Oralidade TEse

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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

ORALIDADE: UMA PERSPECTIVA DE ENSINO

SNIA CRISTINA PAVANELLI DAROS

Piracicaba - SP 2006

SNIA CRISTINA PAVANELLI DAROS

ORALIDADE: UMA PERSPECTIVA DE ENSINO

Tese apresentada Banca Examinadora como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutor em Educao do Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Metodista de Piracicaba.

Prof. Dr. Maria Ceclia Rafael de GesOrientadora:

PIRACICABA SP 2006

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Maria Ceclia Rafael de Ges (orientadora)

Prof. Dr. Ana Cludia Balieiro Lodi

Prof. Dr. Maria Ceclia Perroni

Prof. Dr. Roxane Helena Rodrigues Rojo

Prof. Dr. Suzy Lagazzi Rodrigues

A Deus, a quem confio meu viver, toda honra e toda glria.

Agradecimentos Prof M. Ceclia R. de Ges, pela oportunidade que me deu ao aceitar-me como sua orientanda. Minha gratido por compartilhar seu conhecimento e por sua sensibilidade em me orientar a transformar idias em trabalho acadmico. Aos professores que se dispuseram a participar da pesquisa aqui realizada, disponibilizando de um precioso tempo e permitindo que suas experincias pudessem contribuir para as discusses sobre ensino de oralidade. minha me, por ter sido a primeira incentivadora para a realizao do Doutorado. Ao Joziel, por ter compartilhado comigo todos os momentos desse curso, desde a expectativa na ocasio de meu ingresso at os momentos finais da elaborao deste texto. Bruna e ao Lucas, pela pacincia que tiveram comigo.

Ao meu pai, Nair, Dayse e Evani, pelos cuidados que sempre me dispensaram. Ao Prof. Rubens Trevisan e Neide, pelas sugestes feitas.

Josiane, Virgnia e Cia, pelo incentivo que me deram para ingressar no Programa de Doutorado. Beth, por tudo que voc me possibilitou aprender, trabalhando ao seu lado.

Aos meus alunos, com quem pude compartilhar minhas idias sobre ensino de oralidade.

RESUMO

A tradio escolar tem privilegiado a modalidade escrita da lngua materna como objeto de estudo e de ensino. Quando focaliza a ateno na modalidade oral limitase utilizao do recurso da expresso oral como atividade de entendimento do texto escrito. Nos ltimos anos, linhas de investigao desenvolvidas na Lingstica, apoiadas nas contribuies de Bakhtin sobre linguagem, tm possibilitado uma abordagem da oralidade no interior das diferentes prticas sociais, propondo que se opere com a identificao dos gneros orais, destacando o lugar privilegiado que o oral ocupa para observao da interao. Nesse sentido, a chegada da modalidade oral sala de aula no Brasil tem sido discutida, cada vez mais, como um empreendimento necessrio. Atesta esse fato a incorporao do ensino da lngua falada pelos Parmetros Curriculares Nacionais. Esse empreendimento, entretanto, no tem sido tarefa simples e sua incluso tem incitado diferentes debates. A anlise da minha atuao docente em diferentes situaes em que a oralidade foi incorporada e a realizao de entrevistas com professores de lngua portuguesa, com objetivo de examinar as condies existentes para o tratamento desse tema no ensino fundamental, permitiram-me a organizao de indicadores para uma discusso que pode contribuir para o debate geral que tem sido realizado sobre diferentes prticas pedaggicas visando a incorporao da oralidade s propostas de ensino de lngua materna. Esses dados indicadores autorizam-me a afirmar a viabilidade dos estudos de oralidade em aulas de lngua materna, sobretudo porque essa incluso possibilita a observao da lngua em pleno funcionamento; autorizam-me, ainda, a afirmar que esses estudos sero instalados processualmente, sendo indispensvel a capacitao dos professores para o tratamento dessa matria, tanto daqueles que so licenciados, atravs de cursos de formao continuada, quanto atravs da incorporao dessa rea de estudos nos cursos de formao inicial de professores. Palavras-chave: oralidade, ensino de lngua materna, prticas pedaggicas

RSUMLa tradiction scolaire privilegie la modalit crite de la langue maternelle comme un objet dtude et denseignement. Quand lattention est focalise sur la modalit orale, on limite lutilisation du moyen de lexpression orale comme l`activit de comprhension du texte crit. Des lignes dinvestigation developpes dans la Linguistique, soutenues par les contribuitions de Bakhtin propos du langage, aux dernires annes, ont possibilit un abordage de loralit dans lintrieur des diffrentes pratiques sociales, en proposant que lon opre avec lidentification des genres oraux, en mettant en relief la place privilegie qui prend loral pour lobservation de linteraction. Ainsi, ds que cette modalit orale est arrive au Brsil, dans la salle de classe, elle est discute de plus en plus comme une acquisition ncessaire. Cel est attest par lincorporation de lenseignement de la langue parle par les Paramtres Curriculaires Nationaux. Cependant, a na pas t une tche simple et son inclusion a incit aux diffrents dbats. Lanalyse de procdure des enseignants dans des diffrentes situations o loralit a t incorpore et la ralisation des interviews avec des professeurs de langue portugaise au but dexaminer les conditions qui existent pour le traitement de ce thme dans lenseignement fondamental, mont permis lorganisation des indicateurs une discusion qui peut contribuer au dbat gnral ralis propos des diffrentes pratiques pedagogiques dans le but dincorporer loralit aux propositions de lenseignement de la langue maternelle. Ces dons titre indicatif mont accords le droit daffirmer la viabilit des tudes de loralit dans des classes de langue maternelle, surtout parce que dans cette inclusion, ils est possible dobserver la langue en plein fonctionnement, ils me permettent encore daffirmer que ces tudes seront instals graduellement et que uncours pour devenir capables les professeurs, est indispensable pour le traitement de cette matire, pour ceux qui sont licencis atravers les cours de formation continue, comme atravers lincorporation de cette sphre dtudes dans les cours de formation initial de professeurs. Mots-cl oralit, enseignement de langue maternelle, pratiques pdagogiques

ABSTRACT

School has traditionally privileged written modality as the object of knowledge about the mother tongue and, therefore, as the main or exclusive object of teaching. When oral communication is involved, its use is limited as a resource of oral expression in comprehension activities of the written text. Over the last few years, research lines developed by Linguistics, supported by Bakhtins contributions on language, have enabled an approach to orality within different social practices, proposing forms of work that encompasses the oral genres and emphasizing the special locus that oral communication occupies in the observation of interaction. Thus, the inclusion of oral communication in Brazilian classrooms has been increasingly discussed as a necessary initiative. The incorporation of the teaching of spoken language by the National Curricular Parameters supports this fact. This enterprise, however, has not been a simple task and its inclusion has promoted different debates. Based on an analysis of my own teaching experience in different situations in which oral communication was incorporated, as well as interviews with teachers of Portuguese Language made in order to verify the existing conditions for the regard to this theme in the schools, I sought to organize a set of conceptual issues for a discussion that can contribute to the general debate that has taken place concerning different pedagogical practices aiming at the incorporation of oral communication to mother tongue teaching proposals. These findings allow me to state the viability of oral communication studies in classes of Portuguese as a mother tongue, especially because this inclusion enables the observation of language in its occurrence. They also allow me to foresee that these studies will gradually be implemented, making indispensable the training of teachers for dealing with this subject, both to those who are already in service, through continued education projects, and those who are still being formed in the universities. Key-words: orality, mother tongue teaching, pedagogical practices.

SUMRIOINTRODUO CAPTULO I - O Modo Oral e o Conceito de Linguagem O Conceito de Linguagem A Viso Enunciativa da Linguagem e a Questo do Texto: Bakhtin CAPTULO II - Ensino de Lngua, Diretrizes Oficiais e Formao do Professor A Modalidade Oral: Linhas de Investigao Atual Diretrizes Oficiais: os Parmetros Curriculares Nacionais CAPTULO III - Diferentes experincias no trabalho docente com a oralidade Aulas de Redao e Expresso Oral no curso de Publicidade e Propaganda As contribuies do projeto de oralidade em Publicidade e Propaganda Superviso de estgio no curso de Letras Licenciatura em Portugus e Ingls Os indicativos da proposta de oralidade no estgio Estudos de Oralidade e Prtica de Ensino no curso de Letras Licenciatura em Portugus Finalmente, um espao para o tratamento da oralidade. O que mudou? Enfim, enveredei-me pelas trilhas das produes orais 60 62 56 51 53 49 45 43 27 30 35 01 08 12 18

CAPTULO IV O que dizem os professores sobre o estatuto da modalidade oral no ensino fundamental A entrevista com professores: o que dizem os professores do ensino fundamental sobre o ensino da modalidade oral Procedimentos para transcrio e anlise O que dizem os professores sobre as condies de trabalho O que dizem os professores em relao aos Parmetros Curriculares Nacionais O que dizem os professores sobre o ensino da lngua materna e oralidade Oralidade: uma perspectiva de ensino: fico, utopia ou realidade? guisa de consideraes finais Referncias bibliogrficas 86 90 75 72 64 67 68 64

Anexos A- Entrevista com Prof. Silvia B- Entrevista com Prof. Paulo C- Entrevista com Prof. Ana D- Entrevista com Prof. Regina E- Normas para transcrio do NURC

INTRODUO

Mesmo que voc feche os ouvidos E as janelas do vestido Minha musa vai cair em tentao Mesmo porque estou falando grego Com sua imaginaoChico Buarque e Edu Lobo, Choro Bandido,1985

O assunto desta tese a oralidade entendida como atividade verbal, presente nas mais diferentes situaes sociais em que um indivduo possa se inserir ao longo de sua vida. Essa importante produo humana tem sido concebida sob diferentes aspectos e, conseqentemente, tem recebido distintas formas de valorizao. Na antiguidade clssica, a produo literria marcada, inicialmente, pelo registro de textos produzidos oralmente. Nos diferentes estudos sobre Homero, podem ser encontradas opinies que sustentam ter sido a obra desse poeta registros de textos orais produzidos por pessoas (aedos cantores) cuja identidade no era mais possvel recuperar. As fbulas de Esopo so, de certa forma, textos recolhidos da tradio oral cuja autoria foi atribuda ao escravo grego de Samos1. A poesia lrica, na antiguidade clssica, recebe essa adjetivao por ter sido cantada, acompanhada ao som da lira. Do ponto de vista da atuao poltica, o cidado na Grcia antiga, durante as Assemblias pblicas, tomava suas decises influenciado pelas exposies de seus compatriotas realizadas oralmente (embora elas tivessem sido planejadas previamente). As parbolas de Jesus Cristo, utilizadas para o ensinamento de

Fedro, fabulista latino, no prlogo de seu primeiro livro, faz a seguinte afirmao: eu poli em versos senrios o que Esopo, como autor, inventou. Conferir: FEDRO. Fbulas. Traduo, anotao de Maximiano Augusto Gonalves. Livraria Antunes, 1957.

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seus seguidores, tambm exemplificam o uso da produo oral. A igreja, durante sculos, fez uso de sermes (e ainda faz) para convencer seus fiis2. O mito da inveno da escrita, narrado por Plato3, ajuda-nos a compreender como o domnio da palavra escrita destituiu a autoridade daqueles que eram responsveis pela manuteno da tradio oral. Talvez tenhamos nesse mito as primeiras preocupaes com a supervalorizao da escrita, pois o homem, ao conhec-la, altera sua relao com a figura daquele que tem a autoridade e a realiza atravs da palavra oral. Surge, ento, a essncia das relaes de poder que envolvem a escrita. No sculo XII, as primeiras Cantigas Portuguesas (Escrnio, Amigo, Amor) ilustram, tambm, registros de produes orais cantadas. Posteriormente, elas foram, de fato, escritas para serem cantadas. A recuperao desses fatos demonstra a vinculao/relao do homem com a oralidade e comprova que debater hoje sobre o estudo e o ensino do oral atribuir um estatuto a esta modalidade lingstica cuja imagem e valorizao foram alteradas em processo ao longo de mais ou menos 2000 anos. Ong (1998, p. 10), ao afirmar que a sociedade humana primeiramente se formou com a ajuda do discurso oral, tornando-se letrada muito mais tarde em sua histria, e inicialmente apenas em certos grupos, sintetiza a idia que temos sobre a revalorizao do oral. A aquisio da linguagem verbal se d atravs da mediao da figura materna e daqueles que esto presentes na vida do indivduo, em um processo de apropriao, repetio e reformulao. Bakhtin (2000, p. 301) afirma quea lngua materna a composio de seu lxico e sua estrutura gramatical no a aprendemos nos dicionrios e nas gramticas, ns a adquirimos mediante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos durante a comunicao verbal viva que se efetua com os indivduos que nos rodeiam.

KATO, (2000, p. 34), afirma que (...) foi a Igreja que, atravs da reforma de Lutero, contestou a autoridade oral e postulou a Bblia como a fonte verdadeira. 3 PLATO. Dilogos: Fedro, Cartas, O primeiro Alcibades. Traduo de Carlos. A. Nunes. Belm: Universidade Federal do Par, 1975.

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Ancorado nesse filsofo da linguagem, possvel afirmar que a aquisio da linguagem verbal oral no depende da aquisio da escrita, ou seja, os homens aprendem a falar, independentemente de aprender a escrever. Alis, existem (e provavelmente existiro) pessoas que nunca aprendem/ro a escrever. Contudo, os estudos sobre o processo de letramento indicam que o indivduo, sabendo escrever ou no, afetado pela escrita tanto no que diz respeito s suas relaes sociais, quanto ao que diz respeito sua atividade oral.4 A interao na espcie humana ocorre atravs de diferentes linguagens, mas indiscutvel que ocorre principalmente pela atividade verbal, oral. Essas afirmaes genricas referem-se aos acontecimentos tpicos dos encontros humanos. Quando falamos sobre oralidade, qual sentido est sendo, especificamente, atribudo a este termo? Como j anunciado nas primeiras linhas deste texto, referimo-nos a prticas/atividades sociais, que os homens realizam fazendo uso da linguagem articulada verbal, em seu modo de funcionamento oral, que se manifesta pela voz. atravs dessas atividades que os homens interagem, atravs de uma relao dialgica em que ocorrem trocas comunicativas. A aquisio dessa linguagem inicia-se na mais tenra idade do homem.5 Em sociedades em que h a escrita, indiscutivelmente a oralidade recebe afetao/impacto da escrita. no interior de seus grupos, na diversidade das prticas sociais, que os homens assimilam os mais diferentes formatos de textos (gneros textuais), que se prestam s mais diferentes intenes interativas/comunicativas. A observao do cotidiano, at para aqueles que no se

Cf. TFOUNI (1995), SIGNORINI (org.) (1995). No devemos esquecer de que h uma diversidade de situaes em que a oralidade est implicada de maneira especial ou est ausente. Existem diferentes tipos de alterao da fala focalizados em campos como os da Neurolingstica e da Fonoaudiologia, que dizem respeito capacidade de articular as palavras ou de lidar com estratgias discursivas (por exemplo, mudez, gagueira, afasia). De outro ngulo, fora do mbito da patologia, cabe lembrar as lnguas de sinais das comunidades de surdos, que so viso-gestuais e no auditivovocais. Embora a enunciao no envolva palavras vocalizadas, possvel dizer que, quando enuncia em sinais, o surdo est exercendo uma oralidade, falante da lngua de seu grupo. Assim, ainda que tenhamos de levar em conta situaes to diversas, constatamos que a oralidade continua no centro das interaes humanas.5

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dedicam aos estudos lingsticos, permite verificar que a espcie humana faz uso da fala na maior parte do tempo quando est acordada.6 Ao longo de sua vida, os indivduos no do conta de conhecer toda a diversidade de textos (gneros) produzida nas sociedades, at porque praticamente impossvel tomar parte (ou, para o estudioso, mensurar) todas as situaes sociais. No espao familiar, muitas situaes permitiro que o indivduo reconhea as regras sociais de participao e aprenda a produzir textos que permitiro a interao deles com os outros membros de seu grupo/famlia. Nas situaes familiares, locutores e interlocutores so identificveis, e as referncias textuais so, em sua maioria, compartilhadas. Entretanto, essas situaes apresentam limites para possibilitar a vivncia dos mais diferentes contextos sociais e, por exemplo, no conseguiro dar a oportunidade ao indivduo de agir verbalmente em situaes em que os interlocutores sero estranhos ao locutor e os conhecimentos no sero compartilhados. Nesse sentido, a escola uma instituio que tem o compromisso de propiciar condies para ampliar a capacidade de interao e comunicao em diferentes esferas da cultura. Considerando a importante presena do oral na vida do homem, justificam-se, ento, estudos que tenham por objetivo conhecer seu funcionamento e verificar as possibilidades de seu ensino. Este trabalho est situado na segunda proposio: ele tem por finalidade examinar qual(is) concepo(es) de ensino de oralidade tem(tm) sido difundida(s) recentemente, sobretudo com seu anncio nos Parmetros Curriculares Nacionais. Para tanto, importante verificar como se concebe a oralidade atualmente no meio acadmico e nas escolas de ensino fundamental e mdio e como ela tem sido incorporada nesses diferentes nveis de ensino. Para dar a dimenso de propostas pedaggicas centradas na oralidade, sero apresentadas algumas situaes que permitem traar uma anlise para uma discusso do alcance desse tema no ensino de lngua materna.Projeto de Pesquisa intitulado Fala e Escrita: Usos e Caractersticas, coordenado por L. A. Marcuschi comprovou, atravs de levantamento de aproximadamente 500 informantes, que O tempo dirio empregado com a escrita no passa de 5% do total do tempo em viglia, quando atinge o mximo, sendo que com a leitura, usa-se um pouco mais. A grande parte do tempo utilizada com a comunicao oral, o que caracteriza nossa sociedade, indistintamente da classe social, idade, formao e profisso, como profunda e essencialmente oralista. Cf. Marcuschi, 2001, p. 20.6

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Meu interesse por este assunto se inicia em situaes de ensino de escrita em cursos de graduao. Atravs da difcil equao sobre como possibilitar aos alunos uma relao mais significativa com a escrita, enveredei-me pelas trilhas das produes orais. O que era inicialmente um estudo que tratava das relaes entre fala e escrita, tornou-se uma situao em que passei a atribuir um estatuto diferenciado para a oralidade. Propus-me, ento, verificar se a proposta de ensino de oralidade, que estabelece atividades para reconhecer a formulao do texto oral atravs de prticas de escuta, anlise e produo de textos, e que tambm examina as relaes existentes entre a oralidade e a escrita (interpenetrao dos discursos/ heterogeneidade do oral e do escrito), teria possibilidade de ser desenvolvida por docentes de Lngua Portuguesa no ensino fundamental7 e de ser assumida como prtica e responsabilidade do corpo docente e quais estariam sendo a viabilidade, as condies para sua implantao e o impacto delas sobre os alunos e sobre o ensino de modo geral. Para desenvolver essa investigao, considerei necessrio examinar questes que permitem sustentar a proposta de estudo de oralidade, tais como: os conceitos de linguagem e de lngua que orientam o trabalho do professor; a definio da unidade de ensino: a descrio lingstica ou o texto; o valor que o professor de lngua materna atribui ao ensino da produo oral em sua diversidade de gneros como objeto e contedo de ensino; a participao do corpo docente com co-responsabilidade no processo de ensino da leitura e da produo textual (oral e escrita), na medida em que ele tambm possibilita condies de uso real da leitura, da escrita e da fala. Esses pontos de indagao fazem parte de uma preocupao mais ampla: compreender quais so as condies efetivas, na escola de ensino fundamental, para que o ensino da modalidade oral se constitua uma proposta de trabalho que

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Inicialmente pensei examinar no ensino mdio, mas depois me pareceu mais vivel optar apenas pelo fundamental.

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ultrapasse os contedos especficos de Lngua Portuguesa, tornando-se uma perspectiva de ensino - para todas as reas de conhecimento - que promove o sentido do texto para os alunos.8 Para proceder investigao, institu diferentes lugares de observao do ensino da oralidade, o que exigiu um distanciamento do lugar de professora e o estabelecimento do ponto de vista de pesquisadora. As atividades de ensino em cursos de graduao so situaes vivenciadas por mim que permitem aos interessados no tema refletir sobre diferentes possibilidades de a oralidade ser incorporada ao ensino, como estudo especfico, desenvolvendo atividades para o estudo do texto nessa modalidade. Para me aproximar do que vem sendo tratado sobre oralidade em outros nveis de ensino, decidi realizar entrevistas com professores de Lngua Portuguesa, atuantes no Ensino Fundamental e em Escolas Pblicas. Avaliei que tal procedimento poderia me indicar se ocorre a incorporao da Lngua Falada como objeto de estudos, as condies que a escola oferece para essa incorporao e a atitude do corpo docente em relao Lngua Falada. Resolvi, tambm, debruar-me sobre os Parmetros Curriculares Nacionais para compreender melhor como se d a relao dos professores com o documento oficial, mais especificamente com a proposta da Lngua Falada como objeto de ensino. Em sntese, estabeleci os seguintes objetivos para discutir/demonstrar a oralidade como perspectiva de ensino: apresentao de uma concepo para oralidade fundamenta nas proposies de Bakhtin; organizao e anlise de dados de diferentes situaes de ensino da oralidade em cursos de graduao organizao e anlise de dados sobre o ensino de oralidade na Escola de Nvel Fundamental, a partir de entrevistas realizadas com quatro professores de Lngua Portuguesa como lngua materna, da rede pblica de ensino.

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A idia inicial era discutir, tambm, a incorporao da oralidade como prtica e responsabilidade do corpo docente. Entretanto, com o desenvolvimento da pesquisa, limitei-me ao exame dessa matria ao ensino de lngua materna.

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Logo, a exposio deste trabalho ficar assim organizada: I Inicialmente apresentarei uma problematizao sobre a modalidade oral no contexto de uma concepo que permite abrang-la no ensino da lngua na perspectiva da linguagem em funcionamento, numa viso interacionista e processual. Essa discusso feita no sentido de sustentar o argumento de que o estudo do oral da lngua no somente um meio para certos fins, mas um objeto de ensino que implica a elaborao sobre gneros orais. II No segundo captulo, tratarei dos estudos sobre a modalidade oral e sua relao com a concepo de ensino da lngua. Sero descritos os enfoques dados modalidade oral nos ltimos anos, sobretudo no Brasil, com o corpus de textos produzidos na modalidade oral da Lngua Portuguesa. Vale lembrar que tais estudos incidiram na mudana de tratamento do modo oral da lngua, pois a tornou objeto de pesquisa, sistematizado, descrito. Ademais, eles tm permitido a elaborao de propostas de ensino e possibilitaram a desmistificao de que a oralidade o lugar do caos. Na seqncia do captulo, procuro examinar, tambm, as diretrizes oficiais atuais nessa rea e questes importantes sobre a formao do professor de lngua portuguesa como lngua materna, de maneira a situar o tratamento dado modalidade oral na escola. III No terceiro captulo, descrevo situaes vivenciadas em oferecimento de diferentes disciplinas em curso de Letras e de Publicidade e Propaganda, em que a oralidade foi incorporada como contedo de ensino (Estudos de Oralidade e Redao e Expresso Oral) e como contedo a ser ensinado (Superviso de Estgio e Prtica de Ensino). IV No quarto captulo, apresento dados que obtive para reflexo sobre as possibilidades de ensino da oralidade na escuta de professores tanto em cursos de atualizao profissional para o ensino pblico quanto em entrevistas realizadas com quatro professores. Na Concluso, indico os pontos principais das anlises feitas e sugiro algumas proposies, bem como saliento indagaes pendentes.

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CAPTULO I O MODO ORAL E O CONCEITO DE LINGUAGEM

A lngua, a palavra, so quase tudo na vida do homem. Bakhtin1 Durante muitos anos, a modalidade oral da Lngua Portuguesa no Brasil, nas escolas de ensino fundamental (e mdio tambm), foi abordada numa perspectiva instrumental, em que se propunham questes para serem realizadas oralmente entre os alunos como pretexto/meio para iniciar o estudo de um determinado tema, ou como primeiro procedimento/meio para iniciar uma produo textual escrita. Silva e Mori-de-Angelis (2004.p.194) nomeiam esse uso da oralidade: (...) atividades que tratam a linguagem oral como mdia para a realizao de outras atividades. Os exerccios de expresso oral tambm se constituam de leituras dramatizadas ou expressivas; relatos ou comentrios feitos pelos alunos de experincias pessoais ou de narrativas lidas ou contadas pelo professor; de debates espontneos (ou desregrados) a respeito de alguma temtica; de questes (no formato de questionrios) para verificar o entendimento da leitura de algum texto (do livro didtico, por exemplo). De fato, ocorre nessas situaes o uso da linguagem oral, mas os objetivos no recaem especificamente sobre o estudo da enunciao. O parmetro desse tipo de abordagem o ensino da escrita, ou melhor, nessa perspectiva de ensino, o que se depreende que a escola o lugar de ensino da escrita, referendada por expresses como se o aluno j chega falando na escola, logo, a escola deve centralizar-se no ensino da escrita. Essa abordagem est ancorada na valorizao social da escrita. De fato, em sociedades em que h prticas intensas de escrita, os cidados, ainda que no a dominem, so por elas1

BAKHTIN, 2000, p. 346.

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afetados. Logo, a escola tem papel fundamental em relao ao ensino da escrita. Geraldi (2002, p. 36) prope:O conhecimento apenas da modalidade oral da lngua no permite, evidentemente, acesso ao que se acumulou com o trabalho social e histrico, com o conhecimento hoje disponvel graas escrita. Assim o primeiro acesso que a escola deve proporcionar o acesso escrita.

No se pode negar o grande compromisso que a escola tem na promoo e na garantia da aprendizagem da escrita. E, infelizmente, ainda se constata que amplos segmentos da populao no so atendidos nesse direito. Esse um desafio que precisa ser vencido. No entanto, o que se questiona na discusso da lngua o divrcio entre as modalidades e a negligncia em relao a uma delas. Recorrendo a uma imagem, como se importasse afetar apenas um dos dois lados da moeda. Mais do que instituir um estatuto para a oralidade, verificar a concepo que tm os profissionais da educao sobre o uso de uma lngua; ainda mais do que isso: importa saber como esses profissionais concebem a linguagem. No processo de ensino e aprendizagem de lngua materna, a seleo do para que, o que e como ensinar objetivo/contedo/metodologia de ensino referenciado por opes tericas que os profissionais com formao acadmica adotam. Geraldi (1985, p. 42) faz a seguinte observao em relao metodologia de ensino:Antes de qualquer considerao especfica sobre a atividade de sala de aula, preciso que se tenha presente que toda e qualquer metodologia de ensino articula uma opo poltica que envolve uma teoria de compreenso e interpretao da realidade com os mecanismos utilizados em sala de aula.

Nessa perspectiva, alm de ser uma opo poltica, quando um professor estabelece o que vai ensinar, como vai ensinar, com quais recursos, enfim, quando estabelece uma conduta para sua atuao, ele est orientado por uma concepo de linguagem, ainda que no tenha clareza desse fato ou que no identifique qual concepo o norteia. 9

O interesse por investigar a linguagem, compreender como se d sua aquisio e seu funcionamento existe em diferentes reas de conhecimento, tais como a Filosofia e a Psicologia, alm da Educao e da Lingstica, que instituem diferentes pesquisas e mltiplos dilogos. A razo desse interesse talvez possa ser atribuda ao fato de essas reas (assim como tantas outras) compreenderem que a linguagem que proporciona o carter distintivo aos homens.2 Pela vertente da Lingstica, Koch (2003, p.7) apresenta resumidamente trs concepes vigentes: a. representao (espelho) do mundo e do pensamento; b. expresso do pensamento como instrumento de comunicao; c. ao e interao. Como ao e interao, a linguagem passa a ser vista em funcionamento, como atividade dialgica e interacional, concepo que inova no ponto de vista de observao. A partir desse novo enfoque, compreende-se a linguagem como atividade enunciativa/discursiva; o sistema lingstico, uma das possibilidades de concretizao da linguagem, deixa de ser considerado por muitos como um sistema imutvel, homogneo, monoltico, e seu uso tomado como referncia para compreenso de seu funcionamento. Desse modo, as formulaes so consideradas dentro de determinadas situaes, com a participao de sujeitos definidos que agem sobre a produo verbal (oral e escrita) de seus interlocutores e deles sofrem aes, num processo interacional.3 Nesse novo cenrio, a lngua deixa de ser meio de comunicao e passa a ser vista como uma forma de atividade, materializada nos enunciados/discursos, marcada pelo contexto e ao mesmo tempo por uma individualidade. O ponto de observao da lngua passa a ser os enunciados verbais. Nesse sentido, ela pode ser utilizada pelos falantes de dois modos: oral e escrito. Compreende-se que os dois modos da lngua podem ser usados individualmente nas diferentes situaes sociais ou podem ser utilizados ao mesmo tempo, no dependendo apenas de

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Cf. LYONS, 1.987 (p. 16); GERALDI, 2002 (p. 50). Tambm o silncio considerado como uma possibilidade de ao, cf. ORLANDI, 2001; LAPLANE, 2000.

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uma deciso do falante, mas tambm de fatores sociais e contextuais. Em relao s produes textuais, podemos recorrer afirmao de Geraldi (2002, p.53):(...) o deslocamento da noo de representao para a noo de trabalho lingstico exige incorporar o processo de produo de discursos como essencial, de modo que no se trata mais de apreender uma lngua para dela se apropriar, mas trata-se de us-la e, em usando-a, aprend-la.

As novas formulaes dos conceitos de linguagem e de lngua tm impacto nas propostas educacionais, pois os referenciais tericos exigem uma nova organizao dos objetivos de ensino, e, conseqentemente, dos contedos dos programas das escolas. Dentre as inovaes, ficou evidente a compreenso de que os professores no estariam transmitindo apenas conhecimentos especficos sua rea, mas vislumbrou-se que o campo de atuao do professor de outra ordem, no restrita apenas a operaes conceituais da disciplina que ele ministra. Os profissionais, dentro de uma sala de aula em processo de ensino-aprendizagem, no passam conhecimentos, mas, se passam alguma coisa aos alunos, passam muito mais que conhecimentos; por outro lado, o aluno no informa ao professor apenas se apreendeu um determinado contedo da matria, mas tambm descortina seu ser, sua histria, sua viso de mundo ao informar o que entendeu durante um exerccio escolar. Sobral (2005, p.24), ao tratar do sujeito em Bakhtin, faz a seguinte afirmao:Quando diz algo, o sujeito sempre diz de uma dada maneira dirigindo-se a algum, e o ser desse algum interfere na prpria maneira de dizer, na escolha dos prprios itens lexicais. Dizer dizer-se. O conceito de mediao de Vygotsky (2000) no desenvolvimento da linguagem e

na constituio do sujeito colabora significativamente para compreenso das atividades dos indivduos no mbito educacional: se os indivduos so mediados por outros indivduos para se apropriarem da linguagem e se constiturem como sujeitos, isto pode significar que no espao escolar todos os professores so coresponsveis por essa mediao, portanto, o cuidado, especialmente com a

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linguagem verbal, apesar de apresentar especificidades de estudo na formao do professor de lngua materna, no poderia se restringir a um trabalho isolado, realizado por essa rea, mas comea a ser concebido como um trabalho de coparticipantes. Desse modo, todos os professores tm importncia e responsabilidade no processo de tornar a produo textual para os alunos atividade de significao, que representa um sujeito com uma viso de mundo, que se institui no momento da realizao do texto, etc. Como co-responsvel, o professor de lngua materna tem participao especial nessa situao, pois o profissional que pesquisa e estuda os processos de produo textual, bem como as questes relacionadas ao seu ensino e sua aprendizagem. Nesse cenrio, a concepo de texto abrange produes orais e escritas dos falantes, logo, ambas passam a ser objetos distintos de investigao, ainda que amparados por diferentes concepes4 ou por concepes que se complementam, o que ser tratado mais frente. Antes, porm, ser examinado com mais especificidade o conceito de linguagem.

O CONCEITO DE LINGUAGEM Quem trabalha com a palavra, necessariamente deve ter para si mesmo explicitado o que por ela entende e em qual universo ela est inserida. A palavra utilizada em todo lugar, isso a que Bakhtin (2002, p. 41) chama de ubiqidade social da palavra. O filsofo russo tambm afirma que a palavra o modo mais puro e sensvel de relao social (p. 36). Contudo, compreende-se hoje, tambm, que a ausncia da palavra, o silncio, constitui significao. Palavras e silncio constituem, pois, significao. Compreender o universo da palavra no tarefa simples. preciso pensar na amplitude de seu significado, em sua relao com outras palavras, na sua inveno, na relao que ela estabelece entre quem a produz e o interlocutor, em

H vises dicotmicas a respeito do conceito de modalidade oral e escrita da lngua. Marcuschi (2001, p. 27) exemplifica a posio de diferentes autores.

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quais condies ela produzida. Quando pensamos na atuao docente, temos em mente profissionais de nossa sociedade que estudam a palavra e a tm como objeto de trabalho. O professor problematiza, discute, institui a palavra, colabora na mediao de seus alunos para reconhecimento de diferentes e/ou novos significados para as palavras; ele investe contra a aparente inocncia da palavra Citeli (2001, p. 16). Logo, o professor atua diretamente na reflexo, na discusso, na apropriao do significado das palavras junto de seus alunos. O professor atua no campo da significao. Ao assim proceder, o faz atuando de alguma forma sobre seus alunos e o faz atravs da ao que seus interlocutores sobre ele exercem. Como prefere Bakhtin, a palavra interindividual.5 Quando se investiga a atuao desse profissional importante reservar um momento para analisar como a palavra por ele interrogada. Mas para pensar em significao, com ou sem palavras, necessrio vislumbrar um universo mais amplo, o universo da linguagem, preciso investigar o que seu uso, como se d, o que ela estabelece quando em uso e o que ela proporciona. Atualmente, quando se trata do conceito de linguagem, trs diferentes concepes so sinteticamente apresentadas. Alm de Koch (2003), Geraldi (1984) e Travaglia (2002) tambm apresentam a linguagem como representao do pensamento, instrumento de comunicao e ao interativa. Como compreender esses enfoques? De onde eles se originam? A antiguidade clssica pode oferecer sua contribuio para que os dois primeiros conceitos possam ser mais bem compreendidos. Plato (428-7-348-7 a.C.) talvez tenha sido no ocidente o primeiro a refletir sobre a natureza da linguagem. H em sua produo duas obras que nos permitem conhecer as primeiras discusses a respeito da linguagem e do conhecimento. So elas: Teeteto e Crtilo, dois textos escritos em forma de dilogos, de acordo com o estilo conversacional do filsofo grego. No primeiro, Teeteto, ou Sobre o Conhecimento, Plato estabelece inicialmente o dilogo entre Euclides e Terpsio, quando eles recordam as impresses que Scrates tinha a respeito de Teeteto, jovem que despertara a ateno do filsofo.5

BAKHTIN, 2000, p. 350.

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Terpsio resolve, ento, apresentar o registro que fez do dilogo, estabelecido entre Scrates, o gemetra Teodoro e Teeteto. Trata-se de uma conversa em que Scrates faz perguntas a Teeteto como procedimento dialtico para discutirem o que o conhecimento, assunto principal do dilogo, e o que o caracteriza como referncia inicial para as discusses a respeito da Teoria do Conhecimento. Em determinado momento da conversao sobre o que significa conhecer, Scrates questiona Teeteto, relacionando o conhecer ao ver (TEETETO, 1988, p.34-5):Scrates: (...) Poder algum conhecer alguma coisa e, ao mesmo tempo, no conhecer o que conhece? Teodoro: Que responderemos a isso, Teeteto? Teeteto: Eu, pelo menos, acho que no pode. Scrates: Isso no, visto afirmares que ver conhecer. Como responderias pergunta inextricvel se viesses a cair no poo como se diz, e com uma das mos o teu implacvel adversrio te tapasse um dos olhos e perguntasse se com esse olho tapado enxergavas o seu manto? Teeteto: Penso que lhe diria: - Com esse, no; vejo com o outro. Scrates: Sendo assim, a um s tempo vs e no vs o mesmo objeto? Teeteto: Sim, de certa maneira.

Nesse exemplo, encontramos as primeiras indicaes da relao existente entre a elaborao do conhecimento e a linguagem, pois Scrates parece-nos propor que se pense no conhecimento que temos dos objetos, a partir da sua ausncia. O estabelecimento de algum referencial para lembr-los indica a imbricada relao do conhecimento com a linguagem, o que o exemplo abaixo atesta, (TEETETO, 1988, p.31-2):Scrates: No caso de nos perguntarem se possvel a algum que conheceu determinada coisa cuja lembrana ainda no se lhe apagou da memria, no momento em que se recorda dela no conhecer aquilo de que se lembra? Parece que fiz um rodeio muito grande s para perguntar se quem aprendeu alguma coisa no sabe do que se trata, quando se lembra dessa coisa?

A viso do objeto e a sensao dele constituem formas de conhecimento, lembradas na ausncia, representadas certamente pela palavra (TEETETO, 1988, p. 72): 14

Scrates: Ento, ouve tudo isso de novo, porm da seguinte maneira: Sendo certo que eu conheo Teodoro e me lembro em mim mesmo como ele , a mesma coisa acontecendo com relao a Teeteto, ora os vejo e ora no vejo; por vezes toco neles, por vezes no toco, ou os ouo ou percebo por meio de outra sensao, podendo tambm dar-se o caso de no ter de vs dois nenhuma sensao; mas nem por isso deixo de lembrar-me de ambos e de conhecer-vos por mim mesmo.

Aos poucos, possvel observar a relao que Scrates estabelece entre conhecimento e linguagem. A definio de Nunes (1988), apresentada no estudo inicial que precede traduo do dilogo, do grego para a lngua portuguesa, expressa com propriedade as idias de Plato:Referimo-nos perspectiva de alcance semiolgico, assente na idia de que o conhecimento no pode ser considerado independentemente da linguagem. Analisar o conhecimento analisar a linguagem; critic-lo criticar certa modalidade da linguagem. E percebe-se no Teeteto, ao se definir o conhecimento numa terceira e final tentativa, como opinio verdadeira acompanhada de explicao racional, que o exame da questo se faz atravs da retcula da linguagem.

Em Crtilo, o dilogo a respeito da origem dos nomes ocorre entre o personagem que d nome ao dilogo, Hermgenes (pensador da vertente heracliana) e Scrates. Hermgenes concebe que o nome que se d a uma determinada coisa sempre o nome certo, justo; para Crtilo, o nome a representao do objeto. Scrates, atravs do mtodo dialtico (como em Teeteto), procede a perguntas para examinar os argumentos apresentados pelos dois personagens a respeito da origem dos nomes. Em determinado momento, o filsofo lembra que nomear ao, falar uma espcie de ao. Logo, a idia da linguagem como instrumento apresentada, ao ser comparada ao instrumento para cortar, para furar. Tambm Scrates lembra a qualidade do homem em relao anlise e contemplao que este pode fazer das coisas, o que podemos associar ao atributo da linguagem, diferencial dos homens (CRTILO, 1988, 123):Scrates: o seguinte: o nome Anthropos significa que, ao contrrio dos outros animais que no examinam o que vem, nem o analisam nem contemplam, o homem, ao mesmo tempo que v pois isso justamente, que quer dizer oppe contempla e analisa o que viu. Por isso, dentre

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todos os animais o homem o nico justamente denominado Anthropos, ou seja, anatrhrn h ppe, o que contempla o que v.

H em Crtilo, tambm, questes que so hoje bastante atuais, como o fenmeno da variao lingstica ou a compreenso que se procura ter a respeito da linguagem dos animais ou ainda a forma de expresso empregada pelos homens quando destitudos de voz e de lngua, como demonstra o exemplo abaixo (CRTILO, 1998, p. 153):Scrates: Responde-me o seguinte: se no tivssemos nem voz nem lngua, e quisssemos mostrar as coisas uns aos outros, no procuraramos fazer como os mudos, indicando-as com as mos, a cabea e todo o corpo? Hermgenes: No haveria outro jeito, Scrates. Scrates: A meu parecer, se fosse preciso indicar alguma coisa elevada ou leve, levantaramos as mos para o cu, para imitar a prpria natureza da coisa; se fosse algo pesado e baixo, para o cho que as estendramos, em no caso de querermos indicar um cavalo a correr, ou qualquer outro animal, bem sabes que procuraramos deixar nosso corpo semelhante ao deles, tanto quanto possvel, assim na forma como no gesto. Hermgenes: Acho que forosamente como dizes. Scrates: possvel, ento, segundo penso, exprimir algo por meio do corpo, com imitar, ao que parece, o corpo que queremos indicar. Hermgenes: certo. Scrates: E uma vez que queremos expressar-nos com a voz, a lngua e a boca, no poderemos exprimir o que quer que seja por meio, se procurarmos imitar seja o que for? Hermgenes: Necessariamente, penso. Scrates: O nome, portanto, como parece, a imitao vocal da coisa imitada, indicando quem imita, por meio da voz, aquilo mesmo que imita.

Na verdade, os dois dilogos de Plato6 permitem-nos conhecer, de forma complementar, as primeiras reflexes a respeito da linguagem e que ainda hoje sustentam duas concepes. Em Teeteto, a linguagem a expresso do pensamento; em Crtilo7, a linguagem considerada instrumento de comunicao e representao do pensamento e, em ltima anlise, da realidade.Sobre Plato, cf. TRABATTONI, 2003; HAVELOCK,1996; PIQU,1996; KOYR, 1969; ROCCO, 2001; WEEDWOOD, 2002. 7 Moura Neves (2002, p.27) afirma que (...) quando Plato trata da questo da justeza (orthtes) do nome, no Crtilo, s ilusoriamente o problema em questo a linguagem em si. A relao entre conveno e natureza (nmos/phsis) interessa, isso sim, ao domnio mais amplo da relao entre homem (o que ele faz, nmos) e a natureza (phsis), interessa, afinal, questo da essncia do homem.6

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No sculo XVI, a gramtica de Port-Royal8 d continuidade idia de que a palavra serve para expressar o pensamento; com um grande salto temporal, no sculo XX, mais especificamente na dcada de 1970, a Teoria da Comunicao retoma a idia da lngua como instrumento de Comunicao.9 De interesse mais especfico para o presente texto, interessa saber que h muitas crticas em relao concepo de linguagem como expresso do pensamento ou como instrumento de comunicao. Travaglia (2002, p.21), ao comentar o conceito de linguagem como expresso do pensamento, afirma que, para os que assim compreendem a linguagem,A enunciao um ato monolgico, individual, que no afetado pelo outro nem pelas circunstncias que constituem a situao social em que a enunciao acontece. As leis da criao lingstica so essencialmente as leis da psicologia individual, e da capacidade de o homem organizar de maneira lgica seu pensamento depender a exteriorizao desse pensamento por meio de uma linguagem articulada e organizada.

Logo, como afirma Geraldi (1985, p.43), (...) pessoas que no conseguem se expressar no pensam (...). Como instrumento de comunicao, Travaglia (2002, p.22) faz as seguintes consideraes:Essa concepo levou ao estudo da lngua enquanto cdigo virtual, isolado de sua utilizao (...) Isso fez com que a Lingstica no considerasse os interlocutores e a situao de uso como determinantes das unidades e regras que constituem a lngua, isto , afastou o indivduo falante do processo de produo, do que social e histrico na lngua.

Com um intervalo de dois milnios, no sculo XX, um outro lugar para observao da linguagem instalado: o da abordagem funcionalista e social da linguagem. A linguagem constitui objeto de reflexo e investigao no somente dos filsofos, dos poetas e dos fillogos, mas de diferentes campos, agora institudos como rea de conhecimento: Lingstica, Psicologia, Sociologia, Antropologia, entre outras.

8 9

ARNAULD e LANCELOT. Gramtica de Port Royal. So Paulo: Martins Fontes, 2001. Cf. SOARES, 1998; LOPES, 1989.

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Weedwood (2003), ao lembrar que a lingstica sofre uma grande transformao na metade do sculo XX, lembra da expresso guinada pragmtica, ou seja, os estudos da linguagem passam a ser centrados no uso da linguagem e nas condies de sua real produo, tal como se compreende a Pragmtica (WEEDWOOD, 2003, p.144): A pragmtica estuda os fatores que regem nossas escolhas lingsticas na interao social e os efeitos de nossas escolhas sobre as outras pessoas. Logo, a linguagem, em um novo posto de observao, considerada como forma ou processo de interao. Segundo Travaglia (2002, p.23),(...) o que o indivduo faz ao usar a lngua no to-somente traduzir e exteriorizar um pensamento, ou transmitir informaes a outrem, mas sim realizar aes, agir, atuar sobre o interlocutor (ouvinte/leitor). A linguagem , pois, um lugar de interao humana, de interao comunicativa pela produo de efeitos de sentido entre inter-locutores, em uma dada situao de comunicao e em um contexto scio-histrico e ideolgico. Os usurios da lngua ou interlocutores interagem enquanto sujeitos que ocupam lugares sociais e falam e ouvem desses lugares de acordo com formaes imaginrias (imagens) que a sociedade estabeleceu para tais lugares sociais (...).

a voz de Bakhtin que sustenta a afirmao de Travaglia. Da mesma forma como recorremos a Plato para o exame das duas outras concepes de linguagem, talvez seja melhor imitar o procedimento e recorrer ao prprio filsofo russo para examinar suas idias.

A VISO ENUNCIATIVA DA LINGUAGEM E A QUESTO DO TEXTO: BAKHTIN As obras de Mikail Bakhtin (1895-1975) revelam sua concepo de mundo luz do mtodo sociolgico, ancorado em grande parte em teses marxistas. Para ele, as palavras so ideolgicas, refletem e refratam diferentes realidades. Para conhecermos melhor as idias desse autor sobre linguagem, necessrio compreender alguns conceitos que esto circunscritos a essa definio, como por exemplo, o da constituio dos indivduos. Bakhtin (2002, p.35) postula que o

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homem

se

constitui

em

relaes

interindividuais,

em

situaes

scio-

comunicativas, pois,(...) no basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. fundamental que esses dois indivduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): s assim um sistema de signos pode constituir-se. A conscincia individual no s nada pode explicar, mas ao contrrio, deve ela prpria ser explicada a partir do meio ideolgico e social.

Portanto, o homem no concebido fora de suas atividades sociais: fora delas, no h significao. O autor vai mais longe: fora delas no h constituio do sujeito. Barros (2001, p.30), citando Bakhtin, afirma que a alteridade define o ser humano. Nesse sentido, a linguagem somente concebida, concretizada entre indivduos socialmente organizados. na relao entre os indivduos que o significado se constitui. o que ele chama de terreno interindividual.10 atravs da palavra, aquela qual fizemos referncia na epgrafe deste captulo, que Bakhtin concebe como fenmeno ideolgico por excelncia, como o modo mais puro e sensvel de relao social.11 A posio de Bakhtin antagnica soberania da ao individual do homem (2002, p.70-71):(...) a unicidade do meio social e a do contexto social imediato so condies absolutamente indispensveis para que o complexo fsicopsquico-fisiolgico [a palavra, a linguagem] que definimos possa ser vinculado lngua, fala, possa tornar-se um fato de linguagem. Dois organismos biolgicos, postos em presena num meio puramente natural, no produziro um ato de fala. (comentrio nosso)

Bakhtin considera a lngua como fenmeno social, sendo que o falante serve-se dela para suas necessidades enunciativas concretas (2002, p.92). Logo, a lngua deve ser decodificada, compreendida nas mais diferentes situaes contextos de uso. Nessa perspectiva, bom lembrar que a palavra est sempre carregada de um contedo ou de um sentido ideolgico (...). Dessa forma, atravs dos10 11

BAKHTIN, 2002, p.35. Ibid., p. 36.

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diferentes contextos existentes, pode-se compreender a polissemia da palavra, apesar da sua condio de unicidade (2002, p. 106). O filsofo russo afirma que a lngua se constitui de atos de fala, de enunciaes, que so de natureza social (2002, p.109). Para compreendermos melhor as idias de Bakhtin a respeito da linguagem, acrescentamos o conceito de expresso. Na perspectiva monolgica, Bakhtin a define (2002, p.111):(...) tudo aquilo que, tendo se formado e determinado de alguma maneira no psiquismo do indivduo, exterioriza-se objetivamente para outrem com a ajuda de algum cdigo de signos exteriores.

Na concepo de Bakhtin, a expresso que organiza a atividade mental (2002, p.112). Ope-se ao conceito de expresso monolgica (no sentido de expresso que se origina no indivduo), o de enunciao, como produto de dois indivduos socialmente organizados. O filsofo russo (2002, p. 112) prope que, em situaes em que(...) no haja um interlocutor real, este pode ser substitudo pelo representante mdio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor (...) No pode haver interlocutor abstrato (...). O mundo interior e a reflexo de cada indivduo tm um auditrio social prprio bem estabelecido (...)

Para os indivduos, a conscincia de que se orienta a palavra em funo de um interlocutor (2002, p.113) faz muita diferena na constituio do sentido. Melhor dizendo, ter clareza da orientao da palavra faz muita diferena para os participantes dos enunciados verbais, pois estes se definem na relao em que esto inseridos. Bakhtin chega a afirmar que sem uma orientao social de carter apreciativo no h atividade mental (2002, p.114). Logo, para a concepo de linguagem como expresso do pensamento, encontramos o contraponto bakhtiniano (2002, p.117): O pensamento no existe fora de sua expresso potencial e conseqentemente fora da orientao social dessa expresso (...).

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Bakhtin no destitui os homens da expresso de seus pensamentos nem de suas atividades de comunicao, mas concebe tais atividades humanas a partir de outra tica, considerando as relaes interativas entre os indivduos e a influncia do outro para a realizao de tais atividades. Ao tratar da concepo do dilogo entre interlocutores, Barros (2001, p.31-2) afirma que para Bakhtin a interao entre interlocutores o princpio fundador da linguagem (...) a interao dos interlocutores funda a linguagem. Portanto, as contribuies da concepo de linguagem na perspectiva dialgica permitem compreender que no o pensamento que tem suporte na linguagem, mas a prpria linguagem que organiza e estrutura o pensamento. O conhecimento no somente explicitado atravs da linguagem, como tambm ela que primeiro permite a elaborao do pensamento. No se trata de negar a fora de um processo para afirmar o de outro; o que importa compreender sua interdependncia, recusando a noo de que a linguagem apenas expressa algo que j foi pensado fora dela. De certa forma, a linguagem se relaciona com a comunicao verbal, mas no sentido de promover uma inter-ao entre os indivduos, no sendo reduzida a um mero instrumento de comunicao. Outro ngulo das proposies de Bakhtin (2000, p. 329) deve ser lembrado. O autor argumenta que o texto (oral ou escrito) o objeto das cincias humanas. Para ele, nesse campo o pensamento, enquanto pensamento nasce no pensamento do outro que manifesta sua vontade, sua presena, sua expresso, seus signos, por trs dos quais esto as revelaes divinas ou humanas. Como j afirmado, Bakhtin no concebe o homem fora de suas atividades sociais. Embora o autor tenha focalizado o texto escrito em vrios trabalhos, os conceitos no se restringem a essa modalidade. Ao afirmar o princpio da dialogia, ao distinguir e inter-relacionar lngua e discurso, ao abordar os gneros, principalmente do cotidiano, em grande parte de sua obra, Bakhtin sempre se referiu a sujeitos que se falam. Portanto, produes orais e escritas so consideradas objetos de estudos por Bakhtin. Ao procurar compreender as fronteiras do texto, Bakhtin afirma que todo texto tem um sujeito (2000, p. 330). Ao se executar um texto, ou seja, ao torn-lo

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realidade, estaremos diante de um enunciado, um todo de sentido. Na relao dialgica, a presena do interlocutor imprescindvel para a constituio do sentido. Logo, o filsofo russo afirma (2000, p.356):O enunciado sempre tem um destinatrio (com caractersticas variveis, ele pode ser mais ou menos prximo, concreto, percebido com maior ou menor conscincia) de quem o autor da produo verbal espera e presume uma compreenso responsiva.

Nessa abordagem, o homem, quando considerado imerso em relaes dialgicas, sempre tem a expectativa de uma manifestao responsiva frente aos enunciados por ele produzidos, ainda que a atitude inicial seja o silncio. Sob essa tica, o indivduo pode elaborar sua manifestao que ser precedida pelo no dizer ou pode optar pela manifestao de silncio como uma atitude responsiva. Se os distintos significados do silncio passam desapercebidos pelo homem em seu cotidiano, no espao escolar eles no podem assim ser tratados, sobretudo porque suas significaes afetam sobremaneira as relaes entre docentes e discentes. Para muitos, a ausncia da palavra pode significar a concordncia, a subservincia, mas dentre tantas contribuies do pensador russo, a reflexo sobre a constituio de sentido nas relaes sociais, que, por natureza so dialgicas, deve ser examinada cuidadosamente. Logo, vislumbra-se o enunciado constitudo no apenas por um sistema lingstico, mas tambm por uma heterogeneidade de elementos ou de sistemas. E so os diferentes elementos que constituem um momento nico, que tornam o enunciado um todo historicamente individual e nico, irreproduzvel. (BAKHTIN, 2000, p. 357). As consideraes acima tm implicaes significativas na atuao do professor, especialmente do de lngua materna, na medida em que ele pode compreender como seu aluno atua na vida enquanto indivduo imerso nas relaes sociais, na medida em que ele concebe as relaes de ensino participantes dessas mesmas relaes sociais e na medida em que ele pode vislumbrar um programa de estudos que possa efetivamente oferecer contribuio para que o aluno desenvolva a competncia discursiva, a qual lhe permita relacionar-se (verbalmente) com outros indivduos e reconhecer seu lugar na sociedade. Por 22

essa razo, o professor dever selecionar diferentes situaes sociais, identificar e refletir sobre as produes verbais nelas produzidas. Geraldi (2002, p. 63) sugere que a sala de aula seja um espao de reflexo sobre os diferentes textos (orais e escritos) produzidos em situaes sociais conhecidas pelos alunos. Ao conceber a vida de um indivduo em diversas esferas sociais, Bakhtin (2000, p.279) considera que as prticas comunicativas nas diferentes esferas sociais so organizadas atravs de gneros do discurso. A definio apresentada pelo filsofo contempla trs elementos caracterizadores:Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, esto sempre relacionadas com a utilizao da lngua. No de surpreender que o carter e os modos dessa utilizao sejam to variados como as prprias esferas da atividade humana, o que no contradiz a unidade nacional de uma lngua. A utilizao da lngua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e nicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condies especficas e as finalidades de cada uma dessas esferas, no s por seu contedo (temtico) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleo operada nos recursos da lngua recursos lexicais, fraseolgicos e gramaticais mas tambm, e, sobretudo, por sua construo composicional. Estes trs elementos (contedo temtico, estilo e construo composicional) fundemse indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles so marcados pela especificidade de uma esfera de comunicao. Qualquer enunciado considerado isoladamente , claro, individual, mas cada esfera de utilizao da lngua elabora seus tipos relativamente estveis de enunciados, sendo isso que denominamos gneros do discurso. A riqueza e a variedade dos gneros do discurso so infinitas (...)

No possvel determinar/especificar todos os diferentes textos produzidos pelos indivduos, pelo fato igualmente de no se poder determinar a quantidade de prticas sociais existentes na sociedade: os indivduos interagem verbalmente falando e/ou escrevendo nas mais diversas situaes sociais.12. Como afirma o autor russo (2000, p.279):A riqueza e a variedade dos gneros do discurso so infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana inesgotvel, e cada esfera dessa atividade comporta um repertrio de gneros do discurso que vaiNo entanto, h produes que embora sejam realizadas oralmente, constituem-se resultados de elaboraes escritas intencionalmente para serem faladas, o que se denomina oralizao, como por exemplo o noticirio televisivo.12

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diferenciando-se e ampliando-se medida que a prpria esfera se desenvolve e fica mais complexa.

Bakhtin classifica os gneros como primrios e secundrios, entendendo, por esses ltimos, aqueles que aparecem em circunstncias de uma comunicao cultural, mais complexa e relativamente mais evoluda, principalmente escrita (2000, p. 281). Aps a apresentao de diferentes concepes de linguagem, vale reafirmar que a concepo adotada13 pelo professor que implicar/determinar sua conduta. Para sustentar uma proposta de ensino para produo textual, que inclua ambas modalidades da lngua oral e escrita a viso enunciativa possibilita atribuir um lugar para os indivduos, ao conceb-los como sujeitos imersos nas relaes sociais, interagindo verbalmente atravs de um gnero discursivo/textual, o que de fato ocorre na vida. O professor de lngua portuguesa, ao ter como referncia o trabalho com texto na diversidade de gneros, poder selecionar situaes de ensino que estaro reproduzindo com mais eficincia as diferentes instncias de uso da linguagem. Geraldi (2002, p.43) aponta as diferenas entre as instncias pblicas e privadas. Destacam-se o conhecimento ou no do interlocutor, os sistemas de referenciao e o atendimento primeiro s necessidades bsicas do indivduo. Geraldi (p. 44) entende ser tarefa da escola:(...) na escola, principalmente, que se iniciam as interlocues em instncias pblicas, especialmente no que tange s possibilidades de a criana assumir a posio de locutor nesta instncia. Defendo, pois, o ponto de vista de que cabe escola no a funo de transmisso de conhecimentos, mas a funo de permitir a circulao entre duas instncias diversas de produo de saberes.

Como tem sido reiteradamente dito, so consideradas produes textuais as realizadas tanto na modalidade escrita quanto na falada, pois so essas as circunstncias reais e nelas que os indivduos esto inscritos. O professor pode propor reflexes sobre o uso da linguagem em instncias privadas com duplaQuer o professor tenha clareza explcita ou no, o que ele concebe por linguagem direcionar suas aes em sala de aula.13

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finalidade: primeiro porque os alunos tm familiaridade com essas instncias, o que lhes permite ter o que dizer sobre esse uso; em segundo lugar, porque essa atividade pode possibilitar ao indivduo tomar conscincia de seus atos enunciativos e, por conseguinte, monitorar suas produes (escritas e orais). Por essa razo, produes textuais de ambas modalidades devem ser objetos de estudo nas escolas porque assim que a lngua usada. A adoo do conceito de gnero permite o trabalho com uma diversidade de textos. Tradicionalmente, a escola tem adotado o conceito de tipologia textual, que abarca cinco ou seis modelos. Apoiado em alguns autores, tais como Jean-Michel Adam (1990), Jan Paul Bronckart (1999), Marcuschi (2002: p. 22) apresenta a seguinte definio para a expresso tipo textual:Usamos a expresso tipo textual para designar uma espcie de seqncia teoricamente definida pela natureza lingstica de sua composio (aspectos lexicais, sintticos, tempos verbais, relaes lgicas). Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dzia de categorias conhecidas como: narrao, argumentao, exposio, descrio, injuno.

Os tipos textuais so produes gerais, que no se circunscrevem em uma prtica social, melhor dizendo, a escola inventou um gnero que somente produzido nela, para avaliao do aluno, que no leva em conta a interlocuo, nem as condies de produo. Logo, a concepo de gnero permite o estabelecimento de uma proposta de ensino que, grosso modo, reproduz com mais eficincia situaes reais de interao verbal. Barbosa (2002: p. 158) sustenta a adoo de gneros como unidade de ensino da lngua materna atravs dos seguintes argumentos:

os gneros do discurso permitem capturar, para alm de aspectos estruturais presentes em um texto, tambm aspectos scio-histricos e culturais, cuja conscincia fundamental para favorecer os processos de compreenso e produo de textos; os gneros do discurso nos permitem concretizar um pouco mais a que forma de dizer em circulao social estamos nos referindo, permitindo que o aluno tenha parmetros mais claros para compreender ou produzir textos, alm de possibilitar que o professor possa ter critrios mais claros para intervir eficazmente no processo de compreenso e produo de seus alunos;

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os gneros do discurso (e seus possveis agrupamentos) fornecem-nos instrumentos para pensarmos mais detalhadamente as seqncias e simultaneidades curriculares nas prticas de uso da linguagem (compreenso e produo de textos orais e escritos).

Pelo exposto, a expectativa que se pode ter que a escola, com corpo docente orientado pelos conceitos aqui tratados, tenha a possibilidade de oferecer a formao de indivduos mais cnscios da inter-relao existente entre os indivduos de uma sociedade e de sua forma de participao nas mais diferentes esferas sociais. Enfim, estima-se que esses conceitos permitam aos profissionais da educao orientar indivduos para uma vida real.

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CAPTULO II ENSINO DE LNGUA, DIRETRIZES OFICIAIS E FORMAO DO PROFESSOR

Tradicionalmente, os estudos lingsticos privilegiaram o estudo da frase, considerada unidade de significao. A anlise textual fundamentava-se na decomposio dos elementos da frase em elementos mnimos, estritamente na perspectiva do sistema lingstico, tomado, na maioria das vezes, como sistema homogneo. No se considerava, nesse mbito de estudo, a relao do texto sistema lingstico - com a realidade. Castilho (2000) esclarece a origem da segmentao da sentena como unidade de sentido completo atravs de um malentendido de traduo. Ao tratar do estudo da sentena, Castilho esclarece o que, provavelmente, aconteceu com a traduo da expresso logos autotels (2000, p.86):Comecemos por Apolnio Dscolo ( sc. I d.C.: I, 2), para quem a orao perfeita [se constitui] pela coerncia dos significados, ou a sentena um conjunto de casos semnticos acionados pelo verbo. Nossas gramticas escolares entenderam mal o adjetivo perfeita, e a expresso coerncia dos significados da definio acima, cunhando a clssica definio a sentena um conjunto de palavras com sentido completo. Voc deve estar cansado de ler essa definio, agora, j se perguntou sobre o que seria o tal de sentido completo? Um livro inteiro encerraria algum tipo de sentido completo? possvel operacionalizar tal definio catando sentenas num texto a partir dela? Cmara Jr. (1964:164) e Rona (1972:182) j comentaram o vcio de origem desta definio, derivado de uma traduo equivocada do termo grego autotels, constante da definio de Dionsio da Trcia e de Apolnio Dscolo. Esse termo aparecia na expresso logos autotels, expresso com um fim em si mesma, auto sustentada, com a qual eles definiam a sentena. Ora, com essa expresso, os gregos estavam destacando a importncia das sentenas numa situao comunicativa, num texto, em que cada uma delas tem de ter uma atuao autotlica, funcionando como um conjunto de elementos ligados solidariamente, para a constituio do sentido textual.

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Com a informao de Castilho, possvel situar melhor parte das razes que orientaram os estudos lingsticos centrados apenas nas frases e no nos textos durante tantos anos. H, certamente, outros diferentes fatores que levaram os estudos lingsticos centrarem-se na frase. Entretanto, de se lamentar que ainda hoje possam ser encontrados muitos professores amparados apenas por essa concepo. Ao recorrer aos textos de origem filosfica, compreende-se melhor as diferentes concepes que atualmente so apresentadas para o conceito de linguagem. Neves (2002, p.26) afirma:A lngua no foi estudada com um fim em si mesmo pelos filsofos cujas reflexes tornaram possvel a prpria gramtica, mas tambm no pelos fillogos gregos, aos quais chamamos gramticos. (...) Para os filsofos, a lngua era apenas a pista concreta para se desvendar atividade da linguagem, e esta era a contraparte expressa do pensamento.

Embora a tradio cristalizasse os estudos lingsticos centrados na frase - a qual possui sentido completo - novas linhas de investigao felizmente recuperaram a idia do sentido completo e, conseqentemente, alteraram a concepo de lngua e, mais especificamente, de lngua materna e de seu ensino. A literatura disponvel sobre ensino de lngua materna no Brasil (GERALDI, 1984,1991,1996, data das primeiras edies; FRANCHI, 1987; CAGLIARI, 1985; BATISTA; 1997; TRAVAGLIA, 1995, BORTONI-RICARDO, 2004,2005; BEZERRA, 2005) conta com: Histricos sobre como se constituiu o ensino de lngua portuguesa; A vinculao do conceito de linguagem e o ensino de lngua; Reflexes sobre o que significa ensinar lngua materna; Discusses sobre o que estabelecer como contedo de ensino; Discusses sobre metodologia de ensino e outros tantos temas; Discusses sobre documentos oficiais que orientam os diferentes nveis de ensino; Discusses sobre formao de professores.

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Outra mudana, embora com trajetria temporal distinta, veio afetar o estudo da lngua e o seu ensino. Trata-se da emergncia da valorizao da lngua falada, que acabou conduzindo a ateno de estudiosos e professores modalidade oral (PRETI, 1998; MARCUSCHI, 1998). No captulo anterior, foi exposta uma das direes de produo dessa mudana, com as contribuies da viso enunciativa da linguagem. Para alargar a discusso desse tpico, importante apresentar um panorama da investigao que vem sendo realizada no Brasil. justo afirmar que os projetos que objetivavam registrar, transcrever e analisar as produes da lngua falada permitiram-nos conhecer as particularidades dessa modalidade, registradas por outros estudiosos no passado de forma extremamente genrica, a ponto de ser afirmado que nada (ou quase nada) se sabia da lngua falada no Brasil. Hoje, as pesquisas se estendem nas mais diferentes direes: na perspectiva da Anlise da Conversao, da Lingstica Textual, dos Estudos Interacionais e na perspectiva Gramatical. Os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs) confirmam a virada que os estudos lingsticos tomaram ao instituir a unidade de ensino centrada no texto como atividade discursiva. No incio dos PCNs de Lngua Portuguesa - Ensino Fundamental - a definio de texto estabelece a referncia para os estudos de Lngua Portuguesa (PCNs, 1998, p. 20-21):Interagir pela linguagem significa realizar uma atividade discursiva (...) O discurso, quando produzido, manifesta-se lingisticamente por meio de textos. O produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma um todo significativo, qualquer que seja sua extenso, o texto, uma seqncia verbal constituda por um conjunto de relaes que se estabelecem a partir da coeso e da coerncia. Em outras palavras, um texto s um texto quando pode ser compreendido como unidade significativa global. Caso contrrio, no passa de um amontoado aleatrio de enunciados.

Como se constata, a perspectiva de texto nos PCNs discursiva. Mas preciso ponderar sobre as condies para implement-la. Uma delas diz respeito formao do professor. A formao do professor, tanto inicial como continuada, embora no deva ser referendada apenas pelas diretrizes oficiais os estudos na rea devem ser a 29

referncia principal no deve ignorar, desconsiderar tais diretrizes. Ou seja, a formao do professor deve permitir-lhe reconhecer as concepes tericas nas diretrizes oficiais e os lugares onde elas so constitudas. Nesse sentido, no desdobramento deste captulo sero analisadas questes relativas formao do professor, com base tanto na concepo da oralidade presente nas orientaes oficiais, quanto no impacto da concepo interacionista de linguagem e das contribuies dos projetos de pesquisa envolvendo a modalidade oral e a concepo de gneros. Sero destacados, nesse desdobramento, certos trechos dos PCNs que tm especial interesse para a perspectiva de tomar a oralidade como objeto de ensino e de abranger diferentes gneros nas atividades de ensino.

A MODALIDADE ORAL: LINHAS DE INVESTIGAO ATUAL A tradio escolar ocidental estabeleceu a modalidade escrita como objeto de estudo e de ensino da lngua materna, desvencilhando a natureza do homem como ser que fala. Essa situao comeou a se alterar, na dcada de 60, com o surgimento de reas de estudos que se interessaram pela forma de comunicao humana mais usual: a lngua falada. Dentre elas, a Lingstica Textual, na Alemanha, passou a considerar o texto, oral ou escrito, objeto particular de investigao (...) por ser forma especfica de manifestao da linguagem. (FVERO e KOCH, 1983, p. 11 e 25). Com foco especfico, a Anlise da Conversao estabeleceu como objeto de estudo, conforme o ttulo dessa rea indica, a conversao. L. A.Marcuschi (1999, p.6), autor do primeiro livro sobre o tema no Brasil assinala que (...) A AC iniciou-se na linha da Etnometodologia e da Antropologia Cognitiva e preocupouse, at meados dos anos 70, sobretudo, com a descrio das estruturas da conversao e de seus mecanismos organizadores. Com o desenvolvimento dos estudos dessas referidas reas, associados a outros como os da Sociolingstica, a chegada da modalidade oral sala de aula de Lngua Portuguesa tem, cada vez mais, sido considerada como um grande 30

empreendimento na rea dos estudos lingsticos. Atesta esse fato a incorporao do ensino da lngua falada pelos Parmetros Curriculares Nacionais (1998) orientaes oficiais da Poltica Pblica de Ensino no Brasil. Na linha de investigao que prope reflexes sobre o sistema gramatical de uma lngua, Castilho (2000, p.55) inicia o percurso pelo sistema discursivo-textual e passa identificao dos processos conversacionais para depois examinar a identificao dos processos de construo do texto, e destes para a identificao dos processos de construo de sentenas. Como professor e pesquisador h mais de quarenta anos, Castilho investiga o funcionamento da lngua partindo do exame de produes orais dos indivduos em situaes espontneas. No estudo da sentena, em A lngua falada no ensino de portugus (2000, p.85)1, o professor-pesquisador esclarece que para efetivao de sua proposta, h necessidade de que os alunos estejam bem familiarizados com a identificao das classes de palavras. De formao inicial em Letras Clssicas, Castilho parte efetivamente de uma proposta mais geral de investigao da formulao da produo oral, especificamente da Conversao, para depois chegar ao estudo da sentena e das classes de palavras. Castilho (2000, p.145) no tem uma idia prescritiva do funcionamento da lngua, mas prope que, a partir da rica observao do funcionamento da lngua falada por ser uma modalidade privilegiada para a inspeo dos processos e dos produtos da lngua, compreenda-se como se tem realizado a regularizao dos processos lingsticos. Castilho serve-se tambm das formulaes da Sociolingstica para anlise dos dados. Vale destacar, ainda, que, em A lngua falada no ensino de portugus, Castilho no somente descreve seus procedimentos metodolgicos, mas apresenta simultaneamente uma proposta de ensino para as aulas de lngua portuguesa como lngua materna, dialogando a todo momento com o seu previsvel leitor: professor ou licenciando de Letras. Contribuies valiosas tm sido apresentadas tambm por Dino Preti que investiga a lngua, referendado, sobretudo, pelos estudos da Anlise da1

A primeira edio do livro de Castilho de 1998.

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Conversao e da Sociolingstica. Importante papel desempenha como pesquisador, coordenador e uma espcie de mantenedor no Projeto NURC. Sua obra Sociolingstica: os nveis da fala, de 1973, a primeira em Sociolingstica no Brasil, promove de forma significativa o desenvolvimento dos estudos das variaes da lngua em relao aos diferentes papis sociais do indivduo. Nessa perspectiva terica, Preti investiga, dentre alguns usos, o da gria, do palavro, da linguagem dos idosos. Preti colabora com a valorizao dos estudos da lngua falada por ter observado que nessa modalidade, especialmente, que podemos encontrar as mais diferentes formulaes textuais da lngua. Outro atual pesquisador, fundamentado pela Anlise da Conversao, Luiz Antnio Marcuschi, conforme j afirmado, autor do primeiro livro no Brasil sobre essa referida teoria, publicado em 1986. Marcuschi desenvolve investigaes tanto participando na quanto coordenando da formulao inmeros do tpico projetos propostos do na Universidade Federal de Pernambuco. Alm de uma densa fundamentao terica calcada observao discursivo, turno conversacional, dos pares adjacentes e dos marcadores conversacionais, Marcuschi apresenta uma proposta de transformao do texto na modalidade oral para a modalidade escrita, analisando os processos que fazem uma espcie de adaptao ou traduo de uma modalidade a outra. A esse processo, Marcuschi denomina retextualizao, indicado por ele como atividade automatizada mas no percebida e analisada em nossas atividades cotidianas. Duas questes tm sido objeto de defesa para Marcuschi: a primeira proposio diz respeito s variaes que ocorrem nas modalidades oral e escrita da lngua. Ele compreende que tais variaes esto circunscritas em um mesmo sistema lingstico, tratando-se de um contnuo de variaes. A segunda questo refere-se ao nivelamento das modalidades lingsticas tanto a modalidade oral quanto a escrita esto disposio dos indivduos para delas se servirem nas mais diferentes situaes sociais. As postulaes de Marcuschi tambm esto referendadas pela perspectiva social, como podemos conferir diante da apresentao de sua obra de 2001:

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Em suma, o que se vai encontrar aqui um conjunto de observaes e anlises ao lado de uma srie de sugestes de trabalho e pesquisa na rea da oralidade e escrita, dentro de um quadro terico que busca respeitar as prticas lingsticas como prticas sociais em que esto sempre envolvidos seres humanos em carne e osso empenhados em solucionar problemas de toda ordem.

O que mais se destaca nesse professor a articulao que ele consegue fazer entre a pesquisa e o ensino. Ao lermos seus estudos, notrio que os processos de investigao esto vinculados com processos de ensino, ou seja, seus projetos de pesquisa tm surgido muitas vezes em situaes de ensino em cursos de graduao e ps-graduao de futuros professores de lngua. Logo, ao priorizar a investigao da lngua falada, Marcuschi reflete sobre questes relacionadas transposio conceitual, sobre propostas de ensino e analisa materiais didticos, como por exemplo, o livro didtico adotado em escolas pblicas. Mais recentemente, Marcuschi tem se destacado na comunidade lingstica pelos seus estudos sobre gnero textual. Suas ltimas publicaes colaboram efetivamente no cenrio brasileiro para a definio do termo, anlise e investigao sobre as novas formas de construo de sentido: hipertexto e gneros digitais.2 Pela vertente da Lingstica Textual (LT), destacam-se expressivamente Ingedore Villaa Koch e Leonor Lopes Fvero. Ambas lanaram em 1983 a obra que procurou apresentar essa rea de estudos como um ramo da lingstica, seus precursores e principais representantes. Embora as duas professoras declarem o interesse da LT pela construo de sentido e pelos elementos constitutivos do texto, tanto na modalidade escrita quanto na falada, evidente o interesse crescente de ambas pelo exame da modalidade oral, atravs de suas produes acadmicas, tais como Koch (1993, 1997, datas das primeiras edies), Fvero et elii (1999). Koch e Fvero analisam a produo textual dos indivduos tomando os elementos constitutivos de sua textualidade, principalmente a coeso e a coerncia, segmentando os elementos responsveis pela organizao textual, privilegiando a2

Ttulo de sua mais recente organizao, de 2004, em parceria com Antonio Carlos Xavier.

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interao como fator importante responsvel pela formulao textual. Para as pesquisadoras, a construo do tpico discursivo deve ser entendida no apenas pelos elementos lingsticos, mas tambm extralingsticos. Interessa tambm a forma de organizao dos turnos, dos pares adjacentes e o importante papel dos marcadores conversacionais. As ocorrncias nas atividades de formulao, tais como a repetio, a correo, a reformulao (ou parfrase) e a hesitao tambm so categorias de anlise nessa perspectiva terica. Jnia Martins Ramos tem como foco o ensino da produo de textos em lngua materna. Para tanto, ela assume o texto falado como ponto de partida para se chegar produo do texto escrito (1997, p.IX), por se tratar de conhecimento apresentado pelos indivduos quando chegam idade escolar. Logo, Ramos prope que se reflita sobre o objeto de estudo e que o ensino no se restrinja apenas transmisso de contedos. A proposta de Ramos (1997, p.X) orientada por trs diretrizes: partir de algo que o aprendiz j sabe, a utilizao de um material novo e a concepo de que a distino entre fala e escrita seja um gradiente. Ramos tem se dedicado aos estudos gramaticais e de produo textual. Dessa forma, a professora idealiza em sua proposta de ensino a investigao do funcionamento de ambas as modalidades lingsticas. Entretanto, seu objetivo ltimo , de certa forma, afetar positivamente o processo de produo do texto escrito (...) pressupondo que algumas habilidades requeridas na produo de texto no dependem da modalidade (1997, p.VIII). Tambm h outros estudiosos que vm se dedicando investigao e reflexo sobre o ensino de Lngua Portuguesa como lngua materna, tematizando as duas modalidades. Tais estudiosos acumulam grande experincia de ensino em escolas de nvel fundamental e mdio, em cursos de graduao e ps-graduao, cursos de atualizao para professores da rede pblica de ensino, acompanham, tambm, as discusses a respeito de ensino de lngua materna em outros pases. Em 1990, por exemplo, Neves publicou um livro em que apresenta e analisa o resultado de sua investigao junto a um grupo de 170 professores de lngua portuguesa de escolas de 1 e 2 graus (atual ensino fundamental, terceiro e

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quarto ciclos e ensino mdio). Compartilham da discusso sobre o ensino de lngua materna: Travaglia (1995) em Gramtica e interao: uma proposta para o ensino de gramtica no 1 e 2 graus, Geraldi (1996) em Linguagem e ensino: exerccios de militncia e divulgao, Possenti (1996) em Por que (no) ensinar gramtica na escola, Perini (1997) em Sofrendo a gramtica, dentre tantos outros.

DIRETRIZES OFICIAIS: OS PARMETROS CURRICULARES NACIONAIS O Ensino Fundamental no Brasil orientado por documentos que visam dar uma unidade e organicidade, de tal forma que em todas as partes do pas seja possvel identificar seu oferecimento. Dentre eles, os Parmetros Curriculares Nacionais tm por objetivo constituir uma proposta de reorientao curricular, elaborada pelo Governo Federal, atravs de uma comisso de especialistas, publicado oficialmente em 1998. A coleo constituda de uma parte introdutria para apresentao dos PCNs como projeto global para todas as reas curriculares, e de outros volumes em que cada rea recebe tratamento especfico. A expectativa que a partir do debate desse documento e de sua incorporao nos Projetos Pedaggicos das escolas, propostas regionais sejam elaboradas. Os PCNs de Lngua Portuguesa do Ensino Fundamental esto organizados em dois volumes para o 1 e 2 ciclos (1 a 4 sries) e 3 e 4 ciclos (5 a 8 sries). Pelo recorte estabelecido no presente trabalho, sero apresentadas algumas consideraes restritas ao volume do 3 e 4 ciclos, no tocante oralidade e a algumas questes que se relacionam com essa temtica. Antes, porm, examino uma advertncia preliminar do texto oficial. Logo na apresentao dos PCNs de 5 a 8 sries (p. 13) h uma expresso que merece destaque, por oferecer um indicativo para a leitura desse texto. Trata-se do seguinte fragmento:A finalidade dos Parmetros Curriculares Nacionais de Lngua Portuguesa constituir-se em referncia para as discusses curriculares da rea (...) (grifo nosso)

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Considero importante refletir sobre as possibilidades de sentido para a expresso referncia para discusses curriculares, sobretudo quando os provveis leitores so professores da escola de nvel fundamental. Traar o perfil desses leitores pode ajudar nessa reflexo. Obviamente, o documento interessa a outros profissionais da educao, mas indiscutivelmente, so aqueles que atuam no ensino fundamental que, primeiramente, tm por objetivo conhec-lo, analis-lo e avaliar a viabilidade de incorporao das diretrizes, presentes nesse documento, em suas propostas educacionais. Em sua maioria, os professores de lngua portuguesa do Ensino Fundamental se encontram h algum tempo formados e em exerccio da profisso, o que pode ser indicativo de serem professores cuja formao foi centrada em um currculo tradicional, com nfase no ensino da gramtica normativa, sem as atuais contribuies das pesquisas em lingstica, porque apenas recentemente esto entrando em vigncia cursos de Letras com reformulao de grade curricular, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Brasilera, de 1996. de conhecimento pblico, tambm, que esses professores, devido a diferentes fatores, tm apresentado dificuldades para a realizao de cursos de atualizao profissional, o que tem sido tema de debates.3 Quando o setor pblico oferece cursos dessa natureza, h diversos impedimentos para participao deles, tais como pouca divulgao ou a possibilidade de apenas um professor de cada unidade escolar realizar o curso e se transformar multiplicador daquilo que aprendeu. De certa forma, at mesmo a natureza dos cursos j um problema, porque muitos deles no se configuram como cursos com objetivos de promover a atualizao profissional; antes se constituem em cursos de implantao de polticas pblicas de ensino, como dos PCNs. A tradio escolar, referenciada pelo livro didtico, estabeleceu um mal-estar grande junto aos professores ao retirar-lhes a autonomia, prevendo sempre um instrumento que daria as instrues sobre o que fazer nas situaes de ensino.

H diferentes estudos que discutem o conceito de educao continuada, o oferecimento desse tipo de formao e apresentam relatos de experincias com resultados interessantes. Conf. FALSARELLA, A. M 2004; MOYSES, L M. M. 1994; FUSARI, J.C. e RIOS, T. A. 1995; COLLARES, C. A. L., MOYSES, M. A. A., GERALDI, W. 1999. O Caderno CEDES n 68 tem como tema educao continuada.

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Dessa forma, ao ser institudo um documento que tenha por objetivo alterar as relaes do professor com o ensino, necessrio verificar/discutir os papis dos envolvidos, as referncias tericas de que eles dispem, as condies profissionais, os recursos estruturais para que, de fato, seja possvel a concretizao desse projeto de ensino. Quando essas questes so previstas e mecanismos para o enfrentamento delas so estabelecidos, as diretrizes dos PCNs tm a chance de constituir, realmente, uma das referncias para a elaborao de um projeto de ensino (e no a referncia). Imagino que recobrar a autonomia dos docentes sem essas consideraes feitas possa assust-los, confundi-los, atordo-los. Mais plausvel seria exigir autonomia advinda de um processo de formao articulado com melhores condies de trabalho. Geraldi (2003, p. XX) chama a ateno para o fato de o sistema escolar dar o professor como formado poderia significar que, tendo ultrapassado as barreiras, ele estaria pronto para exercer seu trabalho, com a autonomia que as condies histricas lhe permitissem. Autonomia e competncia. de se esperar que os professores de lngua materna, profissionais da educao, tenham a possibilidade de passar por processo de formao que lhes assegure um conhecimento das condies histricas do ensino e oportunize o acesso a estudos mais recentes. Dessa forma, o ensino poderia contar com um contingente maior de professores que, em contato com diferentes estudos, teriam a possibilidade de obter autonomia para discusso, apresentao e implantao de propostas de ensino. Nesse sentido, a autonomia do professor poderia ser concebida a partir de instrumentos tericos que ele detm. Infelizmente, no isso que temos visto (alis, a crise no apenas da formao de professores, mas ela se configura em diferentes cursos de formao profissional). Em obra j citada, Geraldi (p. 94) reafirma a necessidade da autonomia mas a vincula a uma outra condio para obteno: o fator tempo:A tecnologia, que permitiu e permite a produo de material didtico cada vez mais sofisticado e em srie, mudou as condies de trabalho do professor. O material est a: facilitou a tarefa, diminuiu a responsabilidade pela definio do contedo de ensino, preparou tudo at as respostas para o manual ou guia do professor. E permitiu: elevar o nmero de horas aula (...).(grifo nosso)

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O que est destacado o fato de que para se ter autonomia, alm de formao especfica, preciso dispor de tempo, o que fica inviabilizado com professores que ministram 40 ou mais aulas semanais. preciso ter tempo para acompanhar as atualizaes na rea de conhecimento, preciso tempo para refletir, planejar e elaborar as propostas pedaggicas. Esclareo que ao problematizar as possibilidades de sentido para a expresso destacada, aponto uma questo central que no poderia ter sido desconsiderada em um documento oficial: o leitor a que se dirige - em sua maioria, professores vinculados escola pblica e a realidade da formao desse leitor. Quanto grande parte das bases terico-metodolgicas, ainda que o tratamento dado a essas questes possa ser revisado, constituem de fato o aspecto da inovao da proposta. deste lugar, portanto, que passo a fazer alguns destaques desse documento e, sem perder de vista esses pontos, proponho algumas reflexes para o que tratado nos PCNs. O documento iniciado com uma sntese sobre as transformaes da sociedade que afetaram o ensino brasileiro e as necessidades de renovao das propostas de ensino em virtude do novo perfil de aluno que a escola passou a receber. A linguagem apresentada como atividade discursiva e cognitiva e a lngua como sistema simblico utilizado por uma comunidade lingstica (PCNs, p.19). O conceito de letramento, fundamental para a compreenso da importncia das prticas scio-comunicativas, apresentado em nota de rodap (j comentado por Silva, 2001, p. 103). Esses trs conceitos, apresentados luz de inovaes dos estudos lingsticos, so expostos e tratados tendo como pressuposto leitores familiarizados com as referncias tericas que subjazem aos conceitos. Os conceitos de linguagem e de lngua so apresentados com recursos semelhantes aos empregados em materiais didticos abolidos das escolas mais srias, denominados apostilas, ou seja, conceitos importantes so tratados como compilados ou emaranhados tericos sem as devidas referncias. Contatos recentes com professores da rede pblica de ensino indicam que o conceito de letramento, por exemplo, estranho ainda para muitos profissionais. Por essa razo, possvel afirmar que os PCNs, de certa forma, banalizam esses conceitos

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e que, de modo semelhante, ocorre com os conceitos de discurso, de gnero textual/discursivo (a partir da perspectiva bakhtiniana). Se h algo de novo, possvel afirmar que a incorporao da oralidade tem esse carter de novidade (conf. ROJO, 2001). O fragmento abaixo exemplifica o papel atribudo escola para ensino da oralidade (PCNs, p.25):(...) cabe escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral no planejamento e realizao de apresentaes pblicas: realizao de entrevistas, debates, seminrios, apresentaes teatrais etc. Trata-se de propor situaes didticas nas quais essas atividades faam sentido de fato, pois descabido treinar um nvel mais formal da fala, tomado como mais apropriado para todas as situaes. A aprendizagem de procedimentos apropr