, podem
permanecer adstritas ao denominado forum internum, vale dizer, ao plano puramente
psquico, ou estender-se ao forum externum, ocasio em que so exteriorizadas e entram em
efetivo contato com a realidade. justamente sob essa ltima tica que a sua proteo
jurdica adquire relevncia prtica (Cf. STARCK e SCHMIDT, 2008: 155).
2.1. A proteo da liberdade de crena e convico
Como projeo direta de sua personalidade, toda pessoa humana desenvolve juzos
valorativos que expressam sua forma de ver, situar-se e interagir no meio social, fatores estes
que a individualizam enquanto ser racional e que merecem a proteo do Estado. A
Constituio brasileira de 1988, como desdobramento necessrio do pluralismo e da dignidade
humana, que reconhece e protege, obsta que algum tenha a sua esfera jurdica restringida
to-somente por motivo de crena religiosa ou de convico filosfica ou poltica (art. 5,
VIII).8 Trata-se de garantia essencialmente direcionada ao pensar, no necessariamente ao
agir, isto porque crenas ou convices podem redundar em atos contrrios ordem jurdica
(v.g.: a prtica de um homicdio como parte integrante de solenidade religiosa), no eximindo
o seu autor da responsabilidade pelos ilcitos que praticar.
Alm de proteger a liberdade de crena e convico, a ordem constitucional permite,
igualmente, que qualquer pessoa deixe de cumprir deveres jurdicos de origem legal,
genericamente impostos a todos, que colidam com a referida liberdade. Trata-se da
denominada objeo de conscincia, que, em seus contornos mais amplos, indica a recusa em
8 Vide as Constituies alem de 1949 (art. 4); andorrana de 1993 (art. 11, 2); argentina de 1853 (art. 14); belga de
1994 (arts. 11; 19; e 131) cubana de 1976 (art. 54); espanhola de 1978 (arts. 16 e 20 (I, d)); holandesa de 1983 (art. 6, 1); italiana de 1947 (arts. 8, 19 e 20); japonesa de 1946 (art. 20); portuguesa de 1976 (art. 41) e sua de 1999 (art. 15); Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado (Frana) de 1789 (art. 10). No mbito do Direito Internacional, vide a Conveno Americana de Direitos Humanos Pacto de So Jos da Costa Rica, de 1969 (art. 12, 2 e 3); a Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (art. 18); e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos, de 1966 (arts. 18, 2 e 3; e 27).
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obedecer a um comando de autoridade, a um imperativo jurdico, invocando-se a existncia,
no foro individual, de impedimentos de ordem axiolgica que obstam a adoo do
comportamento exigido. A base axiolgica que d sustentao objeo de conscincia pode
decorrer de razes morais, filosficas ou polticas, da surgindo um sentimento de averso a
uma gama extremamente varivel de comportamentos plenamente jurgenos. Reflete uma
forma de penetrao da moral no direito, que anui em arrefecer a sua imperatividade em prol
da conscincia individual, preservando um valor indissocivel da personalidade humana.
Como necessrio contraponto objeo de conscincia, disps a Constituio de 1988,
tambm no art. 5, VIII, que a sua invocao, com o correlato descumprimento de obrigao
legal, poder redundar em privao de direitos caso a pessoa se recuse a cumprir prestao
alternativa, fixada em lei. Com isto, busca-se preservar um referencial de igualdade nas
relaes com o Estado, evitando que determinadas pessoas, por cultivarem valores distintos
aos de outras, sejam desoneradas de toda e qualquer obrigao legal. A prestao alternativa,
que, a exemplo do dever jurdico original, deve ser necessariamente definida em lei, visa
justamente a recompor esse referencial de igualdade, inicialmente maculado com a
formulao da objeo de conscincia.
importante ressaltar que a objeo de conscincia somente far surgir a obrigao de
cumprir a prestao alternativa caso a obrigao original que motivou a sua formulao tenha
sido a todos imposta. A generalidade da obrigao legal atua como verdadeiro pressuposto
de sua prpria imperatividade. Tratando-se, ao revs, de obrigao casustica, endereada a
pessoas perfeitamente individualizadas, no ser possvel impor qualquer privao de direitos
queles que se negaram a cumpri-la. Aqui, no se ter propriamente obrigao, mas, sim,
perseguio.
2.2. Liberdade de crena e tratamento mdico
Face amplitude da liberdade de crena, que pode albergar variadas manifestaes de
f, incluindo certos comportamentos que destoam dos padres de racionalidade j
sedimentados no ambiente social, no ser incomum a presena de situaes de coliso com
outros bens e valores constitucionalmente tutelados. Esse quadro particularmente delicado
nas situaes em que a pessoa padea de patologia, congnita ou provocada por causas
externas, e haja negativa de receber o tratamento mdico que o atual estgio da tcnica
considera adequado.
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Tratando-se de pessoa plenamente capaz de exteriorizar a vontade, h de prevalecer a
autodeterminao, sendo possvel que se negue a receber os tratamentos mdicos que
considere incompatveis com a sua crena. A simplicidade dessa soluo, no entanto, no se
estende s situaes em que estejamos perante pessoas que, em carter definitivo ou
temporrio, sejam total ou parcialmente incapazes de exteriorizar a sua vontade, como as
crianas e os alienados mentais. Nesse caso, questiona-se: podem os seus responsveis legais,
lastreados em bases religiosas, proibir que recebam certo tratamento mdico? Esse
questionamento, desde logo, suscita reflexes em torno da necessria salvaguarda de outros
bens jurdicos igualmente tutelados pela ordem constitucional, como o direito vida (CR/1988,
art. 5, caput) e sade (CR/1988, art. 196, caput), no sendo demais lembrar que dever da
famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito vida, sade... (CR/1988, art. 227, caput).
Essa espcie de coliso, como soa evidente, ser necessariamente influenciada pelas
especificidades do caso concreto, no comportando respostas definitivas em abstrato. Isto, no
entanto, no impede sejam estabelecidas, previamente, duas pautas argumentativas, de
carter objetivo, que influenciaro na soluo do caso concreto: (1) a vida e, em certa
medida, o gozo de um bom estado de sade, so pressupostos necessrios ao pleno exerccio
da liberdade de crena; e (2) a autonomia da vontade, na hiptese aqui versada, plena no
plano pessoal e relativamente limitada em relao aos incapazes, j que sujeita a certos
balizamentos jurdicos de carter imperativo. A partir dessas pautas objetivas, pode-se afirmar
que, nesses casos, a liberdade de crena jamais autorizar o comprometimento da vida, e que,
em relao s intervenes mdicas destinadas cura de patologias menos graves, a resoluo
do caso concreto ser influenciada pela existncia, ou no, de tratamentos alternativos e pelas
conseqncias deletrias que decorrero da no realizao do tratamento inicialmente
indicado.
2.3. Objeo de conscincia ao servio militar
Objeo de conscincia, em seus contornos mais amplos, indica a recusa em obedecer a
um comando de autoridade, a um imperativo jurdico, invocando-se a existncia, no foro
individual, de fundamentos de ordem axiolgica que impedem a adoo do comportamento
exigido. A base axiolgica que d sustentao objeo de conscincia pode decorrer de
razes filosficas, religiosas ou polticas, da surgindo um sentimento de averso a uma gama
extremamente varivel de comportamentos plenamente jurgenos. Reflete uma forma de
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penetrao da moral no direito, que anui em arrefecer sua imperatividade em prol da
conscincia individual, preservando esse valor indissocivel da personalidade humana.9
Especificamente em relao objeo de conscincia no mbito do servio militar, a
Constituio brasileira de 1988, no 1 de seu art. 143,10 estabelece alguns balizamentos de
natureza pessoal, constitutiva, circunstancial e finalstica sua plena operatividade. No mbito
pessoal, a objeo de conscincia somente pode ser formulada pelos alistados. Em termos
constitutivos, exige-se que o imperativo de conscincia decorra de crena religiosa ou de
convico filosfica ou poltica, conceitos que acolhem praticamente todas as razes
passveis de serem invocadas, merecendo especial realce a convico filosfica, qual pode
ser reconduzido qualquer aspecto do pensamento humano. No plano circunstancial, tem-se
que a recusa somente pode ser manifestada em tempo de paz, previso justificvel na
medida em que, em perodos de guerra, o que se encontra em jogo a prpria subsistncia do
Estado, que no pode ser comprometida em razo da prevalncia de interesses individuais;
trata-se de juzo de ponderao realizado, a priori, pelo prprio Constituinte. Por fim, no plano
finalstico, restringe-se o emprego da objeo de conscincia s atividades de carter
essencialmente militar, o que afasta a possibilidade de recusa a atividades burocrticas ou
essencialmente perifricas, como o atendimento em hospitais, sem qualquer contato com
operaes blicas. Observa-se, nesse ltimo caso, que a objeo de conscincia do direito
brasileiro possui maior potencial expansivo que a de outros sistemas, como o alemo, que
restringe a formulao da Kriegsdienstverweigerung s situaes em que seja exigida a
utilizao de armas (Waffen) GG de 1949, art. 4, 3.
Preenchidos os requisitos constitucionais, no h espao para recusa objeo de
conscincia. Isto, no entanto, no significa que o objetor esteja imune a todo e qualquer dever
jurdico. Nesses casos, o que se verifica a outorga de competncia, s Foras Armadas, para
que, na forma da lei (CR/1988, art. 143, 1), lhe atribuam um servio alternativo, o qual,
importante frisar, no pode se contrapor s razes que embasaram a prpria objeo de
conscincia.
3. As relaes entre Estado e religio: o carter laico do Estado brasileiro
9 Um interessante resumo da linha evolutiva da objeo de conscincia, em que se percebe uma intensa influncia
de fatores teolgicos, pode ser obtida em Rodolfo Venditti (1981: 6-36). 10
Sobre a temtica, vide as Constituies alem de 1949 (arts. 4, 3; e 12a, 1); chilena de 1980 (art. 22); cubana de 1976 (art. 64); espanhola de 1978 (art. 30(2)); holandesa de 1983 (arts. 98, 3; e 99); italiana de 1947 (art. 42); mexicana de 1917 (art. 31, II e III); paraguaia (art. 113); peruana de 1993 (art. 78); portuguesa de 1976 (art. 276); russa de 1993 (art. 59, 3); e sua de 1999 (art. 59, 3).
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As relaes do Estado com o poder espiritual tm sofrido alteraes to intensas quanto
as variantes de espao e tempo utilizadas para contextualizar a respectiva anlise.
De um modo geral, os distintos modelos existentes podem ser enquadrados numa das
seguintes categorias: (1) Estado teocrtico ou sacral, onde, eliminada qualquer possibilidade
de pluralismo religioso, verifica-se a interpenetrao entre Estado e poder espiritual na
consecuo do bem comum (v.g.: o fundamentalismo religioso no Iran e no Vaticano); (2)
Estado proselitista, cuja caracterstica essencial no propriamente a confuso entre as
figuras, mas a proteo e o enaltecimento de uma religio especfica (v.g.: Estados ortodoxos);
(3) Estado cooperativo, onde, apesar de reconhecido o pluralismo, poder espiritual e poder
estatal apresentam pontos de contato (v.g.: na Inglaterra, o Chefe de Estado deve jurar
fidelidade aos dogmas da igreja oficial, a anglicana, sendo, igualmente, o seu chefe temporal);
(4) Estado laico ou secular, que passa ao largo da realidade religiosa subjacente ao meio social
e elimina, a priori, qualquer influncia do poder espiritual no ambiente poltico; laicidade
guarda similitude com neutralidade, indicando a impossibilidade de a estrutura estatal de
poder possuir uma f oficial, privilegiando-a em detrimento das demais; e (5) Estado
totalitrio atesta ou simplesmente ateu, que v no poder espiritual objetivos incompatveis
com os do Estado, terminando por vedar as prprias prticas religiosas (v.g.: a extinta URSS).
A Constituio argentina de 1853, mesmo aps as suas sucessivas reformas, dispe, no
incio do sculo XXI, que el gobierno federal sostiene el culto catlico apostlico romano (art.
2) Cf. BIDART CAMPOS, 2006: 541. No Brasil, a Constituio de 1824 assegurava a liberdade
de culto, em locais fechados, mas considerava, como religio oficial do Estado, a catlica,
apostlica, romana. Proclamada a Repblica, a Igreja foi separada do Estado, que passou a ser
laico: no entanto, face controvrsia em relao representao diplomtica brasileira no
Vaticano, a Reforma de 1926 acrescentou um pargrafo 7 ao art. 72 da Constituio de 1891,
tornando expresso que a representao diplomtica do Brasil junto Santa S no implicava
violao desse princpio. O preceito, nitidamente desnecessrio, j que a manuteno de
relaes diplomticas, por si s, j indica a separao entre os entes, foi repetido nas
Constituies de 1934 (art. 176) e 1946 (art. 196), sendo omitido nas demais.
Consoante o inciso I do art. 19 da Constituio de 1988,11 vedado ao Estado (1)
promover cultos religiosos; (2) mantiver templos religiosos; (3) estimular a prtica de certa
religio, com incentivos de qualquer natureza, financeiros ou no; (4) estabelecer relaes de
11
Vide as Constituies de 1891 (art. 11, inc. 2); 1934 (art. 17, II). 1937 (art. 32, b); 1946 (art. 31, II); 1967 (art. 9, II); e Emenda Constitucional n 1/1969 (art. 9, II).
A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO
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Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 93
dependncia ou aliana com organismos religiosos, de modo que diretivas baseadas
puramente na f influam no delineamento de decises estatais; ou (5) impor restries ao
exerccio das demais religies.12
Os limites da relao do Estado com a religio foram objeto de anlise pelo Tribunal
Constitucional Federal alemo, o qual, apreciando a amplitude da neutralidade apregoada pelo
direito constitucional (GG de 1949, art. 140 c.c. Constituio de Weimar, art. 137, I: Es besteht
keine Staatskirche), decidiu pela impossibilidade de serem afixados crucifixos nas salas de
aula das escolas pblicas, prtica que denotaria a adeso ao cristianismo em detrimento das
demais religies livremente professadas.13 Nesse particular, observa-se que algumas religies,
como o budismo, no crem na existncia de um Deus.
No direito italiano, a exposio dos crucifixos nas salas de aula remonta a um perodo
anterior unificao do Pas. Nesse sentido, dispunha o Decreto-real n 4.336/1860, do Reino
de Piemonte-Sardenha, que cada escola deveria possuir um crucifixo. Em 1861, com o
surgimento do Estado italiano, o Estatuto do Reino de Piemonte-Sardenha, de 1848, se tornou
o Estatuto italiano. De acordo com ele, a religio catlica apostlica romana era a religio
oficial do Estado. Em 1870, Roma tomada pelo exrcito e proclamada Capital do novo Reino
da Itlia. Face crise com a Igreja Catlica, a Lei n 214/1871 passa a regular, unilateralmente,
as relaes entre Estado e Igreja. Dede ento preservou-se o hbito de expor o crucifixo nas
salas de aula, o que foi previsto (1) na circular n 68/1922, do Ministrio da Instruo Pblica;
(2) no Decreto-real n 965/1924, que estabeleceu o Regulamento Interior dos
Estabelecimentos Escolares Secundrios do Reino (art. 118); (3) no Decreto-real n
1.297/1928, que veiculou o Regulamento Geral dos Servios de Ensino Primrio (art. 119). No
entender do Governo italiano, essas duas ltimas disposies, que bem refletiam os valores
sedimentados no Ocidente e na sociedade italiana, ainda permaneceriam em vigor, isto apesar
de a Constituio de 1947, em seu art. 7, ter preconizado a separao entre o Estado e a
Igreja. Posteriormente, a Lei n 121/1985 declarou, formalmente, que no mais subsistia o
preceituado no Pacto de Latro, de 1929, que indicava o catolicismo como a religio oficial do
Estado.
12
Vide as Constituies alem de 1949 (art. 140 c.c. Constituio de Weimar de 1919, art. 137, I: Es besteht keine Staatskirche), andorrana de 1993 (art. 11, 3); belga de 1994 (art. 21, 1); russa de 1993 (art. 14, 1 e 2); e sua de 1999 (art. 72, 2). 13
BVerfGE 108, 282. Cf. JARASS e PIEROTH, 2009: 153-154.
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94 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011
O Tribunal de Cassao decidiu que a presena do crucifixo nos locais de recolhimento
dos votos, durante as eleies, seria contrrio ao princpio da laicidade do Estado (Processo n
4.273/2000). O Tribunal Constitucional, por sua vez, na Deciso n 508/2000, ratificou a
jurisprudncia ento sedimentada a respeito da liberdade de crena e ao carter laico do
Estado: o Estado deve manter uma postura de equidistncia e imparcialidade em relao a
todas as religies, sem atribuir qualquer importncia ao nmero de fiis (Decises n
925/1988, 440/1995 e 329/1997) ou amplitude das reaes sociais quanto violao dos
dogmas de qualquer delas (Deciso n 329/1997). Instado a se manifestar sobre a questo da
exposio do crucifixo nas salas de aula, o Tribunal deixou de examin-la sob o argumento de
que a matria estaria regulada em disposies infralegais, desprovidas de fora de lei (Deciso
n 389/2004, 12).
A polmica, no entanto, chegou ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. No Caso
Lautsi vs. Itlia (Processo n 30.814/2006, j. em 03/11/2009), esse Tribunal decidiu que a
exposio da cruz nas salas de aula das escolas pblicas seria incompatvel com a liberdade de
crena e de religio, bem como com o direito ao recebimento de uma educao compatvel
com as convices religiosas e filosficas das crianas e de seus pais. Como fundamentos da
deciso, foram invocados; (1) o dever de ministrar a educao em conformidade com as
convices religiosas e filosficas dos pais (Protocolo n 1 Conveno Europia dos Direitos
Humanos, de 1950, art. 2); (2) a liberdade de religio e a impossibilidade de ser restringida
(Conveno..., art. 9, 1 e 2); (3) a Conveno protege tanto o direito de crer numa religio,
como o de no crer em religio alguma (vide Young, James e Webster vs. Reino Unido, j. em
13.08.1981, 52-57, srie A no 44). O Tribunal, assim, realou o carter religioso da cruz e
entendeu que o fato de sua exibio refletir referenciais morais elevados e ser compatvel com
os valores prestigiados por parte da coletividade no afastava o atentado laicidade do
Estado, terminando por determinar a sua retirada e a condenar o Estado italiano ao
pagamento de uma indenizao, por danos morais, na ordem de 5000 Euros.
No obstante a similitude, nessa temtica, das Constituies alem e italiana, bem como
da prpria Conveno Europia dos Direitos Humanos, com a atual Constituio brasileira,
cremos que a transposio do entendimento restritivo para a nossa realidade exige alguns
temperamentos. O primeiro deles consiste no fato de o cristianismo e, mais especificamente, o
catolicismo, serem partes integrantes da tradio brasileira, da decorrendo que a exposio
da cruz pode ser vista como mera deferncia a esse elemento cultural, em nada refletindo um
comprometimento religioso por parte do Estado. O segundo indica que, no Brasil, o pluralismo
A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO
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Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 95
religioso ainda no resultou numa rejeio socialmente relevante de certos smbolos que
fazem parte da nossa tradio. O terceiro demonstra que, contrariamente ao verificado na
Itlia, no se verifica, no Brasil, uma profuso de normas oficiais defendendo este ou aquele
smbolo. O quarto, por sua vez, aconselha que medidas dessa natureza, drsticas e que
naturalmente sero interpretadas como uma afronta respectiva religio, decorram de uma
reao social, vale dizer, da disseminao de um sentimento de discriminao, junto s demais
religies, em relao exibio de um smbolo caracterstico do catolicismo; a questo, assim,
no deve ser analisada puramente in abstracto, desconsiderando-se a realidade social.
Rendemos homenagem, assim, sensata advertncia de Rui Barbosa (1933: 430): [n]o basta
compulsar a jurisprudencia peregrina: mister aprofunda-la, joeirando os exotismos
intransladaveis, para no enxertar no direito patrio idas incompatveis com as nossas
instituies positivas. Isto, obviamente, no exclui a possibilidade de que, numa situao
concreta, luz dos circunstancialismos que a envolva, o crucifixo seja utilizado como
instrumento de afronta ou de inibio s demais religies.
A laicidade, importante observar, raramente se apresenta em estado puro, vale
dizer, com ampla e irrestrita dissociao entre os poderes espiritual e estatal. No Brasil, por
exemplo, so mltiplos os feriados embasados na f catlica (v.g.: o dia de Nossa Senhora
Aparecida, padroeira do Pas), isto sem olvidar a invocao de Deus logo no prembulo de
nossa Constituio, o que, em rigor tcnico, configuraria clara afronta queles que negam a
existncia de Deus, como os budistas, ou que apregoam a existncia de mais de um Deus,
como os hindus. Nos Estados Unidos da Amrica, do mesmo modo, l-se, em sua moeda
oficial, a inscrio In God we trust. Nesses casos, o que se verifica no propriamente a
irrestrita adeso ao poder espiritual, mas, sim, uma forma de preservao dos valores
sedimentados no ambiente social.
Ressalte-se, no entanto, que laicidade no guarda similitude com isolamento, sendo de
todo aconselhvel que o Estado estabelea parcerias, com instituies religiosas, visando
consecuo de objetivos comuns de interesse pblico. Essa possibilidade, no entanto,
expressamente contemplada no inciso I do art. 19 da Constituio de 1988, no deve
privilegiar religies especficas por vias transversas. Qualquer aproximao do Estado religio
deve se desenvolver com a observncia de referenciais de igualdade, estando
teleologicamente comprometida com a satisfao do interesse pblico.
3.1. Liberdade de crena e laicidade do Estado
A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO
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96 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011
Em perodos mais remotos, a religio era constantemente utilizada como referencial
para o reconhecimento de direitos ou para a participao na vida poltica do Estado. A intensa
expanso do Cristianismo transcendeu as questes religiosas, fazendo que a religio catlica,
apostlica, romana exercesse total domnio no cenrio poltico do Ocidente. Na Idade Mdia,
os papas criavam e destruam imprios, nomeavam e depunham imperadores. Estado e
religio se interpenetravam de tal modo que se tinha por inaceitvel uma dissociao entre as
leis terrenas e as leis divinas, vale dizer, aquelas postas pela Igreja e pela interpretao que
realizava da Bblia. O fundamento do Estado era teolgico, no teleolgico: existia pela
vontade de Deus e para servir a Deus. Como afirmou Coulanges (2001: 206-213), entre gregos
e romanos, assim como entre os hindus, desde o princpio, a lei surgiu naturalmente como
parte da religio(...)a lei no se discute, impe-se; no representa trabalho da autoridade; os
homens obedecem-na por ser divina(...)era reconhecido como cidado todo aquele que
tomava parte no culto da cidade, e desta participao lhe derivavam todos os seus direitos civis
e polticos. Renunciar ao culto seria renunciar aos direitos.
A intolerncia religiosa exacerbada, que conduziu perseguio e execuo dos infiis,
e o redimensionamento do papel desempenhado pelo Estado conferiram novas nuances ao
pensamento filosfico, que passou a prestigiar a individualidade de cada pessoa, atribuindo-
lhe uma esfera de liberdade imune interveno estatal. Esse movimento precipitou o
reconhecimento da separao entre Estado e Igreja e assegurou a liberdade de culto, cujo
carter normativo foi adotado, pela primeira vez, na Declarao de Direitos da Virgnia, de 12
de junho de 1776 (art. 16). A Primeira Emenda Constituio norte-americana, de 1791,
seguiu o mesmo caminho: Congress shall make no law respecting an establishment of religion,
or prohibiting the free exercise thereof. Tambm na Frana, a Declarao de Direitos do
Homem e do Cidado, de 1789, encampou a liberdade de culto: nul ne droit tre inquiete pour
ses opinions mme religieuses, pourvu que leur manifestation ne trouble pas lordre public
tabli par la loi. No Brasil, a Constituio de 1824 assegurava a liberdade de culto, mas
considerava, como religio oficial do Estado, a catlica, apostlica, romana. Proclamada a
Repblica, a Igreja foi separada do Estado, que passou a ser laico.
Na Constituio de 1988, o carter laico do Estado especialmente percebido pelo teor
de seu art. 19, que veda ao Poder Pblico manter ou subvencionar cultos religiosos ou igrejas,
estando igualmente impedido de embaraar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou
seus representantes relaes de dependncia ou aliana.
A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO
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Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 97
Enquanto a liberdade de crena assegura a qualquer pessoa o direito de escolher
livremente a f que ir, ou no, professar, escolha esta que pode permanecer adstrita ao
forum internum ou ser exteriorizada, alcanando o forum externum, a laicidade do Estado
indica a impossibilidade de uma estrutura estatal de poder possuir uma f oficial,
privilegiando-a em detrimento das demais. Ter-se- o tratamento privilegiado de certa f
no s quando o Estado estimular a sua prtica, com incentivos de qualquer natureza,
financeiros ou no, como, tambm, quando impuser restries ao exerccio das demais.
importante lembrar que o carter laico do Estado coexiste com a liberdade de crena.
Essa constatao, em seus contornos mais basilares, indica que o Estado, conquanto no deva
aderir a uma f especfica, deve permitir e proteger toda e qualquer manifestao de f,
mesmo nos bens de sua propriedade; isto, obviamente, se no for comprometida a ordem
pblica ou a liberdade de crena dos demais componentes do grupamento, o que inclui a
liberdade de no professar f alguma.
A questo, no entanto, pode assumir contornos mais delicados: digamos que um aluno e
um professor de escola pblica sejam proibidos de frequentar as aulas usando turbante, que
seria um smbolo de sua f e pureza espiritual. Quanto ao aluno, parece no haver maiores
dvidas de que foi violada a sua liberdade de crena, exteriorizada de modo silencioso e
perfeitamente compatvel com o ambiente escolar. J em relao ao professor pe-se um
complicador: pode ele, enquanto servidor e representante do Estado, exteriorizar a sua crena
na sala de aula? Diversamente ao que se verifica em relao ao aluno, que foi diretamente
privado de um direito fundamental, no caso do professor, que est no efetivo exerccio de uma
funo pblica, constata-se uma aparente coliso entre a sua liberdade de crena e a
neutralidade religiosa do Estado, do qual legtimo representante em sala de aula. Ainda deve
ser devidamente considerada a liberdade dos demais estudantes em no ter crena alguma
(negative Glaubensfreiheit), o que refora a necessidade de o Estado preservar a sua
neutralidade. A identificao da efetiva existncia da referida coliso, com as consequncias
dela decorrentes, exige seja previamente definida uma premissa fundamental: do fato de um
nico professor usar turbante (ou portar um cordo dotado de crucifixo) decorre a concluso
de que o Estado adota uma postura favorvel respectiva religio? A resposta, evidncia,
negativa. In casu, a crena professada, aos olhos de qualquer expectador externo,
integralmente atribuda ao professor, no ao Estado, o que bem demonstra que ele, a exemplo
do estudante, foi igualmente aviltado em sua liberdade de crena Cf. STARCK e SCHMIDT
(2008: 155-156).
A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO
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98 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011
3.2. A imunidade tributria dos templos de qualquer culto
De modo correlato garantia da liberdade de crena, que assegura a cada indivduo o
pleno juzo valorativo a respeito da f que pretende, ou no, professar, sem qualquer
interferncia do Estado ou de outros particulares, a Constituio de 1988, em seu art. 150, VI,
b, conferiu imunidade tributria aos templos de qualquer culto, eximindo-os do pagamento de
impostos. A ratio da norma constitucional parece clara: afastar embaraos ao exerccio de um
direito fundamental e, face importncia que ostenta no contexto social, estimular o seu
desenvolvimento.
A primeira questo a ser enfrentada diz respeito ao alcance subjetivo da imunidade
contemplada no art. 150, VI, b, da Constituio de 1988. Apesar de no haverem maiores
dvidas quanto amplitude da expresso templos de qualquer culto, o mesmo no pode ser
dito em relao s atividades que sero enquadradas sob essa epgrafe. Em outras palavras,
basta que uma associao se auto-intitule igreja e possua espaos fsicos denominados de
templos para que, por via reflexa, suas atividades sejam consideradas cultos, incidindo a
regra da imunidade tributria? A resposta, por certo, est nsita no prprio questionamento:
vale dizer, na medida em que a ordem constitucional reconhece, separadamente, a liberdade
de associao e a liberdade de crena, decorrendo, desta ltima, a possibilidade de serem
construdos templos a ela destinados, afigura-se evidente que as figuras no se sobrepem,
mas, to-somente, se tangenciam. Toda instituio religiosa ser uma associao, mas nem
toda associao ter fins religiosos, da o necessrio cuidado para que a ratio da norma
constitucional seja preservada e uma possvel fraude tributria evitada.
Os templos de qualquer culto consubstanciam o mbito de desenvolvimento da
liberdade de crena, da f professada por certas pessoas, sendo dela indissocivel. Nesse
particular, o Tribunal Administrativo Federal alemo (Bundesverwaltungsgericht) j teve
oportunidade de reconhecer que associaes cognominadas de igrejas, que no professem a
f em Deus ou num ser superior (v.g.: Buda), destinando-se, unicamente, crtica econmica
ou social, no possuem objetivos religiosos, no sendo alcanadas pela liberdade de crena
assegurada pelo art. 4, I, da Grundgesetz de 1949.14
A segunda questo a ser enfrentada est relacionada ao alcance da imunidade
tributria, exigindo seja definido se ela somente afastar a incidncia de alguns impostos
especficos ou se recair sobre todo e qualquer imposto, com abstrao do seu fato gerador.
14
BVerwGE 90, 112, 116.
A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO
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Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 99
Na primeira hiptese, que se ajustaria literalidade do art. 150, VI, c, da Constituio de 1988,
somente seriam afastados os impostos incidentes sobre o prdio em que professado o culto;
na segunda hiptese, por sua vez, seria afastada a literalidade do texto, entendendo-se pelo
substantivo templo a prpria instituio religiosa, o que alcanaria todo e qualquer imposto.
Entre esses dois extremos tem-se a regra do 4 do art. 150, que inclui no mbito da
imunidade somente o patrimnio, a renda e os servios, relacionados com as finalidades
essenciais das entidades mencionadas na alnea c do inciso VI. Percebese, assim, que a
imunidade, conquanto ampla, limitada pela necessria correlao do fato gerador em
potencial com as finalidades essenciais da instituio religiosa.15
3.3. O ensino religioso nas escolas pblicas
Ao reconhecer a liberdade de crena e vedar que o Estado mantenha, estimule,
subvencione ou restrinja o exerccio de qualquer religio, a Constituio de 1988 delineou a
sua laicidade. Em outras palavras, o Estado deve ser neutro: no pode existir uma f oficial e
no deve ser dispensado tratamento privilegiado a religies especficas.
Laicidade, no entanto, no guarda similitude com o isolamento ou a desconsiderao do
relevante papel desempenhado pela religio na sedimentao do alicerce tico e moral de
qualquer sociedade, o que torna particularmente clara a ratio do comando constante do 1,
do art. 210 da Constituio brasileira (O ensino religioso, de matrcula facultativa, constituir
disciplina dos horrios normais das escolas pblicas de ensino fundamental).16 Ao determinar
a insero do ensino religioso na grade curricular das escolas pblicas de ensino fundamental,
a ordem constitucional tem, como objetivo, o de orientar o jovem no exerccio de sua
liberdade de crena, permitindo o conhecimento da essncia de cada religio e,
consequentemente, a escolha da religio a ser professada. nsita na liberdade de crena, est a
liberdade de no professar crena alguma, da decorrendo o carter facultativo desse tipo de
disciplina, cuja relevncia deve ser devidamente avaliada pelos pais em relao aos filhos
menores (CR/1988, art. 229).
15
O Supremo Tribunal Federal j teve oportunidade de decidir que (1) imveis de instituio religiosa alugados a terceiros no so tributados pelo IPTU (STF, Pleno, RE n 325.822/SP, rel. Min. Ilmar Galvo, j. em 18/12/2002, DJ de 14/05/2004); (2) os templos de qualquer culto no esto imunes contribuio sindical (STF, 2 Turma, RE n 129.930/SP, rel. Min. Carlos Velloso, j. em 07/05/1991, DJ de 16/08/1991). 16
Constituies alem de 1949 (art. 7 (2, 3)); andorrana de 1993 (art. 20, 3); belga de 1994 (art. 24, 1, 3 e 3, 1); espanhola de 1978 (art. 27); holandesa de 1983 (art. 23, 3); mexicana de 1917 (art. 3); peruana de 1993 (art. 22); e sua de 1999 (arts. 63, 1 e 2; e 66, caput, 1 e 2).
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100 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011
Como soa evidente, o ensino religioso nas escolas pblicas deve ser compatibilizado com
a neutralidade do Estado, o que impede permanea ele adstrito a uma ou outra f especfica,
desconsiderando os contornos gerais do fenmeno religioso, suas origens e formas de
manifestao. Assim, ou a disciplina permanece no plano geral ou estruturada de modo a
permitir a exposio dos traos fundamentais de cada uma das religies existentes no
ambiente sociocultural. Nesse particular, a Grundgesetz alem de 1949, no inciso 3 do seu art.
7, teve a preocupao de deixar expresso o que j estava implcito no sistema: sem prejuzo
da superviso do Estado, o ensino deve ser ministrado de acordo com os princpios das
comunidades religiosas (Grundstzen der Religionsgemeinschaften). Cada religio deve ter
seus dogmas retratados com fidelidade, sem preconceitos ou proselitismos, o que um claro
indicativo da inviabilidade de um nico docente, que professe ou simpatize f especfica, ser o
responsvel pela disciplina. Ainda segundo o paradigma alemo, nenhum professor pode ser
obrigado, contra a sua vontade, a ministrar instruo religiosa (Kein Lehrer darf gegen seinen
Willen verplichtet werden, Religionsunterricht zu erteilen), comando que de todo compatvel
com a sistemtica constitucional brasileira. Afinal, como exigir, por exemplo, que um cristo
fervoroso explique aos seus alunos os alicerces do budismo, que apregoa a inexistncia de um
Deus, e os aspectos que, sob a tica dessa religio, a diferenciam e a tornam mais densa que as
demais?
A temtica, como se percebe, delicada, e exige muito cuidado na transposio do
comando constitucional para a realidade, isto sob pena de o ensino religioso se transmudar em
evidente proselitismo ou em instrumento de repulsa a religies especficas. A melhor forma
de contornar os obstculos existentes consiste em contextualizar o ensino religioso no plano
histrico, retratando a importncia das distintas religies na evoluo da humanidade. Com
isto, o Poder Pblico evita admitir docentes a partir de critrios religiosos e, principalmente,
afasta o risco de que o ensino religioso se transmude em proselitismo.
3.4. A assistncia religiosa nas entidades de internao coletiva
A liberdade religiosa pode ser concebida em duas perspectivas, uma intrnseca, a
liberdade de crena, inerente intimidade do ser humano, e outra extrnseca, afeta
liberdade de culto, momento em que ocorre a exteriorizao da f. Enquanto a liberdade de
crena pode permanecer confinada aos setores mais recnditos da personalidade humana, de
modo que o seu exerccio sequer seja conhecido por aqueles que convivem com a pessoa no
ambiente social, com a liberdade de culto no ocorre o mesmo. Acresa-se que o culto,
A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO
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Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 101
conquanto possa ser realizado no plano puramente individual, permitindo que a pessoa
humana, isoladamente, exteriorize a sua f, o mais natural que manifestaes dessa
natureza sejam realizadas coletivamente, sendo conduzidas por sacerdotes devidamente
qualificados.
Ao assegurar, no inciso VII de seu art. 5, a prestao de assistncia religiosa nas
entidades civis e militares de internao coletiva, a Constituio de 1988 buscou criar as
condies necessrias plena operatividade da liberdade religiosa.17 Afinal, a sua face
extrnseca, a liberdade de culto, seria inevitavelmente comprometida com as inevitveis
restries que caracterizam estabelecimentos dessa natureza. O comando constitucional ainda
traz consigo outra funcionalidade, a de estimular a aceitao do apoio religioso, contribuindo
para a reconstruo psquica e espiritual de todos aqueles que se encontrem internados.
Confina-se o corpo, liberta-se a mente.
A assistncia religiosa, no entanto, deve se compatibilizar com o carter laico do Estado
brasileiro, o que impede que algumas religies sejam privilegiadas em detrimento das demais.
O mais aconselhado, assim, que seja permitido o acesso, observadas as normas necessrias
garantia da segurana e da disciplina internas, dos representantes das distintas religies
existentes, de modo que os internos que j professam uma f possam continuar a profess-la,
e aqueles que assim o desejem possam iniciar a sua trajetria e exercer livremente a crena
que venham a escolher. A forma e os limites dessa assistncia sero definidos pela legislao
infraconstitucional,18 que no pode, como soa evidente, destoar dos contornos bsicos dessa
liberdade constitucional.
No plano infraconstitucional, a Lei n 9.982/2000 assegura aos religiosos de todas as
confisses, respeitadas as normas internas de segurana (art. 2), o direito de acesso aos
estabelecimentos de internao coletiva, estando o apoio espiritual condicionado
aquiescncia dos internados ou, no caso de doentes que no estejam no gozo de suas
faculdades mentais, aquiescncia dos seus familiares (art. 1).
Na sistemtica anterior, dispunha a Emenda Constitucional n 1/1969 (art. 153, 7)
que [s]em carter de obrigatoriedade, ser prestada por brasileiros, nos termos da lei,
17
Vide as Constituies de 1934 (art. 113, n 6); 1946 (art. 141, 9); 1967 (art. 150, 7); e Emenda Constitucional n 1/1969 (art. 153, 7). No direito comparado, podem ser mencionadas as Constituies alem de 1949 (art. 4); argentina de 1853 (art. 14); cubana de 1976 (art. 54); e italiana de 1947 (arts. 8, 19 e 20). 18
Vide: Lei n 6.923/1981 (Dispe sobre o servio de assistncia religiosa nas foras armadas); Lei n 7.210/1984 (Institui a Lei de Execuo Penal - art. 24); Lei n 8.069/1990 (Dispe sobre o Estatuto da Criana e do Adolescente - art. 124, XIV); e Lei n 9.982/2000 (Dispe sobre a prestao de assistncia religiosa nas entidades hospitalares pblicas e privadas, bem como nos estabelecimentos prisionais civis e militares).
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assistncia religiosa s foras armadas e auxiliares, e, nos estabelecimentos de internao
coletiva, aos interessados que a solicitarem, diretamente ou por intermdio de seus
representantes legais. Como se constata, com o advento da Constituio de 1988 no persiste
a exigncia de que a assistncia seja prestada por brasileiros, corolrio lgico da amplitude
dos direitos fundamentais que o art. 5, caput, reconhece aos estrangeiros. Acresa-se, ainda,
que a supresso da autorizao para que a assistncia religiosa seja prestada s foras
armadas e auxiliares em nada se confunde com uma espcie de silncio eloquente, vedando
seja tal autorizao conferida pela legislao infraconstitucional. Afinal, a funcionalidade dessa
assistncia assegurar a materializao da liberdade de crena afeta a todo e qualquer ser
humano, inclusive aqueles em servio junto s Foras Armadas, isto sem olvidar a sua plena
compatibilidade com o ambiente militar, fortalecendo espiritualmente pessoas que vivem sob
intensa presso. Tal, no entanto, no significa possa o Estado brasileiro contratar e remunerar
religiosos de crenas especficas (v.g.: os Capeles Militares) para prestar esse tipo de
atendimento s custas do Errio: alm de violar a laicidade do Estado, medidas dessa natureza
terminam por privilegiar certas religies em detrimento de outras e a comprometer o pleno
desenvolvimento da liberdade de crena, j que o militar somente ter acesso religio
professada pelo sacerdote contratado pelo Poder Pblico.
Proposies conclusivas
1) A liberdade religiosa necessariamente balanceada pelos referenciais de pluralismo,
igualdade e tolerncia, o que assegura a coexistncia das distintas formas de manifestao da
espiritualidade, a ausncia de posies de preeminncia perante a ordem jurdica e a garantia
de que todas essas manifestaes podem se expandir livremente, sem qualquer censura.
2) A liberdade religiosa alcana tanto o direito de ter uma crena, como o de no ter
crena alguma, bem como o direito de emitir opinio crtica sobre qualquer religio.
3) A liberdade religiosa no pode chegar ao extremo de comprometer a vida e a sade
daqueles que no tenham capacidade para externar livremente a sua vontade.
4) O carter laico do Estado no chega ao extremo de desconsiderar a identidade
cultural e as tradies da sociedade, o que autoriza a utilizao de smbolos, como o crucifixo,
ou a utilizao do nome de Deus em documentos oficiais, como o papel moeda, situao que
deve perdurar enquanto no difundido um sentimento de discriminao no mbito das demais
religies.
A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO
EMERSON GARCIA
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5) Devem ser aceitas manifestaes religiosas, individuais e silenciosas, de agentes
pblicos (v.g.: utilizao da crucifixos, turbantes etc.), mesmo no exerccio da funo pblica,
to-somente enquanto tais manifestaes no forem vistas como a postura oficial do Poder
Pblico.
6) O ensino religioso, nas escolas pblicas, deve prestigiar a abordagem histrica, sem
proselitismo.
7) A assistncia religiosa, nos estabelecimentos de internao coletiva, deve preservar a
igualdade das distintas religies existentes, no se mostrando compatvel, com a ordem
constitucional, a contratao, pelo Poder Pblico, de religiosos a serem incumbidos dessa
atividade.
Referncias
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