Artigo Grotius III(1)

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    GUERRA & PAZ: SNTESE DA CONTRIBUIO DE GROTIUS E

    BOBBIO

    Eduardo Xavier Ferreira Migon1

    Introduo2

    Se algum me perguntar quais so, na minha opinio, os problemasfundamentais do nosso tempo, no tenho qualquer hesitao emresponder: o problema dos direitos do homem e o problema da paz(BOBBIO, 2009, p. 111).

    Trata-se de pesquisa que incidiu sobre o pensamento de Hugo Grotius ede Norberto Bobbio, tendo por objetivo revisitar as contribuies tericas destes

    autores no que de interesse dos estudos da paz e da guerra. O vis

    epistemolgico assume que Paz e Guerra so fenmenos complexos e, neste

    sentido, que pese a preponderncia terica ser associada rea de interesse do

    Direito Internacional, a perspectiva adotada foi interdisciplinar, buscando o

    dilogo dos contedos investigados com os fenmenos em si. Surgem, ainda que

    implcitos, pontos de tangncia ou interseo com conceitos da Cincia Poltica,das Relaes Internacionais, dos Estudos Estratgicos, assim como das Cincias

    Militares, rea do conhecimento no mbito da qual, no Brasil, os autores

    estudados, em especial Grotius, tm menor presena. Assim sendo, estima-se

    que o presente artigo possa ser til introduo de novos pesquisadores, em

    especial integrantes das Foras Armadas, em conceitos de interesse

    (re)emergente para a agenda internacional de Segurana & Defesa, em especial

    quanto temtica das operaes de paz.

    A anlise de Grotius apoiou-se em verso brasileira da obra De Juri Belli

    ac Pacis (1625) e sobre o processo de conformao das estruturas estatais da

    1IMM/ECEME EBAPE/FGV. O autor agradece Professora Livre docente Maristela Basso, daFaculdade de Direito da Universidade de So Paulo, pelas orientaes recebidas ao longo dodoutoramento em Cincias Militares, no mbito do qual se iniciou a aproximao com osautores estudados. Agradece tambm Professora Doutora Maria Lusa Duarte, da Faculdadede Direito da Universidade de Lisboa, pelas contribuies formao acadmica recebidasquando realizando estudos no Instituto de Estudos Superiores Militares (Portugal). Agradece

    ainda CAPES, pelo apoio participao no evento, atravs do Programa PR-DEFESA.2A redao deste trabalho busca seguir o disciplinado pelo Acordo Ortogrfico da LnguaPortuguesa.

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    poca. A ideia-fora associa-se perda de relevncia do indivduo enquanto

    sujeito da dinmica internacional e incluso dos estados como atores exclusivos

    no mbito da sociedade internacional, o que levou necessidade de disciplinar

    juridicamente a questo da violncia entre as unidades polticas, dando origem

    aos princpios fundantes do atual Direito Internacional.

    Como aspectos subsidirios considerados na anlise, tem-se a dinmica de

    expanso da interconexo entre as unidades polticas, fruto do incremento

    comercial da poca, e as diferenas de ordem cultural e religiosa que se

    associam a tal processo. Emergem do estudo conceitos como jus ad bellum,jus

    in bellum, soberania, sacralizao dos tratados, legtima defesa, legitimidade

    internacional, dentre outros. A atualidade e pertinncia do estudo da obra de

    Grotius decorre da realidade presente, na qual se destaca o debate acerca do

    papel dos estados e dos indivduos na sociedade internacional e a (re)discusso

    e (re)interpretao dos conceitos acima expostos, com o surgimento de

    construes comopreemptive attacke responsibility to protect, por exemplo.

    A perspectiva de Bobbio foi delimitada a partir de tradues brasileiras de

    Il problema della guerra e le vie della pace(1979) e deIl Terzo Assente(1988).

    A ideia-fora se associa viso ontolgica do autor de que o futuro da paz se

    associa ao futuro da democracia, elemento apaziguador da conflitualidade e,consequentemente, da violncia, quer no interior dos estados quer no

    relacionamento destes no contexto internacional. Da viso de mundo emergem

    consideraes sobre a incapacidade das diversas teorias em explicar o fenmeno

    da guerra, o que leva proposta de migrar o centro das atenes em direo ao

    estudo da paz. Com isso introduz-se a ideia de um estado de paz estruturado na

    confiana recproca entre os estados, o que leva discusso do papel e da

    (in)eficincia da Organizao das Naes Unidas sob tal modelo.Emergem do estudo conceitos como poder, soberania, pacta sunt

    servanda, jus cogens, relacionamento guerra e progresso, relacionamento

    guerra e direito, pacifismo e modelos de obteno da paz, dentre outros. Tem-se

    que as propostas de Bobbio so teis como suporte epistemolgico a debates

    atuais como a rediscusso da estrutura e papel do Conselho de Segurana, a

    conformao de organismos plurais de Segurana & Defesa, a (re)discusso do

    papel do Estado-Nao, a assimetria e os modelos de interpretao do sistema

    internacional etc. Com este ensaio terico, introdutrio, prope-se a

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    (re)insero na agenda nacional dos Estudos de Defesa do debate acerca de

    conceitos estruturantes ao campo e que encontram-se em processo de discusso

    e (re)interpretao, luz da dinmica social contempornea.

    O primeiro autor visitado, Hugo Grotius, um dos tericos que, no

    alvorecer do sculo XVII, deu incio conformao dos fundamentos jurdicos e

    polticos sobre os quais se edificou o Direito Internacional atual. Enfrentando a

    temtica da guerra, da soberania e do relacionamento entre os Estados delineou

    suporte terico de interesse para as questes humanitrias e garantia da Paz, o

    que demonstra a atualidade e relevncia de seus estudos para o pensamento

    internacional contemporneo.

    Norberto Bobbio, a seu turno, um dos mais consistentes pensadores do

    sculo XX. Trata-se de autor de referncia no mbito da Poltica, da Filosofia

    Jurdica e das Relaes Internacionais, transcendendo sua formao

    eminentemente jurdica. Se destacou, entre outros, pelos estudos sobre a

    temtica da Guerra e da Paz. um dos autores estruturantes do pacifismo

    ativo, a ser construdo num ambiente de dilogo e negociao entre os Estados,

    com predomnio da Diplomacia, concepo que vem encontrando maior adeso

    na sociedade internacional contempornea.

    Direito Internacional Pblico o ramo do direito que se dedica ao estudodas normas que regem as relaes externas dos atores que compem a

    sociedade internacional, em especial os Estados, mas tambm as organizaes

    internacionais, as pessoas, etc. Em sua temtica de estudo, e considerando que a

    Cincia Jurdica estrutura-se a partir dos fatos sociais, encontra pontos de

    tangncia com as Relaes Internacionais Diplomacia e relacionamento dos

    grupos sociais alm de suas fronteiras, com a Cincia Poltica atravs das

    Teorias do Poder, e com as Cincias Militares nomeadamente os EstudosEstratgicos e a Teoria da Guerra.

    Assim sendo, a proposta a ser desenvolvida neste paper revisitar o

    pensamento clssico de Grotius e Bobbio, de forma a alargar os horizontes de

    reflexo dos profissionais da rea de Defesa quanto temtica da Guerra e da

    Paz.

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    Hugo Grotius

    No alvorecer do sculo XVII o continente europeu vivia momento de

    transio entre a realidade medieval e a estabilizao do contorno poltico de

    seus Estados nacionais, a qual foi mais claramente alcanada apenas no final do

    sculo XIX. Em consequncia disso, a poca dos escritos de Grotius (De Juri

    Belli ac Pacis, 1625) se caracterizou por forte movimento de dissoluo,

    constituio, integrao e reorganizao3 entre Estados, que se utilizavam da

    guerra como instrumento legtimo de ao poltica. O que levou o pensamento

    da poca busca de um ambiente internacional no conflituoso, surgindo o

    marco inicial do direito internacional, com os seguintes objetivos:

    [...] na elaborao de uma teoria que apoiasse o desenvolvimentoprogressivo da sociedade internacional como entidade composta porEstados e no mais por indivduos, uma ideia j precedentementelanada, mas relativamente desconhecida na poca; na dessacralizaoe na condenao do princpio da guerra, mesmo sendo esta admitidadentro de certos limites, e na sacralizao dos tratados; na busca e nodesenvolvimento de meios prprios para, em caso de necessidade,manter ou restabelecer a paz; e na limitao da guerra s partes emconflito, mediante o desenvolvimento da noo de neutralidade. (RIJUNIOR, 2005, p. 11)

    Segundo Hespenha (2005, p. 16-17), a questo a ser equacionada emergia

    do conflito entre a concepo de propagao e defesa da f crist, a qual admitia,

    poca, as converses foradas e as guerras santas, a exemplo das Cruzadas e

    das misses religiosas em terras americanas, e o conceito jurdico de que a

    guerra somente seria justa caso decorresse de legtima defesa, ou seja, em

    resposta a agresso injusta, para reparar o status quo ante, ou, ainda, para a

    obteno de adequada reparao.Isto tudo num contexto de alargamento das

    relaes comerciais, que levava a maior contato entre diferentes culturas 4.

    3 Curioso e atual observar o movimento pendular de uma Europa que rompeu um cenriosupranacional, com a queda do Sacro Imprio Romano-germnico e assume novamente taiscontornos constitutivos. A mais que isso, tambm atual a discusso quanto manuteno dacoeso do espao europeu, luz da fora centrfuga gerada pela crise do euro.4Luhmann (2010), em sua Teoria dos Sistemas Sociais, prope a comunicao como elementoessencial aos sistemas sociais. No outro o momento aqui apresentado: quanto maior foi acomunicao no interior do sistema, maiores as resultantes, em processo de estabilizao dedinmicas que, caso se queira inferir, segue em curso at o presente. A questo da Guerra & Paz,aqui um parntesis, ainda no est resolvida no por um determinismo histrico no sentido de

    que o homem mau e a guerra inevitvel, e sim na medida em que a dinmica derelacionamento entre as diferentes culturas crescente, gerando instabilidades a superar. tilconferir as propostas de Huntington (2007), sobre o choque das civilizaes.

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    Grotius (2004, p. 33-65) deixa claro que a alternncia entre o direito e as

    armas tem razes desde a Antiguidade Clssica, as divergncias surgidas entre

    os povos ou entre os reis tm sempre o deus Marte por rbitro, no sendo

    fenmeno nem moderno nem contemporneo. Destacou, tambm, que o povo

    violador do direito da natureza e das gentes derruba para sempre os anteparos

    que protegiam sua prpria tranquilidade, defendendo a prevalncia do direito

    como opo e esclarecendo que a solidez deste reside no na fora das armas,

    mas na consistncia de seu espao coletivo de existncia5. Neste sentido, traou

    um paralelo entre a gnese do direito interno, qual seja a associao entre

    homens individualmente fracos mas coletivamente capazes de estabelecer e

    manter por meio de foras comuns os tribunais, e sua visualizao de um

    espao possvel existncia de um direito internacional6. Apontando a

    responsabilidade direta das lideranas polticas7 quanto busca de solues

    atravs da fora ou do direito, foi pragmtico em reconhecer a possibilidade de

    conflito armado. Em consequncia, alertou que as guerras se condicionam a leis

    perptuas e vlidas para todos os tempos, fruto de regras que a natureza

    prescreve ou que foram estabelecidas pelo consenso dos povos.

    Em acordo com a evoluo do direito e das estruturas sociais de sua poca,

    o autor (GROTIUS, 2005, p. 67-276) incluiu na sua anlise tanto a guerraprivada8, entre indivduos9, quanto a guerra pblica, entre Prncipes. Apoiado

    na coerncia do princpio da autodefesa10com o direito natural, disciplinou que

    5 Ideias interessantes, que pela consistncia e atualidade podem ser observadas mais de trssculos depois, a exemplo das propostas de Hannah Arendt (2009). A mais que isso,potencialmente teis para subsidiar a compreenso da temtica da Guerra & Paz e da Guerra &Direito em um ambiente internacional unipolar/hegemnico.6Curiosa sua observao de que, se houvesse apenas uma autoridade sobre todos os Estados, a

    ento este no seria necessrio, na medida em que o direito interno seria suficiente a dirimir osconflitos. Segundo Arendt (2009), este terceiro presente, por outro lado, tenderia tirana.7Que poca antiga e medieval se confundiam com as lideranas militares, no que atualmente,fruto da especializao das aes de governo e de administrao da violncia haverem seespecializado, algo obsoleto.8 Com relao ao confronto entre o direito do Estado e o direito do cidado, foi claro: OEstado pode, pois, para o bem da paz pblica e da ordem, interditar esse direito comum deresistncia. Modernamente, o direito de resistncia melhor delineado, sendo aceito, porexemplo, com relao objeo de conscincia ao Servio Militar.9O que foge do escopo, limitado, do presente trabalho, na medida em que esta diz respeito aoordenamento interno e aos tribunais, sob tica jurdica, ou ao ramo Segurana Pblica, sob ticasociopoltica.10 Trata-se de princpio to importante que vigora ainda hoje, sob os auspcios da Carta da

    Organizao das Naes Unidas. A questo mais atual : o conceito de ataque preemptivo(preemptive atack quando um Estado imagina-se na eminncia de ser hostilizado e,antecipando-se, desencadeia retaliao) encontra acolhida no princpio de autodefesa? Ou

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    a guerra, dentro de tal limite, no ato antijurdico. Ressalvou, contudo, que

    para ser justa deve ser legitimamente conduzida por aquele 11 que detm a

    soberania12 dentro do territrio e no pode ser ilimitada, subordinando-se ao

    direito dos outros, isto , cessando to logo repelida a amea a ou obtida a

    reparao. No deixou de observar a questo particular da guerra civil 13, a

    qual surge no plano interno do Estado, tendo equiparado esta guerra pblica.

    Enquanto seus antecessores e contemporneos se ocuparam do direito de

    ir a guerra (jus ad bellum), Grotius (2005, p. 1011-1471) avanou de tal ponto e

    conduziu detalhada e complexa apreciao do direito de guerra14 (jus in

    bellum), delimitando quais as aes legtimas e/ou ilegtimas no transcorrer de

    um conflito armado. Partindo de regras gerais para os conflitos, abordou temas

    bastante especficos, como a questo das alianas com fins blicos e a

    precedncia de compromissos de um Estado quando seus aliados entram em

    conflito; os requisitos para a Guerra Justa; o direito sobre prisioneiros e

    expropriaes; consideraes sobre a soberania em face dos vencidos; dos

    refns, trgua, capitulao, livre-trnsito, resgate de prisioneiros; bem como das

    condies de negociao dos tratados de paz e supresso das hostilidades.

    Como se v, a contribuio de Grotius ao tema Guerra & Paz bastante

    ampla. Como jurista, trouxe a guerra para o mbito do direito, ao postular que amesma perfeitamente compatvel com o direito natural e o costume dos povos.

    trata-se de ao antijurdica (agresso), posto violar os princpios da Carta e o direitointernacional? Na mesma passagem o autor (op. Cit., p. 288)disse A guerra permitida numperigo presente e certo, no num perigo suposto e, logo a seguir, disse confesso, contudo, quese o agressor toma em armas, parecendo ter a inteno de matar, seu crime pode ser prevenido(em outras palavras, ataque preventivo?). Como se v, o tema complexo e controverso. Masno novo.11Mais especificamente, compreendendo que a guerra fenmeno que pode levar ao declnio do

    Estado, formulou que a deciso deve ser exclusiva do governante, com prejuzo da iniciativa dequalquer outra funo especializada do poder estatal.12 Chama-se soberano quando seus atos no dependem da disposio de outrem, de modo apoderem ser anulados ao bel-prazer de uma vontade humana estranha (Grotius, 2005, p. 175).Todavia, tendo escrito poca do absolutismo, refutava veementemente a opinio sobre a qualse sustenta o Estado brasileiro, de que a soberania emana do povo. Quanto soberania (Grotius,2005, p. 207-208), traou ainda interessantes consideraes, como a questo da limitao doexerccio do poder em funo da lei e do exerccio compartilhado do poder, no que adiantouideias estruturadas mais a frente por Montesquieu, em sua Teoria Tripartite do Poder. Sob atica das Relaes Internacionais, Grotius um idealista, na medida em que entende que nasociedade internacional todos os entes so soberanos, autnomos e com mesmo nvel derelacionamento entre si.13O assunto de interesse terico e real, posto ser a modalidade de conflito que maior nmero

    de vtimas tem produzido na atualidade.14 Seus pensamentos encontram eco, modernamente, no direito internacional dos conflitosarmados, ramo de interesse significativo, por bvio, e dentre outras, para as Cincias Militares.

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    Como humanista, desenvolveu seus esforos em duas direes. Por um lado,

    forneceu suporte intelectual ao nascimento do Direito Internacional, com o

    ideal de prevalncia dos tratados e soluo pacfica dos contenciosos. Por outro,

    compreendendo tanto a inevitabilidade prtica da soluo armada (na medida

    em que aceitava a guerra justa como opo) quanto a realidade ftica da poca e

    local em que vivia, delineou os contornos que os conflitos devem evidenciar para

    se configurarem como justos, limitados, lcitos, legtimos e, pode-se dizer, mais

    humanos.

    Norberto Bobbio

    Tendo vivido na Itlia, ao longo do sculo XX, vivenciou duas Guerras

    Mundiais, o fenmeno totalitrio do Fascismo, a Guerra Fria, a instabilidade

    poltico-institucional consequente da luta armada de cunho ideolgico, dentre

    outros marcos significativos. Da a base epistemolgica que transversalmente se

    apresenta em todo seu pensamento: o futuro da paz est estreitamente

    conectado com o futuro da democracia (BOBBIO, 2009 , p. LIV). Tal se d na

    medida em que sendo a questo de fundo como eliminar, ou pelo menos

    limitar, da melhor maneira possvel, a violncia como meio para resolver

    conflitos, seja entre indivduos e grupos no interior de um Estado, seja nasrelaes entre os Estados (BOBBIO, 2003, p. 39), a democracia o

    instrumento que produz reflexos apaziguadores no sistema poltico interno dos

    Estados e, mesmo, no relacionamento destes com a Sociedade Internacional15.

    Tendo aprofundado o estudo das teorias da guerra 16, reconhece que a

    compreenso do fenmeno ainda limitada, apesar da considervel quantidade

    de estudos a respeito. Ao contrrio do que se possa imaginar, as

    fenomenologias do totalitarismo e da guerra no coincidem, na medida em quenem todas as guerras foram imperialistas. Tambm insuficiente a teoria

    marxista e suas variantes, na medida em que se justificam o confronto entre

    15Adota a denominada linha de pensamento da paz democrtica, portanto.16Como teorias a serem ponderadas com a letalidade dos meios atuais de se fazer a guerra e aproporcionalidade entre causa e efeito, Bobbio (2009, p. 15-25) sintetizou e analisou opensamento clssico luz das teorias da guerra justa, da guerra como mal menor, da guerracomo um mal necessrio, e da guerra como um bem (absolutamente obsoleta e contrria aos

    interesses do mundo contemporneo). Alm das teorias anteriores, ligadas ao ato humano,discorreu sobre as teorias da guerra como evento natural (determinismo biolgico) ouprovidencial (determinismo religioso).

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    classes, todavia no esclarecem bem como se mantm a paz aps a tomada do

    poder. Em sntese, no sabemos nada, ou quase nada, das causas da guerra

    (BOBBIO, 2000a, p. 553). Talvez por isso tenha feito propostas concretas para a

    manuteno da paz, posicionando-se como um realista insatisfeito, que

    reconhece a existncia de conflitos juridicamente justificados, mas que prefere a

    busca de uma paz de satisfao17, estruturada na confiana recproca18entre os

    Estados.

    No mbito Direito e Poltica, entendeu que poder um tema fundamental

    das relaes internacionais (LAFER, 2009, p. XXI), portanto, influenciador do

    fenmeno Guerra & Paz. Convergindo com Hobbes (BOBBIO, 2009, p. 62-63),

    concluiu pela necessidade de aperfeioamento das estruturas polticas atuais, na

    medida que em um universo no qual h mais Estados, estes independentes e

    soberanos, tal como so independentes e soberanos os indivduos em estado de

    natureza, o estado de natureza, e portanto o medo recproco, continua nas

    relaes internacionais. Mais pragmtico, todavia, ponderou que a aplicao do

    modelo hobbesiano realidade presente encontra um cenrio no de igualdade,

    mas de desigualdade entre os Estados, com desigualdade de soberanias, a

    exemplo da fragilidade da ONU [Organizao das Naes Unidas] diante da

    supremacia poltica dos EUA [Estados Unidos da Amrica]19, doreconhecimento ao direito de veto a algumas grandes potncias [referindo -se

    ao Conselho de Segurana/ONU] e da convico de que h Estados que

    politicamente mais contam, e que podem, portanto, de fato, condicionar a

    poltica mundial (BOBBIO, 2009, p. XL, LV e 126)

    Sua proposta (BOBBIO, 2009, p. LIII) para um sistema poltico

    internacional pacfico considera a necessidade de aumentar os vnculos entre os

    Estados, fortalecer as Instituies j existentes e que apresentam bonsresultados, bem como discutir a questo do Terceiro. Prope a necessidade

    evolutiva de um terceiro entre partes para um terceiro acima das partes. Deixa

    17 Apropriou-se da tipologia proposta por Aron (2002). Considerando que nenhuma dasjustificativas tradicionais da guerra resiste prova da guerra nuclear ento o problema atual jno pode ser aquele tradicional, de encontrar boas razes para acolher a guerra entre as aespossveis e neste caso tambm lcitas, mas sim aquele bem mais difcil de torn-la impossvel(BOBBIO, 2009, p. LIII).18A paz estruturada na confiana recproca se ope aos conceitos de equilbrio de poder

    Bobbio, como Arendt, era ferrenho crtico da lgica de dissuaso nuclear e de hegemonia.19Esta supremacia fez-se sentir em 2003 com o unilateralismo da interveno norte-americanano Iraque.

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    clara, todavia, sua viso multipolar e vinculada incondicionalmente

    construo de um poder democrtico, fundado sobre o consenso e sobre o

    controle das mesmas partes das quais deve dirimir os conflitos. Em outras

    palavras, no deve ser desptico. Aprofundou (BOBBIO, 2009 , p. 166-167, 230,

    247-248) a questo ao analisar o princpio da primazia dos tratados, to caro ao

    direito internacional. Oras, estando os Estados internacionais, reciprocamente,

    em estado da natureza hobbesiano, uma coisa firmar um pacto, a outra

    observ-lo. Os pactos, sem a espada, (...) so simples flactus vocis (palavras

    vazias). Tal se d na medida em que no h uma lei superior eficaz, e nem uma

    entidade internacional que detenha o monoplio da fora, o que impede a

    diferenciao de fora lcita e fora ilcita, a qual sempre a fora do outro.

    Ocupou-se em examinar o direito internacional no apenas como um

    conjunto de normas que tem como seu contedo disciplinar o uso da fora 20,

    mas, de forma abrangente, avanou a anlise para a relao Direito e Guerra

    nas perspetivas da Guerra como anttese21 do Direito, como fonte do Direito e

    como meio de realizar o Direito (LAFER, 2009 , p. XXIII).

    Bobbio (2009, p. 27-47) deixa claro que a era atmica apresenta novo

    paradigma ao pensamento. O reconhecimento de um nexo indissolvel entre

    guerra e progresso, gerando uma funo positiva da guerra em relao aoprogresso moral (...) tcnico (...) e social no se sustenta sob a hiptese da

    extino da espcie humana. Da o crescimento das correntes pacifistas, sob a

    tica do pacifismo econmico, pacifismopoltico e pacifismo social: o primeiro,

    tambm dito pacifismo liberal, prope que num contexto de livre comrcio h

    incremento da paz pelo progresso econmico das partes; o segundo, pacifismo

    democrtico, prope que a paz seria consequncia da associao dos Estados

    20 Para o autor, fora refere-se aplicao proporcional e limitada de meios de coero.Violncia, por outro lado, o emprego sem medida dos meios blicos, no se detectandoproporcionalidade entre meios e objetivos. No plano interno, e no Estado de Direito, aexperincia jurdica e critrios de legalidade asseguram o exerccio da fora e a represso

    violncia. No plano externo, o Direito Internacional busca estabelecer os parmetros, mas comoos Estados operam em enlaces de coordenao, no subordinao, por vezes, e at mesmo comfrequncia, a violncia surge no seio dos conflitos armados internacionais, muitas vezes deforma desproporcional, a exemplo das bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki.21Os ngulos seguintes foram tentativa de ir alm da generalizao simplista de que as armassilenciam as leis; as leis tornam vs as armas. Simplificao, na medida em que tal se d,

    consistentemente, no plano interno, onde a associao estatal torna-se cogente aos indivduos,em relao de subordinao, mas j no ocorre no plano externo, onde, com ou sem igualdadede poder/soberania, h relao de coordenao. (BOBBIO, 2009, p. 160)

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    em uma confederao de livres democracias; e o terceiro, entendendo ir alm

    da reforma poltica, deu sustentao aos movimentos socialistas, no incio do

    sculo XIX. Todavia, ou as condies previstas pelos pacifistas do sculo XIX

    no se verificaram; ou se verificaram, mas no deram os resultados esperados.

    Qual a soluo contempornea ento? Visualizou (BOBBIO, 2009, p. 48-

    78) trs principais tendncias, segundo o remdio para a guerra consista em

    uma ao sobre os meios, sobre as instituiesou sobre os homens. A primeira

    soluo se apoia no desarmamento, de simples execuo, mas que contm o

    paradoxo de que a deciso de reduzir os arsenais cabe quela mesma

    instituio [o Estado nacional] que, por tradio, e, h quem acredite, por

    natureza, considera a guerra como uma das manifestaes da sua potncia. A

    ltima, opo moral, pode ser pedaggica, como a abordagem dos gr upos

    religiosos e/ou dos grupos de objeo de conscincia, ou teraputica, proposta

    por Freud e seus seguidores. E, como opo com maior possibilidade de

    realizao e eficcia props o pacifismo jurdico, a reformar as instituies

    em direo a formaes ou constelaes de Estados cada vez mais amplas 22.

    A guisa de perspetiva para o futuro, com o que se encerra a apresentao

    de suas ideias para a Paz, questionou:

    O que a histria nos permite afirmar apenas que a guerra no impossvel, um evento que pertence esfera no da necessidade,mas da possibilidade. Seguramente, com a formao de unidadespolticas cada vez mais amplas, foram eliminadas as guerras entregrupos menores. Como poderia esse mal ser necessrio, se eratambm evitvel e em muitos casos foi superado por umatransformao institucional? Essa histria da humanidade, que por

    vezes nos permitimos considerar uma histria de guerras, no poderiaser considerada, de modo igualmente plausvel, como a histria dagradual eliminao de todas as guerras? (BOBBIO, 2009, p. 49)

    ConclusoHugo Grotius e Norberto Bobbio se distanciam mais de trs sculos no

    tempo, mas tm como elemento comum a uni-los a atualidade e relevncia de

    seus pensamentos, em especial, a busca de uma sociedade internacional onde

    seja possvel a convivncia harmnica entre as Naes.

    22 Paz Federativa, a exemplo do caminho evolutivo que alguns autores apontam para ocontexto europeu.

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    Grotius, como visto, parte da anlise da moral e, de forma avanada para

    a poca em que viveu, busca estabelecer e consolidar o conceito de Sociedade

    Internacional. Analisando de forma consistente a questo da Guerra e do

    Direito, com destaque para a caracterizao de que poder e fora so fenmenos

    distintos, nenhum dos quais conducente criao do Direito, tornou-se

    influenciador de significativa parcela do pensamento liberal que o sucedeu.

    Bobbio, com mtodo peculiar e muito bem estruturado de estudo, fornece

    volumoso contributo abordagem contempornea da Paz, proposta no mais

    como ausncia de Guerra (paz negativa), mas como consequncia de um

    progresso civil, construdo e/ou conquistado de forma consciente, atravs do

    amadurecimento das estruturas da sociedade internacional e do fortalecimento

    dos direitos do homem.

    Finalizando, e sendo bvio que a sociedade internacional ainda no

    atingiu a maturidade suficiente para que a soluo das controvrsias se d sem o

    uso da fora, espera-se que as ideias acima expostas sejam teis aos

    profissionais da rea de estudos de defesa, em especial aos profissionais da

    guerra, para melhor compreenso da interdependncia de fenmenos to

    complexos quanto as Relaes Internacionais, o Direito, a Guerra e, last but not

    least, a Paz.

    Referncias bibliogrficas

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