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FUNDAÇÃO ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL Curso de Pós-graduação em Direito Público Sheila dos Santos Lackman OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA: O DIREITO DOS ESTUDANTES AO ENSINO SEM VIVISSECÇÃO Orientadora: Annelise Steigleder Porto Alegre 2009

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FUNDAÇÃO ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL

Curso de Pós-graduação em Direito Público

Sheila dos Santos Lackman

OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA: O DIREITO DOS ESTUDANTES AO ENSINO SEM VIVISSECÇÃO

Orientadora: Annelise Steigleder

Porto Alegre2009

RESUMO

O presente trabalho analisa a objeção de consciência dos estudantes que se recusam a participar de aulas em que animais vivos são utilizados para fins didáticos. A relutância das instituições de ensino em adotar métodos alternativos à vivissecção de animais não humanos, aliado ao desrespeito sistemático do direito de cada indivíduo desenvolver suas próprias convicções e agir conforme as mesmas suscitam questionamentos que superam a simples verificação dos requisitos básicos de reconhecimento ou não da escusa de consciência. A evolução das técnicas de pesquisa e a descoberta de diversos métodos plenamente eficazes de aprendizagem tornam ainda mais oportuna a discussão acerca do poder conferido aos cientistas de ditar os rumos a serem seguidos e estabelecer parâmetros de atuação profissional um tanto quanto controversos. A visão antropocêntrica preponderante na sociedade de considerar os animais não humanos como instrumentos para a consecução dos propósitos humanos não pode impedir a manifestação de opiniões divergentes. A Constituição Federal consagra a objeção de consciência e a liberdade de pensamento como direitos fundamentais, concebendo-as como indispensáveis para a preservação da dignidade humana e para o desenvolvimento da personalidade dos indivíduos. Sendo assim, a mera autonomia didática das instituições de ensino não é suficiente para inviabilizar objeções baseadas em princípios éticos que apregoam respeito a todas as formas de vida. Nesse contexto, o Judiciário assume a responsabilidade não só de garantir o direito dos estudantes de seguirem seus imperativos de consciência, mas principalmente de promover uma mudança de perspectiva em relação aos animais, mediante a assimilação de novas ideias.

Palavras-chaves: objeção de consciência, liberdade de pensamento, vivissecção, direitos fundamentais, métodos alternativos.

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Abstract

This work analyzes objection of consciousness by students who refuse to participate in classes in which live animals are used for teaching purposes. The reluctance of learning institutions in adopting alternative methods to the vivisection of non human animals, along with the systematic disrespect toward the right of each individual to develop his/her own convictions and to act in accordance to them raise questions which surpass the simple verification of the basic requirements of recognition or not of the motive of consciousness. The evolution of research techniques and the discovery of several fully efficient methods of learning make it still more opportune the discussion about the power conferred to scientists in dictating the paths to be followed and in establishing parameters for these somewhat controversial professional conducts. The preponderant anthropocentric vision in society of considering non human animals as instruments for reaching human objectives cannot prevent the manifestation of diverging opinions. The Federal Constitution determines objection of consciousness and freedom of thought as basic rights, conceiving them as indispensable for the preservation of human dignity and for the development of the personality of individuals. Thus, the mere educational autonomy of learning institutions is not sufficient to invalidate objections based on ethical principles which preach respect toward all forms of life. Within this context, the Judiciary assumes the responsibility, not only of guaranteeing the rights of students to follow their consciousness imperatives but also to mainly promote a change of perspective in relationship to animals through the assimilation of new ideas.

Key words: Objection of consciousness, freedom of thought, vivisection, basic rights, alternative methods.

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INTRODUÇÃO

Com o presente trabalho pretende-se examinar os aspectos jurídicos, éticos e

culturais que estão vinculados ao reconhecimento ou a negação da objeção de

consciência suscitada por estudantes que se opõem à utilização de animais vivos

para fins didáticos.

Em que pese a Constituição Federal prever o direito à objeção de

consciência entre os direitos e garantias fundamentais, reconhecendo a sua

importância na preservação da liberdade de pensamento e da dignidade humana, o

respeito pelos imperativos de consciência levantados pelos indivíduos ainda é um

grande desafio.

A evolução do pensamento acerca do status conferido aos animais não

humanos, assim como a disponibilidade de inúmeros métodos alternativos à

vivissecção fizeram com que muitas pessoas começassem a questionar a utilização

de animais vivos com o propósito didático-científico.

Nesse sentido, a ideia de conceber os animais não humanos como meros

instrumentos didáticos, que podem ser descartados tão logo sejam cumpridas suas

finalidades, revela o antropocentrismo arraigado na sociedade e demonstra também

a necessidade de uma mudança de atitude do homem em relação a outras formas

de vida existentes no planeta.

É nesse contexto que se insere a objeção de consciência arguida por

estudantes que veem na vivissecção um método de aprendizado antiquado, cruel e

desnecessário. A relutância de grande parte das instituições de ensino em admitir a

escusa de consciência e disponibilizar métodos alternativos às práticas

vivissecionistas é analisada, a fim de compreender as razões pelas quais a

manifestação de um pensamento divergente é tida como um problema a ser

combatido.

Seguindo esse panorama, as motivações expostas pelos estudantes

objetores e a autonomia didático-científica são contempladas, de forma a verificar a

possibilidade de se garantir a liberdade de consciência e o respeito pelo pluralismo

de ideias sem que isso implique prejuízos à formação acadêmica ou mesmo à

independência do corpo docente em traçar as diretrizes do ensino.

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OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA: O DIREITO DOS ESTUDANTES AO ENSINO SEM VIVISSECÇÃO

Sheila dos Santos Lackman∗

1 OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA E SEUS ASPECTOS CONCEITUAIS

A objeção de consciência constitui-se em uma forma de resistência na qual o

indivíduo recusa-se a cumprir, por motivações éticas, filosóficas ou políticas, deveres

a ele impostos.

Na objeção o que se pretende é uma isenção pessoal para o indivíduo

objetor, pois o que prepondera não é o ímpeto de modificar o conteúdo da imposição

contestada, mas o de buscar respaldo contra a obrigatoriedade de tomar atitudes

que afrontem suas convicções.

Nesse sentido, pode-se dizer que a objeção “caracteriza-se por um teor de

consciência razoável, de pouca publicidade e de nenhuma agitação, objetivando, no

máximo, um tratamento alternativo ou mudanças da lei”. (BUZANELLO, 2001).

Bruno Heringer Júnior (2007, p. 43-44) conceitua a objeção como:

(....) o comportamento, geralmente individual e não violento, de rechaço, por motivo de consciência, ao cumprimento de dever legal, no marco das configurações de mundo constitucionalmente possíveis, com intenção imediata de alcançar isenção pessoal, a qual pode, ou não, vir a ser reconhecido pela ordem jurídica mediante a compatibilização das normas jurídicas em conflito.

A escusa de consciência, portanto, pressupõe a existência de motivações de

índole individual e personalíssima do objetor, não tendo o condão de incentivar a

adesão de outras pessoas na consecução do mesmo propósito. Aqui reside uma das

características que diferencia a objeção de consciência da desobediência civil, haja

vista que nesta pretende-se incitar outros indivíduos a tomarem posições contra a

ordem estabelecida.

Outra distinção referida pela doutrina diz respeito ao tipo de ordem

contestada, ou seja, se o reconhecimento da objeção exige ou não o

descumprimento de um dever previsto em lei.

Advogada, graduada pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande.

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Da análise do conceito acima transcrito constata-se que Bruno Heringer

Júnior entende ser necessário que a escusa de consciência ocorra em face de um

dever legal.

Entretanto, grande parte da doutrina considera que a objeção pode ser

caracterizada pela recusa ao cumprimento de um preceito legal ou administrativo.

Nessa esteira, John Rawls (2002, p. 408) define a objeção como uma recusa ao

atendimento de uma obrigação legal ou administrativa mais ou menos direta1.

Esse conceito mais abrangente, admitindo a objeção em face de imposições

não legais, é de suma importância, pois permite que a escusa possa ser

reconhecida em um número maior de casos, inclusive ante as práticas

vivisseccionistas.

Ademais, se assim não fosse, a objeção de consciência dos médicos que se

opõem à realização de abortos também não poderia ser acolhida, uma vez que não

há lei que obrigue qualquer indivíduo a interromper uma gestação. Em outras

palavras, a lei tão somente autoriza a prática do aborto, sem, contudo impor tal

conduta a quem quer que seja.

O mesmo ocorre no caso da vivissecção, visto que não há lei que obrigue

estudantes a realizarem experimentos com animais vivos, e sim apenas

regulamentos internos que definem critérios para a utilização dos animais.

Inexistindo lei a ser descumprida, torna-se perfeitamente possível o exercício da

objeção aos experimentos em animais vivos, em função do consagrado princípio da

legalidade. (LEVAI, 2007).

Além do mais, na medida em que a objeção de consciência pode ensejar o

descumprimento de uma lei, não se mostra viável conferir a uma obrigação

administrativa poder maior do que a própria lei e, assim, impedir isenções diante de

ordens administrativas. Tendo em vista que é cabível a obtenção de uma dispensa

ao cumprimento de um dever legal, não seria lógico denegar tal pedido em face de

uma obrigação meramente administrativa.

1 Rawls sustenta que a objeção pode ser suscitada diante de uma ordem não necessariamente constante em lei e cita como exemplo a recusa das Testemunhas de Jeová em saudar a bandeira. Como é sabido, os adeptos dessa religião pregam, entre outros mandamentos, a neutralidade em relação aos atos de nacionalismo, independentemente de estes estarem ou não previstos em lei. (RAWLS, 2002).

6

Sendo assim, levando em consideração que a objeção de consciência

também é um instrumento de combate à opressão das minorias e grupos

vulneráveis, revela-se inapropriado limitar, nestes termos, a sua aplicabilidade.

A escusa de consciência foi incorporada ao texto da Constituição Federal de

19882 em um momento histórico em que a sociedade brasileira ansiava por

princípios democráticos e respeito pelos direitos e garantias dos cidadãos.

No entanto, a despeito da existência dessa previsão, a arguição da objeção

sempre causou divergência, sendo muito rechaçada, inclusive pelo Poder Judiciário,

que, ainda hoje, demonstra dificuldade em dar aplicabilidade a esse tipo de escusa.

Na Carta Magna de 1988, o direito à objeção de consciência está incluído no

rol dos direitos fundamentais com a seguinte redação:

Artigo 5º, inciso III - Ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

Reforçando a relevância da liberdade de consciência, a Constituição Federal

consagrou no seu artigo 5º, inciso VI, o comando de que “É inviolável a liberdade de

consciência e de crença...”.

Dispositivo similar pode ser encontrado na Declaração Universal dos Direitos

Humanos, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948 e

ratificada pelo Brasil, que estabelece que todo homem tem direito à liberdade de

pensamento, consciência e religião.

Desse modo, percebe-se que em diferentes momentos históricos a liberdade

esteve presente no ordenamento jurídico brasileiro, o que revela a importância do

tema e a preocupação na garantia desse direito.

Se, por um lado, a objeção de consciência há muitos anos encontra suporte

na legislação vigente, por outro, deixa transparecer as dificuldades verificadas para

a sua implementação na realidade fática, diante do abismo entre a previsão formal e

o reconhecimento efetivo do exercício da liberdade de convicção filosófica.

2 Já havia previsão do direito à liberdade de consciência nas Constituições brasileiras, contudo nem sempre o seu pleno exercício foi possível, como ocorreu nos períodos não-democráticos ou marcados pela intolerância religiosa. Isso pode ser verificado quando, mesmo na vigência da Constituição de 1946, que garantia expressamente o direito à objeção de consciência, estudantes que não professavam a fé católica tinham suas matrículas rejeitadas, fato ratificado pelo Judiciário. (BUZANELLO, 2001)

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Muitas críticas foram direcionadas à Declaração Universal dos Direitos

Humanos em virtude da ausência de força vinculante que obrigue os países

signatários do tratado a seguirem os preceitos por ele elencados. Todavia, embora a

Declaração de 1948 não detenha força de lei, é indiscutível a sua relevância na

promoção dos direitos humanos e como estímulo para que os países signatários

incorporem gradativamente em normas internas os valores ali constantes.

Ademais, pode-se dizer que no cenário internacional prepondera o

entendimento de que o direito à liberdade é um atributo inerente à humanidade,

constituindo-se um direito natural cujo reconhecimento independe de positivação.

Assim, o ordenamento jurídico nacional e internacional reconhece

indubitavelmente a essencialidade que esse direito elementar possui na formação da

personalidade dos indivíduos e na organização das nações como um todo.

Feitas essas considerações, pode-se concluir que:

[...] a ordem jurídica brasileira, ao proteger a liberdade de consciência, contempla a possibilidade de reconhecimento de isenções jurídicas ao cumprimento de deveres legais em respeito a imperativos morais. Em sendo assim, o conceito de objeção de consciência há de alinhar-se a essa realidade normativa, constituindo o ponto de partida para a elaboração de seu perfil jurídico. (HERINGER, 2007, p. 37-38).

Em que pese a objeção de consciência há bastante tempo estar sendo tema

de inúmeras discussões, especialmente no que concerne aos casos de pessoas que

se recusam a prestar serviço militar e de médicos que se posicionam contrariamente

à realização de procedimentos abortivos, dentro das universidades esse assunto

ainda é pouco explorado.

Exatamente nas academias, onde a reflexão e o pluralismo de ideias

deveriam ser exaltados, a escusa de consciência encontra os maiores obstáculos,

na atualidade.

Alunos que se opõem, por convicções éticas, filosóficas ou religiosas, à

utilização de animais vivos em aulas práticas, são sistematicamente discriminados e

impedidos de exercer sua liberdade de pensamento.

Não raras vezes a oposição dos estudantes é tratada como um capricho de

pessoas que simplesmente pretendem receber um tratamento privilegiado em

relação aos demais alunos.

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É inegável que a escusa de consciência não pode ser admitida em face de

qualquer alegação, sendo, portanto, necessária uma análise minuciosa dos

requisitos inerentes ao instituto.

O reconhecimento da objeção depende da demonstração cabal das razões

pelas quais o cumprimento de uma determinada ordem afronta a personalidade do

objetor, ou seja,

[...] deve tratar-se de um conflito de consciência significativo, que leve o agente a passar por autêntica e profunda luta interna, capaz de afetar a sua própria personalidade. [...] A razão dessa exigência é manifesta: a vinculatividade da ordem jurídica faz com que somente diante de situações extremas alguém possa ser, excepcionalmente, dispensado do cumprimento de deveres legais. (HERINGER, 2007, p. 46-47).

Além disso, com o intuito de evitar possíveis abusos na alegação de escusas

desse tipo, a própria norma estabelece que a possibilidade de isenção venha

acompanhada da execução de uma prestação alternativa, substitutiva da anterior e

que preserve as convicções éticas do objetor.

Desse modo, a própria previsão de prestação alternativa já serve para evitar

o uso indevido da objeção como forma de burlar ordens estabelecidas.

Assim, percebe-se que a objeção só é cabível em casos muito bem

fundamentados e, ainda, mediante a realização de obrigação substitutiva.

Nesse ponto, é salutar dizer que a eventual inexistência de previsão acerca

da prestação alternativa a ser exigida não pode, por si só, inviabilizar o

reconhecimento da objeção suscitada, sob pena de torná-la inócua, uma vez que

seria fácil garantir formalmente a liberdade de consciência sem conceder os

instrumentos mínimos para a concretização desse direito. Em outras palavras,

poder-se-ia simplesmente prever o direito à objeção de consciência sem jamais

elaborar normas regulamentadoras das obrigações substitutivas e, desse modo, não

acolher a escusa, utilizando como subterfúgio a própria inércia daqueles que

deveriam designar a prestação alternativa.

Nessa senda, percebe-se que a objeção traz consigo uma série de elementos

que precisam ser muito bem analisados, por meio da observância não só das

normas afins, mas também dos princípios gerais de Direito pertinentes ao assunto.

Além de o argumento levantado em favor da escusa afetar diretamente o

íntimo, as convicções, do objetor, ele não pode estar embasado em preconceitos ou

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valores que ponham em risco a estabilidade da ordem jurídica e das instituições

democráticas.

Nos casos em que o acolhimento da objeção provocar prejuízos significativos

à sociedade, ocasionando um transtorno social, não parece razoável permitir a

liberação individual e causar repercussão intensa no corpo social.

Na objeção de consciência em face da vivissecção, definitivamente, não há

que se falar no desencadeamento de problemas que coloquem em risco a qualidade

de ensino ou a credibilidade da instituição. Do contrário, as universidades que já

disponibilizam métodos pedagogicamente éticos nas suas disciplinas formam

profissionais capacitados não só sob o ponto de vista do conhecimento técnico

assimilado, mas principalmente sob o prisma da atuação ética e responsável.

Ademais, mesmo que os estudantes, que se opõem à utilização de animais

vivos em experimentos, entendam que os métodos vivisseccionistas sejam

reprováveis, devendo, portanto, ser substituídos, a alegação de objeção de

consciência não tem o objetivo de compelir a universidade a mudar toda a estrutura

didática e curricular estabelecida.

A objeção tem caráter personalíssimo e, por isso, visa permitir que o objetor

possa obter o aprendizado através de condutas que não firam suas convicções. Daí

a necessidade de se ofertar métodos alternativos ao uso de animais vivos.

É óbvio que o próprio exercício do direito à escusa de consciência já enseja

uma reflexão sobre a questão, fazendo com que outras pessoas eventualmente

possam vir a compartilhar do mesmo pensamento em relação ao tratamento

dispensado aos animais não humanos. Porém, essa não é a motivação que leva um

estudante a contestar as diretrizes traçadas pela universidade e sim a de preservar a

integridade de sua personalidade.

Desse modo, a objeção não pode ser utilizada para descumprimento de

ordens que apenas desagradem ou contrariem os interesses do indivíduo.

Quaisquer concepções podem basear a escusa, desde que representem um grau de

intransigibilidade para o objetor (HERINGER, 2007, p. 47).

1.1 AS PRÁTICAS VIVISSECCIONISTAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO

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Durante muito tempo a vivissecção3 esteve amparada na Lei nº. 6638/1979,

que autorizava expressamente a utilização de animais vivos para fins didático-

científicos em todo território nacional.

No entanto, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e,

posteriormente, a aprovação da Lei nº. 9605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais),

começou-se a questionar a vigência plena das disposições constantes na Lei nº.

6638/1979.

Ocorre que, além de a Constituição Federal, no seu artigo 225, parágrafo 1º,

inciso VII, vedar explicitamente as práticas que submetam os animais à crueldade, a

Lei nº. 9605/1998 tratou de criminalizar a vivissecção quando existirem métodos

alternativos.

De acordo com a Lei dos Crimes Ambientais:

Artigo 32 – Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.§ 1º - Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.§2º - A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. (BRASIL, Lei nº. 9605, de 12 de fevereiro de 1998).

Assim, a objeção de consciência em relação às práticas vivisseccionistas no

ensino ganhou maior respaldo em 1998, com o surgimento da Lei nº 9605, pois se

vislumbrou no uso de animais vivos um aspecto, no mínimo, errôneo.

A Lei dos Crimes Ambientais reconheceu indubitavelmente a crueldade

implícita nas atividades vivisseccionistas ao preconizar a adoção de recursos

alternativos que não impliquem submissão dos animais ao sofrimento (LEVAI, 2004,

p. 66).

Em contrapartida a esse avanço, em 1995 foi apresentado o Projeto de Lei nº.

1.153, visando revogar a Lei nº. 6.638/1979, regulamentar o artigo 225, parágrafo 1º,

inciso VII, da Constituição Federal e estabelecer procedimentos para o uso científico

de animais. Essa proposição foi aprovada e transformada na Lei nº. 11.794/2008,

que representou imenso retrocesso na luta pelo tratamento ético dispensado aos

animais não humanos, uma vez que ampliou a utilização de animais, que até então

3 O termo “vivissecção” literalmente significa “cortar (um animal) vivo”, mas é aplicado genericamente a qualquer forma de experimentação animal que implique intervenção com vistas a observar um fenômeno, alteração fisiológica ou estudo anatômico.(GREIF; TREZ, 2000)

11

era restrita a estabelecimentos de ensino superior, para entidades de educação

profissional técnica de nível médio da área biomédica.

A edição da Lei nº. 11.794/2008 vai de encontro à tendência mundial de

abolição do uso de animais vivos em atividades de ensino4, mediante a utilização de

métodos alternativos plenamente eficazes5, e representa uma regressão em matéria

legislativa.

Pode-se dizer que com a Lei dos Crimes Ambientais a utilização de animais

para fins didáticos, na teoria, fora abolida, haja vista que esta lei condicionou a

possibilidade de realização da vivissecção à inexistência de métodos alternativos

eficazes. (GREIF; TREZ, 2000, p.137)

De fato, renomadas universidades no mundo inteiro, inclusive no Brasil6,

aboliram o uso de animais, sem que isso acarretasse prejuízos à formação dos

profissionais egressos dessas instituições.

Esse dado, por si só, já demonstra que existem métodos substitutivos da

vivissecção disponíveis, de modo que a Lei nº. 11.794/2008 não poderia

regulamentar o uso de animais vivos no ensino.

De qualquer forma, não obstante a tentativa de legitimar a utilização de

animais para fins didáticos, a publicação da nova lei não inviabiliza o acolhimento da

objeção de consciência dos estudantes que se recusam a realizar vivissecção, uma

vez que a atitude destes encontra respaldo constitucional e está diretamente

relacionada ao direito à liberdade de pensamento e à preservação da dignidade

humana.

1.2 A LIBERDADE DE CONVICÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

4 Escolas médicas britânicas, entre elas Cambridge e Oxford, não realizam vivissecção. Nos Estados Unidos, três entre quatro universidades, incluindo as melhores (Columbia, Havard, Johns Hopkins, Stanford e Yale, por exemplo) não usam animais vivos para fins didáticos. (REGAN, 2006, p. 203-204). Na Alemanha o número de universidades que aboliram a experimentação animal é ainda maior. (LEVAI, 2004, p. 68).5 Atualmente, existem inúmeros métodos alternativos ao uso de animais vivos em experimentos científicos, como por exemplo, a utilização de técnicas in vitro através de culturas de células e organotípicas, programas de informática, técnicas imunológicas, técnicas de imagens não invasivas, membrana corioalantóide, suprimento com gás cromatógrafo e massa espectométrica. (LEVAI, 2001).6 Nos últimos anos diversas faculdades têm buscado recursos alternativos ao uso de animais vivos. A título de exemplo podem ser citadas a Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo, a Universidade Federal do Estado de São Paulo e a Universidade de Brasília.

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A noção de direitos dos homens7 está associada ao conceito de direito

natural, partindo da concepção de que existem direitos inerentes às pessoas e que,

por isso, antecedem qualquer positivação.

A origem desse pensamento remonta aos primórdios da organização das

pessoas em sociedades mais complexas e a consequente necessidade de preservar

o grupo familiar e social.

No entanto, pode-se afirmar que as grandes conquistas relacionadas aos

direitos da humanidade datam do século XVIII, especialmente com a Declaração de

Direitos do povo da Virgínia (1776) e da Declaração Francesa (1789), que

significaram um indiscutível marco na história da humanidade. Essas declarações

[...] tinham como característica comum sua profunda inspiração jusnaturalista, reconhecendo ao ser humano direitos naturais, inalienáveis, invioláveis e imprescritíveis, direito de todos os homens, e não apenas de uma casta ou estamento. (LUÑO, 1995, p. 36 apud SARLET, 2009, p. 44).

Assim, tanto a declaração americana quanto a francesa foram relevantes na

medida em que não só reconheceram formalmente direitos intrínsecos aos seres

humanos, como também estenderam a todas as pessoas, indistintamente.

Norberto Bobbio, na introdução do seu livro A Era dos Direitos (1992),

assevera que:

[...] os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.

O reconhecimento da liberdade como um direito histórico, pode, em um

primeiro momento, aparentar uma contraposição à ideia de liberdade como direito

natural. Porém, seguindo o raciocínio de Bobbio (1992, p. 21):

Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.

7 A expressão “direitos do homem” é empregada levando em consideração a classificação usual que distingue direitos fundamentais, direitos do homem e direitos humanos. Ingo Sarlet (2009, p. 30) conceitua didaticamente “direitos do homem” como direitos naturais não positivados; “direitos humanos” como direitos positivados na esfera internacional; e, “direitos fundamentais” como direitos reconhecidos e protegidos pelo direito constitucional interno de cada país.

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Nesse sentido, o direito à liberdade sobrepõe-se a qualquer discussão acerca

de sua natureza, bases ou atributos. Não basta apenas conceber a liberdade como

um direito inerente ao indivíduo, é preciso lutar constantemente para a concretização

desse direito em todos os níveis.

De fato, pode-se dizer que a liberdade depende da constante perseverança

do homem em garantir a consecução desse direito elementar.

A liberdade de pensamento interfere na formação da personalidade humana

e, por conseguinte, na forma com que a coletividade desenvolve-se e assimila as

diferenças. Desse modo, pode-se concluir que

[...] o homem se liberta no correr da história pelo conhecimento e conseqüente domínio das leis da natureza, na medida em que, conhecendo as leis da necessidade, atua sobre a natureza real e social para transformá-la no interesse da expansão de sua personalidade. (SILVA, 2004, p. 230).

Percebe-se, assim, que os indivíduos estão em permanente processo de

aprendizado, descobrindo novos valores que poderão aprimorar o desenrolar das

interações humanas.

Nesse ponto, é oportuno traçar algumas considerações acerca das iniciativas

que promoveram importantes avanços para os direitos do homem.

Primeiramente, quando o assunto é a evolução dos direitos do homem não se

pode deixar de mencionar a Carta do Rei João-Sem-Terra, elaborada em plena

Idade Média, mais precisamente no ano de 1215. Em que pese este pacto ter sido

firmado com o objetivo precípuo de assegurar à classe dominante privilégios não

extensivos aos demais cidadãos (SARLET, 2009, p. 41), é inegável a repercussão

que este documento teve como embrião dos ideais consolidados no século XVIII.

As declarações americana e francesa trouxeram valores que ainda hoje são

referenciais em qualquer debate cujo tema envolva os direitos humanos. Se, por um

lado a Declaração Americana de certo modo serviu de modelo para a Declaração

Francesa, por outro lado, o contexto político e social francês teve grandiosa

influência na Declaração de 1776. Ambos os documentos trouxeram suas

contribuições, porém o conteúdo social, democrático, universal e abstrato da

Declaração Francesa foi responsável pela propagação de seus princípios pelo

mundo inteiro (SARLET, 2009, p. 44).

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A Declaração Francesa de 1789 preocupou-se com a previsão de direitos que

não se restringem apenas a um país, ou seja, reconheceu que existem direitos que

são universais e que, portanto, transcendem fronteiras, nacionalidades ou etnias.

A Declaração Francesa com nítida inspiração iluminista primava pelos

princípios da liberdade e da igualdade perante a lei. Entre os direitos do homem e

do cidadão abarcados pela declaração merece destaque os direitos naturais à

liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão.

Também se pode extrair da Declaração Francesa a premissa básica de que a

liberdade implica permissão de fazer tudo o que não prejudique a outrem, isto é, de

que o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem limites senão os que

assegurem aos outros membros da sociedade o desfrute desse mesmo direito;

esses limites não podem ser determinados senão por lei.

Desse modo, constata-se que a objeção de consciência vai muito além da

questão da liberdade de consciência e abarca princípios basilares da democracia e

do respeito ao desenvolvimento humano.

Note-se que os ideais surgidos no século XVIII estão presentes em todos os

países democráticos do mundo. No entanto, a execução desses princípios em sua

plenitude é um desafio que permanece em evidência, motivo pelo qual o estudo dos

direitos fundamentais faz-se necessário.

A partir da evolução e aperfeiçoamento dos direitos fundamentais começaram

a surgir construções doutrinárias que passaram a classificar esses direitos em

distintas dimensões8, a fim de facilitar a melhor compreensão do assunto.

Inicialmente, estabelecia-se a separação em três dimensões. Todavia, com o

aprofundamento dos estudos e a complexidade da sociedade, surgiram

classificações mais específicas, com até seis divisões.

A liberdade está incluída entre os direitos de primeira dimensão. Esses

direitos são reconhecidos por seu caráter negativo, de abstenção do Estado diante

do indivíduo (SARLET, 2009, p. 47). A proteção da pessoa ocorre contra os arbítrios

do Estado, por isso, não se exige uma ação e sim o respeito por direitos intrínsecos

ao indivíduo, como a liberdade e a vida.

8 O uso do termo dimensões substitui o emprego da palavra gerações na classificação dos direitos fundamentais. A doutrina mais moderna emprega o termo dimensões em substituição à palavra gerações, pois esta induz à errônea impressão de que uma geração sucede à outra ao longo do tempo, quando, na verdade, os direitos fundamentais expandem-se. (BONAVIDES, 1997, p. 525 apud SARLET, 2009, p. 45)

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É nessa perspectiva, de conceber a liberdade como direito fundamental, que

será realizada a abordagem acerca da objeção de consciência.

Como já foi anteriormente analisado, o direito à liberdade consta tanto em

documentos internacionais como em importantes dispositivos da Constituição

Federal de 1988.

Sem sombra de dúvidas, pela ênfase conferida, o Brasil vislumbra na

liberdade um componente indispensável para a preservação da dignidade humana.

Consolidadas as primeiras conquistas da humanidade em relação ao respeito

às liberdades subjetivas, ou seja, aquelas concernentes à manifestação de crenças

e pensamentos, tornou-se necessário expandir o conceito de liberdade para garantir

às pessoas não apenas o direito de expressão, mas também o poder de se

autodeterminar de acordo com suas convicções.

A liberdade subjetiva, também chamada de liberdade interna, corresponde ao

poder de escolha, exclusivo do indivíduo, entre duas possibilidades opostas. No

entanto, a partir do momento em que é manifestada uma vontade, é preciso avaliar

“se se tem condições objetivas para atuar no sentido da escolha feita, e aí, se opõe

a questão da liberdade externa” (SILVA, 2004, p.230).

Parece algo elementar concluir que a liberdade não pode ser somente uma

conquista formal, mas, na prática, resta nítido que ainda há muito que evoluir no

sentido de dar aplicabilidade e garantir o respeito ao direito de nutrir convicções e

agir em conformidade com estas.

Não se pode falar em regime democrático sem a certeza de que cada

indivíduo pode pensar livremente e manifestar suas convicções perante a sociedade.

O direito de manifestar suas crenças e agir de acordo estas é o que define a

existência ou não da liberdade de pensamento em sua plenitude.

Essas considerações, por certo, não são absolutas. Muitas vezes é

necessário cotejar princípios conflitantes para se obter uma solução adequada para

o eventual impasse verificado no caso concreto.

2 A APLICABILIDADE DO DIREITO À OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA

16

A objeção de consciência surgiu para amparar o direito dos indivíduos que se

opunham à prestação do serviço militar obrigatório, em virtude de discordarem do

uso da força em certas circunstâncias ou simplesmente acalentarem um

pensamento de total pacifismo. Ao longo do tempo, a objeção passou a ser

suscitada para proteção da liberdade de convicção em relação a outros temas.

Atualmente, no Brasil, a escusa de consciência tem estado muito em voga,

especialmente no que tange ao direito dos profissionais da área da saúde em

recusarem a realização de procedimentos abortivos autorizados pela legislação.

A polêmica não é menor diante da escusa de consciência suscitada pelos

estudantes que se recusam a participar de aulas cuja metodologia implique

utilização de animais vivos.

Nas universidades, os alunos que defendem um tratamento ético em relação

aos animais não humanos são compelidos a ferir suas convicções e participar de

experimentos vivisseccionistas ou, ainda, abandonar o curso escolhido para não ter

de compactuar com o sofrimento impingido aos animais nas aulas.

Inúmeras pessoas não conseguem resistir ao modelo imposto pelas

instituições de ensino e cedem às pressões em prol da utilização de animais vivos,

temendo que seus questionamentos resultem na reprovação e, consequentemente,

na inviabilidade de exercer a profissão escolhida.

Com os avanços tecnológicos e a publicação de estudos abalizados acerca

da existência de métodos alternativos à vivissecção, essa situação começou a

mudar. Outrossim, pode-se dizer que a própria sociedade começou a retorquir os

argumentos que colocam os animais não humanos em uma posição de total

submissão aos interesses humanos.

O movimento ambientalista com sua defesa por uma visão de mundo mais

biocêntrica e o fortalecimento de fundamentos éticos que passaram a incluir os

animais não humanos na esfera moral de proteção, contribuíram decisivamente para

o encorajamento dos estudantes na luta por uma formação profissional sem a

utilização de animais vivos.

Embora a legislação brasileira preconize a adoção de métodos alternativos ao

uso de animais vivos para finalidade didática e a própria Constituição Federal

assegure o direito à objeção de consciência, na prática, as alternativas não são

oferecidas, tampouco as convicções filosóficas dos objetores são respeitadas.

17

O biólogo Thales Tréz relata que os estudantes não encontram nas

instituições de ensino um ambiente propício à exposição de objeções que contrariem

condutas arraigadas no meio cientifico. A relutância dos professores em considerar

as preocupações éticas arguidas pelos estudantes acaba por frustrar a incorporação

de métodos substitutivos ao uso de animais e causar danos progressivos na

capacidade de sensibilidade do indivíduo e no desenvolvimento de sua

personalidade. (GREIF;TREZ, 2000)

Se as pessoas que defendem um tratamento ético para os animais são

impedidas de se matricular em cursos ligados à área das ciências da saúde ou da

biologia, o paradigma do uso de animais no ensino jamais será rompido, haja vista

que lá só estarão profissionais resistentes à mudança. Em outras palavras, “uma vez

que esta prática [vivisseccionista] existe no meio científico, é pelo meio científico que

deve ser combatida” (GREIF, 2003, p. 42).

Sendo assim, não admitir a escusa significa não só um mal para o estudante

objetor, como também faz com que novos métodos de ensino não tenham espaço

no meio acadêmico.

Dificilmente uma iniciativa que pretenda produzir uma transformação em uma

cultura secular, como é o caso da vivissecção, vai acontecer espontaneamente, sem

que indivíduos comprometam-se na indução desta mudança.

É válido lembrar que todas as faculdades que aboliram as práticas

vivisseccionistas partiram de ações individuais que geraram debates e

impulsionaram a modificação.

Um dos primeiros casos registrados de objeção em face da utilização de

animais vivos para fins didáticos ocorreu nos Estados Unidos, em 1987, quando a

estudante da Universidade da Califórnia Jenifer Grahan recusou-se a praticar a

vivissecção e, mesmo sendo ameaçada pela Universidade, decidiu levar a questão

ao Tribunal da Califórnia.

A atitude da estudante causou não só grande polêmica, mas principalmente

foi objeto de reflexões que desencadearam a elaboração de uma lei estadual que

assegurou a outros estudantes o direito de cursar disciplinas nas áreas biológicas de

forma humanitária, com o respeito da opção estudantil por uma educação

desprovida de violência (GREIF, 2003, p. 28).

A partir de então, estudantes no mundo todo, começaram a lutar pelo

exercício do seu direito à objeção de consciência.

18

No Brasil, o primeiro caso amplamente divulgado que se tem notícia foi o do

estudante do curso de Biologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

Róber Freitas Bachinski.

O estudante postulou junto à universidade a dispensa de aulas em que

estavam previstas práticas vivisseccionistas, suscitando as razões pelas quais

esboçava sua objeção e se dispondo a se submeter a outros métodos de avaliação.

No entanto, após ter suas pretensões rechaçadas pela instituição, ele decidiu ajuizar

a ação judicial nº 2007.71.00.019882-0 para ter reconhecido o seu direito à escusa

de consciência.

Em sede liminar o aluno obteve uma decisão favorável; porém a liminar

deferida foi sustada por meio de um efeito suspensivo concedido nos autos do

Agravo de Instrumento nº 2007.04.00.020715-4.

A sentença de primeiro grau, exarado pelo juiz Cândido Alfredo Silva Leal

Júnior, foi publicada em 16 de maio de 2008 e julgou parcialmente procedente a

ação, conferindo ao estudante o direito à objeção de consciência. A universidade

interpôs recurso, que permanece pendente de julgamento.

Após o ajuizamento dessa demanda, outras ações com conteúdo semelhante

foram opostas por estudantes objetores9.

Essas ações judiciais têm o mérito de incentivar a reflexão e a análise de

questões que, até então, eram tidas como verdades absolutas, não suscetíveis a

qualquer forma de contestação. Além disso, ações desse tipo deixam em evidência

os impasses presentes na temática exposta.

Praticamente todos os argumentos que permeiam o debate acerca da objeção

de consciência diante da vivissecção foram minuciosamente contemplados na

sentença do processo acima referido, sendo que as mais significativas serão

analisadas a seguir.

2.1 A SUPOSTA FRAGILIDADE DAS MOTIVAÇÕES DOS OBJETORES

9 Em 2009 a aluna Juliana Itabaiana de Oliveira Xavier ajuizou ação contra a Universidade Federal do Rio de Janeiro e obteve uma liminar, concedida pelo juiz da 11ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Adriano Saldanha Gomes de Oliveira, que a dispensou de participar de aulas em que são realizadas intervenções em animais vivos. Outras ações com o mesmo fundamento começam a surgir em diversos lugares do Brasil.

19

A alegação de que o argumento antivivisseccionista é frágil ou de que a maior

parte das pessoas, sobretudo no meio científico, entendem que é importante o uso

de animais vivos, não significa que a objeção de consciência deva ser rechaçada.

A democracia pressupõe a adesão à vontade da maioria. Entretanto, a

história ensina que a voz da minoria deve ser ouvida, pois suas proposições, hoje

não compreendidas e repudiadas, podem conter a semente para uma mudança de

perspectiva da sociedade diante de um determinado assunto.

A consciência de que a esfera de abrangência ética deve estender-se para

além da espécie humana é algo que deveria ser valorizado, posto que indica um alto

grau de respeito para com todas as formas de vida.

A ruptura com a visão antropocêntrica, preponderante no mundo, é tida por

renomados filósofos e pensadores como a última barreira a ser transposta rumo a

uma sociedade mais justa. Tom Regan (2006, p. 78) ensina que:

[...] direitos morais nunca podem ser negados, justificadamente, por razões arbitrárias, preconceituosas ou moralmente irrelevantes. Raça é uma dessas razões. Sexo é outra. Resumindo, diferenças biológicas são razões desse tipo. Como, então, poderemos acreditar que ser membro de uma espécie marque um limite defensável entre os animais que têm e os que não têm direitos? Logicamente, isso não faz sentido. Moralmente, isso indica um preconceito do mesmo tipo que o racismo e o sexismo, o preconceito conhecido como especismo.

O entendimento de que diferenças biológicas não são capazes de justificar o

desrespeito aos interesses básicos de animais sencientes10 é o que move os

estudantes na busca de alternativas que evitem o sofrimento e o sacrifício realizados

em nome da ciência.

Além disso, pelo conteúdo da Lei nº. 9605/98 e do artigo 225 da Constituição

Federal, já abordado na primeira parte desse estudo, a ideia de que a objeção,

quanto às práticas vivisseccionistas, não é forte o suficiente cai por terra, haja vista,

inclusive, a existência de preocupação legal em não submeter os animais à dor e ao

sofrimento.

Dessa forma, não parece cabível o argumento de que a motivação dos alunos

objetores não é suficiente para que as universidades acolham o pedido relativo à

dispensa de aulas em que é realizada vivissecção.

10 A senciência pode ser conceituada como a capacidade de experimentar satisfação e sofrimento. (PAIXÃO, 2001). Esse atributo é típico dos animais, que possuem um sistema nervoso, ainda que rudimentar.

20

Nesse sentido, vale mencionar que:

Aqueles que gostariam de negar a liberdade de consciência não podem justificar sua posição pela condenação do ceticismo em relação à filosofia e da indiferença religiosa, nem pelo apelo aos interesses sociais e questões de Estado. A limitação da liberdade só se justifica quando for necessária para a própria liberdade, para impedir uma incursão contra a liberdade que seria ainda pior. (RAWLS, 2002, p. 233).

Assim, a divergência em relação às convicções filosóficas, morais ou políticas

defendidas pelos alunos não pode, por si só, embasar a negação da objeção de

consciência. Para o indeferimento da escusa suscitada, é necessário que o eventual

reconhecimento da objeção levantada cause transtornos e prejuízos graves aos

demais indivíduos.

Igualmente não é possível reduzir o teor da pretensão do estudante baseado

apenas na ideia de que a minoria deve curvar-se à escolha da maioria, pois

[...] quando a negação da liberdade é justificada apelando-se para a ordem pública determinada pelo senso comum, é sempre possível insistir que os limites foram estabelecidos incorretamente, que a experiência de fato não justifica a restrição. (RAWLS, 2002, p. 235)

Uma verdadeira democracia assenta-se nas decisões emanadas da maioria,

mas sempre atentando para o direito das minorias. Kelsen afirmava que o direito da

maioria pressupõe a proteção dos interesses da minoria, sendo função essencial

dos direitos fundamentais do homem assegurar essa coexistência (SILVA, 2004, p.

401). Logo, as atitudes que visem aniquilar os direitos da minoria só são permitidas

quando estes representarem uma ameaça para o restante da sociedade, o que

decididamente não ocorre no caso dos estudantes que se opõem à vivissecção.

Não reconhecer o direito dos estudantes sob a justificativa de que a maior

parte da sociedade não compartilha com as razões expostas por eles, além de

ofender a liberdade de crença dos indivíduos, significa privilegiar o império de força

da maioria sobre a minoria.

É inequívoco que, assim como a maioria não pode desconsiderar os

interesses da minoria, esta também não pode impor sua vontade sobre os demais e

é exatamente aqui que se verifica o caráter personalíssimo da objeção de

consciência, já que o que se postula é uma isenção pessoal.

21

Desse modo, não havendo repercussão para outras pessoas, o argumento

invocado não persiste. Nesse sentido, pode-se asseverar que:

Justificar a necessidade didática da vivissecção sob o fundamento de que as leis visam antes ao interesse coletivo do que o individual e que essa metodogia ainda não pode ser substituída, data maxima venia, é pensar de modo estreito. Afinal, a defesa das liberdades individuais é uma garantia constitucional suprema. Diante de um conflito ético que envolve questões relacionadas à vida e/ou ao sofrimento alheio, cabe ao interessado fazer as suas escolhas, lembrando que a decisão particular de não violentar suas convicções filosóficas pode assumir natureza política e, portanto, coletiva, ao propagar junto à comunidade acadêmica a viabilidade legal de fazer opções compassivas sem risco de ser prejudicado em suas avaliações ou discriminado por suas atitudes. (LEVAI, 2007)

Assim, a tese de que as razões manifestadas pelos estudantes não teriam o

embasamento e a relevância necessários não prospera.

Igualmente, seria por demais ingênuo defender que a vontade da minoria

estaria abrangida indiretamente nas decisões dos governantes, sendo o mesmo que

concordar com a teoria hobbesiana de que “cada súdito é autor de todos os atos

praticados pelo soberano, de modo que a este nunca falta o direito seja ao que for...”

(HOBBES, 1983, p.131).

O juízo de valor quanto às motivações expostas pelos objetores é

extremamente delicado, pois corre-se o risco de que a interpretação do Direito o

torne “irredutível e irremediavelmente subjetivo” (DWORKIN, 2005, p. 242).

Dworkim (2005, p. 244) quando aborda a teoria da intenção do autor deixa

clara a complexidade presente na interpretação que é feita para entender a vontade

do legislador quando da criação da norma. Isto porque existiriam duas intenções:

uma abstrata e outra concreta. Como exemplo, ele propõe a análise do seguinte

caso:

Suponha que um constituinte vote a favor de uma cláusula que garante a igualdade de tratamento, sem distinção de raça, em questões que afetam interesses fundamentais das pessoas; mas ele pensa que a educação não é uma questão de interesse fundamental e, portanto, não acredita que a cláusula torna inconstitucionais escolas racionalmente segregadas.

Percebe-se, dessa forma, que há duas intenções por parte do legislador,

sendo que a decisão mais adequada deve levar em conta os argumentos e os

fundamentos democráticos e políticos envolvidos na discussão.

Desse modo, constata-se que a interpretação de que as normas relativas à

objeção de consciência não abarcariam a pretensão dos estudantes

22

antivivisseccionistas, tem um substrato bastante subjetivo, pois anseia definir

preliminarmente a vontade do legislador quando da formulação da disposição.

Não obstante o que já fora exposto, a problemática contida na teoria de que

as motivações dos estudantes objetores não teriam o relevo necessário para

admissão da transgressão da ordem estabelecida, desdobra-se também no temor de

que casos de objeção acabem servindo como precedente para que pessoas se

eximam de seus deveres (de obediência às leis, por exemplo) e atentem contra o

Estado Democrático de Direito.

A preocupação de que a escusa sirva para o descumprimento indiscriminado

da legislação pátria, até certo ponto parece plausível diante da possibilidade de um

caos social. No entanto, tal suposição não se sustenta, haja vista que os casos de

objeção de consciência dependem sempre de requisitos muito bem justificados e da

análise apurada das razões envolvidas. Quanto a este aspecto, cabe ressaltar que:

O preceito da proporcionalidade, no sentido da proibição do excesso resulta da essência do direito fundamental de defesa.Além disso, há uma relação estreita entre a teoria dos princípios e o preceito da proporcionalidade, este em seus três preceitos parciais: adequação ou idoneidade do meio empregado para o alcance do resultado com ele pretendido, necessidade desse meio (um meio não é necessário se existe um meio mais ameno, menos interventor) e proporcionalidade em sentido estrito (o postulado da ponderação, propriamente dito). (LEIVAS, 2006, p. 47).

Assim, mais uma vez, verifica-se que eventuais conflitos advindos do

exercício do direito à objeção de consciência não podem ensejar a supressão

sumária deste direito fundamental, razão pela qual no caso concreto deve-se

observar o princípio da proporcionalidade.

2.2 AUTONOMIA DIDÁTICA VERSUS LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA

Um dos argumentos mais apresentados contra a objeção de consciência ante

a vivissecção é o de que as instituições de ensino dispõem de autonomia para

estabelecer suas diretrizes pedagógicas, não sendo possível que estudantes

interfiram nas decisões tomadas.

23

As instituições de ensino costumam alegar que todos os alunos devem ser

tratados de forma igual e que compete ao corpo docente determinar quais os

métodos devem ser empregados para o aprendizado, bem como quais os critérios

de avaliação serão utilizados.

Portanto, a decisão acerca da necessidade ou não do uso de animais vivos

competiria tão somente aos conselhos deliberativos, que teriam a prerrogativa

exclusiva de definir os métodos a serem adotados. Amparadas pelo artigo 207 da

Constituição Federal e pela Lei de Diretrizes e Bases da educação (Lei nº.

9.394/1996), as instituições justificam tal posicionamento dentro da autonomia

didático-científica.

Parece bastante evidente que quando a Constituição Federal assegura

explicitamente a autonomia das instituições de ensino, ela está reconhecendo a

importância que a educação tem na formação do indivíduo e da própria sociedade.

Agora, por outro lado, é curioso observar que a autonomia, prevista exatamente para

evitar que ingerências externas comprometam a expansão do conhecimento, seja

utilizada para afastar alunos que “ousam” expor seus pensamentos e reivindicar

inovações.

De qualquer forma, o certo é que a autonomia didático-científica não é

absoluta; ela encontra restrições em outras disposições constitucionais e

infraconstitucionais.

Sendo assim, o aparente conflito entre o artigo 207 (que consagra o direito à

autonomia dos estabelecimentos de ensino), o artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII

(que veda a crueldade contra animais) e o artigo 5º, VI (que assegura o direito à

inviolabilidade de consciência e de crença), todos da Constituição Federal, é

resolvido sopesando os bens jurídicos protegidos pela norma para definir qual

possui maior valor. (LEVAI, 2007).

O direito de traçar as diretrizes da educação não pode ferir os direitos

fundamentais à liberdade de convicção e à dignidade humana. Como brilhantemente

asseverou o juiz federal Cândido Alfredo Silva Leal Júnior, no julgamento da ação

ordinária nº. 2007.71.00.019882-0:

Não há dúvida que o professor tem liberdade de atuação em sala de aula (art. 206-II da CF/88) e que as universidades gozam de autonomia didático-científica para definir as atividades de ensino e pesquisa (art. 207 da CF/88). Mas essa autonomia universitária encontra limite nos direitos dos alunos à liberdade de consciência (art. 5º-VI da CF/88) e convicção

24

filosófica (art. 5º-VIII da CF/88), à vedação de tratamento discriminatório (art. 3º-IV da CF/88), ao pluralismo político (art. 1º-V da CF/88) e, principalmente, ao pluralismo de idéias e concepções pedagógicas no ensino (art. 206-III da CF/88).

A própria Lei nº. 9394/1996 ao estabelecer os princípios e fins da educação

nacional dispõe que:

Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas;IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;(...)

Assim, percebe-se que a educação está intrinsecamente associada à

liberdade de pensamento, ao pluralismo ideológico e à tolerância, de modo que a

objeção de consciência não deve ser vista como algo que traga prejuízos para a

autonomia dos docentes, nem tampouco para a qualidade da educação.

Ainda que se admitisse a tese de que a escusa estaria em confronto com o

direito à educação, mesmo assim a liberdade de consciência não poderia ser

simplesmente denegada sem pelo menos uma tentativa de adequar a coexistência

de ambos direitos, uma vez que

(...) quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua. (MORAES, 2008, p. 33).

É preciso ter em mente que a luta dos opositores à vivissecção não é uma

luta contra a ciência ou mesmo à autonomia didática; muito pelo contrário. A luta

pela abolição da experimentação animal tem por escopo a escolha de novos

caminhos para um ensino mais humanitário e ético, sem a necessidade de

machucar outros seres. (GREIF, 2003, p. 55)

25

É obvio que a abolição preconizada não diz respeito às intervenções

realizadas em animais que apresentam algum tipo de patologia e que, portanto,

necessitam de tratamento, seja ele cirúrgico ou através da ingestão de drogas.

Nesse sentido, é totalmente aceitável (e até mesmo recomendável) que os

estudantes possam aprender técnicas cirúrgicas, diagnósticos e tratamento de

enfermidades em animais necessitados de ajuda médica11.

Ocorre que, na imensa maioria das vezes, os animais tidos como objetos

pelos professores e pesquisadores são saudáveis, geralmente obtidos através de

empresas especializadas na venda de cobaias e instrumentos relacionados aos

experimentos12 ou do recolhimento de cães e gatos de rua.

Note-se que a resistência de muitos profissionais em adotarem novas

técnicas de aprendizado perpassa não só o comportamento natural de reafirmação

de velhos mitos, mas também pela influência de grandes empresas responsáveis

pelo fornecimento de cobaias e equipamentos específicos para a experimentação.

Além disso, inúmeros professores acabam vislumbrando na experimentação

animal a única forma de angariarem recursos para dar continuidade aos seus

projetos de pesquisa, haja vista que prevalece o entendimento de que o uso de

animais vivos confere maior credibilidade aos estudos, merecendo maior incentivo

financeiro. Todos esses fatores comprometem sobremaneira a discussão acerca da

prescindibilidade das práticas vivisseccionistas.

Assim, a relutância em acolher a objeção de consciência está muito mais

associada ao comodismo de reproduzir antigos conceitos do que propriamente à

autonomia didático-científica.

Outra questão que merece ser analisada criticamente diz respeito à ideia de

que os cientistas detêm o monopólio do conhecimento, não cabendo qualquer tipo

de contestação referente às prescrições por eles estipuladas.

Como bem explana Rubem Alves:

O cientista virou um mito. E todo mito é perigoso porque ele induz o comportamento e inibe o pensamento. Este é um dos resultados

11 Na intervenção terapêutica a intenção é beneficiar os sujeitos nos quais os experimentos são conduzidos. Já na pesquisa não terapêutica os sujeitos das experiências (animais não humanos) são vitimados. (REGAN, 2006, p. 213). 12 Estima-se que só nos Estados Unidos mais de 70 milhões de animais sejam utilizados anualmente. Somente a empresa norte-americana Charles River Laboratories produz, por ano, mais de 22 milhões de animais para pesquisas. (SINGER, 2004, p. 42).

26

engraçados (e trágicos) da ciência. Se existe uma classe especializada em pensar de maneira correta (os cientistas), os outros indivíduos são liberados da obrigação de pensar e podem simplesmente fazer o que os cientistas mandam (ALVES, 1992, p.11).

Seguindo a mesma linha de pensamento o educador Paulo Freire (2000, p.

52), ao tratar da responsabilidade do ser humano em formar sua própria convicção,

ensina que:

Na medida em que aceitamos que a economia ou a tecnologia ou a ciência, pouco importa, exerce sobre nós um poder irrecorrível não temos outro caminho senão renunciar à nossa capacidade de pensar, de conjecturar, de comparar, de escolher, de decidir, de projetar, de sonhar. Reduzida à ação de viabilizar o já determinado a política perde o sentido da luta pela concretização de sonhos diferentes. Esgota-se a eticidade de nossa presença no mundo. É neste sentido que, reconhecendo embora a indiscutível importância da forma como a sociedade organiza sua produção para entender como estamos sendo, não me é possível, pelo menos a mim, desconhecer ou minimizar a capacidade reflexiva, decisória, do ser humano.

Assim, é perceptível que o que está em conflito com a objeção não é a

autonomia das instituições de ensino, mas sim a imposição de determinados

valores, sem respeitar as convicções daqueles que fundamentadamente esboçam

discordância.

Ademais, a busca pela disponibilização de métodos alternativos ao uso de

animais vivos não pode ser considerada uma ameaça à autonomia didática, posto

que o que se pretende é apenas uma isenção de caráter pessoal. Portanto, as

instituições de ensino podem continuar utilizando as antigas técnicas, ressalvado o

direito dos estudantes objetores de disporem de uma alternativa que lhes permita o

aprendizado sem prejuízos às suas convicções filosóficas.

Note-se que até mesmo quando do reconhecimento da objeção de

consciência, os professores continuam com a autonomia para exigir e decidir os

moldes em que será cumprida a prestação alternativa pelo objetor.

Com isso, resta nítido que a intenção dos estudantes objetores não é a de

alcançar um tratamento privilegiado, nem tampouco impor sua vontade sobre as

decisões do corpo docente. O que se postula, em última analise, é conciliar todos

esses valores, tão imprescindíveis para o desenvolvimento humano, a fim de

propiciar a evolução em direção a uma sociedade mais tolerante, plural e ética.

27

CONCLUSÃO

28

A utilização de animais vivos para fins didáticos é uma prática extremamente

arraigada no meio acadêmico e, por isso, permanece sendo considerada como a

única forma de se obter o conhecimento necessário para uma formação profissional

qualificada.

No entanto, com a evolução da sociedade e o surgimento de inúmeros

estudos que questionam o tratamento dispensado aos animais não humanos,

passou-se a, cada vez mais, refletir sobre o modo com que o ser humano interage

com outras formas de vida, especialmente, em relação aos animais sencientes.

Os debates concernentes aos aspectos éticos que permeiam a vivissecção

ganharam maior espaço à medida que os avanços tecnológicos possibilitaram o

desenvolvimento de métodos substitutivos, plenamente eficazes, ao uso de animais

vivos em experimentos.

Diante disso, alguns estudantes começaram a contestar o emprego da

vivissecção no ensino e buscar, através do exercício da objeção de consciência, a

disponibilização de técnicas didáticas mais humanitárias e que preservassem suas

convicções filosóficas.

A partir desse momento, foi desencadeada uma intensa discussão acerca do

cabimento ou não da escusa de consciência dos estudantes que se recusam a

participarem de aulas em que são realizados experimentos com animais vivos.

Ocorre que, historicamente, a objeção de consciência teve sua razão de ser

muito atrelada aos casos em que cidadãos opunham-se à prestação de serviço

militar obrigatório e dos médicos que se recusam a realizar procedimentos abortivos

autorizados pela lei.

Entretanto, parece evidente que o caráter da objeção, enquanto asseguradora

dos princípios democráticos, mormente no que diz respeito à liberdade de

consciência, ao pluralismo de ideias e ao direito das minorias, suplanta qualquer

intento no sentido de reduzir sua aplicabilidade a casos predeterminados.

Nesse sentido, cabe mencionar que não se pode tão somente permitir a

alegação indiscriminada da objeção de consciência e, por conseguinte, o

descumprimento da ordem estabelecida, sob pena de se instaurar uma imensa

instabilidade jurídica e um caos social.

Contudo, também é inaceitável ignorar que o dilema ético envolto na

vivissecção tem feito com que muitos estudantes firam suas convicções, a fim de

29

evitar prejuízos acadêmicos, ou simplesmente abandonem o curso escolhido por

não suportarem tamanha pressão em prol do uso de animais vivos.

As instituições de ensino negam-se sistematicamente a admitir a escusa de

consciência, em virtude de não encararem a vivissecção como um problema ético

significativo. Outrossim, a própria autonomia didática, que deveria servir para

assegurar a liberdade de formação intelectual, é usada como pretexto para não

apenas perpetuar um modelo de exploração animal arcaico, como para inviabilizar o

acesso dos alunos objetores a outros métodos de ensino compatíveis com suas

convicções filosóficas ou religiosas.

Desse modo, o direito à objeção de consciência constitui-se em um essencial

instrumento de proteção à liberdade de pensamento e de resguardo à dignidade do

estudante objetor, que não se alinha ao entendimento de que os animais são meros

objetos, cujo valor restringe-se a sua utilidade para o ser humano.

REFERÊNCIAS

30

ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras. 15. ed. Brasília: Editora Brasiliense, 1992.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm>. Acesso em: 25 abr. 2009.

BRASIL. Lei nº. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9605.htm>. Acesso em: 25 abr. 2009.

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