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REFLEXÕES ACERCA DA ADOÇÃO NA PERSPECTIVA ANALÍTICA Heleonora Alves Fernandes Macedo 1 RESUMO Alguns fatores, relacionados em torno do processo de adoção, acompanham tanto os pais adotivos quanto os filhos adotados, além da família e sociedade que os envolve. Tendo como referencial teórico a psicologia analítica, este trabalho visa refletir de que forma a adoção pode constituir-se num decurso de integração da sombra e consequente influência no processo de individuação dos pais. O presente artigo intenciona articular escritos publicados sobre adoção, sombra e processo de individuação, visando suscitar reflexões acerca do tema em todas as pessoas que se interessam em compreender de que forma a adoção pode emergir conscientemente elaborada a partir da integração da sombra, o que influenciará no processo de individuação dos pais adotantes, dentro da perspectiva analítica, bem como analisar os motivos que influenciaram na escolha pela adoção, refletir sobre a transição para a maternidade e paternidade no processo de adoção e estudar as mudanças sociais e psíquicas observadas nos pais adotantes decorrentes da adoção, além de trazer contribuições no sentido de auxiliar familiares e profissionais envolvidos com a adoção. Os dados coletados foram obtidos através de entrevista com um casal adotante. Pretende-se a partir da fundamentação analítica, contribuir a respeito dessas reflexões, revelando inclusive a carência de artigos relacionados e a necessidade dos profissionais dessa abordagem em produzir escritos que tratem do tema em questão. Palavras-chave: adoção, psicologia analítica, sombra, processo de individuação. INTRODUÇÃO 1 Concluinte do curso de Psicologia da Universidade Salvador - UNIFACS. E-mail: [email protected]

Artigo Heleonora Macedo

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Reflexões Acerca da Adoção na Perspectiva Analítica

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REFLEXÕES ACERCA DA ADOÇÃO

NA PERSPECTIVA ANALÍTICA

Heleonora Alves Fernandes Macedo1

RESUMO

Alguns fatores, relacionados em torno do processo de adoção, acompanham tanto os pais adotivos quanto os filhos adotados, além da família e sociedade que os envolve. Tendo como referencial teórico a psicologia analítica, este trabalho visa refletir de que forma a adoção pode constituir-se num decurso de integração da sombra e consequente influência no processo de individuação dos pais. O presente artigo intenciona articular escritos publicados sobre adoção, sombra e processo de individuação, visando suscitar reflexões acerca do tema em todas as pessoas que se interessam em compreender de que forma a adoção pode emergir conscientemente elaborada a partir da integração da sombra, o que influenciará no processo de individuação dos pais adotantes, dentro da perspectiva analítica, bem como analisar os motivos que influenciaram na escolha pela adoção, refletir sobre a transição para a maternidade e paternidade no processo de adoção e estudar as mudanças sociais e psíquicas observadas nos pais adotantes decorrentes da adoção, além de trazer contribuições no sentido de auxiliar familiares e profissionais envolvidos com a adoção. Os dados coletados foram obtidos através de entrevista com um casal adotante.Pretende-se a partir da fundamentação analítica, contribuir a respeito dessas reflexões, revelando inclusive a carência de artigos relacionados e a necessidade dos profissionais dessa abordagem em produzir escritos que tratem do tema em questão.

Palavras-chave: adoção, psicologia analítica, sombra, processo de individuação.

INTRODUÇÃO

Vários mitos gerados em torno do processo de adoção acompanham tanto os pais

adotivos quanto os filhos adotados, além da família e sociedade que os envolve. Todo ser

humano vivencia algum tipo de conflito, sendo este constitutivo da sua formação, mas o que

interessa neste trabalho é refletir de que forma a adoção pode constituir-se num decurso de

integração da sombra e consequente influência no processo de individuação dos pais, segundo

o referencial teórico da psicologia analítica.

Levinzon (2005) a partir de relatos dos pais e da sua experiência clínica traz diferentes

motivos pelos quais as pessoas buscam a adoção. São eles: o contato com uma criança que

desperta o desejo da maternidade ou paternidade, o desejo de ter filhos quando já se passou da

1 Concluinte do curso de Psicologia da Universidade Salvador - UNIFACS. E-mail: [email protected]

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idade em que isto é possível biologicamente, a esterilidade de um ou ambos os pais; a morte

anterior de um filho, o desejo de ter filhos sem ter de passar por um processo de gravidez, por

medo deste processo ou até por razões estéticas, o parentesco com os pais biológicos que não

possuem condições de cuidar da criança, as idéias filantrópicas, o anseio de serem pais,   por

parte de homens e mulheres que não possuem um parceiro amoroso.

Schettini (1998) acrescenta ainda a tentativa de salvar um casamento, o desejo de ter

companhia na velhice; o medo da solidão; o preenchimento de um vazio existencial, a

possibilidade de escolher o sexo da criança.

Normalmente as representações que a maioria das pessoas elabora acerca da família,

se fundamentam nos laços consanguíneos, o que possivelmente aumenta a possibilidade do

filho adotivo e pais ocuparem um espaço de exclusão, como Woodward (2000) afirma,

relatando que essa “diferença pode ser construída negativamente por meio da exclusão ou da

marginalização daquelas pessoas que são definidas como "outros" ou "forasteiros" (p.50).

Todos esses aspectos influenciarão na dinâmica psíquica dessa nova configuração

familiar, e, portanto, a importância de situar a experiência da adoção como um processo de

individuação, definido por Jung (1985) como “tornar-se um ser único, na medida em que por

“individualidade” entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável,

significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo. Podemos pois traduzir

“individuação” como “tornar-se si-mesmo” ou “o realizar-se do si-mesmo” (p.49)”.

...o bebê, por exemplo, chega ao mundo preparado para desempenhar seu papel ao constelar adequadas atitudes e condutas maternais na pessoa que cuida dele, arrulhando, sorrindo, mamando e, de um modo geral, tornando-se uma criatura adorável. Ao mesmo tempo (se tudo correr bem) a mãe está preparada para assumir o papel de alimentar e criar o seu bebê. O par mãe-bebê descreve um padrão arquetípico de fantasia humana e de ação recíproca interpessoal que é primordial e tem importante valor de sobrevivência. (STEIN, 2005, p. 154).

Para cada etapa da vida existem tais constelações de instinto e arquétipo, as quais

resultam em padrões de comportamento, sentimento e pensamento.

A forma de vivenciar essa maternidade/paternidade adotante dar-se-á de acordo com

as singularidades e individualidades do casal o que possibilitará um avanço no processo de

individuação, se olhado sob o aspecto de uma ampliação de consciência, incluindo a devida

elaboração e integração da sombra.

Assumir a paternidade/maternidade implica em responsabilizar-se pelo

desenvolvimento de um indivíduo, numa sequência de trocas que pode acarretar em

transformações numa série de áreas da vida sejam elas materiais, emocionais e espirituais que

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possivelmente não foram cogitadas. Com relação a essas transformações Jung (1986)

constata que:

... por via de regra, as reações mais fortes sobre as crianças não provém do estado consciente dos pais, mas de seu fundo inconsciente. Para toda a pessoa de responsabilidade moral, que ao mesmo tempo é pai ou mãe, representa este fato um problema de certo modo amedrontador... Sobrevém a qualquer pessoa um sentimento de extrema incerteza moral, quando se começa a refletir seriamente sobre o fato da existência de atuações inconscientes. Como então se poderá proteger as crianças contra os efeitos provenientes de si próprio, quando falha tanto a vontade consciente como o esforço consciente?...Em geral se acentua muito pouco quão importante é para a criança a vida que os pais levam, pois o que atua sobre a criança são os fatos e não as palavras. Por isso deverão os pais estar sempre conscientes de que eles próprios, em determinados casos, constituem a fonte primária e principal para as neuroses de seus filhos. (p.45-46)

Nesse sentido, o processo de desenvolvimento psicológico, a tentativa de tornar-se

uma personalidade unificada, mas também única, um indivíduo, uma pessoa indivisa e

integrada, unindo aspectos conscientes e inconscientes da personalidade, é de extrema

importância para integrar a adoção no processo de individuação.

O presente artigo intenciona articular escritos publicados sobre adoção, sombra e

processo de individuação, visando suscitar reflexões acerca do tema em todas as pessoas que

se interessam em compreender de que forma a adoção pode emergir conscientemente

elaborada a partir da integração da sombra, o que influenciará no processo de individuação

dos pais adotantes, dentro da perspectiva analítica, bem como analisar os motivos que

influenciaram na escolha pela adoção, refletir sobre a transição para a maternidade e

paternidade no processo de adoção e estudar as mudanças sociais e psíquicas observadas nos

pais adotantes decorrentes da adoção tendo como viés os conceitos de sombra e processo de

individuação, além de trazer contribuições no sentido de auxiliar familiares e profissionais

envolvidos com a adoção.

Pretende-se a partir da fundamentação analítica, contribuir a respeito dessas reflexões,

revelando inclusive a carência de artigos relacionados e a necessidade dos profissionais dessa

abordagem em produzir escritos que tratem do tema em questão.

Este trabalho está estruturado da seguinte forma: a primeira parte abarca a revisão de

literatura, na qual houve um aprofundamento do tema abordado, enfocando a conceituação e

historicidade da adoção, os principais conceitos da psicologia analítica enfocando a sombra na

família e como a adoção pode constituir-se num processo de individuação. A segunda parte

aborda o método, onde se delineou a pesquisa, o contexto, os participantes, além do plano de

coleta e análise dos dados. Na terceira parte serão apresentados e discutidos os dados

coletados em entrevista para em seguida realizar a conclusão do trabalho.

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1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA/ REVISÃO DE LITERATURA

CONCEITUAÇÃO E HISTORICIDADE DA ADOÇÃO

Segundo Houaiss (2001), adoção é a “ação ou efeito de adotar, de aceitar (alguém ou

algo)” e por extensão “é a aceitação espontânea de (pessoa ou animal, geralmente doméstico)

como parte integrante da vida de uma família, de uma casa”. Diz ainda em termo jurídico que

é o “processo legal que consiste no ato de se aceitar espontaneamente como filho de

determinada pessoa, desde que respeitadas às condições jurídicas para tal” (p. 88).

SILVA e outros (1987) no dicionário de Ciências Sociais definem adoção como “ato

civil pelo qual alguém estabelece vínculo fictício de paternidade, geralmente com um

estranho, obedecidos os requisitos da lei” (p.24).

As civilizações antigas como a Babilônia, Egito, Palestina e Caldeia já conheciam a

adoção, inclusive há passagens bíblicas que relatam casos de adoção, porém, segundo os

estudos teológicos, no antigo testamento bíblico, os legisladores não mencionam a

possibilidade de alguém adotar o filho de outra pessoa; o direito assírio-babilônico, no

entanto, conhecia tal adoção. Quando não havia herdeiros, era mais fácil os bens ficarem com

um escravo do que adotar-se um filho. Há alguns casos que poderiam passar por adoção: Jacó

adotou os filhos de José, José os de Maquir, mas em ambos os casos trata-se de netos que

ganham os direitos de filhos. Mardoqueu adotou sua sobrinha Ester. A adoção de Moisés por

uma princesa egípcia não se fez, naturalmente, conforme direito israelita, já no novo

testamento bíblico, o apóstolo Paulo compara o modo como o homem se torna filho de Deus

com a adoção greco-romana (STEIN, 1971).

Para a sociologia, a adoção está adaptada, em termos brasileiros, aos progressos que o

judiciário experimentou em um campo aparentemente tão estável em suas normas e tão

renitente a inovações, o direito de família. De fato, a adoção é uma interferência violentadora

no tradicional direito da consaguinidade, de concepção tão arraigada. A adoção quebra o tabu

do sangue da família natural e é olhada como um sacrilégio, ao mesmo tempo em que dela se

espera um ato de perfeição e santidade e o fato de existir a tendência de não se revelar a

verdade ao filho adotado explicaria a submissão ao mito do sangue. A mais revolucionária

posição assumida doutrinariamente no campo da filiação foi exposta por J. B. Vilela,

professor da Universidade de Minas Gerais, perante o primeiro congresso internacional de

Direito de Família em 1975 em Berlim: a desbiologização da paternidade. Com esta tese

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pretendeu provar que a adoção não forma uma família de segunda classe, mas em resumo

afirma que mais importante que gerar é criar. Dessa forma, a adoção ganha relevo e o aspecto

biológico da paternidade perde sua importância absoluta (SILVA e outros, 1987).

O primórdio da existência da adoção se dá na fase pré-romana clássica e se remetia ao

dever de perpetuar o culto doméstico. Como mostra CHAVES apud BORGES e outros

(2005), era muito usada entre os orientais, sendo seu marco existencial no Código de Manu e

de Hamurábi, entre os babiloneses e teve seu uso regular na Grécia Antiga. No Código de

Hamurábi que data de 1728-1686 a.c., a adoção era vista como a substituição de criança

quando não se podia ter filhos biológicos. Este Código traz em seu dispositivo 185 que: "se

alguém dá seu nome a uma criança e a cria como filho este adotado não poderá mais ser

reclamado", portanto, a adoção se dá, como ato não reclamável, a medida que se cria uma

relação afetiva entre adotante e adotado.

Na Grécia o Código de Hamurábi, era utilizado, mas em Atenas só os tidos como

cidadãos atenienses gozavam do direito de adotar e serem adotados. Em Roma a adoção foi

ordenada juridicamente, já que esta era uma instituição de "direito privado, simétrico à da

naturalização no direito público", (CHAVES apud BORGES et al, 2005). Na Roma antiga, a

ação de adotar se tornou uma atividade essencial, para que a família - composta por escravos,

servos, mulheres, crianças, animais e terras pertencentes a um único homem - não entrassem

em extinção, visto que o pai adotivo tinha que dar continuidade a sua herança, através do filho

adotado.

Na Idade Média, a adoção não constituía a vontade dos senhores feudais, visto que não

tinham os mesmos costumes do patriarcado familiar romano, portanto, a adoção caiu em

desuso, inclusive um dos fatores do não uso da adoção, foi a sacralização do matrimônio no

declínio romano quando se dá o surgimento do cristianismo e as famílias passam a constituir-

se por consanguinidade. Outro fator foi justificado por este ato depender da ordem real e

nessa época o rei não concentrava tamanho poder em mãos para legitimar a adoção, já que, os

feudos eram propriedades privadas não ligadas a um reinado único havendo dentro de cada

um deles moedas, normas e culturas próprias (GATELLI , 2003).

No entanto, no final da Idade Média, o Código Civil Francês retira a adoção do

esquecimento sócio-jurídico, influenciando diretamente as legislações modernas. Mas, ainda

assim, no séc. XVI não se dava ao adotado o direito legítimo da adoção e nem o direito à

sucessão (BORGES et al, 2005).

Conforme Albernaz Júnior (1996), a adoção cai novamente em desuso durante o

século XIX, voltando a ser amplamente utilizada e difundida durante o século XX em vários

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países, sendo objeto de estudo e regulamentação em diversos congressos, convenções,

acordos e tratados internacionais.

Segundo o Guia comentado sobre novas regras para a adoção, elaborado por Pachá,

Vieira Júnior e Oliveira Neto em 2007 a adoção é um direito, dissolúvel e revogável em

muitos casos, resultando a adoção em um ato meramente de filiação civil. O Brasil em meio a

tal época incorpora esta noção de civil filiação e paternidade. O primeiro ordenamento

brasileiro sobre a adoção data de 20 de outubro de 1823, um ato da Assembléia Geral

Constituinte do Império Nacional sob ordens do Reino Português, corporificando a adoção

como direito civil pátrio.

Os autores relatam que no Brasil, o primeiro ordenamento sobre adoção foi importado

de Portugal em 1823, tornando a adoção como direito civil pátrio, quando esse país dominava

a nação. No ano de 1916, após a Proclamação da República, surge a primeira lei nacional que

institui a adoção. Neste Código de 1916 há uma diferenciação entre filho legitimo e filho

adotivo principalmente no que se referia ao direito de sucessão, mantendo-se, portanto, a

tradição da filiação de criação. A Lei não facilitava a adoção e nem reconhecia como direito

da criança ou adolescente de modo a impossibilitá-la e condicionar o ato em mero desejo dos

adotantes.

Em 1957 tem-se a Lei n° 3.133 que modifica alguns dos dispositivos sobre a adoção

que constava no Código Civil de 1916, mas esta lei, ainda, não entendia as crianças e

adolescentes adotados como sujeitos de direitos, pois podia ser revogado o pátrio poder do

adotante e o restabelecimento aos pais naturais no momento de morte do adotante, maioridade

penal/civil do adotado, reconhecimento do adotado pelo pai de sangue ou anulação do

casamento celebrado entre os adotantes (PACHÁ, VIEIRA JÚNIOR, OLIVEIRA NETO,

2007).

E em 1965, surge o marco na legislação brasileira com relação à adoção a partir da

promulgação da Lei n° 4.655 que traz a real igualdade de direitos entre os filhos legítimos e

os legitimados.

Até mesmo o Código de Menores de 1979 refere-se a adoção como um ato de se

retirar "o menor" da situação irregular que este se encontra, o abandono sócio-familiar que

para muitos especialistas na época era uma das principais causas da delinqüência juvenil. Foi,

apenas, em 1990 que a adoção passou a ser tratada como um direito da criança e do

adolescente à convivência familiar e comunitária estendendo a esses os mesmos direitos que

nas legislações supracitadas eram exclusivos dos filhos consangüíneos (PACHÁ, VIEIRA

JÚNIOR, OLIVEIRA NETO, 2007).

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A adoção deu grande salto histórico ao tratar o adotando como sujeito de direitos. A

primeira data referencia a Constituinte que em seus artigos, estabelece que os filhos terão os

mesmos direitos e qualificações dos filhos havidos ou não da relação do casamento, sendo

proibidas quaisquer designação discriminatórias relativas à filiação. A segunda refere-se ao

ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90) - que regulou a adoção de

crianças e adolescentes de até 18 anos, salvo se já estiverem sob a guarda e tutela dos

adotandos sem desdobrar a adoção em simples e plena e reconhece o ato como direito da

criança e adolescente a ter família e colocam seus direitos e desejos em primeiro lugar no

deferimento da adoção (PACHÁ, VIEIRA JÚNIOR, OLIVEIRA NETO, 2007).

Com o surgimento da Lei n° 10.406/2002 que trata do novo Código Civil que passou a

vigorar no primeiro mês de 2003, normatiza a adoção dos maiores de 18 anos.

Em 2003, entrou em pauta no Congresso Nacional o Projeto de Lei n° 1.756 que

almejava criar a Lei Nacional de Adoção e finalmente em novembro de 2009 entrou em vigor

a Lei nº 12.010/09 que traz novas regras da adoção: Na impossibilidade de permanência na

família natural, a criança e o adolescente serão colocados para adoção; O Estado deve

proporcionar assistência psicológica e médica à gestante e à mãe interessada em entregar seu

filho para a adoção, no período pré e pós-natal; As gestantes ou mães que manifestem

interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas à Justiça

da Infância e da Juventude; A permanência da criança e do adolescente em programa de

acolhimento institucional não deve ser superior a dois anos; A manutenção ou reintegração de

criança ou adolescente à sua família terá preferência em relação a qualquer outra providência;

Os grupos de irmãos serão colocados sob adoção, tutela ou guarda da mesma família

substituta (PACHÁ, VIEIRA JÚNIOR, OLIVEIRA NETO, 2007).

Esta Lei define as hipóteses em que a adoção pode ser concedida, tratando-a como um

direito da criança e adolescente caso haja impossibilidade de manutenção em família natural e

dispõe que o adotado terá o direito a revelação de sua condição de adotivo, bem como o

acesso a documentos acerca de sua família natural. Esta é uma lei específica sobre a adoção já

que segundo o seu autor o Deputado João Matos (PMDB/SC) o Código Civil não incorporou

os avanços contidos no ECA e na Constituinte de 1988. A Lei dispõe sobre quem pode adotar,

a criação de um cadastro de crianças/adolescentes e adotantes adotáveis e sobre as adoções

internacionais (PACHÁ, VIEIRA JÚNIOR, OLIVEIRA NETO, 2007).

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PRINCIPAIS CONCEITOS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

A criança adotiva também vem sendo pesquisada no campo da psicologia, sob os mais

variados aspectos, tanto privilegiando dados estatísticos, quanto considerando a dimensão

inconsciente presente nas relações entre coletividade e adoção. Um dos dados suscitados mais

significativos nessas investigações é o preconceito da sociedade frente a uma criança adotiva,

incluindo o de seus próprios pais, decorrente de seus medos e angústias (WEBER, 2002).

A despeito do desenvolvimento psíquico do sujeito, trazemos alguns conceitos básicos

da psicologia analítica.

Segundo Robertson (1999) a psicologia analítica foi introduzida por Carl Gustav Jung

na primeira metade do séc. XX (p.9). Também conhecida como psicologia complexa, é um

ramo de conhecimento e prática da psicologia iniciado por Jung, o qual se distingue da

psicanálise iniciada por Freud, por uma noção mais alargada da libido, onde esta “não era

apenas energia sexual, e sim energia psíquica” (p.12) e pela introdução do conceito de

inconsciente coletivo.

Para Stein (2005) a psique é o território, o domínio desconhecido que Jung estava

explorando; a sua teoria é o mapa criado por ele para comunicar o seu entendimento da

psique. Os conceitos fundamentais da psicologia analítica incluem os arquétipos, complexos,

inconsciente coletivo, processo de individuação, persona, sombra, anima e animus, self e tipos

psicológicos.

Segundo Jung, a consciência é a ponta do iceberg. Por baixo dela, encontra-se um

substrato maior de recordações pessoais, sentimentos ou condutas reprimidas (ROBERTSON,

1999). Consciência é a percepção dos nossos próprios sentimentos e no seu centro existe um

eu (STEIN, 2005). A consciência do ego para Jung é a condição prévia para a investigação

psicológica. Como seres humanos, o nosso conhecimento sobre algo depende das limitações e

capacidades da nossa consciência.

O entendimento correto da psique ou de qualquer coisa está condicionado ao estado de

consciência de cada um. A distinção feita por Jung entre características conscientes e

inconscientes da psique é que consciência é o que conhecemos e inconsciência é tudo aquilo

que ignoramos e mais ainda, o inconsciente é o psíquico desconhecido. A consciência é uma

categoria mais ampla do que o ego e contém mais do que somente o ego, é o estado de

entendimento e de conhecimento de eventos externos e internos (STEIN, 2005).

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Jung (1985) via o inconsciente não apenas como um repositório das memórias e das

pulsões reprimidas, mas também como um sistema passado de geração em geração, vivo em

constante atividade, contendo “além do material reprimido, todos aqueles componentes

psíquicos subliminais, inclusive as percepções subliminais dos sentidos” (p. 3) e ainda inclui

componentes que ainda não alcançaram o limiar da consciência. “O inconsciente coletivo

contém toda a herança espiritual da evolução da humanidade, nascida novamente da estrutura

cerebral de cada indivíduo” (JUNG apud SHARP, 1997, p. 89).

É no inconsciente coletivo que se encontram os conteúdos arquetípicos universais,

além dos instintos. Ele é resultante das experiências da humanidade sedimentadas na psique

coletiva. Os conteúdos do inconsciente coletivo não podem ser adquiridos individualmente, só

coletivamente. Para Jung, toda a Mitologia seria um exemplo de projeção do inconsciente

coletivo ou da psique objetiva. Os conteúdos deste inconsciente constituem uma base da

psique em si mesma, condição esta onipresente, imutável, idêntica a si própria em toda parte

(RAMALHO, 2002).

Quanto mais profundas as camadas da psique, mais perdem sua originalidade

individual. Jung afirmou que, “no mais profundo de si mesma, a psique é universo” (JUNG,

1963, p. 355).

Arquétipo corresponde às imagens primordiais ou padrões universais profundos da

psique humana, presentes no inconsciente coletivo, que se mantêm presentes e poderosos ao

longo do tempo. É o equivalente psíquico de um instinto, ou sua imagem. O Arquétipo é o

padrão original, o afeto basal, a matriz inata, que coordena a formação de símbolos para a

estruturação da psique. Experiências arquetípicas são aquelas comuns a toda a humanidade,

como por exemplo: o nascimento, a maternidade, a paternidade, o amor, a morte, o abandono,

o masculino, o feminino, a velhice, etc. (SHARP, 1997).

Alguns arquétipos são naturais ao processo de desenvolvimento de todas as pessoas;

outros, já são ativados a partir de experiências pessoais, complexos, etc. Os arquétipos são

imagens eternas, princípios formativos de poder instintivo, que se expressam por meio de

reações físicas ou representações mentais (imagens, idéias, mitos, sonhos, etc) (SHARP,

1997).

O arquétipo em si mesmo é vazio, apenas uma possibilidade de pré-formação, ou

forma de representação. Ele só tem um conteúdo determinando a partir do momento em que

se torna consciente e é, portanto, preenchido pelo material da experiência consciente. Assim,

ele existe como energia potencial na vida psicológica inconsciente de todos (RAMALHO,

2002).

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Os complexos são conteúdos psíquicos carregados de afetividade, agrupados pelo tom

emocional comum (SILVEIRA, 1997). São temas emocionais reprimidos, capazes de

provocar distúrbios psicológicos permanentes e que reagem mais rapidamente aos estímulos

externos. Eles gozam de relativa autonomia, como se fossem unidades vivas da psique, de

modo que por vezes somos por eles dirigidos. São como feixes de força contendo

potencialidades evolutivas, mas que ainda não alcançaram o limiar da consciência, por isto

exercem pressão para virem à tona. Eles não são elementos necessariamente patológicos, só

quando guardam excessiva energia psíquica, mas representam conflitos. No âmago de um

complexo, sempre se encontra um núcleo arquetípico. O complexo surge em virtude de

conflitos, experiências traumáticas ou dolorosas; são carregados de intensa energia e se

separam da consciência, formando uma espécie de realidade paralela (WHITMONT, 1998).

Persona é o aspecto ideal do ego, que se apresenta ao mundo e que se forma pela

necessidade de adaptação e convivência interpessoal. É “o que se pensa que se é”, sendo

muito influenciada pela psique coletiva. A identificação do Ego com a Persona provoca o

afastamento da identidade pessoal. Para Jung (1985), a persona, a anima e o animus são

estruturas de relação, ao passo que o ego e a sombra são estruturas de identidade.

A sombra indica o que não conhecemos ou negamos a respeito de nós mesmos. A

sombra é o arquétipo que representa os aspectos obscuros da personalidade, desconhecidos da

consciência, podendo se tornar mais acessível a ela. Normalmente há resistências do sujeito

em reconhecer as próprias sombras, o que pode levá-lo inconscientemente às projeções. A

integração da sombra é geralmente feita com relativo esforço moral. Ela se opõe à persona e

se situa num regime mútuo de compensação. Reconhecer a sombra é um passo inicial no

processo de individuação (RAMALHO, 2002).

Segundo Nise da Silveira (1997) “todo ser tende a realizar o que existe nele, em

germe, a crescer, a completar-se” (p. 77). Embora o desenvolvimento das potencialidades

humanas seja impulsionado por forças instintivas inconscientes, isso adquire um caráter

peculiar: o homem é capaz de tomar consciência desse desenvolvimento e de influenciá-lo. É

no confronto do inconsciente com o consciente, no conflito como colaboração entre ambos é

que os diversos componentes da personalidade amadurecem e unem-se numa síntese, na

realização de um indivíduo específico e inteiro, portanto, o processo de individuação não

consiste num desenvolvimento linear.

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Page 11: Artigo Heleonora Macedo

Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por "individualidade"

entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também

que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo (JUNG, 1985, p. 49).

Jung apud Sharp (1997) diz que “a individuação tem dois princípios: em primeiro

lugar, é um processo interno e subjetivo de integração, e, em segundo, é um processo

igualmente indispensável de relacionamento objetivo. Nenhum pode existir sem o outro,

embora, algumas vezes, predomine um e, algumas vezes, outro” (p. 91).

A individuação e a vida vivida segundo os padrões coletivos são, contudo, dois

destinos divergentes. Segundo Jung, eles se relacionam mutuamente pela culpa. Quem quer

que trilhe o caminho pessoal torna-se, até certo ponto, afastado dos valores coletivos, mas não

perde, por isto, aqueles aspectos da psique que são inerentemente coletivos. Para expiar esta

“deserção”, o indivíduo é obrigado a criar algo de valor em benefício da sociedade (SHARP,

1997).

A individuação nos afasta da conformidade pessoal e, por isso, da coletividade. Esta é a culpa que o individuante deixa atrás de si, perante o mundo, a culpa que deve esforçar-se por redimir. Ele deve oferecer um resgate em lugar de si mesmo, isto é, deve gerar valores que sejam um substituto equivalente de sua ausência na esfera pessoal coletiva. Sem esta produção de valores, a individuação final é imoral, e, mais do que isto, suicida... (JUNG apud SHARP, 1997, p. 91)

Para Paolo Francesco Pieri (2002), o conceito da individuação é o conceito central da

psicologia analítica com o qual se entende genericamente o vir a ser da personalidade, e em

particular o processo de transformação contínua de uma individualidade que vem

psiquicamente a constituir-se em referência a uma substância comum ou coletiva.

A partir dessa definição, surge outro elemento importante do processo individuativo: o

entrelaçamento fundamental entre o indivíduo e o grupo, o colocar-se em relação entre o eu e

o outro para a concretização desse estágio psicológico (PIERI, 2002).

O processo de individuação envolve fundamentalmente um diálogo contínuo entre o

Ego e o centro regulador da psique, o Self.

Self é o centro regulador da psique e o arquétipo central da ordem e pode ser

simbolicamente representado pelo quadrado, pelo círculo, pela mandala, pela criança, pelo

quaternário, etc. Abrange a psique consciente e inconsciente e segundo Jung a meta da vida é

chegar a essa totalidade, mas afirma que não devemos nutrir a esperança de chegar a essa

totalidade, acrescenta ainda que o self está para o ego assim como o sol está para a terra

(RAMALHO, 2002).

11

Page 12: Artigo Heleonora Macedo

Segundo Leon Bonaventure apud Von Franz (1984), "toda experiência interior tem

que ser mediada pela relação com o outro. Nunca alguém se individualiza sozinho, e a

finalidade da individuação não é ficar só; pelo contrário, é estar em relação, cada um a seu

modo" (p.11). Nesse caso, os pais adotantes compartilham com seus filhos adotivos suas

experiências físicas e psicológicas, de forma voluntária e mesmo involuntária. Essa mediação

com o outro é elemento fundamental do processo individuativo vivenciado por esses pais.

No processo de adoção, destacamos a trajetória dos pais adotantes, onde se percebe a

elaboração psicológica vivenciada por eles, que transita de uma inconsciência inicial a um

grau de consciência elevada ao vivenciar a maternidade/paternidade. Nesse sentido, eles

tomam conhecimento de si mesmos, apesar de apresentarem cada um as suas particularidades.

Muitos conteúdos podem emergir nessa trajetória de descobertas, o que possivelmente

propicia uma viagem que esses pais empreendem ao passado a partir do ato de rever valores e

expectativas antigas guardadas em suas memórias.

Pode-se pensar ainda que a trajetória da mãe se faz na recuperação de sua infância, na

busca de sua maternidade perdida; ela recupera o filho que “não teve”. Assim, nesse processo,

se, de um lado, podemos perceber a ligação adotiva como meio de encontro com a

maternidade, por meio de uma espécie de ritual sagrado, também temos o embate entre dois

sujeitos que, ao se encontrarem, simultaneamente se diferenciam e se integram, o que nos

remete ao processo individuativo, em que o sujeito se reconhece como si mesmo após

estabelecer o confronto com o que é do outro. A partir desse vínculo mãe-filho é possível que

se atinja a individualidade e a unidade desejadas, portanto, os pais adotantes iniciam o

processo individuativo por que começam a alcançar assim, o centro de si mesmos e o centro

de um novo mundo, uma nova vida.

Como o sujeito não é apenas um ser à parte, independente, mas pressupõe, pela sua

própria existência, uma relação coletiva, o processo de individuação deve apontar para

relações coletivas amplas, e não ao isolamento. “A individuação não exclui a pessoa do

mundo, mas aproxima o mundo dela” (JUNG apud SHARP, 1997, p. 91).

O processo de individuação envolve fundamentalmente um diálogo contínuo entre o

ego e o centro regulador da psique, o self. Um dos estágios em que o processo de individuação

se desenvolve é o reconhecimento da sombra e o desvestimento da roupagem da persona

(RAMALHO, 2002).

12

Page 13: Artigo Heleonora Macedo

A SOMBRA NA FAMÍLIA

A família é a unidade básica de interação social que tem por finalidade assegurar a

sobrevivência biológica da espécie, bem como propiciar o desenvolvimento psíquico dos

descendentes decorrente da constante aprendizagem proveniente dessa interação social. Ela

por sua vez, se desenvolve através de três tipos de relações pessoais, sendo elas: de aliança

(casal); de filiação (pais/filhos) e de consaguinidade (irmãos) (OSÓRIO, 2002).

A família tem como principais objetivos, além de preservar a espécie, nutrir, proteger

a descendência e fornece-lhe condições para aquisição de sua identidade pessoal, transmitindo

valores éticos, étnicos, religiosos e culturais. Entretanto, deve-se considerar que a família é

um sistema vivo de constantes interações e trocas de informações com o meio externo e, por

conseguinte, está sujeita às demandas de mudanças vindas tanto da esfera intra como extra

familiar (MINUCHIM, 2002).

A respeito das configurações familiares, pode-se afirmar que a família nuclear é aquela

que se constitui pelo tripé pai-mãe-filhos; a família extensa é a que também é composta pelos

demais membros da família que possuem algum laço de parentesco; e a família abrangente é a

que inclui mesmo os não parentes, mas todos aqueles que coabitam juntos (OSÓRIO, 2002).

Toda família, independente de sua configuração, possui papéis familiares, que não

necessariamente correspondem aos indivíduos que convencionalmente se designam como

seus depositários, por exemplo, a irmã pode assumir o papel de mãe e vice-versa (OSÓRIO,

2002).

É importante ressaltar que o afeto é indispensável para a sobrevivência do ser humano.

Segundo Osório (2002), a primeira e fundamental função psíquica da família é prover o

alimento afetivo indispensável à sobrevivência emocional dos seus recém-nascidos.

Segundo Zweig e Abrams (2005) a família é o palco onde encenamos a nossa

individualidade e o nosso destino, sendo o nosso centro de gravidade emocional, o local onde

começamos a ganhar identidade e a desenvolver o caráter sob a influência das diferentes

personalidades que nos cercam.

De acordo com Zweig & Wolf (2000), a sombra cultural é a estrutura maior dentro da

qual a sombra pessoal se desenvolve. A sombra cultural ajuda determinar o que é permitido e

o que é tabu, através da política, economia, religião, educação, arte e mídia, moldando assim a

persona familiar e a individual. Na cultura contemporânea, em constante movimento, muitas

imagens e idéias que não podiam ser sequer mencionadas há duas décadas vêm sendo

13

Page 14: Artigo Heleonora Macedo

publicamente discutidas: o abuso sexual de crianças, o hábito de bater na esposa, o alcoolismo

e a dependência de remédios. Os autores afirmam que:

...neste momento cultural específico, a sombra está também irrompendo nas letras violentas do rock e do rap, em um número crescente de livros sobre o demônio e sobre o mal, e no ciberespaço, onde os usuários da internet assumem identidades de sombra para experimentar seus eus variados (p.70).

Além disso, Zuweig & Wolf (2000), relatam que:

...as sombras se formam dentro da família, fazendo de nós quem nós somos. E isto conduz ao trabalho com a sombra, que nos transforma em quem podemos vir a ser. As famílias são a nossa origem e, para muitos e nós, o destino. Nascemos em família, estamos encerrados na família, somos nutridos e apreciados pela família. Ao mesmo tempo, somos negligenciados pela família, traídos pela família, e testemunhamos a violência dentro da família. No final, morremos cercados pela família (p. 75).

Os autores enfatizam que atualmente à medida que foram emergindo da sombra

cultural segredos familiares tais como abuso infantil, violência contra mulher e vícios

epidêmicos, as fantasias de uma família perfeita, foram despedaçadas. Na verdade, muitas

famílias existem para nos colocar à mercê exatamente daqueles sofrimentos dos quais

prometiam proteção, contudo, vê-se que por todo o lado o amor e a violência, a promessa e a

traição caminham juntos. “O lar também é a moradia da sombra” (p. 76).

De acordo com Zweig e Abrams (2005) “cada um de nós tem uma herança psicológica

que não é menos real que nossa herança biológica” (p. 69). Herança essa que abrange um

legado de sombra absorvido e transmitido pela formação psíquica do ambiente familiar, onde

estão expostos temperamentos, valores, hábitos e comportamentos dos membros da família.

Os autores constatam que com freqüência, os problemas que os pais não conseguiram resolver

em suas próprias vidas, acabam por se alojar nos filhos sob a forma de disfunções nos padrões

de socialização.

Para Zweig e Abrams (2005) existe uma relação direta entre a formação do ego e da

sombra: o “eu reprimido” que é um subproduto natural do processo de construção do ego que

acabará se tornando o espelho do ego. Reprime-se aquilo que não se encaixa na visão que se

faz de si mesmo e, desse modo, vai-se criando a sombra. Devido à natureza necessariamente

unilateral do desenvolvimento do ego, as qualidades negligenciadas, reprimidas e inaceitáveis

acumulam-se na psique inconsciente e se organizam como uma personalidade inferior – a

sombra pessoal.

Esses autores afirmam ainda que aquilo que é reprimido não desaparece. Continua a

viver dentro do sujeito, fora da vista e fora da mente, mas ainda assim, real; “um alter ego

14

Page 15: Artigo Heleonora Macedo

inconsciente que se esconde logo abaixo do limiar da percepção” (p.69). É frequente que ele

irrompa do modo mais inesperado, em circunstâncias emocionais extremas.

A sombra dos outros membros da família exerce forte influência sobre a formação do

eu reprimido da criança, especialmente quando os elementos escuros não são reconhecidos

dentro do grupo familiar ou quando os membros da família conspiram para esconder a sombra

de um deles, alguém poderoso, ou fraco, ou muito querido (ZWEIG e ABRAMS, 2005).

Segundo Pauli e Ferreira (2009), o fenômeno da adoção em seu aspecto psicológico,

que abrange as diferentes perspectivas em que esse assunto pode ser compreendido, encontra-

se fortemente alicerçada por uma visão negativa da família. Decorre daí um amplo conjunto

de pesquisas demarcadas pela patologização de crianças e famílias, ideologia dominante, a

qual tende a interpretar as situações vividas por esses sujeitos, como, por exemplo, a ruptura

da relação com os pais, a probabilidade de permanência em abrigos e a privação de uma

relação estável com uma pessoa específica, como fatores de risco, prejudiciais ao

desenvolvimento. Nessa direção, a maioria dos estudos deixa claro que um passado com

privações e maltratos não é gratuito para o desenvolvimento, ou seja, o arquétipo do abandono

estaria instaurado e gerando área de sombra que “determina” desequilíbrios e anormalidades

nestas crianças ou ainda um histórico de comprometimentos generalizados.

Nesse sentido, faz-se necessário uma análise do processo de adoção a partir do viés da

psicologia, tanto no que diz respeito aos medos dos pais em revelar a origem da criança

adotiva quanto do reconhecimento dos seus próprios anseios, expectativas e dificuldades, o

que pode favorecer um distanciamento do processo de individuação, e, portanto,

desintegração da sombra.

ADOÇÃO SAINDO DA SOMBRA

Pesquisadores afirmam que a curiosidade das crianças pode ser inibida diante da

dificuldade que os adotantes venham a demonstrar para revelar a verdade sobre sua origem,

por conta da dor que isso possa representar para todas as partes envolvidas (WOILER, 1987).

A criança, a todo o instante, é impelida a conhecer as conjunturas da sua origem que

tantos os pais tentam negar, isolar, cindir e reprimir. Tais percepções também se ancoram em

Levinzon (2005), Piccini (1986), Costa (1984), cujas observações clínicas explanam que,

consciente ou inconscientemente, a criança sabe a verdade, que quando não revelada pode

desencadear uma série de distúrbios, como o desinteresse pelos estudos e o uso de drogas.

15

Page 16: Artigo Heleonora Macedo

Pereira e Santos apud Pauli e Rossetti-Ferreira (2009) esclarecem ainda: "O interdito, em vez

de ter um papel estruturante, aprisiona o psiquismo no campo da impossibilidade, já que lhe é

vedado nomear determinados conteúdos ansiogênicos" (p.236).

Segundo Osório (2002), a família deve proporcionar o ambiente adequado para a

aprendizagem empírica que norteia o processo cognitivo de suas crianças, bem como facilitar

a comunicação e o processo de interação da sua prole com o mundo. Cabe aos pais ou as

pessoas que exercem as funções parentais assegurarem a formação biopsicossocial dos seus

descendentes. Contudo, deve-se lembrar que os pais influenciam e, em certa medida

determinam os comportamentos dos seus filhos, mas as condutas desses, por conseguinte,

igualmente condicionam e modificam as atitudes dos pais. As funções familiares não são vias

de mão única, mas sim, um constante processo de trocas, mutualidade e interações afetivas na

medida em que seus filhos vão crescendo. Qualquer que seja a sua estrutura, a família

mantém-se como o círculo relacional básico para as relações da criança com o meio.

A família, ao desempenhar ainda o papel de mediadora entre a criança e a sociedade,

possibilita o processo de socialização da mesma, outro elemento essencial para o

desenvolvimento cognitivo infantil. Contudo, é imprescindível a existência e natureza das

interconexões com outros ambientes complementares, que permitam contextualizar os

fenômenos do desenvolvimento nos vários níveis do mundo social (ANDRADE, 2005).

No entanto, segundo Zweig e Abrams (2005), alguns mecanismos são postos em

movimento quando uma pessoa foi profundamente ferida por experiências de traição e

desilusão na infância. A criança se sente rejeitada e traída quando a transição da totalidade do

estado arquetípico original para o relacionamento pessoal mais humano está ausente ou é

inadequada. Um exemplo que os autores trazem é quando a mãe continua a se identificar com

o papel arquetípico da mãe protetora e nutridora mesmo que outros sentimentos emoções

talvez opostos, estejam surgindo no seu relacionamento com os filhos. Estes precisam

experimentar um quadro mais abrangente da verdadeira personalidade da mãe para poderem,

eles também, começarem a experimentar mais a sua própria individualidade.

Quando a mãe se identifica com o arquétipo materno positivo, a mãe negativa surgirá

fortemente ao seu inconsciente. O filho ao invés de vivenciar uma transição da Mãe

arquetípica para a mãe mais humana e dotada de muitos matizes de sentimentos e emoções,

vê-se aprisionado entre duas forças arquetípicas opostas.

Essa descoberta destrói, de modo abrupto, seu senso de totalidade e produz um

rompimento na sua personalidade; o que ele experimenta é a rejeição e a traição. Ele se

ressente por ser desalojado dos limites da situação arquetípica mãe-filho positiva, mas, ao

16

Page 17: Artigo Heleonora Macedo

mesmo tempo, seu impulso para a individuação instiga-o a prosseguir. Suas escolhas são

limitadas: ou permanece uma criança ou evoca a ira da repressora e exigente mãe negativa

absoluta. Não existe escolha intermediária. Ele se defronta, portanto, com uma força escura

que destrói todo e qualquer senso de gratificação ou realização, mesmo que prossiga rumo ao

objetivo de formar e expressar sua própria individualidade. E assim é que ele é traído

(ZWEIG e ABRAMS, 2005).

Na mesma medida em que a mãe positiva aceita e ama a natureza da criança com todas

as suas fraquezas e inadequações, a mãe negativa a rejeita e exige que suas insuficiências

sejam superadas. Isso, no entanto, ocorre num nível coletivo, de modo que equivale a uma

rejeição de tudo aquilo que é único e individual na criança; ou de todos os fatores que não

correspondam à imagem que a mãe possa ter de como seu filho deveria ser. A conseqüência

de semelhante experiência é que a criança precisa esconder ou reprimir a sua singularidade, e

essas qualidades incorporam-se à sombra. Já que a sombra sempre contém muitas coisas que

são realmente inaceitáveis, repulsivas e prejudiciais para outros e à sociedade, essa

contaminação de individualidade e sombra pode ser desastrosa. Pois a pessoa então

experimenta a aceitação da alma e da sombra como idênticas. Isso faz com que lhe seja

extremamente difícil estabelecer ou manter contato íntimo com qualquer pessoa. Sempre que

alguém começa a se aproximar dela, ela invariavelmente fará algo para que esse alguém a

rejeite. Portanto, quando uma pessoa rejeita e provoca a rejeição, a situação original de

sofrimento está se repetindo. E é óbvio que ela não evita o sofrimento através desses

mecanismos inconscientes (ZWEIG e ABRAMS, 2005).

Existem elementos infantis e regressivos na sombra que deveriam ter sido assimilados

e integrados à personalidade como um todo; mas isso muitas vezes não acontece devido à

experiência de severa rejeição pelo arquétipo parental negativo internalizado. Sempre que

existe essa contaminação entre a alma e a sombra, a pessoa continua a se sentir rejeitada

mesmo que encontre aceitação e amor profundos. Ela exige que a outra pessoa a redima da

culpa que sente a respeito dos aspectos inaceitáveis e destrutivos da sua sombra, os quais ela

não diferenciou da totalidade do seu ser. Alguns elementos da sombra, tais como exigências

infantis e necessidades de dependência, sexualidade infantil ou indiferenciada, avidez,

brutalidade, etc, embora façam parte da condição humana, precisam ser contidos ou irão ferir

os outros (ZWEIG e ABRAMS, 2005).

Existe, portanto, uma necessidade profunda de se livrar da culpa e dos elementos

amedrontadores da sombra; e é por isso que a sombra é continuamente trazida para aqueles

relacionamentos que oferecem a possibilidade de contato humano íntimo.

17

Page 18: Artigo Heleonora Macedo

Se pretendem ter sucesso ao lidar com a sombra dos filhos, os pais precisam aceitar e

estar em contato com sua própria sombra. Os pais que tem dificuldade em aceitar seus

próprios sentimentos negativos e suas reações menos nobres, acharão difícil aceitar de modo

criativo o lado escuro dos filhos. Estar disposto a lidar criativamente com o problema da

sombra exige dos pais uma dose incomum de sutileza, de consciência, de paciência e de

sabedoria. Não se pode exagerar na permissividade; não se pode exagerar na austeridade

(ZWEIG e ABRAMS, 2005).

A vida familiar em geral, e ser pai e mãe em particular – é um caminho no qual o

problema da sombra pode ser enfrentado e trabalhado, pois é certo que a vida familiar inclui

uma constelação de sentimentos negativos. O amor por um filho pode ser superado, ao menos

momentaneamente, pelo ódio; o desejo sincero de fazer o melhor pelo filho pode ser superado

por fortes sentimentos de raiva ou de rejeição. E, desse modo, vê-se o quanto somos

divididos, e essa autoconfrontação vai gerar a consciência psicológica. Aí está um dos grandes

méritos da personalidade da sombra: o nosso confronto com a sombra é essencial para o

desenvolvimento da nossa consciência (ZWEIG e ABRAMS, 2005).

Zweig & Wolf (2000) sugerem que um meio ambiente natural, ou espaço psíquico,

permite o aprofundamento e o desenvolvimento das almas individuais dos membros da

família. Os autores denominam esse ambiente como a alma familiar e quando a alma familiar

está presente, os membros se sentem compreendidos, mas tem conexões interiores uns com os

outros, ao invés de um relacionamento obrigatório e imposto. Apontam ainda que quando a

alma familiar é palpável, os membros se sentem à vontade, certos de que são vistos e aceitos

como são. “Quando a alma familiar pode ser sentida, seus membros não precisam esconder”

(p. 79).

2. MÉTODO

Foi utilizado neste trabalho o tipo de pesquisa descritiva pelo método qualitativo. O

ambiente natural como fonte de dados e o pesquisador como instrumento fundamental; o

caráter descritivo; o significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida como preocupação

do investigador e enfoque indutivo, são algumas características de um trabalho de pesquisa

qualitativo que se encaixam na forma de sintetização do mesmo. As pesquisas qualitativas

trabalham com: significados, motivações, valores e crenças e estes não podem ser

simplesmente reduzidos às questões quantitativas, pois que, respondem a noções muito

18

Page 19: Artigo Heleonora Macedo

particulares. Entretanto, os dados quantitativos e os qualitativos acabam se complementando

dentro de uma pesquisa. Além disso, a abordagem é atual e diferente dos métodos

quantitativos, mas constitui-se numa alternativa de investigação que permite gerar

condições mais abrangentes e holísticas em contextos organizacionais e sociais

(GODOY, 2000).

O estudo de caso foi utilizado como estratégia de pesquisa, visto que se tem pouco

controle sobre o evento estudado e o projeto encontra-se focado num fenômeno

contemporâneo contextualizado na vida real (YIN, 2001).

Yin (2001) relata que o estudo de caso contribui para a compreensão dos fenômenos

individuais, organizacionais, sociais e políticos, portanto, vem sendo uma estratégia comum

de pesquisa na psicologia, na sociologia, na ciência política, na administração, no trabalho

social e no planejamento. O estudo de caso permite uma investigação para se preservar

características significativas dos ciclos de vida individuais, processos organizacionais, dentre

outros e, portando, o mais adequado para a pesquisa em questão.

2.1 CONTEXTO

Este estudo foi realizado na cidade de Salvador, Bahia, no ano de 2010, na residência

da família, conforme horário escolhido previamente pelo casal, que optou em participar das

entrevistas fora da presença das crianças, ou seja, no horário em que estariam na escola.

2.2 PARTICIPANTES

O estudo de caso foi realizado com um casal da classe média, residente na cidade de

Salvador-BA, na faixa etária de 35 a 55 anos, pais adotivos de crianças gêmeas, ambas do

sexo masculino, atualmente com 4 anos de idade. Tanto o pai quanto a mãe são doutores em

química, sendo ele graduado em engenharia química e ela em nutrição e farmácia.

2.3 INSTRUMENTOS

Como se faz necessário conseguir informações ou coletar dados que não seriam

possíveis somente através da pesquisa bibliográfica, optou-se em utilizar entrevistas como

instrumento mais adequado para essa pesquisa.

19

Page 20: Artigo Heleonora Macedo

Por tratar-se de uma pesquisa qualitativa que exige a necessidade de aprofundamento,

o instrumento utilizado como técnica de coleta de dados foi a entrevista por pautas ou semi-

estruturada ou semi-diretiva, porque apresenta relação de pontos de interesse que guia o

entrevistado durante a coleta de dados (GIL, 1995).

A entrevista é definida por Haguette (2003) como um “processo de interação social

entre duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a obtenção de

informações por parte do outro, o entrevistado” (p.86).

A entrevista como coleta de dados sobre um determinado tema científico é a técnica

mais utilizada no processo de trabalho de campo. Através dela os pesquisadores buscam obter

informações, ou seja, coletar dados objetivos e subjetivos. Os dados objetivos podem ser

obtidos também através de fontes secundárias tais como: censos, estatísticas, etc. Já os dados

subjetivos só poderão ser obtidos através da entrevista, pois que, eles se relacionam com os

valores, às atitudes e às opiniões dos sujeitos entrevistados (GIL, 1995).

Neste caso, o pesquisador deve seguir um conjunto de questões previamente definidas,

mas ele o faz em um contexto muito semelhante ao de uma conversa informal. O

entrevistador deve ficar atento para dirigir, no momento que achar oportuno, a discussão para

o assunto que o interessa fazendo perguntas adicionais para elucidar questões que não ficaram

claras ou ajudar a recompor o contexto da entrevista, caso o informante tenha “fugido” ao

tema ou tenha dificuldades com ele. (GIL, 1995).

As entrevistas semi-estruturadas (Apêndice A) foram realizadas e elaboradas pela

própria pesquisadora. Para facilitar a execução destas entrevistas foi utilizado como recurso

um gravador, com o propósito de que não fossem perdidos detalhes importantes do

depoimento do casal com a devida permissão dos participantes.

O roteiro da entrevista com o casal participante (Apêndice A) foi dividido em 3 partes:

1ª parte: Identificação

2ª parte: Conceito e configuração familiar

3ª parte: Adoção: Conceito, maternidade/paternidade, expectativas e vivências e

mudanças significativas

2.4 PROCEDIMENTOS

Inicialmente, foi estabelecido um contato presencial com o casal para apresentar e

explicar os objetivos do projeto e a possibilidade de desistência a qualquer momento que

desejassem e para marcar a entrevista no tempo oportuno.

20

Page 21: Artigo Heleonora Macedo

A última etapa, da análise dos dados, será a interpretação dos dados por parte da

pesquisadora, onde se pretende estabelecer uma articulação entre os dados e os referenciais

teóricos da pesquisa, a fim de responder ao problema de pesquisa e atingir os objetivos.

2.5 ANÁLISE DOS DADOS

As entrevistas foram transcritas na íntegra com a finalidade de obter informações

relevantes, segundo a análise de conteúdo de Bardin e tendo como base teórica a psicologia

analítica.

Bardin (2002) reúne um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais sutis

em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a discursos diversificados. O fator comum

destas técnicas múltiplas e multiplicadas, desde o cálculo de frequências que fornece dados

cifrados, até à extração de estruturas traduzíveis em modelos, é uma hermenêutica controlada,

baseada na dedução: a inferência.

2.6 CONSIDERAÇÕES ÉTICAS

As entrevistas foram realizadas mediante a autorização dos sujeitos através do termo

de consentimento livre e esclarecido (Apêndice B), elucidando os objetivos e métodos que

serão utilizados, bem como será levada em consideração a integridade dos participantes,

preservando seu bem estar e sua dignidade. As informações dos participantes serão utilizadas

exclusivamente com objetivo acadêmico, deixando claro que nomes ou quaisquer informações

que permitam a identificação dos participantes serão preservados. Por fim, os participantes

possuirão o direito de, a qualquer momento, retirar a sua participação, se desejado for.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os dados foram analisados a partir do seu conteúdo e posteriormente relacionados com

o que foi observado na revisão de literatura. O teor das entrevistas foi considerado a partir do

agrupamento de quatro categorias. A primeira categoria retrata sobre a configuração familiar.

A segunda categoria analisa os motivos que influenciam na escolha pela adoção. A terceira

categoria visa refletir sobre a transição para maternidade e paternidade no processo de adoção

e a quarta categoria analisa as mudanças sociais e psíquicas observadas nos pais adotantes

21

Page 22: Artigo Heleonora Macedo

decorrentes da adoção, ressaltando que todas estarão focadas na questão da sombra e processo

de individuação.

3.1 IDENTIFICAÇÃO DOS PARTICIPANTES

A família entrevistada é composta por quatro membros, o pai (Marcelo) que tem 52

anos, possui doutorado, uma graduação, natural de Dom Macedo Costa/BA, a mãe (Ana) com

48 anos, possui também doutorado, 2 graduações, natural de Itabuna/BA e os dois filhos

adotivos, gêmeos, que possuem 4 anos, cujos nomes fictícios são Marcos e Mário.

Os participantes são casados com comunhão parcial de bens há 7 anos. Ambos relatam

que esta é sua segunda união.

3.2 CONFIGURAÇÃO FAMILIAR

Conhecer a família, sua constituição, a relação entre os membros que a compõe, quem

são, como é seu cotidiano, como estruturam a vida familiar frente à adoção é de fundamental

importância para compreender as configurações familiares.

Os pais adotivos podem complicar ou facilitar essa formação familiar. O perigo para

uma criança adotada são as circunstâncias encontradas nas relações familiares, tais como: o

adotado substituir um filho morto, ou os abortos de filhos, ou após a morte do pai ou da mãe

de um dos genitores, ou ainda para substituir no casal o parceiro ausente por falecimento ou

separação. É importante lembrar que existe, nas relações familiares, um caráter simbólico

subjacente à estrutura familiar, que diz respeito ao modo como a família se organiza com

referência aos acontecimentos vivenciados. A matriz, a estrutura familiar inconsciente, provê

os significados para esses elementos (COSTA & ROSSETTI-FERREIRA, 2005).

As relações familiares constituem o plano consciente e se organizam em diferentes

formas por intermédio de uma matriz simbólica inconsciente. Entretanto, estas e outras

questões relativas ao surgimento do desejo da busca de um filho, da necessidade de ter uma

família, não são só referentes a adoção mas, em geral, a todos os seres humanos (COSTA &

ROSSETTI-FERREIRA, 2005).

Na entrevista, Ana narra que na sua primeira união não foi possível construir uma

família, embora tenha gestado uma criança que nasceu no seu 8º mês de gravidez e por

malformação genética, faleceu em seguida. Depois dessa gravidez, Ana teve mais 3 ou 4

gestações interrompidas espontaneamente. Iniciou um tratamento médico no qual foi

22

Page 23: Artigo Heleonora Macedo

diagnosticado o problema que gerava a sua dificuldade em engravidar, porém nesse período

ocorreu a separação do casal. Relata que teve que reorganizar sua vida e que tinha feito a

opção pela adoção, decidindo ser mãe solteira. Ana, aos 39 anos já havia inclusive se inscrito

no Conselho Tutelar, tamanho era o seu desejo de construir sua família, mas exatamente nesse

período conheceu Marcelo.

Marcelo, por sua vez, também vinha de uma união longa onde não foi possível ter

filhos. Relata que se conheceram no doutorado e conviveram juntos um ano e meio antes de

se casarem oficialmente e propôs a Ana que tentassem filhos biológicos.

Quando questionados acerca do significado de família, Ana responde: “Família

(pausa), óh pra mim família é a base de tudo, de uma vida estável, de uma família feliz, de

uma vida equilibrada, tanto a família de origem quanto a família que a gente construiu

juntos né?” complementa sua fala dizendo que sua família de origem é muito numerosa e que

sempre quis ter uma família, sendo esta o caminho da felicidade.

Marcelo concorda com o conceito de família trazido por Ana, com a diferença de que o seu

núcleo familiar é composto apenas por sua mãe e irmã mais nova. Acrescenta que vê a família

como “algo muito mais amplo, onde tem que realmente haver essa base sólida do lado

psicológico, do emocional, porque sem isso nós não conseguiríamos não.” O entrevistado

enfatiza ainda o seu desejo de constituir família: “Sempre quis ter filhos e gêmeos então, eu

sempre quis, sempre achei muito bonito”.

Estes relatos parecem concordar com os autores Zuweig & Wolf (2000) quando citam

que a família tem um poder mítico – a fonte de todo o bem, a defesa contra o mal. É exaltada

como um ideal sagrado, que promete raízes, parentesco de sangue, gerações futuras. Ela liga

cada vida individual ao seu destino, dando a esta vida seu código genético, bioquímico e

psicológico, junto com bênçãos e maldições. “Imaginar a vida sem família é imaginar a vida

em queda livre, sem um recipiente, sem um chão para pisar” (p. 75).

Zuweig & Wolf (2000) acrescentam ainda que o arquétipo da família compele o

sujeito a segui-lo, a se vincular, a amar, a recriar, ou seja, a gerar uma família. Então,

desejam-se inicialmente relações consaguíneas; anseia-se por uma comunidade de parentes

que os compreenda implicitamente, que os ofereça segurança e aceitação. E no lugar onde se

encontra a família, encontra-se o lar: “mais que um lugar, o lar é a moradia da alma” (p.76).

Em um casal que não tenha filhos, como na primeira união de Ana e na primeira união

de Marcelo, os papéis seriam restritos ao marido e a esposa, no entanto, em uma família

nuclear, teriam, além desses papéis, também os papéis de mãe, pai, filhos e irmãos. Na família

23

Page 24: Artigo Heleonora Macedo

extensa, aparecem os papéis dos avós, dos tios e de outros parentes do sistema familiar que

convivem juntos (OSÓRIO, 2002).

Apesar da configuração familiar de Marcelo e Ana constituir-se em uma família

nuclear, quando perguntados quem eles consideravam membros de sua família, fica claro em

seus relatos que a consideração emergente é a de uma configuração de família extensa,

prolongando ainda para as suas redes de amigos. Ana inclui, além dos pais e irmãos, seus

sobrinhos, tios, cunhadas, amigos mais próximos e ainda a família do marido. Marcelo

confirma ter a mesma visão de Ana, dizendo: “A família como ela coloca, a minha família é

dela, a dela também é minha.” Compara a sua família como os núcleos de japoneses, os

quais ele observou quando viveu em São Paulo, quando cita que são organizados, se

fortalecem e se ajudam mutuamente. “...é um conjunto, é uma união né ? de dois conjuntos

e não uma intercessão de alguns privilegiados”. Acrescenta que se algo lhes acontecer, os

filhos serão amparados pela família.

Atualmente, em virtude da grande transformação que está ocorrendo nas configurações

familiares, as possibilidades de adoção apresentam-se sob múltiplas formas e em diferentes

contextos. Embora a maior demanda ainda seja oriunda de casais jovens com problemas de

infertilidade, também casais com filhos biológicos, casais na meia idade, casais homossexuais

e pessoas solteiras têm manifestado interesse em constituir ou aumentar a sua família através

da adoção.

Como visto na revisão de literatura, à medida que emergem da sombra cultural

segredos familiares, as fantasias de uma família perfeita são dilaceradas. Conforme Zuweig &

Wolf (2000), muitas famílias existem para nos colocar à mercê exatamente daqueles

sofrimentos dos quais prometiam proteção, contudo, vê-se que por todo o lado o amor e a

violência, a promessa e a traição caminham juntos. “O lar também é a moradia da sombra” (p.

76).

3.3 MOTIVOS QUE INFLUENCIAM NA ESCOLHA PELA ADOÇÃO

É comum os casais sentirem-se discriminados socialmente por não poderem gerar

filhos, percebendo-se diferentes daqueles que o conseguem. A necessidade de semelhança é

inerente ao ser humano e é coerente o desejo de dirimir o desconforto da diferença.

Morales (2004) refere ter encontrado na sua prática clínica, vários casos em que o

casal procurava inconscientemente a adoção como método de solução para a infertilidade ou

24

Page 25: Artigo Heleonora Macedo

outros impedimentos de procriação. Segundo o autor, esse tipo de casal não estaria apto para

exercer a paternidade, pois ofereceria ao filho uma situação de inexistência psíquica.

Concordando com Whitmont (1998), é importante observar que características

reprimidas por serem incomensuráveis com os ideais da persona e os valores culturais gerais

podem ser básicas para as estruturas fundamentais da personalidade; porém, por terem sido

reprimidas, permanecerão primitivas e, portanto, negativas. Nesse sentido, a sombra consiste

nos complexos, nas características pessoais que repousam em impulsos e padrões de

comportamento, os quais são uma parte “escura” definida da estrutura da personalidade.

Quando perguntados sobre o significado da adoção, Marcelo relata que vê a adoção

como um caminho de duas vias, onde duas questões são resolvidas: o desejo de ter filhos, de

constituir uma família e o acolhimento de uma criança sem lar. Além disso, ressalta a sua

consciência social, dizendo: “...Então, essa visão social dela, além de resolver o problema

dela de adoção e o meu também, eu acredito, nós pensamos também no social.” Além de

contribuir com algumas questões sociológicas, onde compara a China com o Brasil, Marcelo

ressalta o desejo político de solucionar a questão da adoção “Eu tô muito satisfeito por ter

podido adotar meus filhos, mas eu ficaria muito mais satisfeito se o Brasil desse condições

pra aqueles pais que não podem criar, pudessem criar os seus filhos... eu poderia até me

sentir frustrado de não ter chance de adotar, de cuidar de meus filhos, mas o ideal seria

isso aí”.

Ana reafirma as palavras de Marcelo e ainda acrescenta: “Eu acho que adoção, ela é uma

forma legal, uma forma legalizada, agora mais do que nunca, legalizada de pais de família,

de casais que não podem ter seu filhos biológicos poderem legalmente construir a sua

família sem dever nada a ninguém, de forma legal”.

Weber (2002) enfatiza que o objetivo principal da adoção precisa ser o de proteger a

criança e não o que tradicionalmente tem sido: a criança ser uma solução para a necessidade

dos pais de formarem uma família. A autora aponta os diferentes significados e as variadas

interpretações que foram dados à adoção por diversas leis, culturas e religiões, mostrando

quanto esses instrumentos legais e os processos e procedimentos de adoção podem estar

permeados de conteúdos inconscientes que influenciam a percepção de pessoas interessadas

ou envolvidas em tais processos.

Todo ser humano, sente desejo, necessidade de procriação, de preservação da espécie,

sendo natural que deseje ter e criar seus próprios filhos. Mas, segundo Levinzon (2005), “nem

todas as famílias apresentam uma configuração na qual há uma continuidade biológica”

(p.12). Diante deste fato, a adoção representa a possibilidade de ter e criar filhos com os quais

25

Page 26: Artigo Heleonora Macedo

não há vinculação genética. E, proporciona à criança adotada, ser criada, ser cuidada por uma

família, ou seja, a adoção proporciona a satisfação das necessidades de desenvolvimento de

uma criança ao mesmo tempo em que transfere legalmente a responsabilidade parental dos

pais biológicos para os pais adotivos.

Observando na revisão de literatura os motivos pelos quais as pessoas buscam a

adoção, identificou-se na entrevista o desejo de ter filhos quando já se passou da idade em que

isto é possível biologicamente, quando Ana diz: “Eu sempre tive na minha cabeça que eu ia

ter uma família. Demorou um pouquinho porque eu podia, talvez assim, quando nos

casamos, eu tinha 41 anos né? Eu tinha 41 né? Nos casamos já mais corôas, mais

maduros, mas ainda foi tempo de resgatar, então é isso aí...”

A esterilidade de um ou ambos os pais e a morte anterior de um filho como pontuado

por Ana: “Adoção pra mim, sempre foi uma coisa muito resolvida, eu não tinha nenhum

problema com adoção, nunca tive, até porque tem um histórico na minha família e porque

eu já vinha de uma união que eu sofri muito pela via biológica, eu perdi um bebê com 8

meses, né? ... isso foi um trauma muito grande pra gente... Então aí depois de Renata eu

engravidei mais umas três vezes aí com dois meses eu perdia e eu não perdia

espontaneamente, eu tinha que fazer curetagem, eu tinha que me internar, então era muito

sofrido assim, então quando a gente começou a descobrir o problema, o casamento

acabou.”

Vêem-se ainda como motivos, as idéias filantrópicas, como mostradas no relato do

casal: Marcelo - “Como a minha também, com aquela visão social boa e não aquela coisa

individual e que o resto se dane, não! Então, essa visão social dela, além de resolver o

problema dela de adoção e o meu também, eu acredito, nós pensamos também no social”.

Ana - “e eu vejo também na adoção uma forma, como Marcelo falou, de minimizar esse

impacto social de pobreza, de famílias, de mães que tem muitos filhos e que não tem

condição mesmo financeira de cuidar dos seus filhos”.

O anseio de serem pais,  por parte de homens e mulheres que não possuem um

parceiro amoroso, pode ser percebido na fala de Ana quando relatou que já havia se inscrito

no Conselho tutelar depois da sua separação conjugal: “se não era possível ao lado de um

companheiro, ia ser sem um companheiro, foi quando eu conheci Marcelo”.

A aceitação da própria incapacidade de procriar implica uma redefinição da identidade

pessoal, da relação de casal, do projeto conjugal e das relações com a família extensa o que de

alguma forma gera uma ampliação de consciência, onde os aspectos sombrios são integrados.

26

Page 27: Artigo Heleonora Macedo

De acordo com D’Andrea (2002), se “assumir a diferença” das especificidades do

processo adotivo é a primeira condição para configurar-se a opção pela adoção. O primeiro

passo do percurso de um casal no caminho da adoção é assumir a “própria” diferença, ou seja,

a condição de sua impossibilidade de procriar. Ao assumir as dificuldades e impedimentos, os

pais adotivos precisam renunciar ao filho natural e abandonar as fantasias que sobre ele

projetaram, reconstruir um pacto afetivo com o seu parceiro, escolhendo voluntariamente

cuidar de um filho nascido de outros.

Weber (2002) demonstra que é possível construir uma relação de amor a partir de

aspectos como a revelação precoce, o diálogo entre pais e filhos, a preparação dos adotantes,

da família e dos amigos, a ausência de sentimentos de vergonha, a segurança na decisão, o

afeto e responsividade dos pais e a igualdade entre filhos adotivos e biológicos. Esses

aspectos são descritos como positivos na construção desse amor entre pais e filhos em uma

relação de adoção.

Whitmont (1998) afirma que o reconhecimento da sombra pode produzir efeitos muito

marcantes na personalidade consciente. A própria noção de que o mal da outra pessoa poderia

estar apontando para nós mesmos apresenta impactos de vários graus, dependendo da força de

suas convicções éticas e morais.

Quando se consegue formular e entender o sentido do conteúdo inconsciente

envolvido na escolha, tem início um processo de conscientização e consequente individuação.

3.4 TRANSIÇÃO PARA MATERNIDADE E PATERNIDADE NO PROCESSO DE

ADOÇÃO

É a inconsciência de uma pessoa em relação a ela mesma que traz a indiferenciação

entre ela e os outros. Sendo a psique constituída pelo consciente e inconsciente, mesmo em

pessoas atentas a si próprias, às vezes, pode acontecer de a consciência se achar mais próxima

a processos instintivos. Para falar disso, C. Jung (1986) retoma a situação de relacionamentos

que apresentam lacunas de inconsciência, onde se observa a falta de diferenciação com o

outro e a identidade inconsciente com ele. Na prática, essa situação, mais voltada a processos

ligados ao inconsciente, faz com que se suponha no outro uma estrutura psíquica semelhante à

própria, é quando acontecem as projeções. Projeta-se no outro, conteúdos próprios e que se

supõe serem do outro.

Geralmente enquanto tudo vai bem, os vínculos inconscientes de caráter projetivo

podem servir de pontes agradáveis e úteis, porém, manter uma convivência requer

27

Page 28: Artigo Heleonora Macedo

consciência. Quando essas projeções em relação ao filho adotivo caem, os pais percebem que,

na verdade, estavam se relacionando consigo mesmo, isto é, com a projeção.

Percebem-se essas projeções quando, perguntados o que é ser pai e mãe, Ana

responde: “é a maior responsabilidade, a de educar dois rapazes que hoje são crianças, mas

que passarão pela adolescência” e que o objetivo do casal não é formá-los para uma

profissão, mas é “formar dois homens de bem”. Para ela, a profissão seria uma consequência.

Acrescenta ainda que o amor é o motivador para educá-los porque além de ser um gerador de

energias, traz renovação de forças para o trabalho e para buscar a forma mais correta de

educá-los. Ana demonstra uma preocupação com os limites, argumentando que pelo menos

até os 7 anos é necessário trabalhar na formação do homem.

Marcelo, além de concordar com Ana, acrescenta que ser pai “é dar os fundamentos

básicos para que Marcos se torne um bom cidadão, para ser um homem de bem”,

acrescenta a questão de “dar os meios de sobrevivência, dar o sustento (pausa), as

ferramentas para que isso ocorra, para que se torne uma pessoa de bem”.

Ainda em outros momentos da entrevistas, projeções puderam ser observadas, a

exemplo, quando Marcelo coloca que “Eu quero passar para eles muito mais conhecimento,

não ficar exigindo, mas passar para eles um conhecimento que nós já temos, eu e Ana...Eu

digo, ó a gente pega o microscópio você fica com o micro mundo e eu pego com o telescópio

e fico com o macro e assim vai e passar umas coisas...tem que procurar uma melhor

maneira de encaixar isso...porque as escolas são muito precárias, cê tá entendendo?...

Então essas coisas assim básicas, eu quero passar para eles, que foram da minha época e

eu acho muito válido”

Marcelo ao responder sobre o ser pai constrói sentidos de que paternidade é

compromisso. Compromisso de cuidar, de ser um encaminhador, de mostrar o caminho certo,

dar bons exemplos e de formar caráter. Ao falar de si como pai, traz a sua história vivida

como filho e a figura de sua mãe. Marcelo espera ser um orientador e formador de caráter

como sua mãe foi para ele.

A escolha que se faz do objeto, no caso o filho, carrega projeções que não são

aleatórias, são determinadas pela similaridade psíquica entre quem escolhe e projeta e pelos

conteúdos psíquicos de quem é escolhido. Possivelmente a imagem que alguém faz do outro

está baseada nas projeções que lança sobre ele. Só com o desenvolvimento da consciência há

o distanciamento entre o sujeito e o objeto. A maturidade e a atenção a si mesmo promovem o

desenvolvimento dessa consciência (NEUMANN, 1999).

28

Page 29: Artigo Heleonora Macedo

Para Jung (1986), projetar conteúdos inconscientes é um fato natural e normal, assim

todo o ser humano contemporâneo, que não possua um caráter reflexivo acima da média, está

ligado ao meio ambiente por projeções inconscientes. A inconsciência é o que limita o contato

da pessoa com ela mesma e com o outro.

Whitmont (1998) refere que é preciso ser forte para não recuar ou não ser esmagado

diante da visão da própria sombra e é preciso ser corajoso para aceitar a responsabilidade pelo

“eu” inferior. Quando esse choque parece ser muito grande para aguentar, o inconsciente

costuma exercer sua função compensatória e vai em auxílio com uma visão construtiva da

situação, como no seguinte relato, quando foi perguntado ao casal como é ser pai/mãe

adotivos:

Ana - “Agora como é ser pai e mãe adotivo eu não sei, sabe por quê? porque pra

mim é ser pai e mãe, então, eu às vezes eu esqueço, eu esqueço, no dia-a-dia, no convívio, a

gente tá aqui, por exemplo, vamos supor que a gente passe uma semana de férias, eu

Marcelo e os meninos, numa pousada, numa praia, eu não vou me lembrar de que eles são

adotivos. Então para mim é ser pai e mãe, não é ser pai e mãe adotivos”

Marcelo - “a gente não lembra não, é como se fossem naturais. Eu acho que às

vezes, a gente... Porque se há essa separação ou não eu não sei, só sei que eles agem como

os filhos naturais”.

Ao mesmo tempo em que o casal retrata as desavenças e brigas entre os irmãos, afirma

em seguida a união entre eles, parecendo demonstrar uma compensação, como percebido no

relato do casal. Marcelo: “Um agride o outro, já vem com o sangue quente, porque um

meteu o pé na cara do outro, e é justamente o momento que a gente mais se dana, se

chateia, quando um agride o outro.”

Ana - “E eles, como eles são meninos a testosterona é muito alta, e quando um vem

pra cima do outro se a gente não apartar minha filha! Agora adoram se abraçar também,

se esfregar um no outro e eles então por ser gêmeos então tem toda aquela coisa de retratar

o útero, então eles gostam muito”.

Marcelo - “A gente incentiva esses momentos, a gente aplaude, agora a gente

repudia quando eles ficam..., é isso que eu quero dizer”.

Segundo Woodward (2000), quando se trata da adoção, o sujeito torna-se consciente

das representações sociais que constituem as identidades parentais aceitáveis do ponto de

vista social. Como um bom pai e uma boa mãe devem ser, comportar-se, sentir. Tudo isso fica

claro nos relatos abaixo quando os entrevistados foram perguntados se se consideravam um

bom pai e uma boa mãe.

29

Page 30: Artigo Heleonora Macedo

Ana: “Eu acho que sou. Eu acho que me considero. Eu quero assim amadurecer a

cada dia né? e ser sábia, eu quero ser uma mãe sábia pra, assim para conduzi-los

corretamente né? eu acho que isso é ser uma boa mãe né?”

Marcelo: “No caso sim, eu acho que sou também. Eu quero fazer mais ainda,

porque eles são bem pequenos, ainda não dá. Eu acho que sim, tanto é que eu sempre tô

testando, o tempo todo eu tô perguntando pra ver. É por isso que eu tô dizendo, eu ainda

não sou aquele pai completo porque eu acho que o pai é aquele cara que passa o

conhecimento adquirido para os filhos, para que eles não percam o tempo que nós

perdemos aprendendo, para que seja mais um caminho direto, eles peguem os atalhos,

entendeu? É isso.”

Para Dolto (1981) “um ser humano, desde a sua vida pré-natal, já está marcado pela

maneira como é esperado, pelo que representa, em seguida, pela sua existência real diante das

projeções inconscientes dos pais.” (p.13)

É como se o casal reproduzisse, de forma alienada, um determinado papel sem se dar

conta disso, o que acaba por restringir todo seu potencial inerente, abrindo margem para a

atuação da sombra.

Conforme foi salientado, nem sempre a escolha pela adoção é consciente. Ao invés de

representar uma possibilidade de integração da sombra, também pode estar a serviço dela.

Deve-se refletir acerca do perigo que traz a atuação inconsciente na transição

paternidade/maternidade na adoção: quanto mais rígida for a persona mais autonomia e força

a sombra terá.

Dessa forma, fica aparente a necessidade da ênfase psicológica na análise do processo

de adoção. É preciso olhar e identificar quais complexos podem estar por trás, para assim tirar

sua autonomia.

3.5 MUDANÇAS SOCIAIS E PSÍQUICAS OBSERVADAS NOS PAIS ADOTANTES

Costa & Rossetti-Ferreira (2005), em pesquisa desenvolvida com pais adotivos e

biológicos, argumentam que a transição para a parentalidade na adoção tende a ser abrupta,

sem um envolvimento gradual dos pais com seus papéis parentais e, por isso, os pais adotivos

tendem a ter mais dificuldades e passam por maiores tensões que os pais biológicos. Essas

mudanças são súbitas nas relações sociais, pois muitos pais ainda enfrentam o estigma

associado à adoção e atitudes negativas fundamentadas em concepções que valorizam a

fecundidade e laços consanguíneos. As autoras reforçam esse aspecto da rápida mudança para

30

Page 31: Artigo Heleonora Macedo

a parentalidade nas famílias adotivas e argumenta que esse processo tende a ser mais

estressante, pelas múltiplas escolhas que elas têm que fazer, sendo mais complexo e

multidimensional que para pais biológicos.

Geralmente o casal que se propõe a adotar uma criança vai ser minuciosamente

avaliado pela sociedade em vários aspectos. Por outro lado, o próprio casal desejará

corresponder as expectativas, e isso pode dificultar a construção do espaço que esse filho vai

ocupar em suas vidas (WOODWARD, 2000).

Nesse sentido, foi analisada a desconsideração / irrelevância dada a adoção pelos

participantes baseado no conceito de sombra. Na entrevista o casal chegou a mencionar que

“não lembravam que eram pais adotivos” (sic). Superficialmente é isso que mostraram, mas,

olhando mais atentamente nas entrevistas, pode-se perceber contradições em seus discursos e

o lugar onde o medo do comprometimento em relação a maternidade/paternidade aparece.

Segundo a Psicologia Analítica, as tentativas da consciência de entrar em contato com

os complexos são inicialmente do tipo mágico-apotropáico, isto é, tentativas de exorcizá-los,

considerando-os como não existentes, chamando-os de “imaginações”, constituindo assim

uma forma de assimilação, ou seja, uma forma de negação, pois aquilo que se nega a

existência não existe. Entretanto, com o decorrer do tempo, essas manobras vêm a falir e

então insurge um estado de descompensação e deslocamento. A consciência não é mais em

condição de negar e lentamente é o complexo que se apropria da consciência, assimilando-a

(ZIMEO, 2001).

De acordo com Zimeo (2001), sem o conhecimento consciente, a energia psíquica que

se direciona para o inconsciente não consegue se transformar saudavelmente, reaparecendo

como sintomas muitas vezes neuróticos, resultantes das informações antagônicas entre o

consciente e o inconsciente.

Quando uma família decide adotar um bebê, assim como os pais biológicos, cria

inúmeras expectativas, conscientes e inconscientes, sobre o mesmo. Mas, muitas vezes, os

pais levam para casa um bebê que está estressado, exausto, angustiado, por ter passado por

privações, ter vivenciado sentimentos de abandono, de rejeição. Ou seja, não teve um bom

começo. Outras vezes, o bebê não corresponde à expectativa física dos pais e, quando isso

acontece, muitos pais não se sentem à vontade para expressar seus sentimentos.

Consequentemente, não conseguem desempenhar suas funções maternas e paternas

adequadamente, o que repercute no desenvolvimento emocional da criança (COSTA &

ROSSETTI-FERREIRA, 2005).

31

Page 32: Artigo Heleonora Macedo

Com relação a essas expectativas e vivências (medos, anseios, desejos, fantasia sobre a

criança adotada) do casal no processo de adoção, Ana e Marcelo corroboram com as autoras

quando relatam as primeiras experiências relacionadas a chegada dos gêmeos e as mudanças

as quais experimentaram e experimentam atualmente. Ana, após contar a triste história de

negligência das crianças pelos pais biológicos, complementa dizendo: “Deus tem que tá

muito presente na nossa família pra que isso possa ser apagado. Eles não precisam saber

disso, nunca, nunca, nunca, não! assim eles saberem verbalmente, mas lá no id no ego, lá

no , essa coisa, dessa história de rejeição deles, de quando eles eram pequenininhos”.

O casal discorre sobre as mudanças ocorridas tanto no âmbito individual, quanto na

vida do casal e da família que os cercam. Inicialmente trazem os relatos sobre os primeiros

contatos e de como se sentiram mobilizados emocionalmente. Ana : “Sobre os meninos, ela

(a assistente social) disse assim pra mim: - Olhe não espere nenhum bebê Johnson, são

crianças desnutridas, mas são lindos e você precisa ver como eles são fofos! então eu via,

eu já trabalhava isso na mente, então para mim a expectativa, eu não fiz nenhum desenho

ideal, do bebê ideal, eu já fui preparada e lhe confesso que mesmo estando preparada, o

primeiro contato agente tem aquele impacto né? de ver a condição das crianças, de como

elas estão, então é impactante no momento que a gente depara né?”

Marcelo acrescenta o impacto sofrido no primeiro contato com os filhos. “Eu acho

que, eu fiquei, eu fique assim pasmado, eu fiquei, olhei assim. Quem percebeu mais

também foi Marcos, Marcos é mais assim, ele foi o observador. Quando Marcos percebeu,

assim, acho que pela minha expressão, não foi de reprovação, não sei, talvez uma

decepção, ele chorou, começou a chorar. Isso me tocou muito, até hoje, eu creio, em um

determinado tempo eu ficava até protegendo mais ele do que Mário, como se tivesse

pedindo perdão a ele, sabe como é que é? Compensação, porque Mário não percebeu, mas

ele percebeu, chorou muito porque ele tava sendo rejeitado, foi do jeito que ele tava assim.

Me choquei muito”.

Adotando a possível leitura da adoção a partir da psicologia analítica, observamos que

querer modificar uma situação, não é sinônimo de poder modificá-la. Isso porque deve-se

levar em consideração a atuação do inconsciente na maneira como o sujeito se coloca no

mundo. A individuação exige do indivíduo um esforço de autoconhecimento e a dificuldade

do sujeito de lidar com sua sombra pode constituir empecilho à individuação.

A entrevistada descreve a primeira manhã que ficou com as crianças em casa ao

chegar da cidade de origem, demonstrando a sua fragilidade emocional e como esse aspecto

influenciou no comportamento das crianças. “E eles sentiram a diferença porque eles

32

Page 33: Artigo Heleonora Macedo

choraram a manhã inteira! Foram os três chorando, ele dois e eu, Marcelo saiu logo pra

trabalhar e eu fiquei com eles dois aqui em casa. Chorava, eu chorava, chorava e eles

choravam e eu queria muito levar eles no médico, porque eu tava assustada. Meu Deus eles

estão machucados! Eles estão chorando por causa disso, mas na verdade eles não estavam

chorando, não era por causa do dodói, não era, era por minha causa, porque eu ainda tava

muito instável”.

Marcelo acrescenta ainda mais dois momentos muito marcantes das primeiras vinte e

quatro horas de contato com as crianças, que ele diz ter provocado profundas mudanças na

sua vida. Momento em que pararam o carro, durante o percurso da cidade de origem para

Salvador, em que ele deu a mamadeira pra Mário quando o sol estava nascendo “o sol

nascendo assim no horizonte. Nós paramos o carro assim e me apoiei num degrau de uma

casa abandonada assim e dei ali a mamadeira” e um outro momento que teria sido também

na viagem quando relata “aquele sol batendo na cabeça deles, o cascão, aquelas feridas

Ana, aí ele começava a ficar agoniado e metia a mão assim, a unha e aí o sangue descia tá

entendendo? Era lágrima de sangue, porque o sangue desceu, eu tava com a camisa branca

não sei se você lembra, minha camisa ficou ensanguentada e eu não podia fazer nada, a

gente tinha que chegar logo pra cuidar logo, entendeu?... Os primeiros momentos

angustiantes e felizes”.

Ana relata que as mudanças mais significativas que ocorreram na família com a

chegada da criança foram positivas, principalmente para a família do marido que

anteriormente não era muito favorável a adoção. “Agora, a chegada dos meninos foi assim

especial pra toda a família... A família abraçou eles tanto, tanto quanto eles abraçaram a

família, então foi uma reciprocidade muito grande”.

A mãe assinala que antes tinha três empregos e proposta de mais trabalho, mas o

desejo de estar mais presente levou-a a fazer algumas opções pessoais.

Retrata também as mudanças ocorridas na vida do casal. “No casal teve mudança.

Não, teve mudança sim né? Na questão da atenção, então a gente teve um pouco de, mudou

um pouquinho a nossa rotina, porque antes, a gente, era só os dois né? então esse lado de

casal a gente percebe que ele fica um pouco comprometido e Marcelo as vezes diz: você

esquece de mim, porque as vezes de fato, a gente tem uma atenção maior pra os meninos,

lembra mais”.

Acrescenta ainda, quando perguntada como foi receber as crianças, que a casa se

encheu de alegria com a presença dos gêmeos. “Eu era totalmente só para eles, eu acordava

33

Page 34: Artigo Heleonora Macedo

cedo dava o banho, sentava ali para tomar sol com eles, para tirar as caspinhas da cabeça,

então assim eu curtir muito cuidar deles”

Ana aponta que os medos e dificuldades ainda existem hoje, mas que o medo não a

acompanha todos os dias. Pontua que o medo a acompanha depois de alguns episódios de

birra e que tem muito na cabeça a questão dos limites, buscando inclusive ajuda de uma amiga

psicopedagoga para trabalhar essa questão com as crianças.

Quando perguntada se havia sofrido algum tipo de preconceito Ana relata que passou

por um episódio muito negativo com uma vizinha que rejeitou muito as crianças em diversos

momentos, até uma ocasião em que os chamou de “índios mal educados” (sic). Na ocasião,

este episódio trouxe conseqüências psicológicas para uma das crianças que passou a fazer

“xixi” a todo o momento e mudança no comportamento. Ana e Marcelo levaram o caso à

justiça até o Ministério Público, alegando crime de racismo que é inafiançável. No entanto,

esta vizinha levou dois advogados criminalistas e o parecer final do promotor é que pra ela ser

condenada tinha que se configurar um crime de racismo e para isso Ana e Marcelo

precisariam confirmar a ancestralidade indígena das crianças, o que não seria possível dentro

do curto prazo estabelecido pela promotoria. Ainda em relação a discriminação sofrida, Ana

diz: “quando estamos com os meninos, algumas pessoas na rua perguntam se eles são

nossos netos, por uma questão mais de sermos maduros”.

Ana finaliza a entrevista acrescentando que “a adoção é um instrumento para um

casal e o casal que faz essa opção deve entender que a família biológica foi só, vamos dizer

assim, um transporte, mas é seu filho, é seu filho e apenas a forma de chegar é diferente”.

Ao contrário do início do desenvolvimento egóico, há um momento na vida que leva o

sujeito a olhar para sombra para integrá-la e, assim, adaptar-se socialmente. Parece

contraditório, porque é preciso resgatar os aspectos negados e negligenciados para que a atual

adaptação social possa ocorrer.

Nas mudanças sociais e psíquicas ocorridas na maternidade e paternidade adotiva,

tem-se a possibilidade de integrar aspectos da sombra e ter uma persona mais funcional. Uma

persona funcional reforça e fortalece o ego, enquanto uma disfuncional leva ao adoecimento.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As crianças necessitam não só de cuidados físicos, mas principalmente de afeto, de

carinho, de amor. Portanto o princípio básico da adoção, segundo Winnicott (1987), é o

seguinte:

34

Page 35: Artigo Heleonora Macedo

Se um bebê não pode ser criado por seus pais biológicos, a melhor coisa seguinte para ele é ser adotado por uma família e criado como uma pessoa dessa família. Além disso, a adoção legal dá à essa criança o sentimento de pertencer a uma família (p.127)

O sentimento de pertença a uma família é fundamental na estruturação de qualquer

sujeito. Contudo, quando averiguado o universo que envolve a adoção não se pode furtar a

pensar nas histórias de sofrimento, dor e desafios que a mesma envolve.

As possibilidades de adoção apresentam-se sob múltiplas formas e em diferentes

contextos em virtude das transformações das configurações familiares.

A partir do caso apresentado e da análise teórica realizada, é possível constatar que a

configuração familiar do casal, constitui o plano consciente e se organiza em diferentes

formas por intermédio de uma matriz simbólica inconsciente. Entretanto, estas e outras

questões relativas ao surgimento do desejo da busca de um filho, da necessidade de ter uma

família, não são só referentes a adoção mas, em geral, a todos os seres humanos.

É importante lembrar que existe, nas relações familiares, um caráter simbólico

subjacente à estrutura familiar, que diz respeito ao modo como a família se organiza com

referência aos acontecimentos vivenciados. A matriz, a estrutura familiar inconsciente, provê

os significados para esses elementos. Nesse sentido, é na família que se começa a ganhar

identidade e a desenvolver o caráter sob a influência de diferentes personalidades. A sombra

da família, portanto, exerce influência sobre a formação do eu reprimido da criança,

especialmente quando os elementos sombrios não são reconhecidos dentro do grupo familiar

ou quando os membros da família conspiram para esconder a sombra de um deles.

O presente artigo não tem dados suficientes para responder a essas reflexões e ainda

confirma a escassez na literatura, mas conforme foi apontado, a escolha pela adoção pode ser

consciente ou não podendo ser influenciada tanto pela persona, quanto pela sombra. A energia

da sombra não pode ser simplesmente detida pela força da vontade, uma vez que representa

padrões de sentimentos e comportamentos autônomos carregados de energia. Essa energia

precisa ser recanalizada ou transformada e, para isso, é necessária a aceitação, consciência da

sombra como algo que não pode apenas ser descartado pela força de vontade, conforme

Whitmont (1998).

A escolha pela adoção, por ser feita de livre e espontânea vontade, é encarada pelos

entrevistados como escolha exclusivamente consciente. Mas, sendo a psique, como mostra C.

Jung (1986), constituída não só pelo consciente, mas também pelo inconsciente, este tem sua

parcela de participação na escolha e é natural que o faça, daí o envolvimento de motivos

inconscientes permeando essa escolha.

35

Page 36: Artigo Heleonora Macedo

A conscientização dos motivos, como nos mostra C. Jung (1986), leva ao

esclarecimento dos sofrimentos ocasionados pela atuação de conteúdos inconscientes

presentes numa relação. Com a passagem para a consciência dos conteúdos e fatos até então

desconhecidos, pode-se fazer algum tipo de alteração nos mesmos.

Adotar uma criança é um ato que deve ser relacionado a uma certa disponibilidade

psíquica, que permite ao casal abrir-se para acolher uma criança. Não, porque não viria mais,

ou para reparar uma injustiça ou suprir uma falta, mas sim, ocupar o desejo de um casal. É

preciso solidez de desejo para chegar à adoção. Nesse sentido, o reconhecimento dos

conteúdos inconscientes na escolha pela adoção, conduz a uma ampliação da consciência e

consequente integração da sombra, o que se traduz no processo de individuação do sujeito.

Além disso, a transição da maternidade/paternidade no processo de adoção é seguida

por expectativas e vivências, portanto, deve-se refletir acerca do perigo que traz a atuação

inconsciente na transição paternidade/maternidade na adoção: quanto mais rígida for a

persona mais autonomia e força a sombra terá.

Dessa forma, endossamos a necessidade de pesquisas que favoreçam uma reflexão

sobre maternidade e paternidade adotivas, que contemple o seu processo de construção, visto

que poucos estudos investigam o tornar-se pai e mãe adotivos. É importante olhar para esse

processo a partir das dinâmicas das práticas discursivas dos envolvidos, onde múltiplos

sentidos sobre o ser mãe e pai são produzidos e negociados o que mostra parte de um processo

de desenvolvimento ao tornar-se pai e mãe.

Caso pretendam ter sucesso ao lidar com a sombra dos filhos, os pais precisam aceitar

e estar em contato com sua própria sombra. Estar disposto a lidar criativamente com o

problema da sombra exige dos pais uma dose incomum de sutileza, de consciência, de

paciência e de sabedoria. Não se pode exagerar na permissividade; não se pode exagerar na

austeridade

Diversas mudanças sociais e psíquicas foram observadas nos pais adotantes, tanto no

âmbito individual, quanto do casal, família e sociedade que os envolve. Nas mudanças sociais

e psíquicas ocorridas na maternidade e paternidade adotiva, tem-se a possibilidade de integrar

aspectos da sombra e ter uma persona mais funcional. Uma persona funcional reforça e

fortalece o ego, enquanto uma disfuncional leva ao adoecimento.

Quando perguntados se participam de algum grupo de apoio a adoção, o casal

respondeu, ao mesmo tempo, que não participavam.

Ressalta-se, pois, a importância da participação em grupos de apoio a adoção, nos

quais os principais temas relativos à adoção e acolhimento são discutidos e vivenciados: a

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motivação para adoção; o perfil idealizado da criança; as principais dúvidas, medos, mitos e

preconceitos sociais; como lidar e contar sobre a história de origem da criança (temores,

dificuldades, alternativas); os segredos (origem e consequências); trâmites legais e

processuais (prazos, procedimentos, informações); cuidados específicos para recém-nascidos

e adoções tardias (manejo); a infertilidade e a conjugalidade (possíveis dificuldades),

demonstrando a importância da atuação do psicólogo, que muito tem contribuído para

transformar a realidade da adoção, na medida em que proporciona um espaço de escuta,

reflexão e suporte aos adotantes com suas angústias e receios, apoiando-se nos momentos de

conflitos, desorientação e frustração.

Apesar de não terem sido encontradas respostas imediatas, o presente artigo abriu

margem para muitas reflexões, que podem ser esclarecedoras. Novos estudos que explorem

esse tema precisam ser empreendidos e a psicologia analítica mostrou como o seu modelo é

esclarecedor e importante para esse novo enfoque.

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Page 38: Artigo Heleonora Macedo

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