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Entrelaçando Revista Eletrônica de Culturas e Educação N. 1 p. 69-79, Ano I (out/2010) ISSN 2179.8443 69 OS SUJEITOS DA EJA E A CONTRUÇÃO DA ORALIDADE: entre o teatro e o letramento nas práticas escolares Carla Meira Pires de Carvalho 1 Universidade Federal da Bahia RESUMO O objetivo deste trabalho é apresentar alguns resultados advindos da pesquisa de mestrado intitulada: O teatro na Educação de Jovens e Adultos: Contribuições para o processo de letramento e a formação da cidadania. Refletindo acerca da articulação entre o teatro, o letramento e a educação, através da oralidade enquanto categoria analisada na pesquisa de mestrado acima relacionada. Para tanto, esta investigação concebe a oralidade como dispositivo central da presente discussão, entendendo suas múltiplas possibilidades presentes no processo de ensino/aprendizagem a partir do fazer teatral em sala de aula e a relação desses fazeres com o processo de letramento no âmbito da Educação de Jovens e adultos. Palavras-chave: Teatro. EJA. Oralidade. ABSTRACT This paper presents the results derived from research Masters entitled: Theatre in Education Youth and Adults: Contributions to the process of literacy and citizenship education. Reflecting about the link between theater, literacy and education through the orality as a category in the master`s research examined above related. Thus, this research sees orality as the central device of the present discussion, understanding its multiple possibilities present in the teaching / learning from doing theater in the classroom and the relationship of these actions with the process of literacy as part of Youth and adults. Keywords: Theater. YAE. Orality. 1 Professora da rede pública de ensino atuando na Educação Fundamental e na EJA. Professora substituta do curso de Licenciatura na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia. E-mail: [email protected]

Artigo Os Sujeitos Da Eja e a Contruo Da Oralidade - Entre o Teatro e o Letramento Nas Prticas Escolares

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OS SUJEITOS DA EJA E A CONTRUÇÃO DA ORALIDADE: entre o teatro e o letramento nas práticas escolares

Carla Meira Pires de Carvalho1 Universidade Federal da Bahia

RESUMO O objetivo deste trabalho é apresentar alguns resultados advindos da pesquisa de mestrado intitulada: O teatro na Educação de Jovens e Adultos: Contribuições para o processo de letramento e a formação da cidadania. Refletindo acerca da articulação entre o teatro, o letramento e a educação, através da oralidade enquanto categoria analisada na pesquisa de mestrado acima relacionada. Para tanto, esta investigação concebe a oralidade como dispositivo central da presente discussão, entendendo suas múltiplas possibilidades presentes no processo de ensino/aprendizagem a partir do fazer teatral em sala de aula e a relação desses fazeres com o processo de letramento no âmbito da Educação de Jovens e adultos. Palavras-chave: Teatro. EJA. Oralidade.

ABSTRACT This paper presents the results derived from research Masters entitled: Theatre in Education Youth and Adults: Contributions to the process of literacy and citizenship education. Reflecting about the link between theater, literacy and education through the orality as a category in the master`s research examined above related. Thus, this research sees orality as the central device of the present discussion, understanding its multiple possibilities present in the teaching / learning from doing theater in the classroom and the relationship of these actions with the process of literacy as part of Youth and adults. Keywords: Theater. YAE. Orality.

1 Professora da rede pública de ensino atuando na Educação Fundamental e na EJA. Professora substituta do

curso de Licenciatura na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia. E-mail: [email protected]

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A INSERÇÃO DA DISCIPLINA TEATRO NA EJA: primeiros d esafios O presente artigo tem como objetivo precípuo refletir a partir da análise de alguns

resultados obtidos através de uma pesquisa em nível de mestrado, sobre a inserção da

disciplina teatro no currículo da Educação de Jovens e Adultos (EJA) estabelecendo um

paralelo entre o letramento, a oralidade e a concepção da arte e da educação na formação

integral dos sujeitos. Tendo essas duas áreas de conhecimento – o teatro e a educação - como

cernes para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e com equidade sócio-econômica,

política e cultural.

A pesquisa intitulada O Teatro na Educação de Jovens e Adultos: contribuições para o

processo de Letramento e a formação da Cidadania foi realizada através do Programa de Pós-

Graduação em Educação e Contemporaneidade entres os anos de 2007 e 2009 empenhando-se

em compreender de que forma a linguagem teatral pode contribuir para a formação do

Letramento e a construção da Cidadania dos alunos da EJA. Para tanto, faz-se necessário

refletir, de forma breve, sobre as bases que fundamentaram as primeiras inquietações no que

se refere à linguagem teatral no currículo escolar e os conflitos existentes no âmbito dessa

modalidade educacional.

A Educação de Jovens e Adultos abrange toda a Educação Básica, do Ensino

Fundamental ao Ensino Médio. Os dispositivos centrais que norteiam as políticas públicas e

os fundamentos pedagógicos no contexto deste segmento referem-se tanto ao processo de

alfabetização e do letramento, além da formação profissional desses educandos.

As políticas públicas em EJA, pensadas e desenvolvidas no Brasil ao longo dos anos,

sempre foram estabelecidas de forma pontual, descontínua e descontextualizada,

impossibilitando este segmento de obter maiores avanços pedagógicos que viabilizassem

propostas reais e que atendessem, de forma direta, às demandas dos indivíduos que retornam à

escola ou iniciam tardiamente seu processo de escolarização.

A inserção da disciplina Teatro no currículo formal de EJA partiu de inquietações

pessoais que foram reelaboradas e repensadas em uma perspectiva de uma investigação que

associou a pesquisa em nível de mestrado, a prática docente em EJA e a reflexão sobre os

aspectos político-pedagógicos que envolvem o processo de ensino aprendizagem do aluno de

EJA.

O entrelaçamento desses eixos norteadores em uma perspectiva de letramento, bem

como, a escuta sensível dos alunos e professores dessa modalidade proporcionaram o

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estabelecimento de categorias a serem concebidas como possíveis pistas acerca da vivência de

práticas teatrais neste segmento da Educação Básica.

O trabalho abrange três fases diferenciadas de investigação: A 1ª fase versa sobre a

prática teatral e as apresentações cênicas nas turmas de EJA em uma instituição de ensino da

Rede Municipal de Educação situada na periferia da cidade de Salvador, imbuída de

inquietações pessoais e reflexões sobre a minha práxis enquanto docente de teatro atuando em

EJA, além da análise das experiências artísticas vivenciadas pelos alunos desse segmento. A

2ª fase trata da sistematização dessas vivências artístico-pedagógicas através da escuta das

falas dos professores e dos alunos de EJA, onde foi possível estabelecer categorias que nos

dão encaminhamentos sobre a importância do fazer teatral e da frequentação de espetáculos

como possível abordagem teórico-metodológica do ensino do teatro na EJA. A 3ª fase da

investigação se dá através da análise minuciosa das categorias encontradas nas falas dos

sujeitos envolvidos no processo com o intuito de nos fornecer subsídios teóricos e reflexivos

acerca da relação entre o teatro, o letramento e a Educação de Jovens e Adultos.

Enquanto arte-educadora, e buscando, através de impressões iniciais, estabelecer laços

teóricos entre o teatro e o letramento, foi possível concebê-los como caminhos direcionados

para a formação da cidadania do aluno de EJA. As pistas surgidas pelo contato com os alunos

e professores foram redimensionadas, problematizadas e aprofundadas através das leituras

acadêmicas, na articulação entre as duas áreas do conhecimento - o teatro-educação e o

letramento em EJA - partindo do pressuposto de que ambas apontam para o crescimento

pessoal e o desenvolvimento social do sujeito.

Assim, seguindo a concepção de uma educação desafiadora e emancipatória, centrada

no sujeito educando, é que me situo como arte-educadora inspirada no pensamento Freiriano

sobre o papel do sujeito educador e transformador social, neste registro:

Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História, mas sujeito igualmente. No mundo da História da cultura, da política, constato, não para me adaptar mas para mudar. (FREIRE, 2002, p 85-86)

Tais inquietações, curiosidades e interferências são abordadas nos elementos que

compõem as aulas de Teatro no cotidiano escolar, bem como as especificidades da inclusão

desta disciplina na sala de aula das turmas de EJA. Antes de adentrarmos nas categorias que

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considero relevantes para a composição deste trabalho, acredito ser necessário estabelecer

algumas considerações conceituais no que se refere às áreas de conhecimento que aludem ao

teatro e ao letramento. É preciso também tecer articulações no que se refere à importância de

refletir sobre a formação pessoal, artística e social dos educandos. Tais articulações serão

tratadas no item a seguir.

O TEATRO E O LETRAMENTO NA EJA: caminhos que se entrelaçam? É importante ressaltar que não há uma bibliografia específica que trate da articulação

entre o teatro e o letramento na Educação de Jovens e Adultos, o que estamos buscando nesse

trabalho é um olhar sensível que aponte novos caminhos a partir do diálogo entre essas duas

áreas do conhecimento no âmbito da EJA. O teatro na EJA atua como uma área nova a ser

explorada e vivenciada tanto pelo docente que busca cotidianamente a ressignificação de

novas abordagens metodológicas nesse segmento quanto pelos discentes que vivenciam um

processo de letramento enquanto sujeitos protagonizadores, entre personagens imaginários e

suas narrativas da vida real.

Nas aulas de teatro, eram trabalhados jogos teatrais, onde as atividades eram

direcionadas para a construção de cenas elaboradas pelos alunos, como atores-espectadores2

das situações cênicas escolhidas através de temas trazidos por eles ou pelo professor de teatro.

Os jogos teatrais trabalhados nas salas de EJA tinham elementos especiais, pois se

constituíam em um momento diferenciado, traduzindo um caráter de independência, de

autonomia e de grande espontaneidade e participação pelos alunos-atores das turmas de EJA,

como aborda, a seguir, Ricardo Japiassu (2003, p.20):

A finalidade do jogo teatral na Educação escolar é o crescimento pessoal e o desenvolvimento cultural dos jogadores por meio do domínio, da comunicação e do uso interativo da linguagem teatral, numa perspectiva improvisacional ou lúdica. O princípio do jogo teatral é o mesmo da improvisação teatral, ou seja, a comunicação que emerge da espontaneidade das interações entre os sujeitos engajados na solução cênica de um problema de atuação.

2 O termo atores –espectadores, utilizado comumente nos dias atuais no âmbito do teatro-educação, refere-se as

múltiplas funções exercidas pelos alunos em espaços formais e não-formais de ensino do teatro, como a possibilidade do sujeito atuar e ser espectador em suas vivencias com as práticas teatrais. É possível que o termo “atores espectadores” advenha do termo “alunos-atores”, difundido desde a década de 70 pela autora dos conceitos teório-práticos do teatro improvisacional, a norte-americana Viola Spolin.

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A participação era intensa entre os alunos, as interações em sala de aula nos momentos

dos jogos eram destacadas por todos, tanto no momento em que atuavam como quando

assistiam às atuações das outras equipes. O trabalho com a oralidade era também realizado de

forma intensa pelos atores-espectadores, pois estes atores produziam suas falas de forma

“improvisacional” em forma de interlocução com as falas dos outros participantes de sua

equipe, tudo de forma dinâmica, criativa e espontânea.

Na medida em que se trocavam os papéis e os alunos passavam para a situação de

plateia, mantendo a interação com seus colegas que se encontravam atuando, todas as

participações tinham o princípio de resolução dos problemas cênicos, tais como o tempo, o

espaço e a fala de cada personagem, e também a resolução dos problemas de conteúdos que

emergiam em decorrência da própria temática.

Esse confronto entre o real e o imaginário, entre personagens e sujeitos reais, entre

problemas imaginários e problemas latentes na sociedade contemporânea por si só trazem em

sua natureza um grau elevado de letramento. Este processo de letramento por sua vez suscita

nos sujeitos posicionamentos críticos sobre os problemas cênicos e sobre os temas sociais

despertando a autonomia dos educandos, que deixam de ser sujeitos ouvintes e passivos para

posicionar-se no e com o mundo no qual estão inseridos.

Os educandos assumem assim, papeis sociais de sujeitos letrados que ressignificam o

conhecimento trazido pela arte ou por qualquer área do conhecimento a partir de suas

histórias de vida e suas reflexões pessoais acerca das questões apresentadas. Neste sentido

Duarte Júnior (2003) afirma que:

A arte é, por conseguinte, uma maneira de despertar o indivíduo para que este dê maior atenção ao seu próprio processo de sentir. O intelectualismo de nossa civilização - reforçado no ambiente escolar - torna relevante apenas aquilo que é concebido racionalmente, logicamente. Deve-se aprender aqueles conceitos já “prontos”, “objetivos”, que a escola veicula a todos, indistintamente, sem levar em conta as características existenciais de cada um. Nesse processo, os educandos não têm oportunidade de elaborar sua “visão de mundo”, com base em suas próprias percepções e sentimentos. Através da arte pode se, então, despertar a atenção de cada um para sua maneira particular de sentir, sobre a qual se elaboram todos os outros processos racionais. (DUARTE JR., 2003, p. 66)

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O modelo de escola tradicional, que ainda predomina na sociedade moderna, tem grande

dificuldade em compreender que, ultrapassando os muros da escola, existe um mundo

convidativo, dinâmico e com inúmeras possibilidades de entretenimento, que encantam os

alunos e os afastam das atividades escolares. No entorno das escolas, em lojas, feiras, casas de

acesso à internet e jogos online, praças públicas, encontram ambientes propícios à sua

socialização, sem regras rígidas, nem avaliações e julgamentos que determinem medidas de

certo e errado semelhantes à lógica cartesiana sustentada pela escola.

Esses espaços são espaços de aprendizagens múltiplas e, por conseguinte suscetíveis a

práticas de letramento, que produzem conhecimento e trocas de experiências que vão além da

concepção conteudística e reprodutiva imposta pela pedagogia tradicional e pela sociedade

contemporânea. Assim, concebe-se o letramento como um evento amplo e inerentemente

formativo que acompanha os sujeitos ao longo de suas vidas, em todos os espaços que o

sujeito circula e constrói relações de troca de experiências e aprendizagens em um processo

contínuo de formação humana e social.

Sendo assim, é necessário refletir sobre a importância do termo Letramento, que

significa um fenômeno mais complexo do que a alfabetização. É importante ressaltar que um

não se sobrepõe ao outro. O letramento não veio substituir o processo de alfabetização, até

porque são fenômenos distintos que se interrelacionam no processo de aprendizagem e

formação crítica do indivíduo. Extrapola as questões referentes às tecnologias do saber ler e

escrever, posicionando-se como um processo de expansão cultural no qual o sujeito, ao

dominar tais tecnologias, tem a possibilidade de atender as demandas sociais que lhes são

exigidas em seu cotidiano.

De quais demandas sociais estamos falando? Que práticas sociais é preciso exercer para

se considerar um sujeito letrado? Essas demandas, que aos olhos dos grupos socialmente

privilegiados podem parecer funções simples e corriqueiras em seu cotidiano, não ocorrem da

mesma forma com os grupos onde a escolarização não foi realizada, ou se deu de forma

tardia, como enfatiza Kleiman (2008, p.7), a seguir:

Para realizar uma atividade rotineira como uma compra num supermercado, por exemplo, escrevemos uma lista dos produtos que precisamos comprar, já no local de compras, lemos, comparamos rótulos, preços, datas de validade, preços e cartazes promocionais; usamos ainda algum método para computar e fazer contas; preenchemos um cheque. Essas atividades que, para um sujeito letrado, são apenas mais uma forma de se comunicar com os outros, e de agir

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sobre o meio, quase tão automáticas quanto falar e que não requerem, portanto, grandes esforços de concentração ou interpretação representam grandes obstáculos para os grandes grupos de brasileiros não-escolarizados, que não tiveram acesso a escola ou que foram permanentemente expulsos dela.

É nesse sentido que os estudos sobre letramento são pertinentes no campo da educação,

é preciso criar condições para que os sujeitos pertencentes a esses grupos socialmente

excluídos que, em sua natureza já possuem estigmas negativos por suas condições

socioeconômicas, avancem no seu processo de asserção político e sociocultural, ocupando

espaços até então negados a esses indivíduos, criando condições de diálogo onde as relações

de poder possam não apenas ser compreendidas por esses sujeitos, mas principalmente

refletidas de forma crítica e consciente.

Assim, essas experiências lúdicas e prazerosas vêm, sem dúvida, contribuir para a

formação do letramento dos educandos, na medida em que os aspectos cognitivos, subjetivos

e as múltiplas aprendizagens, através das interações grupais, contemplam os diversos sentidos

do letramento, onde a formação integral do ser humano ocorre mediante a apreensão e a

aplicação de suas múltiplas capacidades associadas à interlocução com a língua escrita.

TEATRO E EXPRESSÃO ORAL NA EJA

Teatro e expressão oral na EJA foi uma categoria surgida a partir da análise das falas

dos professores e alunos das turmas que incluíram o teatro em seu currículo durante o período

da investigação em nível de mestrado já citada neste trabalho.

O medo de falar em público, mesmo que esse público esteja em um contexto menor,

como é o caso da sala de aula, é um elemento constante na vida escolar dos sujeitos da

educação de jovens e adultos. A oralidade é autorreprimida por esses alunos que não se

sentem aptos a fazer uso da fala como direito de expressão e, em contrapartida, exercem

constantemente, e de forma passiva, a escuta do outro, principalmente se este estiver numa

posição superior a sua, como ocorre comumente na relação professor-aluno.

A descoberta, através da linguagem teatral em sala de aula, da possibilidade de erros e

acertos em sua expressão oral, seja em um ensaio de cena, em uma improvisação cênica, ou

mesmo na preparação de um espetáculo, apresenta ao aluno de EJA uma nova concepção de

oralidade. Nessa concepção, o expressar-se em público é um processo de construção contínua,

de respeito mútuo e de asserção, enquanto sujeitos aptos a conviver socialmente

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desenvolvendo reflexões e externando-as sem qualquer receio de exposição negativa que

possibilite o surgimento de traumas pessoais.

O sujeito desse segmento precisa ter presença nas políticas públicas de ensino, a

inclusão das suas vozes torna-se necessária para se instalar um modelo equitativo de educação

popular. Sobre essa relação entre a voz dos educandos e os paradigmas escolares que

dificultam o nascimento de uma educação crítica e emancipatória de qualidade, Freire (2002,

p.135) afirma que:

Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, as diferenças do outro. Isto não quer dizer, evidentemente, que escutar exija de quem realmente escuta sua redução ao outro que fala. Isso não seria escuta, mas auto-anulação. A verdadeira escuta não diminui em mim, em nada, a capacidade de exercer o direito de discordar, de me opor, de me posicionar. [...] Como sujeito que se dá ao discurso do outro, sem preconceitos, o bom escutador fala e diz de sua posição com desenvoltura.

A escuta sensível da voz desses sujeitos reforça o caráter dialógico do ensino do teatro.

Assim, podemos supor que se a voz desses sujeitos é validada no espaço escolar, o sujeito terá

a possibilidade de validar sua voz em outros espaços de sua vida cotidiana. Nesse sentido, a

linguagem teatral oferece uma pedagogia mais engajada com o ideal emancipatório de Freire,

no sentido de autorizar o sujeito a se expressar, se expor sem maiores cobranças. Colocar suas

opiniões sobre todos os temas referentes à sociedade, sem cortes, sem censura. Através das

brincadeiras, revestidos e protegidos pelas máscaras de seus personagens. Com as situações

cênicas, através de jogos teatrais e dramáticos, os jovens e adultos transformam-se em

políticos, jornalistas, empresários opressores ou operários representantes do povo, e, assim,

através da identificação com as falas desses personagens, exercitam o autoconhecimento e a

conscientização crítica sobre as situações ali vivenciadas.

Outro elemento a ser observado é a construção de um discurso cênico. A maioria desses

alunos de EJA nunca freqüentou espaços como teatro e museus, pois suas histórias de vida

foram marcadas por uma forte exclusão no que se refere ao acesso aos códigos culturais das

culturas dominantes. Sendo assim, um contato permanente com o teatro em seu currículo,

proporciona ao sujeito um conhecimento da linguagem teatral e consequentemente um

amadurecimento de um discurso cênico, em todas as nuances, seus jogos, seus signos e

convenções presentes nesta linguagem. Sobre isso aponta Desgranges:

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Sem perder o prazer próprio ao jogo espontâneo, almeja-se que os participantes conquistem a capacidade de criar, organizar, emitir e analisar um discurso cênico. O desafio do coordenador é manter constante a tensão entre divertimento e aprendizagem. Jogar por jogar leva a situações repetitivas, sem desafios e sem aquisições. Ou seja, sem a vontade de inventar diferentes possibilidades de investigação da linguagem teatral e de sua atuação enquanto instrumento de reflexão da vida social, o jogo dramático perde a sua vitalidade.

(2006, p.94)

O trabalho com o teatro no âmbito da EJA apresenta interfaces no que se refere tanto a

construção cidadã do sujeito, atuante e participativo em sociedade, quanto em seu

amadurecimento estético e cultural, partindo de vivências artísticas em sala de aula, apreciando

experiências artísticas através de espetáculos produzidos na cidade, e refletindo sobre estes

novos conhecimentos adquiridos com o outro, contribuindo de forma salutar para que um

discurso amadurecido, bem fundamentado sobre a vida em coletividade e sobre suas vivências

pessoais podendo encontrar ressonância dentro e fora da sala de aula.

O trabalho com o teatro tem a possibilidade de desenvolver a oralidade do sujeito de EJA

sem que eles percebam, sem medos e anseios de acertar em tempo integral. Os alunos, através

de seus personagens representados em sala de aula são capazes de atuar, de falar em público,

pressupondo que em outros momentos de suas vidas cotidianas esse medo também seja

dissipado, se considerarmos o fato de que na prática teatral há um processo de aprendizagem

contínuo entre sujeitos e personagens, entre o imaginário e a vida real.

A oralidade representa, assim, não apenas a possibilidade do aluno expressar-se nos

espaços escolares, como a sala de aula, a cantina, o pátio etc. Representa, em um contexto

mais amplo, sua inserção e sua autonomia no mundo. A possibilidade de falar e a garantia de

que sua voz será ouvida pelo outro, na perspectiva de promover um diálogo de natureza

democrática entre os sujeitos socialmente excluídos dessa educação, estimulando esses

sujeitos ao exercício de cidadania.

Uma das considerações acerca da relação entre o teatro, a oralidade e a educação no

processo de formação da cidadania do sujeito de EJA refere-se principalmente a escuta

sensível dos reais interesses que permeiam o retorno desses alunos ao seu processo de

escolarização. Dar voz a esses sujeitos compreendendo o que lhe é caro em seu retorno ao

processo de escolarização, em seus sonhos, seus anseios, seus interesses pessoais e

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profissionais pode representar o primeiro passo para alcançar o ideal Freiriano de escola

democrática, partindo de uma educação excludente e opressora, para uma educação

libertadora e emancipatória.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Repensar as práticas escolares no âmbito da Educação de Jovens e Adultos tem sido o

grande desafio das políticas públicas atuais. Faz-se necessário, portanto uma reflexão

aprofundada sobre que tipo de educandos a instituição escolar pretende formar e qual a

relação que pode ser estabelecida entre a escola e os bens culturais existentes na sociedade.

Considerando o Teatro como um bem cultural relevante na edificação de uma sociedade

e as práticas artísticas como elementos que contribuem para a formação do letramento dos

alunos, pode-se pensar em mecanismos de inclusão e de legitimização dessa área do

conhecimento no segmento da EJA. Partindo assim, dos ensinamentos Freiriano (FREIRE,

2002) cujo legado pedagógico compreende que o letramento se estende a todas as áreas do

conhecimento- inclusive e principalmente a arte- e está intimamente ligado a história de vida

dos sujeitos em suas experiências pessoais, identitárias e culturais.

A linguagem teatral se apresenta para o aluno que frequenta o turno noturno da EJA

como um elemento de fácil entendimento, pois a descontração serve de base para a construção

de novas competências que são facilmente desenvolvidas pela arte e que são requisitos para

atividades do currículo escolar como aquelas relacionadas à leitura, à escrita e a oralidade. Em

um primeiro momento, esses alunos não se dão conta que, através das atividades teatrais

realizadas em sala de aula, elementos da narrativa, assim como do exercício do diálogo, estão

diretamente ligados ao desenvolvimento da sua oralidade e, por conseguinte, contribuirão

efetivamente para a aquisição do letramento.

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KLEIMAN, Ângela. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática

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