Artigo Hebe Mattos

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  • 7/28/2019 Artigo Hebe Mattos

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    HEBE MATTOS

    Remanescentes

    das comunidadesdos quilombos:

    memria do

    cativeiro e polticas

    de reparao

    no Brasil

    HEBE MATTOS professora doDepartamento de Histriada Universidade FederalFluminense.

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    presente artigo prope uma interpre-

    tao, ainda que preliminar, para ahistria da aprovao e dos desdobramentos

    legais do Artigo 68 do Ato das Disposies Cons-

    titucionais Transitrias (ADCT) da Constituio

    Brasileira de 1988, que reconheceu direitos ter-

    ritoriais aos remanescentes das comunidades

    dos quilombos, garantindo-lhes a titulao

    definitiva pelo Estado brasileiro1.

    Para entender a redao do artigo e sua

    incluso nas disposies transitrias da Cons-

    tituio preciso levar em considerao, pri-

    meiramente, o fortalecimento dos movimentos

    negros no pas, ao longo da dcada de 1980, e a

    reviso por eles proposta em relao memria

    pblica da escravido e da Abolio. imagem

    da princesinha branca, libertando por decretoescravos submissos e bem tratados, que du-

    rante dcadas se difundiu nos livros didticos

    brasileiros, passou-se a opor a imagem de um

    sistema cruel e violento, ao qual o escravo negro

    resistia, especialmente pela fuga e formao

    de quilombos2.

    A pesquisa acadmica em histria social da

    escravido foi tambm tocada por essa conjun-

    tura. A partir de uma perspectiva que propunha

    pensar o escravo como ator social relevante para

    a compreenso histrica da sociedade brasileira,

    uma reviso historiogrfica se produziu no pas

    em relao ao tema. A demografia, a cultura,

    as relaes familiares e a sociabilidade escrava

    passaram a ser estudadas por inmeros pesqui-sadores. Cada vez mais as aes e opes dos

    africanos escravizados no Brasil foram perce-

    bidas como essenciais para a compreenso his-

    O

    1 O texto integral do Art. 68 doAto das Disposies Constitu-cionais Transitrias estabeleceque: Aos remanescentes dascomunidades dos quilombosque estejam ocupando suasterras reconhecida a pro-priedade definitiva, devendoo Estado emitir-lhes os ttulosrespectivos.

    2 Cf. Mariza Soares, Nos Ata-lhos da Memria Monumentoa Zumbi, in Paulo Knauss (org.),Cidade Vaidosa. ImagensUrbanas do Rio de Janeiro, Riode Janeiro, 7 Letras, 1999, pp.117-35.

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    trica da sociedade que os escravizava.

    Desde suas estratgias de organizao de

    famlias, de formao de organizaes

    religiosas para obteno de alforria, at as

    diferentes formas de sua insero no mundo

    do trabalho3.

    De fato, o avano da pesquisa histrica

    colocara em relevo, tambm, a impressio-

    nante legitimidade da sociedade escravista

    no Brasil at pelo menos a primeira metade

    do sculo XIX, mesmo entre ex-escravos,

    o que no eliminava os episdios de resis-

    tncia, que ocorriam, entretanto, nos limites

    do pensvel e do possvel no contexto da

    sociedade brasileira oitocentista. Muitas

    vezes os episdios de fuga ou rebeldia

    embutiam uma pauta de reivindicao e pos-sibilidades de volta ao trabalho; as revoltas

    abertas de africanos recm-chegados foram

    mais comuns que as de escravos crioulos

    (nascidos no Brasil); as concentraes de

    escravos fugidos, chamadas mocambos ou

    quilombos, se eram efetivamente endmi-

    cas, encontravam-se em estreita relao

    com o mundo das senzalas4.

    A conjuno desses dois movimentos

    resultou em significativo deslocamento nasimagens mais correntes em relao escra-

    vido e Abolio no pas, fazendo emergir

    a figura do escravo como protagonista tam-

    bm do processo abolicionista, atravs de

    processos judiciais de ao de liberdade, de

    atos de rebeldia no dia-a-dia das senzalas e

    das fugas coletivas generalizadas na dcada

    de 1880, acontecimentos que precederam e

    balizaram o ato legal da Abolio5. Nesse

    contexto, algumas comunidades negras ru-

    rais isoladas alcanaram certa notoriedade

    como possveis descendentes de antigos

    quilombolas. A aprovao do artigo sobre

    os direitos territoriais das comunidades dos

    quilombos culminou, assim, em todo um

    processo de reviso histrica e mobilizao

    poltica, que conjugava a afirmao de uma

    identidade negra no Brasil difuso de

    uma memria da luta dos escravos contra

    a escravido.

    No entanto, a maioria das muitas co-munidades negras rurais espalhadas pelo

    pas, em conflito pelo reconhecimento da

    posse tradicional de terras coletivas, ento

    majoritariamente identificadas como terras

    de preto6, nem sempre se associava idia

    histrica clssica do quilombo. Muitos dos

    grupos referenciados memria da escra-

    vido e posse coletiva da terra, em casos

    estudados por antroplogos ou historiadores

    nos anos 70 e 80, tinham seu mito de ori-

    gem em doaes senhoriais realizadas no

    contexto da Abolio7. Apesar disso, alm

    da referncia tnica e da posse coletiva da

    terra, tambm os conflitos fundirios viven-

    ciados no tempo presente aproximavam o

    conjunto das terras de preto, habilitan-

    do-as a reivindicar enquadrar-se no novo

    dispositivo legal.

    Juristas, historiadores, antroplogos

    e, em especial, a Associao Brasileira deAntropologia (ABA) tiveram importante

    papel nessa discusso8. Tendo em vista o

    crescimento do movimento quilombola,

    predominaram as interpretaes que consi-

    deravam a ressemantizao da palavra qui-

    lombo para efeitos da aplicao da proviso

    constitucional, valorizando o contexto de

    resistncia cultural que permitiu a viabili-

    zao histrica de tais comunidades9.

    Com abrangncia nacional, o processode emergncia das novas comunidades

    quilombolas se apresenta hoje como uma

    realidade social inescapvel. Segundo o

    decreto 4.887, de 20/11/2003, que regula-

    menta o artigo constitucional, em termos

    legais, a caracterizao dos remanescen-

    tes das comunidades dos quilombos ser

    atestada mediante autodefinio da prpria

    comunidade, entendo-as como grupos

    tnicos-raciais, segundo critrios de auto-

    atribuio, com trajetria histrica prpria,

    dotados de relaes territoriais especficas,

    com presuno de ancestralidade negra

    relacionada com a resistncia opresso

    histrica sofrida.

    Atualmente, 178 comunidades esto

    formalmente referidas como remanescentes

    das comunidades dos quilombos no Sistema

    de Informaes das Comunidades Afro-

    brasileiras (Sicab) na pgina da Fundao

    Cultural Palmares, 70 delas j tituladas10.Levantamento do Centro de Geografia e

    Cartografia Aplicada (Ciga) da Univer-

    sidade de Braslia (UnB), sob a direo

    3 Cf. A Historiografia Recente daEscravido Brasileira, in StuartSchwartz, Escravos, Roceiros eRebeldes, Bauru, Edusc, 2001,pp. 21-82.

    4 Cf. Stuart Schwartz, SegredosInternos. Escravos e Engenhosna Sociedade Colonial, So

    Paulo, Companhia das Letras,1988, especialmente caps. 16e 17; Flvio S. Gomes, Histriasde Quilombolas: Mocambos eComunidades de Senzalas noRio de Janeiro Sculo XIX,Riode Janeiro, Arquivo Nacional,1995, e A Hidra e os Pnta-nos.Mocambos, Quilombos eComunidades de Fugitivos noBrasil (Sculos XVII-XIX), SoPaulo, Unesp, 2005; e J. J. Reis& Flvio S.Gomes, Liberdade porum Fio. Histria dos Quilombosno Brasil, So Paulo, Companhiadas Letras, 1996.

    5 Entre as pesquisas desenvolvi-das ainda nos anos 1980, cf.:Clia Azevedo, Onda NegraMedo Branco: o Negro noImaginrio das Elites. SculoXIX, Rio de Janeiro, Paz e Terra,1987; S. Chalhoub, Vises daLiberdade: uma Histria das lti-mas Dcadas da Escravido naCorte, So Paulo, Companhiadas Letras, 1990.

    6 Sobre o tema, cf.: Alfredo Wag-ner Berno de Almeida, Terrasde Preto. Terras de Santo. Terrasde ndio, in J. Habette & E. M.Castro (orgs.), Cadernos Naea,

    UFPA, 1989; e Alfredo WagnerBerno de Almeida (org.),Terras dePreto no Maranho: Quebrandoo Mito do Isolamento,So Lus,Centro de Cultura Negra doMaranho (CCN-MA) e Socie-dade Maranhense de DireitosHumanos (SMDH), 2002.

    7 Cf. Luiz Eduardo Soares,Campesinato: Ideologia e Polti-ca, Rio de Janeiro, Zahar, 1981;Robert W. Slenes, Histriasdo Cafund, in Carlos Vogt &Peter Fry, Cafund. A frica noBrasil, So Paulo/Campinas,Companhia das Letras/Editora

    da Unicamp, 1996.8 Sobre essa questo, cf.: Richard

    Price, Reinventando a Histriados Quilombos. Rasuras eConfabulaes, in Afro-sia,23, 1999, pp. 239-65. Vertambm:Cultural Survival Quar-tely, vol. 25, n. 4, Cambridge,2002, dossi Marrons in theAmericas, especialmente o ar-tigo de Jean Franois Verlan.

    9 Cf. Eliane Cantarino ODwyer(org.),Terra de Quilombo(Apre-sentao, 1-2), Publicao daAssociao Brasileira de Antro-pologia (ABA), Rio de Janeiro,1995. Sobre o conceito deressemantizao, ver tambm:Alfredo Wagner B. de Almeida,Quilombos: Sematologia Facea Novas Identidades, in PVN(org.), Frechal: Terra de Preto

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    do gegrafo Rafael Sanzio, registrou 848

    ocorrncias em 2000 e 2.228 territrios

    quilombolas em 200511.

    OS NOVOS QUILOMBOSSe no so necessariamente descenden-

    tes de antigos acampamentos de escravos

    fugidos, escondidos nas matas desde o

    tempo do Brasil monrquico, de onde afinal

    surgiram os novos quilombos? Como os

    mais crticos tendem a ressaltar, eles tm

    claramente uma origem recente nas deman-

    das por garantia de direitos posse coletiva

    de terras, apresentadas por colonos e pos-seiros negros tradicionais, a partir do apoio

    de novos aliados, entre os quais a Pastoral

    da Terra da Igreja Catlica, os movimentos

    negros, a Associao Brasileira de Antro-

    pologia e alguns outros atores da sociedade

    civil brasileira ps-redemocratizao, que

    ocuparam papel especial12.

    Por outro lado, h claramente tambm

    uma origem remota, fortemente ancorada

    na formao de um campesinato constitudopor escravos libertos e seus descendentes no

    contexto da desagregao da escravido e

    de sua abolio no Brasil, que permite tais

    grupos reivindicarem-se como comunida-

    des tradicionais e como quilombolas.

    No Maranho e no Par encontra-se

    proporo expressiva das comunidades dos

    quilombos. So 34 no Par e 35 no Maranho

    registrados no Sicab da Fundao Palmares e

    642 e 294, respectivamente, segundo o mapa

    dos territrios quilombolas da Universidade

    de Braslia. A proliferao de acampamentos

    de escravos fugidos, chamados mocambos,

    na fronteira entre Maranho e Par, bem

    como nas cachoeiras do alto do Rio Trom-

    betas, tornou tais reas alvos preferenciais

    da preocupao repressiva das autoridades

    provinciais do Par, na segunda metade do

    sculo XIX, no contexto de desagregao da

    ordem escravista na regio. Segundo Flvio

    Gomes, quilombolas, grupos indgenas edepois colonos e camponeses fizeram ali

    suas prprias fronteiras, as quais foram

    marcadas por inmeras experincias de lutas,

    de alianas e de conflitos13..Tais territrios,

    que atraam tambm camponeses livres, em

    geral libertos e seus descendentes, continua-

    ram a servir como opo de sobrevivncia

    para os ltimos escravos da regio aps a

    Abolio.

    Nas comunidades de quilombo do Alto

    Trombetas, a memria dos antigos mocam-

    bos mostrou-se, desde o incio, constitutiva

    da identidade dos grupos, e os territrios

    hoje reivindicados correspondem, de modo

    geral, s antigas reas mocambeiras14.

    As reas geogrficas reivindicadas pelas

    comunidades dos quilombos no Maranho

    tm maior amplitude e se estendem por pra-

    ticamente todo o estado. Antigas fazendas

    escravistas e suas comunidades de senzalaesto historicamente na base da formao

    de muitas das chamadas terras de preto

    maranhenses, mas o papel da fronteira

    aberta na expanso dos mocambos tende

    hoje a predominar na memria pblica

    das comunidades dos quilombos, sobre

    as narrativas de vis paternalista, que en-

    fatizavam heranas, compras ou doaes

    de terra por parte dos antigos senhores,

    antes predominantes15

    . De fato, a pesquisahistrica tende a comprovar que ambos os

    fenmenos se entrecruzaram no processo

    de desagregao da sociedade escravista

    maranhense e continuaram a se misturar

    como opes para o campesinato negro

    depois da Abolio16.

    Tambm no serto do Nordeste, en-

    contra-se uma expressiva concentrao

    das comunidades dos quilombos referidas

    proviso constitucional, e pelo menos a

    primeira delas assim identificada, o Qui-

    lombo do Rio das Rs, na Bahia, j foi alvo

    de pesquisas histricas e antropolgicas

    aprofundadas17. O mapa dos territrios das

    comunidades dos quilombos produzido pela

    Universidade de Braslia refere-se a 396

    comunidades no estado, a maioria delas

    no serto. Vinte e seis delas encontram-se

    referidas no Sistema de Informaes das

    Comunidades Afro-brasileiras (Sicab) da

    Fundao Palmares. De fato, a pesquisasobre o Quilombo do Rio das Rs aponta

    para um campesinato negro, formado por

    libertos e seus descendentes desde o final

    Quilombo Reconhecido comoReserva Extrativista, So Lus,SMDDH, CCN, 1996; FlvioS. Gomes, Ainda sobre osQuilombos: Repensando aConstruo de Smbolos deIdentidade tnica no Brasil, inM. H. T. Almeida, P. Fry, & E. Reis(orgs.),Poltica e Cultura: Vises

    do Passado e PerspectivasContemporneas, So Paulo,Anpocs/Hucitec, 1996; e, ain-da, Eliane Cantarino ODwyer(org.), Quilombos. Identidadetnica e Territorialidade, Rio de

    Janeiro, Editora FGV, 2002.

    10 Cf. Sistema de Informaes dasComunidades Afro-brasileiras(Sicab) na pgina da Funda-o Cultural Palmares doMinistrio da Cultura (www.palmares.gov.br, acessado em3/9/2005).

    11 Cf. Rafael Sanzio, O EspaoGeogrfico dos Remanescentesde Antigos Quilombos no Bra-sil, in Terra Livre, 17, 2001,pp. 139-54, e Territrio dasComunidades Quilombolas, 2aConfigurao Espacial, Braslia,Ciga-UnB, 2005. Ver tambmSegundo Cadastro Municipaldos Territrios Quilombolas doBrasil (http://www.unb.br/acs/unbagencia/ag0505-18.htm).

    12 Cf. Hebe Mattos, Marcas daEscravido. Biografia, Racia-lizao e Memria do Cativeirona Histria do Brasil, teseapresentada como requisitopara concurso de professortitular em Histria do Brasil,Niteri, Universidade FederalFluminense, 2004, parte 1.

    13 Cf. Flvio S. Gomes,ExperinciasAtlnticas. Ensaios e Pesquisassobre a Escravido e o Ps-emancipao no Brasil, PassoFundo, FPF, 2003, p. 89.

    14 Cf. Eurpedes Funes, Comu-nidades Remanescentes dosMocambos do Alto Trombetas,Comisso Pro-ndio de SoPaulo, dezembro de 2000(www.quilombo.org.br/quilom-bo/doc/ComunidadesRema-

    nescentes.doc); e EurpedesFunes,Nasci nas Matas, NuncaTive Senhor: Histria e Memriados Mocambos do Baixo Ama-zonas, tese de doutorado, SoPaulo, FFLCH/USP, 1995.

    15 Cf. Luiz Eduardo Soares,Campesinato: Ideologia ePoltica, op. cit.; e OsQuilombos e as Novas Et-nias, in Eliane C. ODwyer,Quilombos Identidade tnicae Territorialidade, op. cit.

    16 Cf., especialmente: Flvio S.Gomes, Experincias Atlnti-

    cas, op. cit., caps. 3 e 4.17 Por ngulos diferentes, o pro-

    cesso de mobilizao polticae de construo da identidadequilombola em Rio das Rsaparece estudado em duas

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    descendentes de escravos das antigas reas

    cafeeiras do Centro-Sul do pas (Rio de

    Janeiro, Minas Gerais, So Paulo e Esprito

    Santo), que concentravam a maioria dos

    escravos s vsperas da abolio definitiva

    do cativeiro. As entrevistas de histria oral,

    que deram origem a um livro e um DVD,

    no guardavam qualquer preocupao ini-

    cial com o tema dos novos quilombos, mas

    diversos grupos visitados pelos pesquisa-

    dores do Labhoi passaram a identificar-se

    como comunidades quilombolas ao longo

    do desenvolvimento do projeto25. Assim, os

    resultados alcanados ilustram de maneira

    expressiva as possibilidades do trabalho

    histrico com a memria coletiva presente

    nas comunidades dos quilombos que emer-giram a partir da aprovao da proviso

    constitucional.

    So os aspectos simblicos da memria

    familiar da escravido que mais se destacam

    nas narrativas, elaboradas e reelaboradas em

    funo de relaes tecidas no tempo pre-

    sente, como em todo trabalho de produo

    de memria coletiva. No entanto, para o

    presente artigo, escolhi colocar em relevo

    outra dimenso do material produzido peloprojeto: os aspectos histricos referentes

    escravido oitocentista, isto , referidos a

    experincias empiricamente comprovveis,

    existentes nos relatos reunidos.

    Entre eles, destaco especialmente as

    referncias estrutura do trfico atlntico

    clandestino (1831-56) e tambm ao trfico

    interno que lhe sucedeu.

    Os desembarques clandestinos esto

    referidos de modo surpreendente nos de-

    poimentos, especialmente de moradores

    de comunidades negras litorneas, situadas

    prximas de praias onde se tem registro de

    desembarque ilegal de escravos (como Ma-

    rambaia, Bracu e Rasa), hoje identificadas

    como comunidades de quilombo.

    A identificao de origem na frica Cen-

    tral dos antepassados, em especial na utiliza-

    o das designaes de procedncia usuais

    no sculo XIX (Bento Monjola, Tio Congo,

    etc.), outra referncia repetida, fortementeancorada em evidncias histricas.

    As referncias separao de famlias

    no trfico interno (minha av dizia, nunca

    mais eu vi meus pais, foi ser escrava em outra

    fazenda26) so tambm recorrentes, foram

    comprovadas empiricamente em mais de

    um dos casos registrados, e correspondem

    ao que a pesquisa histrica registra para o

    perodo27.

    Apesar das referncias histricas ao

    trauma do trfico negreiro na origem fami-

    liar, os personagens cativos com identidade

    prpria nas narrativas so aqueles inseridos

    em uma comunidade escrava mais antiga e

    diferenciada, distinguindo-se dos demais.

    A memria genealgica referida a antigas

    comunidades de senzala est na base da

    constituio da nova identidade quilombola

    na maioria das comunidades negras da re-

    gio, conforme j foi considerado.Nesse sentido, so os padres comuns de

    referncia escravido, incrivelmente simi-

    lares nos diversos conjuntos de entrevistas

    analisados, que merecem ser especialmente

    ressaltados. De fato, uma certa periodizao

    do processo de abolio do cativeiro, entre-

    cruzando o tempo privado e geracional da

    memria familiar com o tempo pblico do

    processo abolicionista, apresentou-se como

    uma primeira linha de fora a estruturar ascoincidncias narrativas encontradas.

    Via de regra, os antepassados dos de-

    poentes apareceram classificados em trs

    diferentes geraes: aqueles que chegaram

    ainda sob a vigncia do trfico transatlntico

    os africanos; seus filhos nascidos no Brasil

    ainda escravos ou ventre-livres; e seus

    netos nascidos j no tempo da liberdade.

    Destaca-se, nesse caso, a relevncia na

    memria familiar do impacto de medidas

    legais de profundo alcance na redefinio

    das relaes cotidianas entre senhores e

    escravos e entre os cativos entre si no sculo

    XIX: a extino do trfico africano (1850)

    e a Lei do Ventre Livre (1871); medidas

    que se apresentariam pouco presentes nas

    celebraes pblicas relativas ao calendrio

    abolicionista estruturadas aps a Lei urea

    e o advento do perodo republicano.

    Por outro lado, apesar de a maioria das

    entrevistas consideradas no projeto ter sidoproduzida entre 1987 e 1994, a faixa et-

    ria dos narradores escolhidos fez emergir,

    inicialmente, uma memria que conjugava

    Histria, Niteri, UFF, 1990.Sobre a noo de linhageme o papel do nome nas comu-nidades de quilombo contem-porneas, cf., entre outros:Robert W. Slenes, Histriasdo Cafund, op. cit.; DayseMacedo Barcellos et alii, Comu-nidade Negra de Morro Alto,op. cit.; Hebe Mattos, Marcasda Escravido, op. cit.

    24 Cf. Claudia Andrade dos San-tos, Projetos Sociais Abolicionis-tas. Rupturas ou Continusmo?,in Daniel Aaro Reis Filho (org.),Intelectuais, Histria e Poltica

    (Sculos XIX e XX), Rio de Janeiro,7 Letras, 2000, pp. 54-74.

    25 O projeto resultou no livroMemrias do Cativeiro. Famlia,Trabalho e Cidadania no Ps-Abolio, de autoria de AnaLugo Rios e Hebe Mattos (op.cit.) e em um DVD de mesmottulo, com roteiro baseado nolivro, com direo e montagemde Guilherme Fernandez e IsabelCastro.

    26 Cf. depoimento de D. Jlia,Labhoi-UFF, 1994.

    27 Cf., entre outros: Hebe Mattos,Laos de Famlia e Direitos noFinal da Escravido, in LuizFelipe Alencastro (org.), Histriada Vida Privada no Brasil, vol.II. So Paulo, Companhia dasLetras, 1998, pp. 337-84.

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    algumas leituras do processo abolicionista,

    construdas ainda durante o sculo XIX,

    com um determinado processo de enqua-

    dramento dessa memria, que facilmente se

    identifica com os esforos pedaggicos e

    normatizadores da chamada Era Vargas, em

    especial do Estado Novo (1937-45).

    Em dois pontos (poltica e trabalho), o

    marco de descontinuidade nas falas analisa-

    das se apresentava, de forma generalizada,

    referido experincia de passagem do rural

    ao urbano nos anos 30 a 50 do sculo XX

    e/ou a uma experincia de quebra ou de

    fragilizao do poder poltico dos fazen-

    deiros no nvel local nesse mesmo perodo.

    Ambas as experincias, em apenas alguns

    casos, porm de forma comum a todos osconjuntos analisados, aparecem associadas

    diretamente s figuras da princesa Isabel

    e de Getlio Vargas. ngela de Castro

    Gomes colocou em relevo, em artigo que

    escrevemos a quatro mos, a coincidncia

    narrativa entre essa formulao e alguns

    aspectos da poltica cultural divulgada pelo

    Estado Novo em relao s leituras histri-

    cas dos significados da Abolio28.

    Nesse mesmo artigo, procurei argumentarque verses como essas precisam ser ana-

    lisadas para alm de seu carter de simples

    reproduo da poltica cultural divulgada

    pelo Estado. Elas ganham inteligibilidade

    na medida em que se referem a estruturas

    de periodizao efetivamente generaliza-

    das e referenciadas vivncia familiar dos

    narradores. Os contratos de trabalho e a

    vivncia poltica do campesinato negro nas

    dcadas que se seguiram imediatamente

    Abolio da escravido so fundamentais

    para compreender essa apropriao espec-

    fica de periodizao da memria coletiva,

    na qual Isabel e Getlio aparecem muitas

    vezes associados. Permitiram ressignificar

    a experincia pessoal e a tradio familiar

    referente memria do cativeiro porque,

    com elas, foram capazes de dialogar.

    Na ltima dcada, o incio dos processos

    de identificao e demarcao das chamadas

    terras de preto como remanescentes dosquilombos e as novas veiculaes pblicas,

    na escola e na mdia, dos significados da

    escravido impactaram significativamente

    a memria coletiva dos grupos estudados.

    Nesse novo contexto, narrativas de fugas,

    antes silenciadas, emergiram nos depoimen-

    tos. Na comunidade de So Jos da Serra,

    em uma srie de depoimentos de um dos

    mais velhos moradores, aps os contatos da

    Fundao Palmares e o reconhecimento do

    grupo como remanescente das comunidades

    dos quilombos, um av que veio fugido de

    uma fazenda para a outra em busca da prote-

    o do fazendeiro, antes pouco mencionado,

    ressurgiu como heri, e o fazendeiro que o

    acoitou, como organizador de quilombos.

    A Fazenda do Ferraz era tambm o Qui-

    lombo do Ferraz29. Mas foram os filhos e

    netos de nossos depoentes, os mais velhos

    deles nascidos em meados do sculo XX,que construram a nova identidade quilom-

    bola. Recuperaram as narrativas de seus

    pais e avs, mas desenvolveram para elas

    novas interpretaes. Nesse novo contexto,

    prticas culturais com origem no tempo

    do cativeiro, como, por exemplo, o jongo

    e o caxambu canto e dana em roda ao

    som de tambores , foram transformadas

    em capital simblico para afirmao da

    identidade quilombola30

    .

    POLTICAS DE REPARAO E

    CIDADANIA

    Negro no cativeiro/ Passou tanto tra-

    balho/ Ganhou sua liberdade/ No dia 13 de

    maio. Essa a letra de um jongo cantado

    ainda hoje em alguns dos novos quilombos

    do estado do Rio de Janeiro. Neles no

    difcil encontrar, entre os mais velhos,

    aqueles que se dizem netos de um Treze

    de Maio e que so capazes de nos contar

    histrias do tempo do cativeiro, como os

    avs lhes contavam. Tal encontro ilustra de

    forma expressiva quo pouco significa, em

    uma perspectiva histrica, os pouco mais de

    cem anos que separam o Brasil do sculo

    XXI de uma poca na qual os brasileirosse dividiam entre cidados livres (das mais

    diferentes origens e sobre os quais raramente

    se mencionava a cor) e escravos (todos eles

    28 Cf. Hebe Mattos & ngela deCastro Gomes,Sobre Apropria-es e Circularidades:Memriado Cativeiro e Poltica Cultural

    na Era Vargas. Histria Oral,So Paulo, 1998, vol. 1, no1S, pp. 121-44.

    29 Cf. entrevistas de ManoelSeabra, da Comunidade deSo Jos da Serra, Catlogo deHistria Oral, Acervo Memriasdo Cativeiro (Labhoi-UFF, 1998,2003, 2004 e 2005) e DVDMemrias do Cativeiro(Labhoi-UFF, 2005).

    30 Cf. conferncia e entrevista deAntnio Nascimento Fernandes,Comunidade de So Jos daSerra, Catlogo de HistriaOral, Projeto Memrias doCativeiro, Labhoi-UFF, 2003;Ana Lugo Rios & Hebe Mat-tos, Memrias do Cativeiro,op. cit., parte II, cap. 4; DVDMemrias do Cativeiro, Labhoi-UFF, 2005.

  • 7/28/2019 Artigo Hebe Mattos

    8/8

    REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 104-111, dezembro/fevereiro 2005-2006 111

    descendentes de africanos, muitas vezes

    com a cor ou a origem colada no prprio

    nome Jos Preto, Antnio Pardo, Maria

    Crioula e assim por diante). Apesar disso,

    apenas uma minoria dos brasileiros afro-

    descendentes ainda se encontrava cativa

    naquele 13 de maio de 1888, no mais que

    5% da populao negra do pas.

    Apesar da continuidade da escravido,

    baseada no direito de propriedade, um

    pensamento universalista, anti-racista e

    antitrfico desenvolveu-se no Brasil desde a

    poca da Independncia. No Brasil no h

    mais que escravos ou cidados, publicavam

    os jornais radicais do perodo, defendendo a

    igualdade entre todas as cores de cidados

    brasileiros31. Toda uma gerao intelectualde homens de cor foi formada a partir

    desse liberalismo anti-racista e antitrfico,

    que s se tornaria abertamente abolicionista

    no final do sculo XIX. Ao aceitarem uma

    justificativa no racializada para a escravi-

    do metiam-se, entretanto, num beco sem

    sada, pois a linguagem racial permanecia,

    na prtica, como elemento de suspeio e

    hierarquizao. Todo afrodescendente livre,

    mesmo se proprietrio de escravos, encon-trava-se dramaticamente dependente de um

    reconhecimento pblico da sua condio

    de livre, para no ser confundido com um

    escravo ou ex-escravo. A efetivao de uma

    tica do silncio em relao s cores dos

    cidados, pelo menos em situaes formais

    de igualdade, foi a resultante prtica desses

    embates, como a homenagem que o vcio

    presta virtude.

    O silncio sobre a cor como smbolo de

    cidadania foi uma experincia construda

    nas lutas anti-racistas do sculo XIX, que

    combatiam as hierarquias de cor entre a

    populao livre at ento vigentes na socie-

    dade colonial. A legitimao no racial da

    continuidade da escravido ento afirmada

    no Brasil teve conseqncias. Embaralhou

    a linha de cor na sociedade brasileira,

    porm sem impedir a adoo pblica de

    projetos racistas de branqueamento, numa

    poca em que tais discursos tinham estatutode conhecimento cientfico no pensamento

    ocidental32. Ao longo do sculo XX, nem a

    construo da noo de democracia racial,

    nem a crtica a ela desenvolvida pelos mo-

    vimentos negros conseguiram ainda reverter

    os sentidos hierarquizados das designaes

    de cor desde longo tempo presentes na socie-

    dade brasileira. No modificaram tambm

    o recurso ao silncio como a forma mais

    usual de conviver com elas em situaes

    formais de igualdade.

    Como no sculo XIX, dizer-se negro

    ainda basicamente assumir a memria

    da escravizao inscrita na pele de milhes

    de brasileiros. Essa a base que empresta

    consistncia histrica discusso sobre

    polticas de ao afirmativa no Brasil com

    base na auto-identificao como negro.

    No Brasil, nomear a cor ainda hierarquiza,

    pois implica quebrar o pacto de silnciosobre o passado escravo, celebrado entre

    os cidados brasileiros livres em plena vi-

    gncia da escravido. Passados mais de cem

    anos da Abolio, quebrar com a tica do

    silncio apresenta-se paradoxalmente como

    caminho possvel para reverter tal processo

    de hierarquizao cristalizado no tempo,

    e instaurar um universalismo almejado,

    mas no verdadeiramente atingido, desde

    o sculo retrasado.Foi rompendo com o princpio do si-

    lncio que emergiram as terras de preto.

    Colonos e posseiros em luta pela terra

    ameaada pelos processos de moderni-

    zao do sculo XX, ao identificarem-se

    primeiro como pretos e depois como

    quilombolas, tornaram-se sujeitos pol-

    ticos coletivos. As metamorfoses sociais

    possveis a tais atores estiveram, entretanto,

    firmemente ancoradas na associao entre

    identidade camponesa e memria do cati-

    veiro, seja como reminiscncia familiar ou

    estigma. Como descendentes de escravos,

    reivindicam polticas de reparao do es-

    tado brasileiro

    A identificao coletiva sempre pro-

    cesso e construo e s pode ser entendida

    levando em conta contextos histricos e

    polticos. Tanto o silncio sobre a cor como

    tica social, quanto sua reivindicao, hoje,

    como bandeira de luta, so frutos diferentesda presena difusa do racismo na sociedade

    brasileira em suas complexas relaes com

    a memria do cativeiro.

    31 Cf., entre outros, na BibliotecaNacional, o jornal O Mulato ouo Homem de Cor, editado em1833. Sobre o tema, cf. HebeMattos, Escravido e Cidadaniano Brasil Monrquico, Rio de

    Janei ro, Jorge Zahar, 2000,

    pp. 20-6.32 Cf. Lilia M. Schwarcz, O Espe-

    tculo das Raas. Cientistas,Instituies e Questo Racial noBrasil, 1870-1930, So Paulo,Companhia das Letras, 1993.