artigo fiori_a ilusao do desenvolvimento

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  • 8/7/2019 artigo fiori_a ilusao do desenvolvimento

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    A iluso do desenvolvimento

    JOS LUS FIORI

    De repente, neste final do sculo 20 e depois de 25 anos relegadoao esquecimento, o velho tema da riqueza das naes ou do"desenvolvimento" volta a ocupar lugar de destaque na agendapoltico-econmica mundial. Em setembro de 1998, o presidenteBill Clinton apelou aos governantes mundiais para quetransformassem o desenvolvimento econmico na sua prioridadenmero um, nica maneira de enfrentar a "pior crise financeira dosltimos 50 anos", evitando que "uma gerao inteira fosse jogadana misria".Numa linha mais radical, dois meses depois, Oskar Lafontaine,ministro das Finanas do novo governo social-democrata alemo,surpreendeu a Europa com a sua proposta de repolitizar a

    discusso das polticas monetrias e com sua defesa danecessidade de repor o objetivo nacional da produo e doemprego no mesmo nvel de importncia que o da estabilidademonetria.Por trs destas novas posies polticas -que entram em choquedireto com as idias hegemnicas deste ltimo quarto de sculo-,o que existe no obviamente um debate ou divergncia terica,mas o reconhecimento da gravidade da crise que se alastrou apartir do Leste asitico e da impotncia das polticas ortodoxaspara enfrentar os efeitos da convulso financeira que projeta sobreo prximo milnio um horizonte de incertezas com relao aospases centrais e de pessimismo com relao aos pases daperiferia capitalista.

    As estatsticas de todos os organismos multilaterais confirmamque, nestes ltimos 25 anos, desde o fim do Sistema de BrettonWoods, independentemente de variaes cclicas e pontuais, ecom a exceo do Leste asitico, da ndia e da China, a tendnciaeconmica mundial foi de declnio constante das taxas deinvestimento, crescimento e emprego. E, ao comear o ano de1999, mesmo que o mundo escape de uma recesso global, asperspectivas imediatas so de que a Europa e os Estados Unidosdesacelerem seu crescimento, o Leste asitico atravesse umarecesso prolongada e a Rssia entre numa regresso gigantesca.Na outra ponta, ningum mais tem duvidas de que a AmricaLatina enfrentar um novo perodo de estagnao, enquanto oBrasil completar no ano 2000 mais uma dcada perdida. A crise,

    como se sabe, j atingiu a economia latino-americana e hojedesorganiza completamente o seu cenrio ideolgico, no qual a"utopia globalitria" ocupou, nesta ltima dcada, de formaabsoluta, o lugar que tivera o "desenvolvimentismo" depois daSegunda Guerra.No caso brasileiro, por exemplo, em que as perspectivasimediatas so de profunda recesso, no difcil quantificar oproblema que se coloca. Como seu crescimento demogrfico de1,4% ao ano, mas sua populao economicamente ativa (PEA)segue crescendo a uma taxa de 2,7%, o pas precisaria criar 1,5

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    milho de novos empregos por ano, o que suporia um crescimentocontinuado do PIB a uma taxa mdia anual de 7%, s paraabsorver a nova populao que bate a cada ano s portas domercado de trabalho.Posto diante desse desafio e sem poder apelar mais para a ilusodo "renascimento global", o governo criou um Ministrio doDesenvolvimento. O que completamente irrelevante, noimporta quem seja seu titular.Em primeiro lugar, porque sua coalizo de poder e sua estratgiaeconmica foram construdos com base no projeto explcito de"virar a pgina" ideolgica e econmica do desenvolvimentismo;em segundo lugar, porque depois de dez anos de destruio oEstado j no dispe dos instrumentos indispensveis a umaretomada desenvolvimentista; e, em terceiro lugar, porque o Brasilacabou de assinar uma "carta de intenes" e um "acordofalimentar" com o Fundo Monetrio Internacional (FMI) e oBanco de Compensaes Internacionais (BIS) que o comprometepor vrios anos com a mais recente e radical verso da mesmapoltica econmica que o conduziu crise atual.Uma nova realidade, que resultou de escolhas e decises polticas

    absolutamente conscientes e ideolgicas, e no de necessidadesmateriais impostas ao pas. Sobretudo porque, como se sabe, oBrasil foi o nico pas latino-americano que durante a sua "eradesenvolvimentista" (1950-1980) foi capaz de ocupareconomicamente o seu territrio, construindo uma infra-estruturarelativamente complexa e integrada de transportes, energia ecomunicaes, alm de se industrializar e manter durante 30 anosa segunda taxa mdia anual mais alta de crescimento econmicodo mundo.Por tudo isso, este um bom momento para retornar a um velhodebate que foi sistematicamente esquecido ou negado, nos ltimosanos, pela arrogncia ou ignorncia dos novos liberais. Como sesabe, o ncleo central da primeira agenda desenvolvimentista

    desenhada nos anos 50 propunha um crescimento econmicoacelerado com base na integrao e interiorizao do mercadointerno organizado a partir da expanso da infra-estrutura, daindstria e do agrobusiness. Alm disso, apostou nacompatibilidade poltica entre uma aliana nacional-popular e asustentao democrtica, na eficcia econmica do mecanismoindutor da "substituio de importaes" e no carter derivado eobrigatrio da melhoria na distribuio da renda.Esse modelo enfrentou sua primeira crise sria na entrada dosanos 60, quando a oposio de esquerda se distanciou do projetoinicial e sustentou na sua crtica ao "modelo de substituio deexportaes", o que se transformou na primeira tentativa dereforma social e democratizante do desenvolvimentismo

    juscelinista. Seu programa propunha retomar o crescimentointerrompido, conter a inflao e levar frente programasuniversalizantes de sade e educao e de reforma dos sistemasde propriedades urbana e agrria (proposta sintetizada, em 1963,no Plano Trienal do ministro Celso Furtado).Este projeto reformista de forte cunho popular foi bloqueado ederrotado pela coalizo de poder conservadora que sustentou ogolpe de 64 e todo o perodo do regime militar. Foi essa novacoalizo de poder que deu a marca autoritria e anti-social dodesenvolvimentismo dos anos 60/80. Foi ela que promoveu uma

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    gigantesca concentrao e polarizao da renda, e foi umaresultante dessa coalizo a forma "selvagem" como o capitalismobrasileiro viveu o seu "milagre econmico".Desde a segunda metade da dcada de 70, pelo menos, que aoposio ao regime militar, ao lado de sua crtica do autoritarismo,veio denunciando as fragilidades, contradies e limites destedesenvolvimentismo conservador: seu padro de financiamento"externalizado"; seu protecionismo muitas vezes sem critriosestratgicos de escolha de grupos econmicos e setoresprodutivos; sua incapacidade ou impotncia para conglomerar earticular estrategicamente o setor produtivo e financeiro estatal;sua distribuio regressiva da renda; sua defesa intransigente domonoplio da terra e dos espaos urbanos; seus sistemas malfinanciados de proteo da fora de trabalho e da populao"marginal"; sua complacncia diante do processo de privatizaodo Estado autoritrio e de seus processos decisrios; suafragilidade diante dos interesses privados internacionalizados etc.Uma crtica veemente do autoritarismo, mas que soube identificarnas "taras" do seu desenvolvimentismo o poder, a vontade e asdecises conservadoras e muitas vezes reacionrias da coalizo

    de interesses privados nacionais e internacionais que sustentaramo regime poltico, mas tambm a estratgia de "fuga para frente"na conduo do processo do desenvolvimento. Fuga semprepelos caminhos de menor resistncia, abertos pela conjunturaeconmica internacional e capazes de compatibilizar -ainda quetransitoriamente- os interesses heterogneos e antipopulares denossas elites polticas.Em grande medida, foi esse pensamento crtico que orientou onovo programa de reformas esboado na primeira metade dosanos 80. E foi com base nele que as foras progressistas tentaramrevolucionar o desenvolvimentismo conservador, na primeira horada transio democrtica, entre 1985 e 1988. Mas a experinciados anos 60 j havia ensinado e, por isso, nesta segunda

    oportunidade, a convico comum era de que as reformas e oenfrentamento conjunto da crise da dvida externa e do novocontexto econmico internacional requeriam uma mudana radicaldas bases do poder e a construo de uma nova coalizo capazde redesenhar o desenvolvimento nacional com base noutroconjunto de valores hierarquizados, a partir de um objetivocentral: o bem-estar econmico e social da populao brasileira.O mesmo objetivo que foi consagrado e detalhado pelaConstituio de 1988.Como se sabe, essa segunda tentativa de reforma progressista dodesenvolvimentismo brasileiro tambm foi derrotada e destrudapelas mesmas foras de centro-direita que haviam sustentado odesenvolvimentismo conservador dos militares.

    Em muito pouco tempo, j no processo constituinte, ocorreu areaglutinao dessas foras recm-derrotadas pelo movimentodemocrtico. Mas elas s puderam vetar o pacto social efederativo da "Constituio Cidad" mais tarde, quandoencontraram apoio, legitimidade e liderana intelectual numsegmento expressivo da antiga "frente democrtica", queabandonou o projeto de reformas progressistas e aderiu, de formapreguiosa, crtica neoliberal de uma abstrao: o"desenvolvimentismo" em geral.Na entrada dos anos 80, o Brasil fora submetido a um choque

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    gigantesco produzido simultaneamente pela alta da taxa de jurosinternacional e dos preos do petrleo e pela queda do preo desuas exportaes, seguida pelo afastamento do pas do sistemafinanceiro internacional.Mas, segundo essa crtica, sustentada na repetio superficial davulgata neoclssica, a nossa crise dos anos 80 havia sido causadapelo "populismo macroeconmico" dos militares -que, ningumsabe como, ficaram subitamente populistas- e pelocomportamento predatrio de empresrios "rent seeking", quesempre estiveram onde estiveram, mas que decidiram de maneiratambm surpreendente matar a prpria galinha dos ovos de ouro.Um pastiche das idias que eram difundidas, na dcada de 80,pela equipe do Banco Mundial, mas que se tornaram entre ns aargamassa ideolgica que ajudou a "recolar" a velha coalizo depoder autoritria e anti-social, conectando-a com as idias e opoder articulados mundialmente em torno do Consenso deWashington.Foi essa crtica liberal que legitimou o descumprimento por partedos conservadores dos compromissos sociais e federativos quehaviam assinado junto com a Constituio de 1988. E foi esse

    diagnstico -quase ridculo- da crise que orientou o desmonte edepois a destruio, na dcada de 90, do Estado brasileiro e dosseus instrumentos de interveno, de uma parte expressiva de suascadeias industriais e de boa parte da infra-estrutura construda nos30 anos desenvolvimentistas. Por fim, ainda, foi a fora declinantedestas idias que conseguiu imobilizar a reao das classesdominantes diante da deciso poltica do governo de assinar oacordo com o FMI e o BIS, definindo de maneira rigorosa etrimestral os objetivos e a forma como o pas dever sergovernado durante os prximos anos, independentemente dequem o esteja administrando.As autoridades brasileiras tm razo quando afirmam tratar-se deum "acordo original". de fato uma verso corrigida pelos

    fracassos do FMI no Leste asitico e nesse sentido mais genricae preventiva, mas mais sofisticada e irreversvel. No comprometede antemo -como em outros casos- "ativos pblicos" empagamento direto s instituies multilaterais de crdito. PrometeUS$ 25 bilhes de privatizaes, que devero ser repassados aoscredores privados, enquanto aumenta em mais de US$ 40 bilhesa dvida externa pblica a descoberto.Mas o que mais essencial que, como garantia pelo emprstimointernacional que lhe concederam, o governo ofereceu umatransferncia de "capacidade de deciso", o que transforma oBrasil na primeira cobaia internacional de um experimento quecombina, num "mercado emergente", a aceitao contratual ecompulsiva das regras e prescries do Acordo Multilateral de

    Investimentos (o AMI, que ainda no foi assinado pelos pasesdesenvolvidos) com as regras j aceitas pelo Brasil daOrganizao Mundial do Comrcio e mais uma frmula nova eno constitucionalizada de dolarizao da economia.Com isto o governo probe-se, automaticamente, o uso dequalquer tipo de controle do movimento de capitais, investimentose remessas de lucros e dividendos e, obviamente, de qualquer tipode poltica industrial ou comercial. Compromete-se, alm disso,com a automtica elevao da taxa interna de juros em caso deperda de reservas, delegando ao FMI o controle "informal" e

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    mensal de sua poltica monetria e trimestral da sua poltica fiscal.Por fim, aceita repassar ao FED, o Banco Centralnorte-americano, o controle de suas reservas, caso elas caiam ata casa dos US$ 20 bilhes, como forma de evitar que o Brasilrepita o caminho seguido pela moratria russa. O pas ficadispensado de fazer ou controlar sua poltica monetria, fiscal,comercial e industrial. E seria uma ingenuidade, nessascircunstncias, querer que o pas tivesse, nessas condies, umapoltica externa autnoma. A opo que o governo fez, como sepode ver, foi absolutamente radical e dispensa a partir de agoraqualquer preocupao "boba" e "anacrnica" com assuntos dotipo "soberania nacional". Em troca de qu? E com quepossibilidade de sucesso em termos de desenvolvimento?Na forma como esto definidas e estabelecidas as novas regrasdo "bom comportamento macroeconmico" brasileiro, rolem-seou no as dvidas, e volte ou no a boa vontade dos mercados, opas ser empurrado de forma apenas mais ou menos rpida, masinapelvel, em direo a um sistema cambial que os economistaschamam de "currency board".Uma vez dentro desse sistema -que j est funcionando

    inconstitucionalmente-, o volume do crdito interno e,automaticamente, a variao das taxas de juros ficamcondicionados pelo volume ou escassez dos recursos externosque entrarem no pas. Um simulacro do padro ouro aplicadoneste final de sculo apenas queles pases sem condies departicipar do sistema de taxas flutuantes que impera entre aspotncias econmicas. Este sistema s foi experimentado pelosDominions ingleses e mantido com xito relativo, neste sculo, emlugares que se converteram em praas financeiras internacionais,como Cingapura e Hong Kong (e est agora em experincia naArgentina).O desenvolvimento dos pases perifricos subordinados a estenovo modelo fica totalmente dependente das flutuaes

    internacionais dos capitais e completamente indefeso diante desuas crises financeiras peridicas. Nesse sentido, no caso de umanova crise, como as de 1997 ou de 1998, sua nica respostasero as renovadas "desconstrues" do seu sistema produtivo, aserem induzidas por recesses cada vez mais fortes, para quepossam reduzir a produo e o emprego internos at o nvelrequerido pela manuteno do equilbrio externo, dada a oferta decapitais do momento.No necessrio dizer que o funcionamento desse "modelo dedesenvolvimento" requer o isolamento dos seus administradorescom relao a qualquer tipo de demanda ou reivindicao interna,o que supe a despolitizao radical das relaes econmicas, oenfraquecimento dos sindicatos, a fragilizao dos partidos

    polticos e dos parlamentos e, finalmente, a reduo ao mnimoindispensvel da vida democrtica.Se o economista americano Barry Eichengreen tiver razo quandodiz que "ou se limita a mobilidade dos capitais ou se limita ademocracia", o atual governo brasileiro j fez a sua opo: e aqui,como no caso da produo e do emprego, a governabilidadedemocrtica e federativa que dever ir sendo reduzida e seadequando s exigncias impostas pelo equilbrio das contasexternas ou pela disponibilidade de capitais do momento. Mas,mesmo assim, dentro desta camisa-de-fora, o Brasil est

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    condenado, na melhor das hipteses, a ter ciclos muito curtos debaixo crescimento e apenas durante os perodos dedisponibilidade abundante e barata de capitais e crditosinternacionais.Querer manter esse modelo e alcanar a um s tempo altas taxasde crescimento o mesmo que o crculo quadrado a que seprops Jos Bonifcio ao querer construir uma naoindependente e liberal aliada com os ingleses e os senhores deescravos. Deu no que deu.

    Jos Lus Fiori doutor em cincia poltica pela USP, professor titular daUniversidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Estadual do Riode Janeiro, e autor, entre outros, de "Os Moedeiros Falsos" (Ed. Vozes).