21
Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 83 A RELIGIÃO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO THE RELIGION BETWEEN THE HUMAN BEEN AND THE STATE EMERSON GARCIA Recebido para publicação em maio de 2011. RESUMO: O direito fundamental de professar, ou não, uma crença, tem se mostrado essencial ao pleno desenvolvimento da personalidade individual, permitindo que referenciais morais e espirituais atuem de modo concorrente no delineamento de suas linhas estruturais. Direitos dessa natureza, num Estado laico, como a República Federativa do Brasil, terminam por se defrontar, no âmbito dos poderes constituídos, com uma evidente tensão dialética entre a obrigação de proteger e a vedação de se integrar ao fenômeno religioso. O objetivo dessas breves linhas é identificar as situações em que essa tensão se manifesta de modo mais acentuado, com o consequente delineamento de soluções de cunho harmonizador. PALAVRAS-CHAVE: ensino religioso; liberdade de crença; objeção de consciência e religião. ABSTRACT: The fundamental right of professing, or no, a faith, is essential to the full development of the individual personality, allowing moral and spiritual factors to act in a competitive way in the drawing of their structural lines. Rights of that nature, in a neutral State, as the Federal Republic of Brazil, confront, in the extent of the constituted powers, with an evident dialectic tension among the obligation of protecting and the prohibition of integrating to the religious phenomenon. The objective of these brief lines is to identify the situations in that the tension shows in an accentuated way, with the consequent identification of solutions. KEY WORDS: religious teaching; freedom of faith; objection of conscience and religion. 1. Delimitação do plano de estudo A evolução da humanidade tem demonstrado que o pleno desenvolvimento da personalidade individual e a harmônica convivência social, longe de estarem alicerçados num padrão de pura juridicidade, são diretamente influenciados por referenciais de moralidade e de espiritualidade. Apesar da universalidade que ostenta, a idéia de moral assume contornos eminentemente voláteis, apresentando conteúdo compatível com a época, o local e os mentores de sua densificação. É conceito mais fácil de ser sentido que propriamente definido, o que não afasta a constatação de que, no ambiente social, são formulados conceitos abstratos, que condensam, de forma sintética, a experiência auferida com a convivência em Doutorando e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Assessor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Ex-Consultor Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça (2005-2009). Membro da International Association of Prosecutors (The Hague Holanda).

Artigo Emerson Garcia (a Religiao Entre a Pessoa Humana e o Estado de Direito)

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Leitura excelente.

Citation preview

  • Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 83

    A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO THE RELIGION BETWEEN THE HUMAN BEEN AND THE STATE

    EMERSON GARCIA

    Recebido para publicao em maio de 2011.

    RESUMO: O direito fundamental de professar, ou no, uma crena, tem se mostrado essencial ao pleno desenvolvimento da personalidade individual, permitindo que referenciais morais e espirituais atuem de modo concorrente no delineamento de suas linhas estruturais. Direitos dessa natureza, num Estado laico, como a Repblica Federativa do Brasil, terminam por se defrontar, no mbito dos poderes constitudos, com uma evidente tenso dialtica entre a obrigao de proteger e a vedao de se integrar ao fenmeno religioso. O objetivo dessas breves linhas identificar as situaes em que essa tenso se manifesta de modo mais acentuado, com o consequente delineamento de solues de cunho harmonizador.

    PALAVRAS-CHAVE: ensino religioso; liberdade de crena; objeo de conscincia e religio.

    ABSTRACT: The fundamental right of professing, or no, a faith, is essential to the full development of the individual personality, allowing moral and spiritual factors to act in a competitive way in the drawing of their structural lines. Rights of that nature, in a neutral State, as the Federal Republic of Brazil, confront, in the extent of the constituted powers, with an evident dialectic tension among the obligation of protecting and the prohibition of integrating to the religious phenomenon. The objective of these brief lines is to identify the situations in that the tension shows in an accentuated way, with the consequent identification of solutions.

    KEY WORDS: religious teaching; freedom of faith; objection of conscience and religion.

    1. Delimitao do plano de estudo

    A evoluo da humanidade tem demonstrado que o pleno desenvolvimento da

    personalidade individual e a harmnica convivncia social, longe de estarem alicerados num

    padro de pura juridicidade, so diretamente influenciados por referenciais de moralidade e

    de espiritualidade.

    Apesar da universalidade que ostenta, a idia de moral assume contornos

    eminentemente volteis, apresentando contedo compatvel com a poca, o local e os

    mentores de sua densificao. conceito mais fcil de ser sentido que propriamente definido,

    o que no afasta a constatao de que, no ambiente social, so formulados conceitos

    abstratos, que condensam, de forma sinttica, a experincia auferida com a convivncia em

    Doutorando e Mestre em Cincias Jurdico-Polticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Anturpia Blgica) e em Cincias Polticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro do Ministrio Pblico do Estado do Rio de Janeiro. Assessor Jurdico da Associao Nacional dos Membros do Ministrio Pblico (CONAMP). Ex-Consultor Jurdico da Procuradoria Geral de Justia (2005-2009). Membro da International Association of Prosecutors (The Hague Holanda).

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    84 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011

    sociedade, terminando por estabelecer concepes dotadas de certa estabilidade e com ampla

    aceitao entre todos, o que contribui para a manuteno do bem-estar geral. justamente a

    moral que aglutina tais concepes, podendo ser concebida como o conjunto de valores

    comuns entre os membros da coletividade em determinada poca, ou, sob uma tica

    restritiva, o manancial de valores que informam o atuar do indivduo, estabelecendo os seus

    deveres para consigo e a sua prpria conscincia sobre o bem e o mal. No primeiro caso,

    conforme a distino realizada pelo filsofo Brgson (1977: 34 e ss.), tem-se o que se

    convencionou chamar de moral fechada, e, no segundo, a moral aberta (GARCIA, 2002: 153).

    A espiritualidade, diversamente da moralidade, no reflete a mera aceitao de

    standards de bem comum, colhidos no ambiente social ou desenvolvidos a partir do livre juzo

    valorativo que cada indivduo dotado de plena capacidade intelectiva pode realizar.1 A

    espiritualidade, em verdade, encontra-se alicerada em referenciais superiores, que agem na

    formao dos standards que direcionaro o pensar e o agir da pessoa humana, sendo por ela

    apreendidos, no propriamente criados. Esses standards, por sua vez, que tm reconhecida a

    sua imperatividade, importncia ou mero valor a partir de um estado mental baseado na f,

    vale dizer, na crena de sua infalibilidade e correo, apresentam inmeras variaes. O

    pluralismo conduz necessidade de separao e individualizao, de modo que cada conjunto

    de standards possa ser agrupado sob um designativo especfico, permitindo o seu

    reconhecimento e, para aqueles que assim o desejarem, o seu acolhimento. nesse contexto

    que surgem e se propagam as religies, desenvolvendo-se margem da razo, no plano da

    espiritualidade, e encontrando sustentao na f.

    Questes de ndole religiosa costumam ser foco de incontveis polmicas em qualquer

    Estado de Direito e, no Brasil, no poderia ser diferente. A religio, ao ser vista com as lentas

    da juridicidade, assume feies bipolares: deve ser analisada tanto sob o prisma da pessoa

    humana, como sob a tica do Estado. justamente essa anlise que permitir seja aferido se

    h algum limite para a manifestao da f individual e de que modo o Estado deve lidar com a

    laicidade, com o pluralismo religioso e com a proteo dos direitos individuais, valores de

    indiscutvel relevncia na modernidade.

    O objetivo dessas breves linhas identificar os limites e as potencialidades da relao

    triangular mantida entre pessoa humana, religio e Estado de Direito.

    2. Liberdade de conscincia e de crena

    1 a moral crtica a que se referia Hart (2001: 201).

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 85

    A Constituio brasileira de 1988, preservando a tradio republicana2 e mantendo-se

    fiel aos valores acolhidos pela sociedade internacional3 e pela maioria dos Estados modernos,4

    disps, no inciso VI de seu art. 5, que inviolvel a liberdade de conscincia e de crena,

    sendo assegurado o livre exerccio dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteo

    aos locais de culto e a suas liturgias.

    Como projeo da racionalidade do ser humano, a liberdade de conscincia lhe assegura

    o pleno juzo valorativo a respeito de sua existncia e do mundo em que inserido. O indivduo

    estabelece os seus prprios critrios de bom ou ruim e orienta as suas decises de acordo

    com eles (STARCK e SCHMIDT, 2008: 158), tendo a dignidade afirmada com o reconhecimento

    de sua capacidade em formular juzos morais sobre suas aes e de direcionar a sua conduta

    de acordo com esses juzos (FAVRE, 1970: 279).

    Em relao ao alcance da liberdade de conscincia e sua necessria coexistncia com

    os demais valores protegidos pela ordem jurdica, o Tribunal Constitucional Federal alemo

    (Bundesverfassungsgericht)5 teve oportunidade de apreciar o seguinte caso: numa rea,

    vizinha propriedade de um indivduo protetor dos animais, eram regularmente organizadas

    caadas, o que lhe obrigava a, constantemente, ver os animais mortos, afrontando, assim, os

    valores que vinha seguindo durante toda a sua vida. Entendendo violada a sua liberdade de

    conscincia (Gewissensfreiheit), pleiteou a paralisao das atividades. O Tribunal, no entanto,

    no visualizou qualquer ofensa a esse direito fundamental, isto porque o protetor dos animais

    no era obrigado a tomar parte nas caadas, elas no se desenvolviam em sua propriedade e,

    alm disso, eram igualmente protegidas pela ordem jurdica, o que assegurava aos caadores o

    2 Constituies de 1891 (art. 72, 3); 1934 (art. 113, n 5); 1937 (art. 122, n 4); 1946 (art. 141, 7); 1967 (art.

    150, 5); e Emenda Constitucional n 1/1969 (art. 153, 5). No Imprio, face adoo de uma religio oficial, a catlica apostlica romana, eram impostas restries manifestao pblica de outras crenas: Constituio de 1824, arts. 5 e 179, n 5. 3 Conveno Americana de Direitos Humanos Pacto de So Jos da Costa Rica, adotada em 22/11/1969 e

    promulgada pelo Decreto n 678/1992 (arts. 5, 1; e 12, 1); Declarao Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resoluo 217 A (III) da Assemblia Geral das Naes Unidas, de 10 de dezembro de 1948 (art. 18); e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos, adotado em 16/12/1966 e promulgada pelo Decreto n 592/1992 (arts. 18, 1; e 27). 4 Vide Primeira Emenda Constituio norte-americana de 1787, adotada em 1791; e Constituies alem de 1949

    (art. 4); andorrana de 1993 (art. 11, 1 e pargrafo nico); argentina de 1853 (art. 14); belga de 1994 (arts. 19; e 20); cubana de 1976 (art. 54); espanhola de 1978 (arts. 16 e 20 (1, d)); francesa de 1958 (prembulo, art. 2); holandesa de 1983 (art. 6, 2); italiana de 1947 (arts. 8, 19 e 20); japonesa de 1946 (art. 20); portuguesa de 1976 (art. 41); russa de 1993 (arts. 14, 2; 28; e 29, 2); sua de 1874 (art. 49) e de 1999 (arts. 8, 2; 15; e 72); e turca de 1982 (art. 15, 2); Declarao de Direitos da Virgnia (EUA) de 1776 (Seo 16); Declarao Dignitatis Humanae sobre Liberdade Religiosa, do Conclio Vaticano II, de 1965; Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado (Frana) de 1789 (art. 10). 5 1 BvR 2084/2005, j. em 13/12/2006, in Neue Zeitschrifit fr Verwaltungsrecht, 2007, p. 808.

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    86 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011

    direito de caar. Observa-se, assim, que a conscincia individual, ao romper o psiquismo e

    alcanar a realidade, deve coexistir com os padres de juridicidade.

    A liberdade de crena, por sua vez, contextualizada no plano da f, que pode ser

    livremente escolhida e professada, sem qualquer interferncia do Estado ou de outros

    particulares. Como limite, tem-se a necessidade de resguardar a ordem pblica e assegurar

    igual liberdade aos demais componentes do grupamento, que no podem ser compelidos a

    violentar a sua conscincia e a professar f alheia. A preocupao com a preservao da ordem

    pblica, alis, remonta clebre Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789

    (art. 10).6 A liberdade de crena pode ser concebida como a face intrnseca da liberdade

    religiosa, afeta intimidade do ser humano, enquanto a liberdade de culto a sua face

    extrnseca, momento em que ocorre a exteriorizao da f.

    A respeito da liberdade religiosa, tambm assegurada pela Primeira Emenda

    Constituio norte-americana, o Justice William Douglas (1966: 91-92) nela visualizava as

    seguintes facetas: nenhuma autoridade sectria deve ser investida do poder do governo; o

    governo no tem influncia direta nos assuntos de nenhuma igreja; os cidados no so

    taxados por auxiliarem uma instituio religiosa e nenhuma igreja deve receber recursos

    pblicos; as pessoas podem pertencer igreja que desejarem, ou a nenhuma, e ningum pode

    ser obrigado a participar de cerimnias religiosas, como o casamento; nas disputas internas

    entre seguimentos da igreja, os juzes devem observar sua disciplina interna; escolas pblicas

    no so agncias de ensino religioso, no havendo razo para que o Estado no ajuste os

    horrios das escolas de modo que os estudantes obtenham tal ensino em outro lugar; pais e

    crianas tem o direito de frequentar escolas privadas religiosas; o exerccio de um ritual no

    pode ser imposto, pelo Estado, ao indivduo, se isto caminha contra as suas convices

    religiosas; a liberdade religiosa engloba os mtodos convencionais e os ortodoxos, como o de

    distribuir literatura religiosa de porta em porta; o funcionamento de uma igreja no deve ser

    condicionado concesso de licena ou ao pagamento de taxas ao Estado; a liberdade

    religiosas deve alcanar tanto aqueles que fundam sua crena num ser supremo, como aqueles

    que a buscam na tica e na moral; o que pode configurar prtica pag para uma pessoa pode

    ser religiosa para outra, no sendo funo do Estado realizar aferies dessa natureza,

    inclusive para fins punitivos.

    6 A Declarao Dignitatis Humanae, do Conclio Vaticano II, disps que a liberdade religiosa um direito civil de

    todos os seres humanos, o que lhes assegura estarem imunes de coero tanto por parte de pessoas particulares, como de grupos sociais e de qualquer autoridade humana (n 1); acrescendo-se que, em matria religiosa, nem se obriga algum a obrar contra sua conscincia, nem se impede que atue em conformidade com ela, em ambiente privado ou pblico, s ou associado com outros, dentro dos limites devidos (n 2).

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 87

    A liberdade religiosa, em suas distintas formas de manifestao, sempre estar lastreada

    no ideal de tolerncia, que antecede e d sustentao sua juridicidade. Essa constatao

    torna-se particularmente clara ao verificarmos a falibilidade humana na formao e na

    identificao da verdade, de todo acentuada em questes de estrita racionalidade, impossvel

    de ser alcanada em relao ao que ultrapassa os liames da razo, como a f e os distintos

    modos de manifest-la (Cf. VERA URBANO, 1971: 22-23).

    As liberdades de crena e de culto tambm trazem consigo um aspecto negativo ou,

    melhor dizendo, neutral, nsito e indissocivel de qualquer direito fundamental, que consiste

    justamente na possibilidade de no exerc-lo. A pessoa livre para ter ou no uma crena,

    realizar ou no um culto. Nesse sentido, a Constituio andorrana de 1993 (art. 11, 1) tornou

    expresso o que nela j estaria nsito, vale dizer, a Constituio garante a liberdade de

    pensamento, de religio e de culto, e o direito de toda pessoa de no declarar ou manifestar

    seu pensamento, sua religio ou suas crenas.

    Deve-se observar, ainda, que nem tudo aquilo que emana de um religioso ou de uma

    instituio religiosa deve ser indistintamente enquadrado sob a epgrafe da liberdade de

    crena ou do livre exerccio dos cultos religiosos. Nesse sentido, pode-se mencionar o exemplo

    de uma igreja que faa soar seus sinos, por poucos segundos, a cada hora completa e, aos

    domingos, no incio do culto religioso, por cinco minutos: enquanto a segunda conduta est

    nitidamente associada liberdade de crena e culto, a primeira deles se distancia e se

    enquadra na clusula geral de liberdade,7 cujo potencial expansivo somente limitado pela

    necessidade de resguardar os direitos alheios e de assegurar a integridade da ordem jurdica

    (STARCK e SCHMIDT, 2008: 159). A lei, em qualquer caso, deve assegurar a proteo aos

    locais de culto e a suas liturgias (CR/1988, art. 5, VI), evitando seja afetada a integridade das

    instalaes religiosas ou comprometida a transmisso dos dogmas que justificam a sua

    existncia.

    A correta compreenso da inviolabilidade da liberdade de conscincia e de crena ainda

    exige seja devidamente delimitado o seu objeto. Em outras palavras, essa liberdade alcana

    apenas a manifestao de f e religiosidade ou tambm se projeta sobre as manifestaes

    negativas a respeito do fenmeno religioso? possvel difundir os aspectos negativos das

    religies e a crena de que o melhor no ter crena alguma? Num Estado pluralista e de

    acentuados contornos liberais, como si ser a Repblica Federativa do Brasil, a resposta

    positiva h de prevalecer. Uma verdadeira liberdade religiosa somente poder existir em

    7 Constituio brasileira de 1988, art. 5, II.

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    88 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011

    estando presente a plena liberdade individual para adotar uma opo em matria de f; e isto

    somente ser possvel caso a pessoa receba todas as informaes necessrias formao do

    seu juzo de valor, o que, evidncia, pressupe seja reconhecido o direito de algum

    transmitir tanto as opinies favorveis, como as desfavorveis, a respeito de uma religio (Cf.

    CIURRIZ, 1984: 103-105). O autor das crticas, no entanto, deve arcar com todas as

    consequncias decorrentes do excesso de linguagem ou do vilipndio de smbolos ou dogmas

    alheios, j que ultrapassam os limites do livre exerccio do seu direito individual.

    importante observar que tanto a liberdade de conscincia, como a de crena, podem

    permanecer adstritas ao denominado forum internum, vale dizer, ao plano puramente

    psquico, ou estender-se ao forum externum, ocasio em que so exteriorizadas e entram em

    efetivo contato com a realidade. justamente sob essa ltima tica que a sua proteo

    jurdica adquire relevncia prtica (Cf. STARCK e SCHMIDT, 2008: 155).

    2.1. A proteo da liberdade de crena e convico

    Como projeo direta de sua personalidade, toda pessoa humana desenvolve juzos

    valorativos que expressam sua forma de ver, situar-se e interagir no meio social, fatores estes

    que a individualizam enquanto ser racional e que merecem a proteo do Estado. A

    Constituio brasileira de 1988, como desdobramento necessrio do pluralismo e da dignidade

    humana, que reconhece e protege, obsta que algum tenha a sua esfera jurdica restringida

    to-somente por motivo de crena religiosa ou de convico filosfica ou poltica (art. 5,

    VIII).8 Trata-se de garantia essencialmente direcionada ao pensar, no necessariamente ao

    agir, isto porque crenas ou convices podem redundar em atos contrrios ordem jurdica

    (v.g.: a prtica de um homicdio como parte integrante de solenidade religiosa), no eximindo

    o seu autor da responsabilidade pelos ilcitos que praticar.

    Alm de proteger a liberdade de crena e convico, a ordem constitucional permite,

    igualmente, que qualquer pessoa deixe de cumprir deveres jurdicos de origem legal,

    genericamente impostos a todos, que colidam com a referida liberdade. Trata-se da

    denominada objeo de conscincia, que, em seus contornos mais amplos, indica a recusa em

    8 Vide as Constituies alem de 1949 (art. 4); andorrana de 1993 (art. 11, 2); argentina de 1853 (art. 14); belga de

    1994 (arts. 11; 19; e 131) cubana de 1976 (art. 54); espanhola de 1978 (arts. 16 e 20 (I, d)); holandesa de 1983 (art. 6, 1); italiana de 1947 (arts. 8, 19 e 20); japonesa de 1946 (art. 20); portuguesa de 1976 (art. 41) e sua de 1999 (art. 15); Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado (Frana) de 1789 (art. 10). No mbito do Direito Internacional, vide a Conveno Americana de Direitos Humanos Pacto de So Jos da Costa Rica, de 1969 (art. 12, 2 e 3); a Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (art. 18); e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos, de 1966 (arts. 18, 2 e 3; e 27).

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 89

    obedecer a um comando de autoridade, a um imperativo jurdico, invocando-se a existncia,

    no foro individual, de impedimentos de ordem axiolgica que obstam a adoo do

    comportamento exigido. A base axiolgica que d sustentao objeo de conscincia pode

    decorrer de razes morais, filosficas ou polticas, da surgindo um sentimento de averso a

    uma gama extremamente varivel de comportamentos plenamente jurgenos. Reflete uma

    forma de penetrao da moral no direito, que anui em arrefecer a sua imperatividade em prol

    da conscincia individual, preservando um valor indissocivel da personalidade humana.

    Como necessrio contraponto objeo de conscincia, disps a Constituio de 1988,

    tambm no art. 5, VIII, que a sua invocao, com o correlato descumprimento de obrigao

    legal, poder redundar em privao de direitos caso a pessoa se recuse a cumprir prestao

    alternativa, fixada em lei. Com isto, busca-se preservar um referencial de igualdade nas

    relaes com o Estado, evitando que determinadas pessoas, por cultivarem valores distintos

    aos de outras, sejam desoneradas de toda e qualquer obrigao legal. A prestao alternativa,

    que, a exemplo do dever jurdico original, deve ser necessariamente definida em lei, visa

    justamente a recompor esse referencial de igualdade, inicialmente maculado com a

    formulao da objeo de conscincia.

    importante ressaltar que a objeo de conscincia somente far surgir a obrigao de

    cumprir a prestao alternativa caso a obrigao original que motivou a sua formulao tenha

    sido a todos imposta. A generalidade da obrigao legal atua como verdadeiro pressuposto

    de sua prpria imperatividade. Tratando-se, ao revs, de obrigao casustica, endereada a

    pessoas perfeitamente individualizadas, no ser possvel impor qualquer privao de direitos

    queles que se negaram a cumpri-la. Aqui, no se ter propriamente obrigao, mas, sim,

    perseguio.

    2.2. Liberdade de crena e tratamento mdico

    Face amplitude da liberdade de crena, que pode albergar variadas manifestaes de

    f, incluindo certos comportamentos que destoam dos padres de racionalidade j

    sedimentados no ambiente social, no ser incomum a presena de situaes de coliso com

    outros bens e valores constitucionalmente tutelados. Esse quadro particularmente delicado

    nas situaes em que a pessoa padea de patologia, congnita ou provocada por causas

    externas, e haja negativa de receber o tratamento mdico que o atual estgio da tcnica

    considera adequado.

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    90 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011

    Tratando-se de pessoa plenamente capaz de exteriorizar a vontade, h de prevalecer a

    autodeterminao, sendo possvel que se negue a receber os tratamentos mdicos que

    considere incompatveis com a sua crena. A simplicidade dessa soluo, no entanto, no se

    estende s situaes em que estejamos perante pessoas que, em carter definitivo ou

    temporrio, sejam total ou parcialmente incapazes de exteriorizar a sua vontade, como as

    crianas e os alienados mentais. Nesse caso, questiona-se: podem os seus responsveis legais,

    lastreados em bases religiosas, proibir que recebam certo tratamento mdico? Esse

    questionamento, desde logo, suscita reflexes em torno da necessria salvaguarda de outros

    bens jurdicos igualmente tutelados pela ordem constitucional, como o direito vida (CR/1988,

    art. 5, caput) e sade (CR/1988, art. 196, caput), no sendo demais lembrar que dever da

    famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana e ao adolescente, com absoluta

    prioridade, o direito vida, sade... (CR/1988, art. 227, caput).

    Essa espcie de coliso, como soa evidente, ser necessariamente influenciada pelas

    especificidades do caso concreto, no comportando respostas definitivas em abstrato. Isto, no

    entanto, no impede sejam estabelecidas, previamente, duas pautas argumentativas, de

    carter objetivo, que influenciaro na soluo do caso concreto: (1) a vida e, em certa

    medida, o gozo de um bom estado de sade, so pressupostos necessrios ao pleno exerccio

    da liberdade de crena; e (2) a autonomia da vontade, na hiptese aqui versada, plena no

    plano pessoal e relativamente limitada em relao aos incapazes, j que sujeita a certos

    balizamentos jurdicos de carter imperativo. A partir dessas pautas objetivas, pode-se afirmar

    que, nesses casos, a liberdade de crena jamais autorizar o comprometimento da vida, e que,

    em relao s intervenes mdicas destinadas cura de patologias menos graves, a resoluo

    do caso concreto ser influenciada pela existncia, ou no, de tratamentos alternativos e pelas

    conseqncias deletrias que decorrero da no realizao do tratamento inicialmente

    indicado.

    2.3. Objeo de conscincia ao servio militar

    Objeo de conscincia, em seus contornos mais amplos, indica a recusa em obedecer a

    um comando de autoridade, a um imperativo jurdico, invocando-se a existncia, no foro

    individual, de fundamentos de ordem axiolgica que impedem a adoo do comportamento

    exigido. A base axiolgica que d sustentao objeo de conscincia pode decorrer de

    razes filosficas, religiosas ou polticas, da surgindo um sentimento de averso a uma gama

    extremamente varivel de comportamentos plenamente jurgenos. Reflete uma forma de

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 91

    penetrao da moral no direito, que anui em arrefecer sua imperatividade em prol da

    conscincia individual, preservando esse valor indissocivel da personalidade humana.9

    Especificamente em relao objeo de conscincia no mbito do servio militar, a

    Constituio brasileira de 1988, no 1 de seu art. 143,10 estabelece alguns balizamentos de

    natureza pessoal, constitutiva, circunstancial e finalstica sua plena operatividade. No mbito

    pessoal, a objeo de conscincia somente pode ser formulada pelos alistados. Em termos

    constitutivos, exige-se que o imperativo de conscincia decorra de crena religiosa ou de

    convico filosfica ou poltica, conceitos que acolhem praticamente todas as razes

    passveis de serem invocadas, merecendo especial realce a convico filosfica, qual pode

    ser reconduzido qualquer aspecto do pensamento humano. No plano circunstancial, tem-se

    que a recusa somente pode ser manifestada em tempo de paz, previso justificvel na

    medida em que, em perodos de guerra, o que se encontra em jogo a prpria subsistncia do

    Estado, que no pode ser comprometida em razo da prevalncia de interesses individuais;

    trata-se de juzo de ponderao realizado, a priori, pelo prprio Constituinte. Por fim, no plano

    finalstico, restringe-se o emprego da objeo de conscincia s atividades de carter

    essencialmente militar, o que afasta a possibilidade de recusa a atividades burocrticas ou

    essencialmente perifricas, como o atendimento em hospitais, sem qualquer contato com

    operaes blicas. Observa-se, nesse ltimo caso, que a objeo de conscincia do direito

    brasileiro possui maior potencial expansivo que a de outros sistemas, como o alemo, que

    restringe a formulao da Kriegsdienstverweigerung s situaes em que seja exigida a

    utilizao de armas (Waffen) GG de 1949, art. 4, 3.

    Preenchidos os requisitos constitucionais, no h espao para recusa objeo de

    conscincia. Isto, no entanto, no significa que o objetor esteja imune a todo e qualquer dever

    jurdico. Nesses casos, o que se verifica a outorga de competncia, s Foras Armadas, para

    que, na forma da lei (CR/1988, art. 143, 1), lhe atribuam um servio alternativo, o qual,

    importante frisar, no pode se contrapor s razes que embasaram a prpria objeo de

    conscincia.

    3. As relaes entre Estado e religio: o carter laico do Estado brasileiro

    9 Um interessante resumo da linha evolutiva da objeo de conscincia, em que se percebe uma intensa influncia

    de fatores teolgicos, pode ser obtida em Rodolfo Venditti (1981: 6-36). 10

    Sobre a temtica, vide as Constituies alem de 1949 (arts. 4, 3; e 12a, 1); chilena de 1980 (art. 22); cubana de 1976 (art. 64); espanhola de 1978 (art. 30(2)); holandesa de 1983 (arts. 98, 3; e 99); italiana de 1947 (art. 42); mexicana de 1917 (art. 31, II e III); paraguaia (art. 113); peruana de 1993 (art. 78); portuguesa de 1976 (art. 276); russa de 1993 (art. 59, 3); e sua de 1999 (art. 59, 3).

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    92 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011

    As relaes do Estado com o poder espiritual tm sofrido alteraes to intensas quanto

    as variantes de espao e tempo utilizadas para contextualizar a respectiva anlise.

    De um modo geral, os distintos modelos existentes podem ser enquadrados numa das

    seguintes categorias: (1) Estado teocrtico ou sacral, onde, eliminada qualquer possibilidade

    de pluralismo religioso, verifica-se a interpenetrao entre Estado e poder espiritual na

    consecuo do bem comum (v.g.: o fundamentalismo religioso no Iran e no Vaticano); (2)

    Estado proselitista, cuja caracterstica essencial no propriamente a confuso entre as

    figuras, mas a proteo e o enaltecimento de uma religio especfica (v.g.: Estados ortodoxos);

    (3) Estado cooperativo, onde, apesar de reconhecido o pluralismo, poder espiritual e poder

    estatal apresentam pontos de contato (v.g.: na Inglaterra, o Chefe de Estado deve jurar

    fidelidade aos dogmas da igreja oficial, a anglicana, sendo, igualmente, o seu chefe temporal);

    (4) Estado laico ou secular, que passa ao largo da realidade religiosa subjacente ao meio social

    e elimina, a priori, qualquer influncia do poder espiritual no ambiente poltico; laicidade

    guarda similitude com neutralidade, indicando a impossibilidade de a estrutura estatal de

    poder possuir uma f oficial, privilegiando-a em detrimento das demais; e (5) Estado

    totalitrio atesta ou simplesmente ateu, que v no poder espiritual objetivos incompatveis

    com os do Estado, terminando por vedar as prprias prticas religiosas (v.g.: a extinta URSS).

    A Constituio argentina de 1853, mesmo aps as suas sucessivas reformas, dispe, no

    incio do sculo XXI, que el gobierno federal sostiene el culto catlico apostlico romano (art.

    2) Cf. BIDART CAMPOS, 2006: 541. No Brasil, a Constituio de 1824 assegurava a liberdade

    de culto, em locais fechados, mas considerava, como religio oficial do Estado, a catlica,

    apostlica, romana. Proclamada a Repblica, a Igreja foi separada do Estado, que passou a ser

    laico: no entanto, face controvrsia em relao representao diplomtica brasileira no

    Vaticano, a Reforma de 1926 acrescentou um pargrafo 7 ao art. 72 da Constituio de 1891,

    tornando expresso que a representao diplomtica do Brasil junto Santa S no implicava

    violao desse princpio. O preceito, nitidamente desnecessrio, j que a manuteno de

    relaes diplomticas, por si s, j indica a separao entre os entes, foi repetido nas

    Constituies de 1934 (art. 176) e 1946 (art. 196), sendo omitido nas demais.

    Consoante o inciso I do art. 19 da Constituio de 1988,11 vedado ao Estado (1)

    promover cultos religiosos; (2) mantiver templos religiosos; (3) estimular a prtica de certa

    religio, com incentivos de qualquer natureza, financeiros ou no; (4) estabelecer relaes de

    11

    Vide as Constituies de 1891 (art. 11, inc. 2); 1934 (art. 17, II). 1937 (art. 32, b); 1946 (art. 31, II); 1967 (art. 9, II); e Emenda Constitucional n 1/1969 (art. 9, II).

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 93

    dependncia ou aliana com organismos religiosos, de modo que diretivas baseadas

    puramente na f influam no delineamento de decises estatais; ou (5) impor restries ao

    exerccio das demais religies.12

    Os limites da relao do Estado com a religio foram objeto de anlise pelo Tribunal

    Constitucional Federal alemo, o qual, apreciando a amplitude da neutralidade apregoada pelo

    direito constitucional (GG de 1949, art. 140 c.c. Constituio de Weimar, art. 137, I: Es besteht

    keine Staatskirche), decidiu pela impossibilidade de serem afixados crucifixos nas salas de

    aula das escolas pblicas, prtica que denotaria a adeso ao cristianismo em detrimento das

    demais religies livremente professadas.13 Nesse particular, observa-se que algumas religies,

    como o budismo, no crem na existncia de um Deus.

    No direito italiano, a exposio dos crucifixos nas salas de aula remonta a um perodo

    anterior unificao do Pas. Nesse sentido, dispunha o Decreto-real n 4.336/1860, do Reino

    de Piemonte-Sardenha, que cada escola deveria possuir um crucifixo. Em 1861, com o

    surgimento do Estado italiano, o Estatuto do Reino de Piemonte-Sardenha, de 1848, se tornou

    o Estatuto italiano. De acordo com ele, a religio catlica apostlica romana era a religio

    oficial do Estado. Em 1870, Roma tomada pelo exrcito e proclamada Capital do novo Reino

    da Itlia. Face crise com a Igreja Catlica, a Lei n 214/1871 passa a regular, unilateralmente,

    as relaes entre Estado e Igreja. Dede ento preservou-se o hbito de expor o crucifixo nas

    salas de aula, o que foi previsto (1) na circular n 68/1922, do Ministrio da Instruo Pblica;

    (2) no Decreto-real n 965/1924, que estabeleceu o Regulamento Interior dos

    Estabelecimentos Escolares Secundrios do Reino (art. 118); (3) no Decreto-real n

    1.297/1928, que veiculou o Regulamento Geral dos Servios de Ensino Primrio (art. 119). No

    entender do Governo italiano, essas duas ltimas disposies, que bem refletiam os valores

    sedimentados no Ocidente e na sociedade italiana, ainda permaneceriam em vigor, isto apesar

    de a Constituio de 1947, em seu art. 7, ter preconizado a separao entre o Estado e a

    Igreja. Posteriormente, a Lei n 121/1985 declarou, formalmente, que no mais subsistia o

    preceituado no Pacto de Latro, de 1929, que indicava o catolicismo como a religio oficial do

    Estado.

    12

    Vide as Constituies alem de 1949 (art. 140 c.c. Constituio de Weimar de 1919, art. 137, I: Es besteht keine Staatskirche), andorrana de 1993 (art. 11, 3); belga de 1994 (art. 21, 1); russa de 1993 (art. 14, 1 e 2); e sua de 1999 (art. 72, 2). 13

    BVerfGE 108, 282. Cf. JARASS e PIEROTH, 2009: 153-154.

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    94 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011

    O Tribunal de Cassao decidiu que a presena do crucifixo nos locais de recolhimento

    dos votos, durante as eleies, seria contrrio ao princpio da laicidade do Estado (Processo n

    4.273/2000). O Tribunal Constitucional, por sua vez, na Deciso n 508/2000, ratificou a

    jurisprudncia ento sedimentada a respeito da liberdade de crena e ao carter laico do

    Estado: o Estado deve manter uma postura de equidistncia e imparcialidade em relao a

    todas as religies, sem atribuir qualquer importncia ao nmero de fiis (Decises n

    925/1988, 440/1995 e 329/1997) ou amplitude das reaes sociais quanto violao dos

    dogmas de qualquer delas (Deciso n 329/1997). Instado a se manifestar sobre a questo da

    exposio do crucifixo nas salas de aula, o Tribunal deixou de examin-la sob o argumento de

    que a matria estaria regulada em disposies infralegais, desprovidas de fora de lei (Deciso

    n 389/2004, 12).

    A polmica, no entanto, chegou ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. No Caso

    Lautsi vs. Itlia (Processo n 30.814/2006, j. em 03/11/2009), esse Tribunal decidiu que a

    exposio da cruz nas salas de aula das escolas pblicas seria incompatvel com a liberdade de

    crena e de religio, bem como com o direito ao recebimento de uma educao compatvel

    com as convices religiosas e filosficas das crianas e de seus pais. Como fundamentos da

    deciso, foram invocados; (1) o dever de ministrar a educao em conformidade com as

    convices religiosas e filosficas dos pais (Protocolo n 1 Conveno Europia dos Direitos

    Humanos, de 1950, art. 2); (2) a liberdade de religio e a impossibilidade de ser restringida

    (Conveno..., art. 9, 1 e 2); (3) a Conveno protege tanto o direito de crer numa religio,

    como o de no crer em religio alguma (vide Young, James e Webster vs. Reino Unido, j. em

    13.08.1981, 52-57, srie A no 44). O Tribunal, assim, realou o carter religioso da cruz e

    entendeu que o fato de sua exibio refletir referenciais morais elevados e ser compatvel com

    os valores prestigiados por parte da coletividade no afastava o atentado laicidade do

    Estado, terminando por determinar a sua retirada e a condenar o Estado italiano ao

    pagamento de uma indenizao, por danos morais, na ordem de 5000 Euros.

    No obstante a similitude, nessa temtica, das Constituies alem e italiana, bem como

    da prpria Conveno Europia dos Direitos Humanos, com a atual Constituio brasileira,

    cremos que a transposio do entendimento restritivo para a nossa realidade exige alguns

    temperamentos. O primeiro deles consiste no fato de o cristianismo e, mais especificamente, o

    catolicismo, serem partes integrantes da tradio brasileira, da decorrendo que a exposio

    da cruz pode ser vista como mera deferncia a esse elemento cultural, em nada refletindo um

    comprometimento religioso por parte do Estado. O segundo indica que, no Brasil, o pluralismo

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 95

    religioso ainda no resultou numa rejeio socialmente relevante de certos smbolos que

    fazem parte da nossa tradio. O terceiro demonstra que, contrariamente ao verificado na

    Itlia, no se verifica, no Brasil, uma profuso de normas oficiais defendendo este ou aquele

    smbolo. O quarto, por sua vez, aconselha que medidas dessa natureza, drsticas e que

    naturalmente sero interpretadas como uma afronta respectiva religio, decorram de uma

    reao social, vale dizer, da disseminao de um sentimento de discriminao, junto s demais

    religies, em relao exibio de um smbolo caracterstico do catolicismo; a questo, assim,

    no deve ser analisada puramente in abstracto, desconsiderando-se a realidade social.

    Rendemos homenagem, assim, sensata advertncia de Rui Barbosa (1933: 430): [n]o basta

    compulsar a jurisprudencia peregrina: mister aprofunda-la, joeirando os exotismos

    intransladaveis, para no enxertar no direito patrio idas incompatveis com as nossas

    instituies positivas. Isto, obviamente, no exclui a possibilidade de que, numa situao

    concreta, luz dos circunstancialismos que a envolva, o crucifixo seja utilizado como

    instrumento de afronta ou de inibio s demais religies.

    A laicidade, importante observar, raramente se apresenta em estado puro, vale

    dizer, com ampla e irrestrita dissociao entre os poderes espiritual e estatal. No Brasil, por

    exemplo, so mltiplos os feriados embasados na f catlica (v.g.: o dia de Nossa Senhora

    Aparecida, padroeira do Pas), isto sem olvidar a invocao de Deus logo no prembulo de

    nossa Constituio, o que, em rigor tcnico, configuraria clara afronta queles que negam a

    existncia de Deus, como os budistas, ou que apregoam a existncia de mais de um Deus,

    como os hindus. Nos Estados Unidos da Amrica, do mesmo modo, l-se, em sua moeda

    oficial, a inscrio In God we trust. Nesses casos, o que se verifica no propriamente a

    irrestrita adeso ao poder espiritual, mas, sim, uma forma de preservao dos valores

    sedimentados no ambiente social.

    Ressalte-se, no entanto, que laicidade no guarda similitude com isolamento, sendo de

    todo aconselhvel que o Estado estabelea parcerias, com instituies religiosas, visando

    consecuo de objetivos comuns de interesse pblico. Essa possibilidade, no entanto,

    expressamente contemplada no inciso I do art. 19 da Constituio de 1988, no deve

    privilegiar religies especficas por vias transversas. Qualquer aproximao do Estado religio

    deve se desenvolver com a observncia de referenciais de igualdade, estando

    teleologicamente comprometida com a satisfao do interesse pblico.

    3.1. Liberdade de crena e laicidade do Estado

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    96 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011

    Em perodos mais remotos, a religio era constantemente utilizada como referencial

    para o reconhecimento de direitos ou para a participao na vida poltica do Estado. A intensa

    expanso do Cristianismo transcendeu as questes religiosas, fazendo que a religio catlica,

    apostlica, romana exercesse total domnio no cenrio poltico do Ocidente. Na Idade Mdia,

    os papas criavam e destruam imprios, nomeavam e depunham imperadores. Estado e

    religio se interpenetravam de tal modo que se tinha por inaceitvel uma dissociao entre as

    leis terrenas e as leis divinas, vale dizer, aquelas postas pela Igreja e pela interpretao que

    realizava da Bblia. O fundamento do Estado era teolgico, no teleolgico: existia pela

    vontade de Deus e para servir a Deus. Como afirmou Coulanges (2001: 206-213), entre gregos

    e romanos, assim como entre os hindus, desde o princpio, a lei surgiu naturalmente como

    parte da religio(...)a lei no se discute, impe-se; no representa trabalho da autoridade; os

    homens obedecem-na por ser divina(...)era reconhecido como cidado todo aquele que

    tomava parte no culto da cidade, e desta participao lhe derivavam todos os seus direitos civis

    e polticos. Renunciar ao culto seria renunciar aos direitos.

    A intolerncia religiosa exacerbada, que conduziu perseguio e execuo dos infiis,

    e o redimensionamento do papel desempenhado pelo Estado conferiram novas nuances ao

    pensamento filosfico, que passou a prestigiar a individualidade de cada pessoa, atribuindo-

    lhe uma esfera de liberdade imune interveno estatal. Esse movimento precipitou o

    reconhecimento da separao entre Estado e Igreja e assegurou a liberdade de culto, cujo

    carter normativo foi adotado, pela primeira vez, na Declarao de Direitos da Virgnia, de 12

    de junho de 1776 (art. 16). A Primeira Emenda Constituio norte-americana, de 1791,

    seguiu o mesmo caminho: Congress shall make no law respecting an establishment of religion,

    or prohibiting the free exercise thereof. Tambm na Frana, a Declarao de Direitos do

    Homem e do Cidado, de 1789, encampou a liberdade de culto: nul ne droit tre inquiete pour

    ses opinions mme religieuses, pourvu que leur manifestation ne trouble pas lordre public

    tabli par la loi. No Brasil, a Constituio de 1824 assegurava a liberdade de culto, mas

    considerava, como religio oficial do Estado, a catlica, apostlica, romana. Proclamada a

    Repblica, a Igreja foi separada do Estado, que passou a ser laico.

    Na Constituio de 1988, o carter laico do Estado especialmente percebido pelo teor

    de seu art. 19, que veda ao Poder Pblico manter ou subvencionar cultos religiosos ou igrejas,

    estando igualmente impedido de embaraar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou

    seus representantes relaes de dependncia ou aliana.

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 97

    Enquanto a liberdade de crena assegura a qualquer pessoa o direito de escolher

    livremente a f que ir, ou no, professar, escolha esta que pode permanecer adstrita ao

    forum internum ou ser exteriorizada, alcanando o forum externum, a laicidade do Estado

    indica a impossibilidade de uma estrutura estatal de poder possuir uma f oficial,

    privilegiando-a em detrimento das demais. Ter-se- o tratamento privilegiado de certa f

    no s quando o Estado estimular a sua prtica, com incentivos de qualquer natureza,

    financeiros ou no, como, tambm, quando impuser restries ao exerccio das demais.

    importante lembrar que o carter laico do Estado coexiste com a liberdade de crena.

    Essa constatao, em seus contornos mais basilares, indica que o Estado, conquanto no deva

    aderir a uma f especfica, deve permitir e proteger toda e qualquer manifestao de f,

    mesmo nos bens de sua propriedade; isto, obviamente, se no for comprometida a ordem

    pblica ou a liberdade de crena dos demais componentes do grupamento, o que inclui a

    liberdade de no professar f alguma.

    A questo, no entanto, pode assumir contornos mais delicados: digamos que um aluno e

    um professor de escola pblica sejam proibidos de frequentar as aulas usando turbante, que

    seria um smbolo de sua f e pureza espiritual. Quanto ao aluno, parece no haver maiores

    dvidas de que foi violada a sua liberdade de crena, exteriorizada de modo silencioso e

    perfeitamente compatvel com o ambiente escolar. J em relao ao professor pe-se um

    complicador: pode ele, enquanto servidor e representante do Estado, exteriorizar a sua crena

    na sala de aula? Diversamente ao que se verifica em relao ao aluno, que foi diretamente

    privado de um direito fundamental, no caso do professor, que est no efetivo exerccio de uma

    funo pblica, constata-se uma aparente coliso entre a sua liberdade de crena e a

    neutralidade religiosa do Estado, do qual legtimo representante em sala de aula. Ainda deve

    ser devidamente considerada a liberdade dos demais estudantes em no ter crena alguma

    (negative Glaubensfreiheit), o que refora a necessidade de o Estado preservar a sua

    neutralidade. A identificao da efetiva existncia da referida coliso, com as consequncias

    dela decorrentes, exige seja previamente definida uma premissa fundamental: do fato de um

    nico professor usar turbante (ou portar um cordo dotado de crucifixo) decorre a concluso

    de que o Estado adota uma postura favorvel respectiva religio? A resposta, evidncia,

    negativa. In casu, a crena professada, aos olhos de qualquer expectador externo,

    integralmente atribuda ao professor, no ao Estado, o que bem demonstra que ele, a exemplo

    do estudante, foi igualmente aviltado em sua liberdade de crena Cf. STARCK e SCHMIDT

    (2008: 155-156).

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    98 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011

    3.2. A imunidade tributria dos templos de qualquer culto

    De modo correlato garantia da liberdade de crena, que assegura a cada indivduo o

    pleno juzo valorativo a respeito da f que pretende, ou no, professar, sem qualquer

    interferncia do Estado ou de outros particulares, a Constituio de 1988, em seu art. 150, VI,

    b, conferiu imunidade tributria aos templos de qualquer culto, eximindo-os do pagamento de

    impostos. A ratio da norma constitucional parece clara: afastar embaraos ao exerccio de um

    direito fundamental e, face importncia que ostenta no contexto social, estimular o seu

    desenvolvimento.

    A primeira questo a ser enfrentada diz respeito ao alcance subjetivo da imunidade

    contemplada no art. 150, VI, b, da Constituio de 1988. Apesar de no haverem maiores

    dvidas quanto amplitude da expresso templos de qualquer culto, o mesmo no pode ser

    dito em relao s atividades que sero enquadradas sob essa epgrafe. Em outras palavras,

    basta que uma associao se auto-intitule igreja e possua espaos fsicos denominados de

    templos para que, por via reflexa, suas atividades sejam consideradas cultos, incidindo a

    regra da imunidade tributria? A resposta, por certo, est nsita no prprio questionamento:

    vale dizer, na medida em que a ordem constitucional reconhece, separadamente, a liberdade

    de associao e a liberdade de crena, decorrendo, desta ltima, a possibilidade de serem

    construdos templos a ela destinados, afigura-se evidente que as figuras no se sobrepem,

    mas, to-somente, se tangenciam. Toda instituio religiosa ser uma associao, mas nem

    toda associao ter fins religiosos, da o necessrio cuidado para que a ratio da norma

    constitucional seja preservada e uma possvel fraude tributria evitada.

    Os templos de qualquer culto consubstanciam o mbito de desenvolvimento da

    liberdade de crena, da f professada por certas pessoas, sendo dela indissocivel. Nesse

    particular, o Tribunal Administrativo Federal alemo (Bundesverwaltungsgericht) j teve

    oportunidade de reconhecer que associaes cognominadas de igrejas, que no professem a

    f em Deus ou num ser superior (v.g.: Buda), destinando-se, unicamente, crtica econmica

    ou social, no possuem objetivos religiosos, no sendo alcanadas pela liberdade de crena

    assegurada pelo art. 4, I, da Grundgesetz de 1949.14

    A segunda questo a ser enfrentada est relacionada ao alcance da imunidade

    tributria, exigindo seja definido se ela somente afastar a incidncia de alguns impostos

    especficos ou se recair sobre todo e qualquer imposto, com abstrao do seu fato gerador.

    14

    BVerwGE 90, 112, 116.

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 99

    Na primeira hiptese, que se ajustaria literalidade do art. 150, VI, c, da Constituio de 1988,

    somente seriam afastados os impostos incidentes sobre o prdio em que professado o culto;

    na segunda hiptese, por sua vez, seria afastada a literalidade do texto, entendendo-se pelo

    substantivo templo a prpria instituio religiosa, o que alcanaria todo e qualquer imposto.

    Entre esses dois extremos tem-se a regra do 4 do art. 150, que inclui no mbito da

    imunidade somente o patrimnio, a renda e os servios, relacionados com as finalidades

    essenciais das entidades mencionadas na alnea c do inciso VI. Percebese, assim, que a

    imunidade, conquanto ampla, limitada pela necessria correlao do fato gerador em

    potencial com as finalidades essenciais da instituio religiosa.15

    3.3. O ensino religioso nas escolas pblicas

    Ao reconhecer a liberdade de crena e vedar que o Estado mantenha, estimule,

    subvencione ou restrinja o exerccio de qualquer religio, a Constituio de 1988 delineou a

    sua laicidade. Em outras palavras, o Estado deve ser neutro: no pode existir uma f oficial e

    no deve ser dispensado tratamento privilegiado a religies especficas.

    Laicidade, no entanto, no guarda similitude com o isolamento ou a desconsiderao do

    relevante papel desempenhado pela religio na sedimentao do alicerce tico e moral de

    qualquer sociedade, o que torna particularmente clara a ratio do comando constante do 1,

    do art. 210 da Constituio brasileira (O ensino religioso, de matrcula facultativa, constituir

    disciplina dos horrios normais das escolas pblicas de ensino fundamental).16 Ao determinar

    a insero do ensino religioso na grade curricular das escolas pblicas de ensino fundamental,

    a ordem constitucional tem, como objetivo, o de orientar o jovem no exerccio de sua

    liberdade de crena, permitindo o conhecimento da essncia de cada religio e,

    consequentemente, a escolha da religio a ser professada. nsita na liberdade de crena, est a

    liberdade de no professar crena alguma, da decorrendo o carter facultativo desse tipo de

    disciplina, cuja relevncia deve ser devidamente avaliada pelos pais em relao aos filhos

    menores (CR/1988, art. 229).

    15

    O Supremo Tribunal Federal j teve oportunidade de decidir que (1) imveis de instituio religiosa alugados a terceiros no so tributados pelo IPTU (STF, Pleno, RE n 325.822/SP, rel. Min. Ilmar Galvo, j. em 18/12/2002, DJ de 14/05/2004); (2) os templos de qualquer culto no esto imunes contribuio sindical (STF, 2 Turma, RE n 129.930/SP, rel. Min. Carlos Velloso, j. em 07/05/1991, DJ de 16/08/1991). 16

    Constituies alem de 1949 (art. 7 (2, 3)); andorrana de 1993 (art. 20, 3); belga de 1994 (art. 24, 1, 3 e 3, 1); espanhola de 1978 (art. 27); holandesa de 1983 (art. 23, 3); mexicana de 1917 (art. 3); peruana de 1993 (art. 22); e sua de 1999 (arts. 63, 1 e 2; e 66, caput, 1 e 2).

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    100 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011

    Como soa evidente, o ensino religioso nas escolas pblicas deve ser compatibilizado com

    a neutralidade do Estado, o que impede permanea ele adstrito a uma ou outra f especfica,

    desconsiderando os contornos gerais do fenmeno religioso, suas origens e formas de

    manifestao. Assim, ou a disciplina permanece no plano geral ou estruturada de modo a

    permitir a exposio dos traos fundamentais de cada uma das religies existentes no

    ambiente sociocultural. Nesse particular, a Grundgesetz alem de 1949, no inciso 3 do seu art.

    7, teve a preocupao de deixar expresso o que j estava implcito no sistema: sem prejuzo

    da superviso do Estado, o ensino deve ser ministrado de acordo com os princpios das

    comunidades religiosas (Grundstzen der Religionsgemeinschaften). Cada religio deve ter

    seus dogmas retratados com fidelidade, sem preconceitos ou proselitismos, o que um claro

    indicativo da inviabilidade de um nico docente, que professe ou simpatize f especfica, ser o

    responsvel pela disciplina. Ainda segundo o paradigma alemo, nenhum professor pode ser

    obrigado, contra a sua vontade, a ministrar instruo religiosa (Kein Lehrer darf gegen seinen

    Willen verplichtet werden, Religionsunterricht zu erteilen), comando que de todo compatvel

    com a sistemtica constitucional brasileira. Afinal, como exigir, por exemplo, que um cristo

    fervoroso explique aos seus alunos os alicerces do budismo, que apregoa a inexistncia de um

    Deus, e os aspectos que, sob a tica dessa religio, a diferenciam e a tornam mais densa que as

    demais?

    A temtica, como se percebe, delicada, e exige muito cuidado na transposio do

    comando constitucional para a realidade, isto sob pena de o ensino religioso se transmudar em

    evidente proselitismo ou em instrumento de repulsa a religies especficas. A melhor forma

    de contornar os obstculos existentes consiste em contextualizar o ensino religioso no plano

    histrico, retratando a importncia das distintas religies na evoluo da humanidade. Com

    isto, o Poder Pblico evita admitir docentes a partir de critrios religiosos e, principalmente,

    afasta o risco de que o ensino religioso se transmude em proselitismo.

    3.4. A assistncia religiosa nas entidades de internao coletiva

    A liberdade religiosa pode ser concebida em duas perspectivas, uma intrnseca, a

    liberdade de crena, inerente intimidade do ser humano, e outra extrnseca, afeta

    liberdade de culto, momento em que ocorre a exteriorizao da f. Enquanto a liberdade de

    crena pode permanecer confinada aos setores mais recnditos da personalidade humana, de

    modo que o seu exerccio sequer seja conhecido por aqueles que convivem com a pessoa no

    ambiente social, com a liberdade de culto no ocorre o mesmo. Acresa-se que o culto,

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 101

    conquanto possa ser realizado no plano puramente individual, permitindo que a pessoa

    humana, isoladamente, exteriorize a sua f, o mais natural que manifestaes dessa

    natureza sejam realizadas coletivamente, sendo conduzidas por sacerdotes devidamente

    qualificados.

    Ao assegurar, no inciso VII de seu art. 5, a prestao de assistncia religiosa nas

    entidades civis e militares de internao coletiva, a Constituio de 1988 buscou criar as

    condies necessrias plena operatividade da liberdade religiosa.17 Afinal, a sua face

    extrnseca, a liberdade de culto, seria inevitavelmente comprometida com as inevitveis

    restries que caracterizam estabelecimentos dessa natureza. O comando constitucional ainda

    traz consigo outra funcionalidade, a de estimular a aceitao do apoio religioso, contribuindo

    para a reconstruo psquica e espiritual de todos aqueles que se encontrem internados.

    Confina-se o corpo, liberta-se a mente.

    A assistncia religiosa, no entanto, deve se compatibilizar com o carter laico do Estado

    brasileiro, o que impede que algumas religies sejam privilegiadas em detrimento das demais.

    O mais aconselhado, assim, que seja permitido o acesso, observadas as normas necessrias

    garantia da segurana e da disciplina internas, dos representantes das distintas religies

    existentes, de modo que os internos que j professam uma f possam continuar a profess-la,

    e aqueles que assim o desejem possam iniciar a sua trajetria e exercer livremente a crena

    que venham a escolher. A forma e os limites dessa assistncia sero definidos pela legislao

    infraconstitucional,18 que no pode, como soa evidente, destoar dos contornos bsicos dessa

    liberdade constitucional.

    No plano infraconstitucional, a Lei n 9.982/2000 assegura aos religiosos de todas as

    confisses, respeitadas as normas internas de segurana (art. 2), o direito de acesso aos

    estabelecimentos de internao coletiva, estando o apoio espiritual condicionado

    aquiescncia dos internados ou, no caso de doentes que no estejam no gozo de suas

    faculdades mentais, aquiescncia dos seus familiares (art. 1).

    Na sistemtica anterior, dispunha a Emenda Constitucional n 1/1969 (art. 153, 7)

    que [s]em carter de obrigatoriedade, ser prestada por brasileiros, nos termos da lei,

    17

    Vide as Constituies de 1934 (art. 113, n 6); 1946 (art. 141, 9); 1967 (art. 150, 7); e Emenda Constitucional n 1/1969 (art. 153, 7). No direito comparado, podem ser mencionadas as Constituies alem de 1949 (art. 4); argentina de 1853 (art. 14); cubana de 1976 (art. 54); e italiana de 1947 (arts. 8, 19 e 20). 18

    Vide: Lei n 6.923/1981 (Dispe sobre o servio de assistncia religiosa nas foras armadas); Lei n 7.210/1984 (Institui a Lei de Execuo Penal - art. 24); Lei n 8.069/1990 (Dispe sobre o Estatuto da Criana e do Adolescente - art. 124, XIV); e Lei n 9.982/2000 (Dispe sobre a prestao de assistncia religiosa nas entidades hospitalares pblicas e privadas, bem como nos estabelecimentos prisionais civis e militares).

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    102 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011

    assistncia religiosa s foras armadas e auxiliares, e, nos estabelecimentos de internao

    coletiva, aos interessados que a solicitarem, diretamente ou por intermdio de seus

    representantes legais. Como se constata, com o advento da Constituio de 1988 no persiste

    a exigncia de que a assistncia seja prestada por brasileiros, corolrio lgico da amplitude

    dos direitos fundamentais que o art. 5, caput, reconhece aos estrangeiros. Acresa-se, ainda,

    que a supresso da autorizao para que a assistncia religiosa seja prestada s foras

    armadas e auxiliares em nada se confunde com uma espcie de silncio eloquente, vedando

    seja tal autorizao conferida pela legislao infraconstitucional. Afinal, a funcionalidade dessa

    assistncia assegurar a materializao da liberdade de crena afeta a todo e qualquer ser

    humano, inclusive aqueles em servio junto s Foras Armadas, isto sem olvidar a sua plena

    compatibilidade com o ambiente militar, fortalecendo espiritualmente pessoas que vivem sob

    intensa presso. Tal, no entanto, no significa possa o Estado brasileiro contratar e remunerar

    religiosos de crenas especficas (v.g.: os Capeles Militares) para prestar esse tipo de

    atendimento s custas do Errio: alm de violar a laicidade do Estado, medidas dessa natureza

    terminam por privilegiar certas religies em detrimento de outras e a comprometer o pleno

    desenvolvimento da liberdade de crena, j que o militar somente ter acesso religio

    professada pelo sacerdote contratado pelo Poder Pblico.

    Proposies conclusivas

    1) A liberdade religiosa necessariamente balanceada pelos referenciais de pluralismo,

    igualdade e tolerncia, o que assegura a coexistncia das distintas formas de manifestao da

    espiritualidade, a ausncia de posies de preeminncia perante a ordem jurdica e a garantia

    de que todas essas manifestaes podem se expandir livremente, sem qualquer censura.

    2) A liberdade religiosa alcana tanto o direito de ter uma crena, como o de no ter

    crena alguma, bem como o direito de emitir opinio crtica sobre qualquer religio.

    3) A liberdade religiosa no pode chegar ao extremo de comprometer a vida e a sade

    daqueles que no tenham capacidade para externar livremente a sua vontade.

    4) O carter laico do Estado no chega ao extremo de desconsiderar a identidade

    cultural e as tradies da sociedade, o que autoriza a utilizao de smbolos, como o crucifixo,

    ou a utilizao do nome de Deus em documentos oficiais, como o papel moeda, situao que

    deve perdurar enquanto no difundido um sentimento de discriminao no mbito das demais

    religies.

  • A RELIGIO ENTRE A PESSOA HUMANA E O ESTADO DE DIREITO

    EMERSON GARCIA

    Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 17 jan./jun. 2011 103

    5) Devem ser aceitas manifestaes religiosas, individuais e silenciosas, de agentes

    pblicos (v.g.: utilizao da crucifixos, turbantes etc.), mesmo no exerccio da funo pblica,

    to-somente enquanto tais manifestaes no forem vistas como a postura oficial do Poder

    Pblico.

    6) O ensino religioso, nas escolas pblicas, deve prestigiar a abordagem histrica, sem

    proselitismo.

    7) A assistncia religiosa, nos estabelecimentos de internao coletiva, deve preservar a

    igualdade das distintas religies existentes, no se mostrando compatvel, com a ordem

    constitucional, a contratao, pelo Poder Pblico, de religiosos a serem incumbidos dessa

    atividade.

    Referncias

    BARBOSA, Rui. Commentarios Constituio Federal Brasileira, colligidos e ordenados por Homero Pires, vol. III, Do Poder Executivo, So Paulo: Saraiva & Cia., 1933. BIDART CAMPOS, German J.. Manual de la Constitucion Reformada, Tomo I, 5 reimp., Buenos Aires: Ediar, 2006. CIURRIZ, Maria Jos. La Libertad Religiosa en el Derecho Espaol, Madrid: Editorial Tecnos, 1984. COULANGES, Fustel de. A cidade antiga (La cit antique), trad. de Jean Melville, Editora Martin Claret, 2001. DOUGLAS, William O.. The Right of the People, 4 imp., New York: Pyramid Books, 1966. FAVRE, Antoine. Droit Constitutionnel Suisse, 2 ed., Fribourg: ditions Universitaires Fribourg, 1970. GARCIA, Emerson. A Moralidade Administrativa e sua Densificao, in Revista de Informao Legislativa do Senado Federal n 155/153, 2002. HART. Herbert L. A.. O Conceito de Direito (The Concept of Law), trad. de A. Ribeiro Mendes, 3 ed., Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2001. JARASS, Hans D. e PIEROTH, Bodo. Grundgesetz fr die Bundesrepublick Deutschland, 10 ed., Mnchen: Verlag C. H. Beck Mnchen, 2009. LOCKE, John. The Two Sources of Morality and Religion, trad. de R. Ashley Audra and Cloudsley Brereton, com o auxlio de W. Horsfall Carter, Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1977. VENDITI, Rodolfo. LObiezione di Coscienza al Servizio Militare, Milano: Dott. A. Giuffr Editore, 1981. VERA URBANO, Francisco P.. La Libertad Religiosa como Derecho da la Persona, Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1971. STARCK,Christian e SCHMIDT, Thorsten Ingo. Staatsrecht, 2 ed., Mnchen: Verlag C.H. Beck Mnchen, 2008.