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7/28/2019 Artigo Hebe Mattos
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HEBE MATTOS
Remanescentes
das comunidadesdos quilombos:
memria do
cativeiro e polticas
de reparao
no Brasil
HEBE MATTOS professora doDepartamento de Histriada Universidade FederalFluminense.
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presente artigo prope uma interpre-
tao, ainda que preliminar, para ahistria da aprovao e dos desdobramentos
legais do Artigo 68 do Ato das Disposies Cons-
titucionais Transitrias (ADCT) da Constituio
Brasileira de 1988, que reconheceu direitos ter-
ritoriais aos remanescentes das comunidades
dos quilombos, garantindo-lhes a titulao
definitiva pelo Estado brasileiro1.
Para entender a redao do artigo e sua
incluso nas disposies transitrias da Cons-
tituio preciso levar em considerao, pri-
meiramente, o fortalecimento dos movimentos
negros no pas, ao longo da dcada de 1980, e a
reviso por eles proposta em relao memria
pblica da escravido e da Abolio. imagem
da princesinha branca, libertando por decretoescravos submissos e bem tratados, que du-
rante dcadas se difundiu nos livros didticos
brasileiros, passou-se a opor a imagem de um
sistema cruel e violento, ao qual o escravo negro
resistia, especialmente pela fuga e formao
de quilombos2.
A pesquisa acadmica em histria social da
escravido foi tambm tocada por essa conjun-
tura. A partir de uma perspectiva que propunha
pensar o escravo como ator social relevante para
a compreenso histrica da sociedade brasileira,
uma reviso historiogrfica se produziu no pas
em relao ao tema. A demografia, a cultura,
as relaes familiares e a sociabilidade escrava
passaram a ser estudadas por inmeros pesqui-sadores. Cada vez mais as aes e opes dos
africanos escravizados no Brasil foram perce-
bidas como essenciais para a compreenso his-
O
1 O texto integral do Art. 68 doAto das Disposies Constitu-cionais Transitrias estabeleceque: Aos remanescentes dascomunidades dos quilombosque estejam ocupando suasterras reconhecida a pro-priedade definitiva, devendoo Estado emitir-lhes os ttulosrespectivos.
2 Cf. Mariza Soares, Nos Ata-lhos da Memria Monumentoa Zumbi, in Paulo Knauss (org.),Cidade Vaidosa. ImagensUrbanas do Rio de Janeiro, Riode Janeiro, 7 Letras, 1999, pp.117-35.
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trica da sociedade que os escravizava.
Desde suas estratgias de organizao de
famlias, de formao de organizaes
religiosas para obteno de alforria, at as
diferentes formas de sua insero no mundo
do trabalho3.
De fato, o avano da pesquisa histrica
colocara em relevo, tambm, a impressio-
nante legitimidade da sociedade escravista
no Brasil at pelo menos a primeira metade
do sculo XIX, mesmo entre ex-escravos,
o que no eliminava os episdios de resis-
tncia, que ocorriam, entretanto, nos limites
do pensvel e do possvel no contexto da
sociedade brasileira oitocentista. Muitas
vezes os episdios de fuga ou rebeldia
embutiam uma pauta de reivindicao e pos-sibilidades de volta ao trabalho; as revoltas
abertas de africanos recm-chegados foram
mais comuns que as de escravos crioulos
(nascidos no Brasil); as concentraes de
escravos fugidos, chamadas mocambos ou
quilombos, se eram efetivamente endmi-
cas, encontravam-se em estreita relao
com o mundo das senzalas4.
A conjuno desses dois movimentos
resultou em significativo deslocamento nasimagens mais correntes em relao escra-
vido e Abolio no pas, fazendo emergir
a figura do escravo como protagonista tam-
bm do processo abolicionista, atravs de
processos judiciais de ao de liberdade, de
atos de rebeldia no dia-a-dia das senzalas e
das fugas coletivas generalizadas na dcada
de 1880, acontecimentos que precederam e
balizaram o ato legal da Abolio5. Nesse
contexto, algumas comunidades negras ru-
rais isoladas alcanaram certa notoriedade
como possveis descendentes de antigos
quilombolas. A aprovao do artigo sobre
os direitos territoriais das comunidades dos
quilombos culminou, assim, em todo um
processo de reviso histrica e mobilizao
poltica, que conjugava a afirmao de uma
identidade negra no Brasil difuso de
uma memria da luta dos escravos contra
a escravido.
No entanto, a maioria das muitas co-munidades negras rurais espalhadas pelo
pas, em conflito pelo reconhecimento da
posse tradicional de terras coletivas, ento
majoritariamente identificadas como terras
de preto6, nem sempre se associava idia
histrica clssica do quilombo. Muitos dos
grupos referenciados memria da escra-
vido e posse coletiva da terra, em casos
estudados por antroplogos ou historiadores
nos anos 70 e 80, tinham seu mito de ori-
gem em doaes senhoriais realizadas no
contexto da Abolio7. Apesar disso, alm
da referncia tnica e da posse coletiva da
terra, tambm os conflitos fundirios viven-
ciados no tempo presente aproximavam o
conjunto das terras de preto, habilitan-
do-as a reivindicar enquadrar-se no novo
dispositivo legal.
Juristas, historiadores, antroplogos
e, em especial, a Associao Brasileira deAntropologia (ABA) tiveram importante
papel nessa discusso8. Tendo em vista o
crescimento do movimento quilombola,
predominaram as interpretaes que consi-
deravam a ressemantizao da palavra qui-
lombo para efeitos da aplicao da proviso
constitucional, valorizando o contexto de
resistncia cultural que permitiu a viabili-
zao histrica de tais comunidades9.
Com abrangncia nacional, o processode emergncia das novas comunidades
quilombolas se apresenta hoje como uma
realidade social inescapvel. Segundo o
decreto 4.887, de 20/11/2003, que regula-
menta o artigo constitucional, em termos
legais, a caracterizao dos remanescen-
tes das comunidades dos quilombos ser
atestada mediante autodefinio da prpria
comunidade, entendo-as como grupos
tnicos-raciais, segundo critrios de auto-
atribuio, com trajetria histrica prpria,
dotados de relaes territoriais especficas,
com presuno de ancestralidade negra
relacionada com a resistncia opresso
histrica sofrida.
Atualmente, 178 comunidades esto
formalmente referidas como remanescentes
das comunidades dos quilombos no Sistema
de Informaes das Comunidades Afro-
brasileiras (Sicab) na pgina da Fundao
Cultural Palmares, 70 delas j tituladas10.Levantamento do Centro de Geografia e
Cartografia Aplicada (Ciga) da Univer-
sidade de Braslia (UnB), sob a direo
3 Cf. A Historiografia Recente daEscravido Brasileira, in StuartSchwartz, Escravos, Roceiros eRebeldes, Bauru, Edusc, 2001,pp. 21-82.
4 Cf. Stuart Schwartz, SegredosInternos. Escravos e Engenhosna Sociedade Colonial, So
Paulo, Companhia das Letras,1988, especialmente caps. 16e 17; Flvio S. Gomes, Histriasde Quilombolas: Mocambos eComunidades de Senzalas noRio de Janeiro Sculo XIX,Riode Janeiro, Arquivo Nacional,1995, e A Hidra e os Pnta-nos.Mocambos, Quilombos eComunidades de Fugitivos noBrasil (Sculos XVII-XIX), SoPaulo, Unesp, 2005; e J. J. Reis& Flvio S.Gomes, Liberdade porum Fio. Histria dos Quilombosno Brasil, So Paulo, Companhiadas Letras, 1996.
5 Entre as pesquisas desenvolvi-das ainda nos anos 1980, cf.:Clia Azevedo, Onda NegraMedo Branco: o Negro noImaginrio das Elites. SculoXIX, Rio de Janeiro, Paz e Terra,1987; S. Chalhoub, Vises daLiberdade: uma Histria das lti-mas Dcadas da Escravido naCorte, So Paulo, Companhiadas Letras, 1990.
6 Sobre o tema, cf.: Alfredo Wag-ner Berno de Almeida, Terrasde Preto. Terras de Santo. Terrasde ndio, in J. Habette & E. M.Castro (orgs.), Cadernos Naea,
UFPA, 1989; e Alfredo WagnerBerno de Almeida (org.),Terras dePreto no Maranho: Quebrandoo Mito do Isolamento,So Lus,Centro de Cultura Negra doMaranho (CCN-MA) e Socie-dade Maranhense de DireitosHumanos (SMDH), 2002.
7 Cf. Luiz Eduardo Soares,Campesinato: Ideologia e Polti-ca, Rio de Janeiro, Zahar, 1981;Robert W. Slenes, Histriasdo Cafund, in Carlos Vogt &Peter Fry, Cafund. A frica noBrasil, So Paulo/Campinas,Companhia das Letras/Editora
da Unicamp, 1996.8 Sobre essa questo, cf.: Richard
Price, Reinventando a Histriados Quilombos. Rasuras eConfabulaes, in Afro-sia,23, 1999, pp. 239-65. Vertambm:Cultural Survival Quar-tely, vol. 25, n. 4, Cambridge,2002, dossi Marrons in theAmericas, especialmente o ar-tigo de Jean Franois Verlan.
9 Cf. Eliane Cantarino ODwyer(org.),Terra de Quilombo(Apre-sentao, 1-2), Publicao daAssociao Brasileira de Antro-pologia (ABA), Rio de Janeiro,1995. Sobre o conceito deressemantizao, ver tambm:Alfredo Wagner B. de Almeida,Quilombos: Sematologia Facea Novas Identidades, in PVN(org.), Frechal: Terra de Preto
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do gegrafo Rafael Sanzio, registrou 848
ocorrncias em 2000 e 2.228 territrios
quilombolas em 200511.
OS NOVOS QUILOMBOSSe no so necessariamente descenden-
tes de antigos acampamentos de escravos
fugidos, escondidos nas matas desde o
tempo do Brasil monrquico, de onde afinal
surgiram os novos quilombos? Como os
mais crticos tendem a ressaltar, eles tm
claramente uma origem recente nas deman-
das por garantia de direitos posse coletiva
de terras, apresentadas por colonos e pos-seiros negros tradicionais, a partir do apoio
de novos aliados, entre os quais a Pastoral
da Terra da Igreja Catlica, os movimentos
negros, a Associao Brasileira de Antro-
pologia e alguns outros atores da sociedade
civil brasileira ps-redemocratizao, que
ocuparam papel especial12.
Por outro lado, h claramente tambm
uma origem remota, fortemente ancorada
na formao de um campesinato constitudopor escravos libertos e seus descendentes no
contexto da desagregao da escravido e
de sua abolio no Brasil, que permite tais
grupos reivindicarem-se como comunida-
des tradicionais e como quilombolas.
No Maranho e no Par encontra-se
proporo expressiva das comunidades dos
quilombos. So 34 no Par e 35 no Maranho
registrados no Sicab da Fundao Palmares e
642 e 294, respectivamente, segundo o mapa
dos territrios quilombolas da Universidade
de Braslia. A proliferao de acampamentos
de escravos fugidos, chamados mocambos,
na fronteira entre Maranho e Par, bem
como nas cachoeiras do alto do Rio Trom-
betas, tornou tais reas alvos preferenciais
da preocupao repressiva das autoridades
provinciais do Par, na segunda metade do
sculo XIX, no contexto de desagregao da
ordem escravista na regio. Segundo Flvio
Gomes, quilombolas, grupos indgenas edepois colonos e camponeses fizeram ali
suas prprias fronteiras, as quais foram
marcadas por inmeras experincias de lutas,
de alianas e de conflitos13..Tais territrios,
que atraam tambm camponeses livres, em
geral libertos e seus descendentes, continua-
ram a servir como opo de sobrevivncia
para os ltimos escravos da regio aps a
Abolio.
Nas comunidades de quilombo do Alto
Trombetas, a memria dos antigos mocam-
bos mostrou-se, desde o incio, constitutiva
da identidade dos grupos, e os territrios
hoje reivindicados correspondem, de modo
geral, s antigas reas mocambeiras14.
As reas geogrficas reivindicadas pelas
comunidades dos quilombos no Maranho
tm maior amplitude e se estendem por pra-
ticamente todo o estado. Antigas fazendas
escravistas e suas comunidades de senzalaesto historicamente na base da formao
de muitas das chamadas terras de preto
maranhenses, mas o papel da fronteira
aberta na expanso dos mocambos tende
hoje a predominar na memria pblica
das comunidades dos quilombos, sobre
as narrativas de vis paternalista, que en-
fatizavam heranas, compras ou doaes
de terra por parte dos antigos senhores,
antes predominantes15
. De fato, a pesquisahistrica tende a comprovar que ambos os
fenmenos se entrecruzaram no processo
de desagregao da sociedade escravista
maranhense e continuaram a se misturar
como opes para o campesinato negro
depois da Abolio16.
Tambm no serto do Nordeste, en-
contra-se uma expressiva concentrao
das comunidades dos quilombos referidas
proviso constitucional, e pelo menos a
primeira delas assim identificada, o Qui-
lombo do Rio das Rs, na Bahia, j foi alvo
de pesquisas histricas e antropolgicas
aprofundadas17. O mapa dos territrios das
comunidades dos quilombos produzido pela
Universidade de Braslia refere-se a 396
comunidades no estado, a maioria delas
no serto. Vinte e seis delas encontram-se
referidas no Sistema de Informaes das
Comunidades Afro-brasileiras (Sicab) da
Fundao Palmares. De fato, a pesquisasobre o Quilombo do Rio das Rs aponta
para um campesinato negro, formado por
libertos e seus descendentes desde o final
Quilombo Reconhecido comoReserva Extrativista, So Lus,SMDDH, CCN, 1996; FlvioS. Gomes, Ainda sobre osQuilombos: Repensando aConstruo de Smbolos deIdentidade tnica no Brasil, inM. H. T. Almeida, P. Fry, & E. Reis(orgs.),Poltica e Cultura: Vises
do Passado e PerspectivasContemporneas, So Paulo,Anpocs/Hucitec, 1996; e, ain-da, Eliane Cantarino ODwyer(org.), Quilombos. Identidadetnica e Territorialidade, Rio de
Janeiro, Editora FGV, 2002.
10 Cf. Sistema de Informaes dasComunidades Afro-brasileiras(Sicab) na pgina da Funda-o Cultural Palmares doMinistrio da Cultura (www.palmares.gov.br, acessado em3/9/2005).
11 Cf. Rafael Sanzio, O EspaoGeogrfico dos Remanescentesde Antigos Quilombos no Bra-sil, in Terra Livre, 17, 2001,pp. 139-54, e Territrio dasComunidades Quilombolas, 2aConfigurao Espacial, Braslia,Ciga-UnB, 2005. Ver tambmSegundo Cadastro Municipaldos Territrios Quilombolas doBrasil (http://www.unb.br/acs/unbagencia/ag0505-18.htm).
12 Cf. Hebe Mattos, Marcas daEscravido. Biografia, Racia-lizao e Memria do Cativeirona Histria do Brasil, teseapresentada como requisitopara concurso de professortitular em Histria do Brasil,Niteri, Universidade FederalFluminense, 2004, parte 1.
13 Cf. Flvio S. Gomes,ExperinciasAtlnticas. Ensaios e Pesquisassobre a Escravido e o Ps-emancipao no Brasil, PassoFundo, FPF, 2003, p. 89.
14 Cf. Eurpedes Funes, Comu-nidades Remanescentes dosMocambos do Alto Trombetas,Comisso Pro-ndio de SoPaulo, dezembro de 2000(www.quilombo.org.br/quilom-bo/doc/ComunidadesRema-
nescentes.doc); e EurpedesFunes,Nasci nas Matas, NuncaTive Senhor: Histria e Memriados Mocambos do Baixo Ama-zonas, tese de doutorado, SoPaulo, FFLCH/USP, 1995.
15 Cf. Luiz Eduardo Soares,Campesinato: Ideologia ePoltica, op. cit.; e OsQuilombos e as Novas Et-nias, in Eliane C. ODwyer,Quilombos Identidade tnicae Territorialidade, op. cit.
16 Cf., especialmente: Flvio S.Gomes, Experincias Atlnti-
cas, op. cit., caps. 3 e 4.17 Por ngulos diferentes, o pro-
cesso de mobilizao polticae de construo da identidadequilombola em Rio das Rsaparece estudado em duas
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descendentes de escravos das antigas reas
cafeeiras do Centro-Sul do pas (Rio de
Janeiro, Minas Gerais, So Paulo e Esprito
Santo), que concentravam a maioria dos
escravos s vsperas da abolio definitiva
do cativeiro. As entrevistas de histria oral,
que deram origem a um livro e um DVD,
no guardavam qualquer preocupao ini-
cial com o tema dos novos quilombos, mas
diversos grupos visitados pelos pesquisa-
dores do Labhoi passaram a identificar-se
como comunidades quilombolas ao longo
do desenvolvimento do projeto25. Assim, os
resultados alcanados ilustram de maneira
expressiva as possibilidades do trabalho
histrico com a memria coletiva presente
nas comunidades dos quilombos que emer-giram a partir da aprovao da proviso
constitucional.
So os aspectos simblicos da memria
familiar da escravido que mais se destacam
nas narrativas, elaboradas e reelaboradas em
funo de relaes tecidas no tempo pre-
sente, como em todo trabalho de produo
de memria coletiva. No entanto, para o
presente artigo, escolhi colocar em relevo
outra dimenso do material produzido peloprojeto: os aspectos histricos referentes
escravido oitocentista, isto , referidos a
experincias empiricamente comprovveis,
existentes nos relatos reunidos.
Entre eles, destaco especialmente as
referncias estrutura do trfico atlntico
clandestino (1831-56) e tambm ao trfico
interno que lhe sucedeu.
Os desembarques clandestinos esto
referidos de modo surpreendente nos de-
poimentos, especialmente de moradores
de comunidades negras litorneas, situadas
prximas de praias onde se tem registro de
desembarque ilegal de escravos (como Ma-
rambaia, Bracu e Rasa), hoje identificadas
como comunidades de quilombo.
A identificao de origem na frica Cen-
tral dos antepassados, em especial na utiliza-
o das designaes de procedncia usuais
no sculo XIX (Bento Monjola, Tio Congo,
etc.), outra referncia repetida, fortementeancorada em evidncias histricas.
As referncias separao de famlias
no trfico interno (minha av dizia, nunca
mais eu vi meus pais, foi ser escrava em outra
fazenda26) so tambm recorrentes, foram
comprovadas empiricamente em mais de
um dos casos registrados, e correspondem
ao que a pesquisa histrica registra para o
perodo27.
Apesar das referncias histricas ao
trauma do trfico negreiro na origem fami-
liar, os personagens cativos com identidade
prpria nas narrativas so aqueles inseridos
em uma comunidade escrava mais antiga e
diferenciada, distinguindo-se dos demais.
A memria genealgica referida a antigas
comunidades de senzala est na base da
constituio da nova identidade quilombola
na maioria das comunidades negras da re-
gio, conforme j foi considerado.Nesse sentido, so os padres comuns de
referncia escravido, incrivelmente simi-
lares nos diversos conjuntos de entrevistas
analisados, que merecem ser especialmente
ressaltados. De fato, uma certa periodizao
do processo de abolio do cativeiro, entre-
cruzando o tempo privado e geracional da
memria familiar com o tempo pblico do
processo abolicionista, apresentou-se como
uma primeira linha de fora a estruturar ascoincidncias narrativas encontradas.
Via de regra, os antepassados dos de-
poentes apareceram classificados em trs
diferentes geraes: aqueles que chegaram
ainda sob a vigncia do trfico transatlntico
os africanos; seus filhos nascidos no Brasil
ainda escravos ou ventre-livres; e seus
netos nascidos j no tempo da liberdade.
Destaca-se, nesse caso, a relevncia na
memria familiar do impacto de medidas
legais de profundo alcance na redefinio
das relaes cotidianas entre senhores e
escravos e entre os cativos entre si no sculo
XIX: a extino do trfico africano (1850)
e a Lei do Ventre Livre (1871); medidas
que se apresentariam pouco presentes nas
celebraes pblicas relativas ao calendrio
abolicionista estruturadas aps a Lei urea
e o advento do perodo republicano.
Por outro lado, apesar de a maioria das
entrevistas consideradas no projeto ter sidoproduzida entre 1987 e 1994, a faixa et-
ria dos narradores escolhidos fez emergir,
inicialmente, uma memria que conjugava
Histria, Niteri, UFF, 1990.Sobre a noo de linhageme o papel do nome nas comu-nidades de quilombo contem-porneas, cf., entre outros:Robert W. Slenes, Histriasdo Cafund, op. cit.; DayseMacedo Barcellos et alii, Comu-nidade Negra de Morro Alto,op. cit.; Hebe Mattos, Marcasda Escravido, op. cit.
24 Cf. Claudia Andrade dos San-tos, Projetos Sociais Abolicionis-tas. Rupturas ou Continusmo?,in Daniel Aaro Reis Filho (org.),Intelectuais, Histria e Poltica
(Sculos XIX e XX), Rio de Janeiro,7 Letras, 2000, pp. 54-74.
25 O projeto resultou no livroMemrias do Cativeiro. Famlia,Trabalho e Cidadania no Ps-Abolio, de autoria de AnaLugo Rios e Hebe Mattos (op.cit.) e em um DVD de mesmottulo, com roteiro baseado nolivro, com direo e montagemde Guilherme Fernandez e IsabelCastro.
26 Cf. depoimento de D. Jlia,Labhoi-UFF, 1994.
27 Cf., entre outros: Hebe Mattos,Laos de Famlia e Direitos noFinal da Escravido, in LuizFelipe Alencastro (org.), Histriada Vida Privada no Brasil, vol.II. So Paulo, Companhia dasLetras, 1998, pp. 337-84.
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algumas leituras do processo abolicionista,
construdas ainda durante o sculo XIX,
com um determinado processo de enqua-
dramento dessa memria, que facilmente se
identifica com os esforos pedaggicos e
normatizadores da chamada Era Vargas, em
especial do Estado Novo (1937-45).
Em dois pontos (poltica e trabalho), o
marco de descontinuidade nas falas analisa-
das se apresentava, de forma generalizada,
referido experincia de passagem do rural
ao urbano nos anos 30 a 50 do sculo XX
e/ou a uma experincia de quebra ou de
fragilizao do poder poltico dos fazen-
deiros no nvel local nesse mesmo perodo.
Ambas as experincias, em apenas alguns
casos, porm de forma comum a todos osconjuntos analisados, aparecem associadas
diretamente s figuras da princesa Isabel
e de Getlio Vargas. ngela de Castro
Gomes colocou em relevo, em artigo que
escrevemos a quatro mos, a coincidncia
narrativa entre essa formulao e alguns
aspectos da poltica cultural divulgada pelo
Estado Novo em relao s leituras histri-
cas dos significados da Abolio28.
Nesse mesmo artigo, procurei argumentarque verses como essas precisam ser ana-
lisadas para alm de seu carter de simples
reproduo da poltica cultural divulgada
pelo Estado. Elas ganham inteligibilidade
na medida em que se referem a estruturas
de periodizao efetivamente generaliza-
das e referenciadas vivncia familiar dos
narradores. Os contratos de trabalho e a
vivncia poltica do campesinato negro nas
dcadas que se seguiram imediatamente
Abolio da escravido so fundamentais
para compreender essa apropriao espec-
fica de periodizao da memria coletiva,
na qual Isabel e Getlio aparecem muitas
vezes associados. Permitiram ressignificar
a experincia pessoal e a tradio familiar
referente memria do cativeiro porque,
com elas, foram capazes de dialogar.
Na ltima dcada, o incio dos processos
de identificao e demarcao das chamadas
terras de preto como remanescentes dosquilombos e as novas veiculaes pblicas,
na escola e na mdia, dos significados da
escravido impactaram significativamente
a memria coletiva dos grupos estudados.
Nesse novo contexto, narrativas de fugas,
antes silenciadas, emergiram nos depoimen-
tos. Na comunidade de So Jos da Serra,
em uma srie de depoimentos de um dos
mais velhos moradores, aps os contatos da
Fundao Palmares e o reconhecimento do
grupo como remanescente das comunidades
dos quilombos, um av que veio fugido de
uma fazenda para a outra em busca da prote-
o do fazendeiro, antes pouco mencionado,
ressurgiu como heri, e o fazendeiro que o
acoitou, como organizador de quilombos.
A Fazenda do Ferraz era tambm o Qui-
lombo do Ferraz29. Mas foram os filhos e
netos de nossos depoentes, os mais velhos
deles nascidos em meados do sculo XX,que construram a nova identidade quilom-
bola. Recuperaram as narrativas de seus
pais e avs, mas desenvolveram para elas
novas interpretaes. Nesse novo contexto,
prticas culturais com origem no tempo
do cativeiro, como, por exemplo, o jongo
e o caxambu canto e dana em roda ao
som de tambores , foram transformadas
em capital simblico para afirmao da
identidade quilombola30
.
POLTICAS DE REPARAO E
CIDADANIA
Negro no cativeiro/ Passou tanto tra-
balho/ Ganhou sua liberdade/ No dia 13 de
maio. Essa a letra de um jongo cantado
ainda hoje em alguns dos novos quilombos
do estado do Rio de Janeiro. Neles no
difcil encontrar, entre os mais velhos,
aqueles que se dizem netos de um Treze
de Maio e que so capazes de nos contar
histrias do tempo do cativeiro, como os
avs lhes contavam. Tal encontro ilustra de
forma expressiva quo pouco significa, em
uma perspectiva histrica, os pouco mais de
cem anos que separam o Brasil do sculo
XXI de uma poca na qual os brasileirosse dividiam entre cidados livres (das mais
diferentes origens e sobre os quais raramente
se mencionava a cor) e escravos (todos eles
28 Cf. Hebe Mattos & ngela deCastro Gomes,Sobre Apropria-es e Circularidades:Memriado Cativeiro e Poltica Cultural
na Era Vargas. Histria Oral,So Paulo, 1998, vol. 1, no1S, pp. 121-44.
29 Cf. entrevistas de ManoelSeabra, da Comunidade deSo Jos da Serra, Catlogo deHistria Oral, Acervo Memriasdo Cativeiro (Labhoi-UFF, 1998,2003, 2004 e 2005) e DVDMemrias do Cativeiro(Labhoi-UFF, 2005).
30 Cf. conferncia e entrevista deAntnio Nascimento Fernandes,Comunidade de So Jos daSerra, Catlogo de HistriaOral, Projeto Memrias doCativeiro, Labhoi-UFF, 2003;Ana Lugo Rios & Hebe Mat-tos, Memrias do Cativeiro,op. cit., parte II, cap. 4; DVDMemrias do Cativeiro, Labhoi-UFF, 2005.
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descendentes de africanos, muitas vezes
com a cor ou a origem colada no prprio
nome Jos Preto, Antnio Pardo, Maria
Crioula e assim por diante). Apesar disso,
apenas uma minoria dos brasileiros afro-
descendentes ainda se encontrava cativa
naquele 13 de maio de 1888, no mais que
5% da populao negra do pas.
Apesar da continuidade da escravido,
baseada no direito de propriedade, um
pensamento universalista, anti-racista e
antitrfico desenvolveu-se no Brasil desde a
poca da Independncia. No Brasil no h
mais que escravos ou cidados, publicavam
os jornais radicais do perodo, defendendo a
igualdade entre todas as cores de cidados
brasileiros31. Toda uma gerao intelectualde homens de cor foi formada a partir
desse liberalismo anti-racista e antitrfico,
que s se tornaria abertamente abolicionista
no final do sculo XIX. Ao aceitarem uma
justificativa no racializada para a escravi-
do metiam-se, entretanto, num beco sem
sada, pois a linguagem racial permanecia,
na prtica, como elemento de suspeio e
hierarquizao. Todo afrodescendente livre,
mesmo se proprietrio de escravos, encon-trava-se dramaticamente dependente de um
reconhecimento pblico da sua condio
de livre, para no ser confundido com um
escravo ou ex-escravo. A efetivao de uma
tica do silncio em relao s cores dos
cidados, pelo menos em situaes formais
de igualdade, foi a resultante prtica desses
embates, como a homenagem que o vcio
presta virtude.
O silncio sobre a cor como smbolo de
cidadania foi uma experincia construda
nas lutas anti-racistas do sculo XIX, que
combatiam as hierarquias de cor entre a
populao livre at ento vigentes na socie-
dade colonial. A legitimao no racial da
continuidade da escravido ento afirmada
no Brasil teve conseqncias. Embaralhou
a linha de cor na sociedade brasileira,
porm sem impedir a adoo pblica de
projetos racistas de branqueamento, numa
poca em que tais discursos tinham estatutode conhecimento cientfico no pensamento
ocidental32. Ao longo do sculo XX, nem a
construo da noo de democracia racial,
nem a crtica a ela desenvolvida pelos mo-
vimentos negros conseguiram ainda reverter
os sentidos hierarquizados das designaes
de cor desde longo tempo presentes na socie-
dade brasileira. No modificaram tambm
o recurso ao silncio como a forma mais
usual de conviver com elas em situaes
formais de igualdade.
Como no sculo XIX, dizer-se negro
ainda basicamente assumir a memria
da escravizao inscrita na pele de milhes
de brasileiros. Essa a base que empresta
consistncia histrica discusso sobre
polticas de ao afirmativa no Brasil com
base na auto-identificao como negro.
No Brasil, nomear a cor ainda hierarquiza,
pois implica quebrar o pacto de silnciosobre o passado escravo, celebrado entre
os cidados brasileiros livres em plena vi-
gncia da escravido. Passados mais de cem
anos da Abolio, quebrar com a tica do
silncio apresenta-se paradoxalmente como
caminho possvel para reverter tal processo
de hierarquizao cristalizado no tempo,
e instaurar um universalismo almejado,
mas no verdadeiramente atingido, desde
o sculo retrasado.Foi rompendo com o princpio do si-
lncio que emergiram as terras de preto.
Colonos e posseiros em luta pela terra
ameaada pelos processos de moderni-
zao do sculo XX, ao identificarem-se
primeiro como pretos e depois como
quilombolas, tornaram-se sujeitos pol-
ticos coletivos. As metamorfoses sociais
possveis a tais atores estiveram, entretanto,
firmemente ancoradas na associao entre
identidade camponesa e memria do cati-
veiro, seja como reminiscncia familiar ou
estigma. Como descendentes de escravos,
reivindicam polticas de reparao do es-
tado brasileiro
A identificao coletiva sempre pro-
cesso e construo e s pode ser entendida
levando em conta contextos histricos e
polticos. Tanto o silncio sobre a cor como
tica social, quanto sua reivindicao, hoje,
como bandeira de luta, so frutos diferentesda presena difusa do racismo na sociedade
brasileira em suas complexas relaes com
a memria do cativeiro.
31 Cf., entre outros, na BibliotecaNacional, o jornal O Mulato ouo Homem de Cor, editado em1833. Sobre o tema, cf. HebeMattos, Escravido e Cidadaniano Brasil Monrquico, Rio de
Janei ro, Jorge Zahar, 2000,
pp. 20-6.32 Cf. Lilia M. Schwarcz, O Espe-
tculo das Raas. Cientistas,Instituies e Questo Racial noBrasil, 1870-1930, So Paulo,Companhia das Letras, 1993.