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O LUGAR DO ASCETICISMO NA CONSTRUÇÃO DO RELACIONAMENTO DE DEUS COM O SEU POVO Por Ercilio Ribeiro Oliveira INTRODUÇÃO Que proveito pode haver nas dietas especiais e abstinências alimentares para a qualidade da vida espiritual? Fazemos bem em considerar esta questão logo de início. Este trabalho aborda o tema para reflexão e não tem a pretensão de exaurir o assunto, mas visa apresentar ponto de vista mais ortodoxo do tema, procurando oferecer meios ao leitor para melhor responder a essa pergunta. No meio militar existe e história do soldado do banco da praça. Conta-se que num quartel criaram um posto de serviço ao lado de um banco, numa praça. Vários anos se passaram e ninguém mais sabia a finalidade daquele posto. Aparentemente não havia motivo para um posto de serviço no meio da praça. Alguém resolvera investigar e descobriu-se que muitos anos antes o comandante havia mandado pintar o banco e temia que alguém sentasse nele com a tinta fresca. O tempo passou, a origem dos fatos e o sentido daquela prática se desvaneceram. O que poderia ter durado dois dias perpetuou-se. Esse fenômeno pode ocorrer em nossas vidas ou na Igreja. Algumas de nossas práticas atuais um dia fizeram sentido, mas agora podem ter perdido a acepção original, mas permanecem, como lixo no porão. Em regra, as religiões objetivam aproximar o ser humano de um deus. Há milhares de religiões no mundo, mas apenas três são monoteístas, isto é, admitem tão somente o único Deus, YHWH: o Islamismo, o Judaísmo e o Cristianismo. Existem diferenças espantosas entre as principais doutrinas religiosas do mundo. No Cristianismo evangélico, a Bíblia Sagrada é a única regra de fé e prática, e apenas YHWH, o Eterno, criador de todas as coisas e pai do Senhor Jesus Cristo, é o único Deus verdadeiro. Assim como ocorre em vários sistemas religiosos, também em alguns segmentos do Cristianismo ensina-se que para maior enlevo espiritual deve-se mortificar a carne. Digo, porém: Andai em Espírito, e não cumprireis a 1

Artigo Steb - Ascetismo - Ercilio

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O LUGAR DO ASCETICISMO NA CONSTRUÇÃO DO RELACIONAMENTO DE DEUS COM O SEU POVO

Por Ercilio Ribeiro Oliveira

INTRODUÇÃOQue proveito pode haver nas dietas especiais e abstinências alimentares para

a qualidade da vida espiritual?Fazemos bem em considerar esta questão logo de início. Este trabalho aborda

o tema para reflexão e não tem a pretensão de exaurir o assunto, mas visa apresentar ponto de vista mais ortodoxo do tema, procurando oferecer meios ao leitor para melhor responder a essa pergunta.

No meio militar existe e história do soldado do banco da praça. Conta-se que num quartel criaram um posto de serviço ao lado de um banco, numa praça. Vários anos se passaram e ninguém mais sabia a finalidade daquele posto. Aparentemente não havia motivo para um posto de serviço no meio da praça. Alguém resolvera investigar e descobriu-se que muitos anos antes o comandante havia mandado pintar o banco e temia que alguém sentasse nele com a tinta fresca. O tempo passou, a origem dos fatos e o sentido daquela prática se desvaneceram. O que poderia ter durado dois dias perpetuou-se.

Esse fenômeno pode ocorrer em nossas vidas ou na Igreja. Algumas de nossas práticas atuais um dia fizeram sentido, mas agora podem ter perdido a acepção original, mas permanecem, como lixo no porão.

Em regra, as religiões objetivam aproximar o ser humano de um deus. Há milhares de religiões no mundo, mas apenas três são monoteístas, isto é, admitem tão somente o único Deus, YHWH: o Islamismo, o Judaísmo e o Cristianismo.

Existem diferenças espantosas entre as principais doutrinas religiosas do mundo. No Cristianismo evangélico, a Bíblia Sagrada é a única regra de fé e prática, e apenas YHWH, o Eterno, criador de todas as coisas e pai do Senhor Jesus Cristo, é o único Deus verdadeiro.

Assim como ocorre em vários sistemas religiosos, também em alguns segmentos do Cristianismo ensina-se que para maior enlevo espiritual deve-se mortificar a carne.

Digo, porém: Andai em Espírito, e não cumprireis a concupiscência da carne. Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes se opõem um ao outro, para que não façais o que quereis. (Gálatas 5.16-17)

Assim sendo, na busca de maior aproximação e intimidade com Deus, o cristão deve ter em conta a mortificação da carne, e, para atingir esse objetivo, ensina-se que o crente deve praticar asceticismo.

Em linhas gerais, de acordo com os melhores dicionários, ascetismo – ou asceticismo – é a moral filosófica ou religiosa, baseada no desprezo do corpo e das sensações corporais, na qual são refreados os prazeres considerados mundanos, onde se propõe a austeridade com o corpo, e que tende a assegurar, pelos sofrimentos físicos, o triunfo do espírito sobre os instintos e as paixões. A ascese mais popular e frequentemente praticada é o jejum.

Richard Foster1 analisa o que acontece com nosso corpo se jejuarmos,

1 Celebração da Disciplina (Deerfield. Vida, 1983).

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passando pelas intensas dores de cabeça, tonturas, fraqueza; o que ele chama de dores da fome.

Aqueles que praticam um estilo de vida austero com o corpo definem suas práticas como virtuosas e perseguem o objetivo de adquirir uma grande espiritualidade. Muitos ascéticos (pessoas que praticam o asceticismo) acreditam que o enlevo da alma ocorre somente com a purificação do corpo. Para obter a compreensão de uma divindade e encontrar a paz interior deve-se, nessa linha, praticar a automortificação com rituais de renúncia ao prazer. Os ascéticos defendem que restrições autoimpostas trazem grande liberdade em várias áreas da vida, como aumento das habilidades de pensar limpidamente e resistir a impulsos destrutivos.

A ascese servirá, então, para aproximar a pessoa (asceta) da verdadeira realidade espiritual e ideal, ao desligar-se da imperfeição e materialidade do corpo.

A religião cristã ligará, também, todos os desejos corporais ao pecado, e por isso devem ser refreados a todo custo, caso se pretenda atingir a santidade e os dons divinos, que, ainda assim, são concedidos pela graça de Deus e não pela virtude do asceta.

Tomás de Aquino, eminente teólogo do século XIII, aperfeiçoou a lista dos sete pecados ditos capitais, que assim ficou composta: Vaidade, Inveja, Ira, Preguiça, Avareza, Gula e Luxúria. Nesse contexto é que a prática ascética do jejum passou a ter ainda maior notoriedade, em especial por causa do pecado da gula.

Se comer demais é considerado pecado, então se deve disciplinar o corpo a negar alimento para refrear a vontade descontrolada e alcançar a glória espiritual. Comer demais também passa a ser associado à luxúria e à preguiça, perfazendo o trio de pecados correlacionados, já que um levaria ao cometimento do outro, num círculo vicioso. A disciplina do jejum então serviria para desfazer esse imbróglio.

Os banquetes pagãos, especialmente romanos, eram ocasiões para orgias e consumo exagerado de comida. Havia nessas festas serventes preparados com recipientes para que os convidados vomitassem para que pudessem comer ainda mais. É nesse contexto que o Cristianismo passa a dar ênfase à abstinência alimentar, como forma de estabelecer uma contracultura dessas tradições pagãs.

O ascetismo foi amplamente aceito nas religiões antigas e ainda hoje é uma filosofia proeminente, sobretudo nas seitas e religiões orientais. Platão idealizou-o. As seitas judaicas, como os essênios, praticavam-no fervorosamente e o cristianismo institucionalizou-o, com o desenvolvimento de várias ordens monásticas. O gnosticismo foi o maior defensor dessa filosofia (“Dicionário de religiões, crenças e ocultismo”. George A. Mather & Larry A Nichols. Vida, 2000, p. 23).

O jejum é praticado de várias formas e consiste em diminuir ao máximo a ingesta de alimentos, por tempo pré-determinado. Existem muitos motivos que levam uma pessoa a se abster de comida, como a greve de fome, jogos de desafio, saúde e vaidade com o corpo. Mas o principal motivo é o religioso. Além da mortificação da carne, o jejum tem sido considerado pelas religiões como um recurso importante, seja para dar significado à liturgia do culto, tradicionalismo, ritualismo, ideologia ou voto pessoal. Mas a sua principal finalidade tem sido mesmo o aprimoramento espiritual.

Hoje em dia, identificam-se outros modos de abstinência alimentar. Por algum motivo, alguns não se submetem ao rigor do jejum, e por isso surgiram alternativas para subjugar as vontades. Afastar-se da televisão, da internet, do prato preferido, de chocolate e até do ato conjugal, por certo tempo, enfim, de qualquer coisa que sirva ao

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prazer, têm sido apreciados como formas de apurar a comunhão com Deus. Nesses formatos modernos de ascetismo, o objetivo central também é o mesmo: negar ao corpo o que lhe dá prazer, para fortalecer o espírito.

No entanto, o assunto é controvertido, sobretudo porque a ideia da mortificação da carne pelo asceticismo está ausente no Antigo Testamento. Ela surge no meio cristão por influência do idealismo platônico (dualismo), que sustenta a oposição entre o material e o espiritual.

Cristãos reformados discordam entre si sobre o ascetismo. Muitos não o realizam e dizem que nada perdem com isso, enquanto outros fazem do ascetismo uma rotina sagrada, praticando-o rigorosamente duas ou três vezes por semana.

Embora haja um clima de respeito mútuo, o assunto é delicado. Em debates as opiniões são difusas. No afã de defenderem seus pontos de vista, os adeptos do jejum tendem a considerar carnais os que não lhe dão valor, crentes pouco consagrados da “porta larga”. De outro lado, estes classificam os adeptos do jejum de legalistas, ignorantes e fundamentalistas.

ORIGEM DO ASCETICISMOA abstinência alimentar com fins religiosos tem origem no Dia da Expiação, que

era uma festa anual dos hebreus em que se fazia a purificação de todos os pecados do povo2. Nesse dia, era prescrito afligir a alma, com a negação ao corpo físico de suas demandas, incluindo o alimento.

O sentido maior de afligir a alma era o de se quebrantar, com profunda reflexão, pela condição de pecador e da fragilidade perante as situações da vida e, com isso, humilhar-se perante Deus, para o perdão. O Dia da Expiação, então, era marcado pela tristeza e, por isso, os hebreus não comiam. A abstinência alimentar não purificava do pecado, era apenas parte do cerimonial.

Mais tarde, se estabeleceram quatro jejuns para recordar os dias do exílio3. A abstinência alimentar, desde então, passou a ter também o objetivo de trazer à memória do povo as lembranças de um fato triste e, em seguida, recordar a ação do Senhor no livramento. Devemos trazer à memória aquilo que nos dá esperança – ensinou o profeta Jeremias4.

Encontramos também diversos relatos bíblicos de homens que buscaram livramento com orações, jejuns, pano de saco e cinzas em face de profunda angústia, nos quais procuraram uma condição mais favorável perante o Altíssimo. Em todas as circunstâncias verificadas, a tônica principal era a tristeza e o luto, condições que conduziam tradicionalmente ao ascetismo.

O livro de Neemias retrata com precisão o sentido dessa autonegação. No versículo 1.4, Neemias busca ao Senhor com luto e tristeza porque os muros de Jerusalém estavam arruinados e as suas portas queimadas. A história se desdobra e Neemias consegue reerguer a cidade, no que o Senhor lhe foi benevolente. Na sequência - versos 8.10-12 - vemos um quadro bastante diferente. A alegria toma lugar e o luto cessa. Neemias manda que o povo coma carnes gordas, tome bebidas doces, e determina: não estejais contristados. Não há na Bíblia outro livro que demonstre com mais beleza o sofrimento, a oração, o trabalho, o choro, a alegria, a perseverança e o culto ao Senhor. O livro de Neemias esclarece bem a real finalidade

2 Levítico 16.29-30 e 23.26-293 Zacarias 8.194 Lamentações 3.21

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do jejum entre os hebreus da antiguidade: a tristeza e o luto. Compreendendo isto, concluímos que a finalidade inicial da abstinência

alimentar era o cumprimento de uma formalidade cerimonial, um ato sublime de humilhação originado no sofrimento.

Todavia, na medida em que os anos se passaram, o ascetismo foi se transformando e recebendo outros significados, porém não atribuídos por Deus, mas pelo ser humano. A sua aplicação prática foi sendo diversificada e passou a ser recomendado contra situações difíceis, que exigiam auxílio divino. Com o tempo, os hebreus passaram a afligir a alma não apenas em sinal de luto e tristeza, mas em busca de revestimento espiritual, pois passaram a considerar que esse ato escondia em si algum poder sobrenatural, facilitador da ação de Deus.

Por influência de povos pagãos, passaram a praticar sacrifícios com o objetivo subjacente de dobrar a divindade. Esse entendimento desvirtuado do sentido original encontrou seu ápice quando os hebreus já negligenciavam a assistência às viúvas, aos pobres e necessitados, e ainda assim ofereciam jejuns como forma de aplacar essa falta. Esse cenário crítico levou Deus a falar pelo profeta Isaías para corrigir o povo5. Não surtindo efeito, mais tarde o profeta Zacarias fala por YHWH no mesmo tom6, na tentativa de alertar o povo de Deus contra o misticismo que passou a ligar-se às práticas ascéticas.

Resumidamente, no início a tristeza é que motivava a aflição da alma. Depois, a aflição da alma passou a ser praticada por questões rituais. E, por último, passou a ser a senha para uma condição privilegiada aos olhos de Deus. Os profetas Isaías e Zacarias advertiram que essa prática fora dos objetivos inicialmente propostos é um erro, e, portanto não pode agradar a Deus.

Práticas ascéticas, por definição, têm caráter de sacrifício, uma vez que procuram induzir o corpo, de forma premeditada, a um sofrimento assistido, visando a um objetivo específico.

O profeta Samuel já havia alertado que o Senhor não se agrada de sacrifícios. O que o Senhor aprecia é a obediência.

Porém Samuel disse: Tem, porventura, o Senhor tanto prazer em holocaustos e sacrifícios, como em que se obedeça à palavra do Senhor? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar; e o atender melhor é do que a gordura de carneiros. (I Samuel 15.22)

Em Isaías 58.1-12, pode-se ler veemente advertência quanto ao asceticismo desvirtuado, motivado pelo legalismo:

Seria este o jejum que eu escolheria: que o homem um dia aflija a sua alma, que incline a sua cabeça como o junco, e estenda debaixo de si saco e cinza? Chamarias tu a isto jejum e dia aprazível ao Senhor? (Isaías 58.5)

Se a ascese é fruto de iniciativa humana para justiça própria e serve para acumular milhas para serem trocadas por bênçãos, esse sacrifício é nulo. O tipo de sacrifício que YHWH parece requerer do seu povo foi posto com clareza e se traduz em amor e abnegação pelo próximo, aversão ao pecado e comprometimento absoluto com Ele:

Porventura não é este o jejum que escolhi? Que soltes as ligaduras da

5 Isaías 586 Zacarias 7

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impiedade, que desfaças as ataduras do jugo? E que deixes livres os quebrantados, e despedaces todo o jugo? Porventura não é, também, que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desterrados? E, vendo o nu, o cubras, e não te escondas da tua carne? Então romperá a tua luz como a alva, e a tua cura apressadamente brotará, e a tua justiça irá adiante da tua face, e a glória do Senhor será a tua retaguarda. Então clamarás, e o Senhor te responderá; gritarás, e ele dirá: Eis-me aqui: se tirares do meio de ti o jugo, o estender do dedo e o falar vaidade; e se abrires a tua alma ao faminto, e fartares a alma aflita: então, a tua luz nascerá nas trevas, e a tua escuridão será como o meio-dia. E o Senhor te guiará continuamente, e fartará a tua alma em lugares secos, e fortificará os teus ossos; e serás como um jardim regado, e como um manancial, cujas águas nunca faltam. (Isaías 58.6-11)

A IMPORTÂNCIA ATRIBUÍDA AO ASCETISMOExistem argumentos que defendem a prática da mortificação da carne pela

ascese e outros que defendem o oposto. Há pessoas que consideram o jejum indispensável a uma vida cristã plena; e outros, que não há necessidade dele, que seu efeito é nulo no contexto da fé evangélica reformada.

Em Mateus 4.2 lemos que Jesus nada comeu por 40 dias, no deserto. Além disso, Jesus ensinou sobre a aflição da alma no Sermão da Montanha7 e garantiu que se for praticada da forma correta trará resultados: ...e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. (Mateus 6.18)

Por outro lado, em Mateus 9.14-17, fica evidente que os discípulos de Jesus não jejuavam, porém o Senhor afirmou que quando o esposo (ele mesmo) fosse tirado, os seus discípulos teriam a necessidade de jejuar. O mesmo texto informa que os discípulos de João Batista faziam frequentes jejuns.

Noutro contexto, a falta de disciplina com a carne teria sido o motivo do insucesso dos discípulos contra espíritos demoníacos: ...esta casta não pode sair senão por meio de oração e do jejum. (Mateus 17.21)

O livro de Atos dos Apóstolos relata a prática do ascetismo pela igreja primitiva, em Antioquia: E servindo eles ao Senhor, e jejuando, disse o Espírito Santo: Separai-me agora a Barnabé e a Saulo para a obra a que os tenho chamado. Então, jejuando e orando, e impondo sobre eles as mãos, os despediram. (Atos 13.2-3).

Ainda em Atos, no relato da primeira viagem missionária de Paulo e Barnabé, lemos que antes de escolherem os presbíteros para as igrejas, alguns discípulos promoviam orações com jejuns8. Além destes, a Bíblia nos apresenta uma galeria de homens e mulheres que praticaram jejuns (aflição de alma): Moisés9, Davi10, Esdras11, Neemias12, Ester13, Daniel14, Ana15, dentre outros.

Em outra linha, fora do viés espiritual, não podemos deixar de considerar a importância das dietas frugais em um sentido mais amplo. Alguns ensinam que é bom nos abstermos de tudo o que entra no corpo físico, na mente e na alma, pelos sentidos, para uma verdadeira purificação.

Dom José Freire Falcão, Cardeal, Arcebispo de Brasília-DF no período de 1984/2004, defendia que o jejuar contribui para a saúde física. Alexis Carrel, um

7 Mateus 6.16-188 Atos 14.239 Êxodo 34.28; Deuteronômio 9.9, 1810 II Samuel 12.1611 Esdras 8.21-2312 Neemias 1.413 Ester 4.1614 Daniel 9.315 Lucas 2.37

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notável biologista francês do início do Século XX, escreveu que o jejum limpa e transforma os tecidos, que é um dever zelar pela saúde do nosso corpo, e que, para o cristão, o jejum é, sobretudo, uma escola de domínio de si e combate espiritual. Jejuar por razões religiosas tonifica o espírito, argumentava Carrel. A privação do alimento contribui para o domínio das tendências instintivas. Quem controla seu apetite, dominaria seus desejos. E Carrel ia além dizendo que o jejum representaria um sacrifício apreciado por Deus e que jamais deixaria de ser recompensado.

A medicina diz que o jejum traz vantagens terapêuticas, pois alivia as funções digestivas, reequilibrando o sistema. Existem estudos que garantem que jejuar uma vez por semana auxilia no emagrecimento, contribuindo para a reeducação alimentar. Na contramão, recente pesquisa realizada por nutricionistas revelou que ficar sem alimentação por muitas horas pode fazer mal à saúde. O ideal seria comer um pouco a cada três horas.

Deixar de comer, eventualmente, seria um meio, também, de reagir contra o espírito materialista reinante hoje. Privando-se dos alimentos, as pessoas se convencem de que as nutrições terrenas não bastam. É preciso também estimular a fome de bens espirituais. No mundo do bem-estar e do conforto, é necessário guardar o espírito disponível para Deus.

Para o Judaísmo de hoje, a ideia do ascetismo reside na tomada de consciência de que algo está faltando para mim agora, no caso, a comida e a bebida, e com isso, deve-se meditar sobre o motivo pelo qual Deus ordenou jejuar. Desta forma, para o judeu, fica mais fácil conscientizar-se de que há algo faltando no comportamento e, assim, aprimorar-se.

Para alguns segmentos cristãos, o ascetismo é prática obrigatória para que os crentes possam crescer espiritualmente e para que a igreja alcance excelência no exercício de seus ministérios, haja vista que garante reforço espiritual frente às muitas batalhas que a igreja trava no seu cotidiano. Essa visão é predominante no pentecostalismo.

Bem, como se vê, deixar de comer eventualmente, por si só, oferece benefícios. Se isso não faz todo o bem que os seus praticantes prometem, mal não fará. Certo? Talvez. Em oposição, há quem dê outra interpretação a estes fatos. Uma vez que o ascetismo é (1) aderente a preceitos do Antigo Testamento, (2) liga-se a superstições e práticas místicas orientais, (3) pode conduzir a êxtases, e além disso (4) reforça conclusões filosóficas de Platão, posteriormente fragilizadas, há os que opinam que seus malefícios para a igreja são maiores que supostos benefícios, pois seria legalismo e fermento da Lei16, sendo recomendável a sua exclusão17, pois em Cristo a observância de rituais sagrados é desnecessária.

Havendo riscado a cédula que era contra nós, nas suas ordenanças, a qual de alguma maneira nos era contrária, e a tirou do meio de nós, cravando-a na cruz. (Colossenses 2.14)

Muito se tem falado e escrito sobre o jejum bíblico. A maioria das abordagens é fervorosa em sua defesa, chegando a mistificá-la. Este trabalho, como já dito, visa apresentar outro ponto de vista. Uma vez que há sérias dificuldades em sustentar teologicamente a tese de que o asceticismo traz benefícios na relação com Deus, vamos contemporizá-lo ao Novo Testamento com a máxima honestidade, sem

16 Gálatas 5.917 Posicionamento de alguns segmentos evangélicos que procuram excluir o aspecto ascético de seus cultos.

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descuidar do conceito dessa prática na Antiga Aliança.A tabela a seguir traz informações sobre o jejum nas principais doutrinas

religiosas do mundo18:

Religião Quando Como Porquê

Bahá'í O jejum bahá'í tem lugar entre os dias 2 e 20 de março, que correspondem ao mês de Alá, o 19º do calendário bahá’í.

Não comer nem beber entre o nascer e o pôr do sol.

O jejum simboliza um processo de transformação espiritual e o desprendimento das coisas deste mundo; o objetivo é que o crente se concentre em Deus.

Budismo Todos os principais ramos do Budismo praticam jejum, geralmente em dias de lua cheia e em alguns feriados.

Depende da tradição budista. Geralmente consiste apenas na abstenção de alimentos sólidos sendo permitidas bebidas.

É um método de purificação. Os monges budistas Theravada e Tendai jejuam com o objetivo de libertar a mente. Alguns monges budistas tibetanos jejuam para conseguir efeitos de ioga, como, por exemplo, gerar um calor interior.

Catolicismo Jejum e abstinência de carne na quarta-feira de cinzas e abstinência de carne em todas as sextas-feiras da Quaresma. Durante muitos séculos os católicos estiveram proibidos de comer carne às sextas-feiras. Mas desde os meados dos anos 1960, a abstinência de carne nas sextas-feiras fora da Quaresma tem sido deixada à consciência de cada um.

Na quarta-feira de cinzas e na sexta-feira santa, são permitidas duas pequenas refeições e uma refeição normal; a carne está proibida. Nas sextas-feiras da quaresma a carne não é permitida. Para o jejum opcional da sexta-feira, algumas pessoas substituem-no por uma penitência ou uma oração especial pelo jejum.

Ensina o controle dos desejos da carne, penitência pelos pecados e solidariedade para com os pobres. O jejum da quaresma prepara a alma para uma grande festa ao praticar a austeridade. O jejum de sexta-feira santa celebra o dia em que Cristo sofreu.

Cristianismo Ortodoxo Oriental

Existem vários períodos de jejum incluindo a Quaresma, o Jejum dos Apóstolos, o Jejum da Ascensão, o Jejum da Natividade, e vários outros dias de jejum. Todas as quartas-feiras e sextas-feiras são consideradas dias de jejum, exceto aqueles que coincidem com as “semanas livres de jejum”.

Em geral, a carne, lacticínios e ovos estão proibidos. O peixe é proibido em alguns dias e permitido noutros.

Fortalece a resistência à gula; ajuda a pessoa a abrir-se à Graça de Deus.

Hindu O jejum é geralmente praticado na Lua Nova e nos festivais de Shivaratri, Saraswati Puja, e Durga Puja. As mulheres no norte da Índia também costumam jejuar no dia de KarvaChauth.

Depende do indivíduo. O jejum pode consistir em 24 horas de completa abstinência de toda a comida e bebida; mas é mais fre-quente que inclua apenas abstinência de comida e sejam permitidas ocasional-mente bebidas como leite e água.

Uma forma de conseguir concentração durante a meditação ou adoração; purificação do sistema; por vezes é considerado um sacrifício.

Judaísmo O Yom Kippur, o Dia da Expiação, é o dia de jejum mais conhecido. O calendário judaico contém ainda seis dias de jejum, incluindo o TishaB'Av, o dia em que teve lugar a destruição do Templo.

No Yom Kippur e no TishaB'Av, a comida e a bebida é proibida durante 25 horas, entre um nascer do sol e o nascer do sol do dia seguinte. Nos dias restantes, a comida e a bebida estão interditos entre o nascer do sol e o por do sol.

Expiação dos pecados e/ou fazer pedidos especiais a Deus.

Mórmon O primeiro domingo de cada mês é um dia de jejum. Os indivíduos, as famílias ou comunidades podem realizar jejuns noutras ocasiões.

Abstenção de comida e bebida durante duas refeições consecutivas, e doando o dinheiro das refeições para os necessitados. Após o jejum, os membros da igreja participam na “reunião de jejum e testemunho”.

Proximidade em relação a Deus; concentração em Deus e na religião. Jejuns individuais ou famili-ares podem ser realizados como pedido por uma causa específica, como a cura de um doente ou a ajuda a tomar uma decisão difícil.

18 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jejum

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Religião Quando Como Porquê

Islã O Ramadã, o nono mês do calendário islâmico, é um período de jejum obrigatório que celebra o período em que o Alcorão foi, pela primeira vez, revelado a Maomé. Várias tradições islâmicas recomendam dias e períodos de jejum além do Ramadã.

Abstinência de comida, bebida, fumo, linguagem obscena e relações sexuais entre a alvorada e o pôr do sol, durante todo o mês.

Alguns muçulmanos jejuam todas as segundas-feiras porque se diz que o Profeta Maomé também o fazia. Outros jejuam durante o mês de Sha'baan, que precede o Ramadã, e especialmente durante os três dias que precedem o Ramadã.

Paganismo Não existem dias formalmente dedicados ao jejum, mas alguns pagãos jejuam na preparação do festival de Ostara (Equinócio de Prima-vera).

À discrição do indivíduo - alguns evitam totalmente a comida, outros reduzem a quantidade de alimento.

O objetivo é purificar energeticamente a pessoa; frequentemente é usado para elevar os níveis vibratórios como preparação para trabalho de magia. O jejum de Ostara é usado para limpeza pessoal das comidas pesadas do inverno.

Protestante Evangélico À discrição dos indivíduos, igrejas, organizações ou comunidades.

Apesar de alguns se absterem totalmente de comida ou bebida, outros apenas bebem água ou sumos, apenas comem certos tipos de comida, não fazem refeições ou abstêm-se de tentações, comestíveis ou não.

Os jejuns evangélicos tornaram-se crescentemente populares, com o objetivo de busca de alimento espiritual, solidariedade para com os pobres, para contrabalançar a cultura consumista moderna, ou para pedir a Deus alguma coisa especial.

Outros protestantes Não é um ponto central da tradição, mas o jejum pode ser realizado à discrição das comunidades, igrejas, outros grupos e indivíduos.

À discrição de quem jejua. Para melhoramento espiritual ou progresso na agenda de justiça social ou política.

FINALIDADES ATRIBUÍDAS AO ASCETISMOA importância que o cristão evangélico atribui ao jejum e a conexão havida

entre dietas especiais com a qualidade da vida espiritual aparentemente encontram boas respostas em Romanos 14.17 e em Colossenses 2.20-23.

Porque o reino de Deus não é comida, nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo.

Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem. Essas coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade.

Será que esses versículos não dizem o que parecem dizer, que o reino de Deus nada tem a ver com o que fazemos descer ao estômago e que o rigor ascético é pouco proveitoso? Se está tão claro, por que então os cristãos evangélicos, em especial, devotam tanta confiança em práticas ascéticas? Seria um engano ou de fato algo nos escapa nessa compreensão?

No meio cristão, o ascetismo ocorre com diversos formatos. A seguir, os principais propósitos:

a) Santificação;b) Sacrifício;c) Preparar-se para enfrentar situações difíceis;d) Preparar-se para expulsar demônios;e) Subjugar a carne;f) Conseguir uma bênção material específica;

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g) Busca de uma experiência mais intensa com o Espírito Santo;h) Pela libertação de pessoas ou de nações;i) Como condição imprescindível à implantação de decretos divinos (atos proféticos), dentre outras.Quem considera a abstinência alimentar uma prática realmente importante

acredita que somente a decisão de realizá-la já é meio-caminho para o objetivo almejado, pela devoção em sacrifício que representa.

A escolha do tipo de sacrifício e a sua finalidade dependerão de vários fatores. Geralmente não é impositivo, embora se verifiquem situações em que alguns se sentem constrangidos, e para não ficarem abaixo do padrão de um grupo se alinham a ele. É comum encontrarmos pessoas que jejuam sem saberem exatamente porque o fazem, sendo motivadas por informações que receberam ao longo da vida ou por simples recomendação da liderança.

Segue-se breve transcrição do livro “Atos Proféticos: comando de Deus ou invenção humana?”, de autoria do apóstolo Renê de Araújo Terra Nova19. Nessa ótica, o sacrifício da carne é visto como uma ferramenta para abrir portas, quebrar decretos malignos e suscitar novas esperanças:

Existem várias modalidades de jejum e oração: fortalecimento, propósito (7, 14, 21, 30, 40 dias); consagração; proclamação de decretos, na qual oramos com base em decretos a Palavra (que delícia poder orar a Bíblia!). Escreva e cole decretos bíblicos nos lugares da sua casa onde você tem mais acesso, e assim você estará alimentando continuamente seu lar e sua família com bênçãos espirituais.1 dia ou 1 refeição É um propósito de consagração. Mas é indicado que seja tirada a refeição mais importante para você. 3 diasÉ o jejum para abrir portas. Nesse período, leia o livro de Ester, pois ele lhe ensinará o propósito do jejum de três dias. O cetro vai se estender a seu favor quando você aprender a fazer o jejum correto. 7 dias Tem o propósito de conseguir uma bênção específica. Todas as vezes que Israel parou e jejuou houve um decreto de sete dias para que a nação ganhasse uma bênção específica.21 diasEsse é um dos jejuns mais completos porque atrai os céus à Terra, confronta principados da maldade e os príncipes de Deus se levantam a nosso favor. Segundo a história de Daniel, o anjo Miguel entra na nossa causa com esse jejum. Depois que Daniel orou e jejuou por 21 dias (Dn 10), o anjo lhe disse que a oração havia chegado ao Trono, mas o principado da Pérsia lutou contra o anjo durante os 21 dias e Deus mandou Miguel, o príncipe de Israel, para ajudar o anjo. Esse é um jejum específico para nos trazer revelações tremendas do que Deus vai fazer nas nossas vidas diante de grandes dificuldades. Eles saíram da Babilônia e voltaram para Jerusalém. Quando jejuamos durante 21 dias saímos de uma situação crítica e entramos na bênção, na promessa. 30 diasNo cativeiro da Babilônia, houve uma conspiração contra Daniel, feita pelos governadores, capitães e príncipes, para que não fosse adorado nenhum outro deus a não ser o rei, num decreto (pregão) de 30 dias. Quem desobedecesse seria lançado na cova dos leões (Dn 6). Daniel continuou orando e jejuando, não a Dario, mas ao Deus de Israel. Por isso, foi lançado na cova dos leões. Mas o Senhor anulou o decreto de Dario e não deixou que os leões devorassem o profeta. Leão se alimenta de carne, mas Daniel não andava na carne. A Bíblia diz que Satanás fica ao nosso derredor bramindo como se fosse um leão (I Pe5.8), mas temos uma arma que o vence: a santidade. O diabo pega alguns porque andam na carne, porque a carne está aguçada. A santidade vai fazer com que o leão fuja da sua presença. Um homem de Deus fecha a boca dos leões.40 diasEsse jejum é para saber qual o seu ministério, confirmá-lo, desatá-lo, fazê-lo crescer e para que o nosso ministério encontre respaldo. Moisés, Elias e Jesus oraram e jejuaram por 40 dias. Moisés porque tinha o ministério de libertação, Elias por causa do ministério profético e Jesus pelo ministério messiânico. Com oração e jejum, além de ganharmos vidas, não fica pecado nas células e nem nos Doze. Moisés orou e jejuou por 40 dias, no Sinai. Nesse período ele foi confrontado pelo principado de idolatria oriundo de Faraó, arraigado no coração do povo, desde o Egito. Depois que o anjo lhe serviu comida no deserto, Elias orou e jejuou 40 dias para enfrentar o principado de idolatria e feitiçaria em Acabe oriundo de Jezabel (I Rs 19.8). Jesus orou e jejuou

19 Teólogo e líder do Ministério Internacional da Restauração (MIR).

9

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por 40 dias e venceu o diabo (Lc4.1-13). O jejum de 40 dias destrói as forças dos principados e quebra suas bases de atuação. Se você quer que Deus lhe dê um ministério de êxito, vai precisar pagar um preço de jejum e oração. O preço da redenção Jesus já pagou, o preço da consagração quem paga é você. O jejum é um compromisso que deve ser sustentado permanentemente. Você pode jejuar 40 dias e no 41° dia perder a bênção por uma atitude. Satanás vai testar as nossas atitudes e uma atitude errada pode anular todo o jejum de 40 dias.

É recomendável que este trabalho seja lido ao lado de uma Bíblia, para que possa conferir tudo imediatamente e que nenhum aspecto passe despercebido. Nem todas as referências bíblicas foram reproduzidas textualmente, no entanto, todas elas estão citadas no rodapé, seguindo referências numéricas.

Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados, que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo. (Colossenses 2.16-17)

Algumas conclusões podem sinalizar que muitos ensinamentos se apresentam como legítimos e prometem maravilhas, transformações saudáveis e permanentes na vida do fiel, mas se forem confrontados com a Palavra de Deus veremos que podem ser adaptações grosseiras da Lei misturadas com a Graça, que trazem empecilhos para o entendimento e o usufruto da Graça de Deus.

Então, por que agora vocês estão querendo tentar a Deus, pondo sobre os discípulos um jugo que nem nós nem nossos antepassados conseguimos suportar? (Atos 15.10)

MODELOS E SOFISMASÉ preciso cuidado e discernimento para não confundirmos os atos dos

personagens bíblicos com ortodoxia e sã doutrina. Em regra, o texto bíblico não se ocupa em beatificar seus personagens, expurgando a mensagem dos equívocos praticados, dos aspectos culturais e das influências circunstanciais.

Por isso, podem nos convencer algumas condutas e belas mensagens porque elas dizem aquilo que é aprazível, que reforça nossas crenças preexistentes, enquanto a mensagem subjacente mais importante passa despercebida. Vejamos alguns exemplos disso:

DanielA abstinência de Daniel20, conhecida como “jejum de 21 dias”, tem sido

considerada por muitos a maior prova de que o asceticismo é poderoso, especialmente nas chamadas batalhas espirituais.

O jejum, o pano de saco e as cinzas eram elementos da tradição judaica em sinal de tristeza e humilhação. Os capítulos 9 e 10 de Daniel relatam trecho de elevada importância para os últimos dias, que devem ser interpretados ao lado de Apocalipse. Daniel, no capítulo 9, jejuou em ato solene para buscar a face do Senhor, como era costumeiro. No capítulo 10, o relato é de que Daniel pranteou durante três semanas21.

Nesses dias, Daniel não comeu comida saborosa, nem carne, nem vinho, não se penteou, para se dedicar à oração, como era tradicional em situações graves. Alimentar-se adequadamente e cuidar do visual nunca foram incompatíveis com a oração, mas havia uma orientação cultural que influenciava fortemente o povo hebreu nesse sentido. O que dá a entender o texto é que Daniel recebeu uma revelação que o

20 Daniel 9.321 Daniel 10.2

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deixou muito abatido, e por isso a tristeza lhe assombrou por três semanas. Transcorrido esse período, veio-lhe a interpretação da revelação.

Podem-se considerar aqui duas vertentes: a primeira que ele não comeu porque esteve triste (faltou apetite), tendo esse período cessado depois de três semanas; e a segunda que ele não comeu de propósito por 21 dias, mesmo tendo fome, visando à consagração para melhorar sua capacidade de captar Deus. O primeiro entendimento, todavia, é o que se alinha à realidade humana e à Lei, pois não há respaldo na Lei nem nos Profetas para práticas ascéticas para além de um dia, e muito menos para busca de robustez espiritual.

Daniel sabia que a dominação política que Israel sofria era por causa do pecado da nação e, por isso, entregou-se inteiramente a buscar o perdão de Deus, fazendo confissão por representação, função de um sacerdote.

Infelizmente, de maneira estranha, a igreja contemporânea tem preferido acolher a vertente mística do fato, inclusive realizando rituais de 21 dias para o alcance de benefícios espirituais. Erroneamente temos aprendido que Daniel se consagrou naquelas três semanas e em virtude disso lhe sobrevieram as revelações relatadas. Alguns líderes ensinam que se fizermos como Daniel, grandes revelações também nos serão entregues pelo Senhor.

Reproduzir situações relatadas na Bíblia, sem a devida contextualização, com o fim de se obter o mesmo suposto resultado. Surge, então, o jejum de Daniel: “Se você quiser receber grandes revelações de Deus, jejue por 21 dias”.

A história de Daniel mostra que Deus age apesar do asceticismo, e não por causa dele. Deus enviou o anjo com as revelações desde o primeiro dia em que Daniel aplicou o coração a compreender e a se humilhar perante Deus, por isso Daniel registrou que o anjo veio por causa das suas palavras22 (e não por causa do jejum).

Então me disse: Não temas, Daniel, porque, desde o primeiro dia em que aplicaste o teu coração a compreender e a humilhar-te perante o teu Deus, são ouvidas as tuas palavras; e eu vim por causa das tuas palavras. (Daniel 10.12)

EsterA violência com que os inimigos de Israel se manifestam nessa história é

impressionante, porém mais impressionante ainda se revela a providência de Deus, outra vez, em favor dos judeus.

A rainha pede a Mordecai que oriente o povo a não comer por três dias, enquanto ela mesma e suas servas também o fariam, antes de sua apresentação a Assuero23, então rei da Pérsia. A situação era alarmante ao extremo. O destino dos judeus estava traçado. O decreto real forjado por Hamã mandava exterminar o povo de Deus da face da Terra, e não havia possibilidade de ser revogado, como de fato não foi. Ester, sendo também judia (condição que revelaria no momento oportuno), percebeu que não escaparia da sordidez de Hamã e resolveu arriscar tudo. A menos que Deus interferisse, Ester morreria de qualquer jeito, ou pela espada do inimigo ou pela sentença de Assuero, pois ninguém podia entrar na câmara do rei sem permissão.

A devoção da rainha Ester, porém, revelou a sua estima pelo sacrifício ascético, o que era esperado, uma vez que Israel encontrava-se sob ameaça, motivando insegurança, medo e tristeza. Contudo, neste caso em especial, a atitude

22 Daniel 10.1223 Ester 4.16.

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de Ester destoa sensivelmente do que era recomendado pela Lei e pelos Profetas. Em situações como esta, o povo clamava ao Senhor com intensidade, com aflição de alma, na expectativa da direção a ser tomada. Ester, no entanto, já havia determinado o que fazer e pediu, mesmo assim, um sacrifício de três dias, nos seguintes termos: jejuai por mim (ou jejuem em meu favor).Esse modo de se conduzir, envolvendo um período de abstinência alimentar, foi inovador e podemos dizer que foi estranho aos costumes de Israel em alguns aspectos. Não se acha em nenhum lugar na Lei e nos Profetas respaldo para que se jejue por alguém e muito menos com quantidade predeterminada de dias, e, além disso, era incomum jejuar depois de uma decisão já tomada, apenas para que Deus respaldasse a decisão.

O ascetismo no Antigo Testamento era orientado por Deus para aflição da alma e contrição pessoal. Este era um ato, por natureza, particular, e não havia possibilidade de se fazer isso em lugar de outro.

... afligireis as vossas almas, e nenhuma obra fareis, nem o natural nem o estrangeiro que peregrina entre vós. Porque naquele dia se fará expiação por vós, para purificar-vos: e sereis purificados de todos os vossos pecados, perante o Senhor. (Levítico 16.29-30)

A alma que pecar, essa morrerá. (Ezequiel 18.20a)

A mesma ideia está no Novo Testamento: ...cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus. (Romanos 14.12)

Está implícito no texto sagrado que a intenção de Ester foi alterar a atmosfera espiritual de afronta aos judeus e dotá-la de reforço espiritual e proteção contra o rei persa, que por motivo não revelado passou a evitá-la como esposa e parceira sexual, e ela, por sua vez, mesmo sendo rainha, não podia apresentar-se deliberadamente ao rei antes de ser convidada. Mesmo para a rainha, a pena era capital.

Ao que parece, Ester compreendera que quanto mais pessoas estivessem em sacrifício, maiores seriam suas possibilidades de sucesso. Não bastaria apenas orar, clamar, buscar a face do Senhor, ou mesmo consultar um profeta, se houvesse um. Baseando-se no que representava a humilhação com sacrifício da carne naquela altura da história, Ester pediu ao povo que batalhasse por ela ficando sem comer durante três dias.

Ester vivenciava desvio doutrinário sobre como proceder em circunstâncias nas quais se requeria abstinência alimentar. Isso fica claro porque ela propôs a prática em desacordo com o seu propósito original. Esse desvio dos estatutos vigentes é plenamente compreensível. Naquela circunstância, o povo judeu estava sob domínio persa há anos e já não tinha a Lei na mente. Perceba que Moisés havia ordenado aos levitas que a Lei fosse repassada ao povo a cada sete anos, para que não houvesse desvios permanentes, contudo essa leitura já não ocorria há vários anos.

Na situação política em que se encontrava o povo hebreu, a essência da Lei foi se desvanecendo, dando lugar a certas crendices e vícios que corrompiam o sentido da Lei.

E deu-lhes ordem, Moisés, dizendo: Ao fim de cada sete anos, no tempo determinado do ano da remissão, na festa dos tabernáculos, quando todo o Israel vier a comparecer perante o Senhor, teu Deus, no lugar que ele escolher, lerás esta Lei, diante de todo o Israel, aos seus ouvidos. Ajunta o povo, homens, e mulheres, e meninos, e os teus estrangeiros que estão dentro das tuas portas, para que ouçam, e aprendam, e temam ao Senhor, vosso Deus, e tenham cuidado de fazer todas as palavras desta lei; e que os

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seus filhos, que a não souberem, ouçam, e aprendam a temer ao Senhor, vosso Deus, todos os dias que viverdes sobre a terra, à qual ides, passando o Jordão, para a possuir. (Deuteronômio 31.9-13)

Josué venceu as muralhas de Jericó, Elias aniquilou os profetas de Baal e Davi prevaleceu contra Golias sem buscarem poder no asceticismo. Estes são apenas alguns exemplos de ocasiões cruciais na história de Israel em que Deus colocou homens comuns na linha de frente, submetendo-os a desafios extremos. Se o rigor ascético garantisse poder ou se houvesse ao menos previsão na Lei ou nos Profetas para que fosse praticado nestas circunstâncias, esses homens não o teriam negligenciado.

Jesus no desertoJesus nada comeu no deserto por quarenta dias. Esse fato está registrado com

variações nos Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). O quarto Evangelho (João) não menciona o episódio. Vejamos:

Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. E tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome. (Mateus 4.1-2)

E logo o Espírito o impeliu para o deserto. E ali esteve no deserto quarenta dias, tentado por Satanás. E vivia entre as feras, e os anjos o serviam. (Marcos 1.12-13)

E Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e foi levado pelo Espírito ao deserto; e quarenta dias foi tentado pelo diabo, e, naqueles dias, não comeu coisa alguma; e, terminados eles, teve fome. (Lucas 4.1-2)

Mateus foi apóstolo. Marcos foi discípulo de Pedro, e quando tudo aconteceu, era apenas uma criança. Lucas também não foi apóstolo. Mateus e Marcos escreveram para judeus; Lucas para gentios.

Não há como negar que o que escrevemos, dizemos e pensamos é profundamente influenciado pelo que somos e pela percepção do mundo que desenvolvemos. Na verdade, é resultante disso. Isso não muda em relação às Escrituras. A Bíblia foi inspirada por Deus e escrita por homens como quaisquer de nós.

Os evangelhos sinóticos trazem muitos relatos paralelos que nos permitem averiguar e inferir o que de fato aconteceu.

O relato de Mateus é semítico; transmite a ideia de que Jesus foi para o deserto, por influência do Espírito Santo, para uma finalidade: ser tentado pelo diabo. Dá a entender que rejeitou comida intencionalmente, por quarenta dias, com um propósito, porém o texto não diz qual foi. Na sequência, também dá a entender que somente após a sua abstinência alimentar é que o diabo o assediou. Mateus utilizou a palavra jejum.

O relato de Marcos é apressado e econômico, seguindo seu estilo. Diz que Jesus foi impelido pelo Espírito ao deserto, onde esteve por quarenta dias sendo tentado pelo diabo, dando a entender que a tentação ocorreu durante os quarenta dias, e não depois, como informou Mateus. Nada menciona acerca de abstinência alimentar, mas diz que os anjos o serviam. Não utiliza a palavra jejum.

Por fim, o relato de Lucas, que, ao contrário de Marcos, tem afeição aos pormenores, diz que Jesus estava cheio do Espírito Santo ao sair do Jordão, foi impelido pelo Espírito ao deserto, onde foi tentado durante quarenta dias (conforme o registro de Marcos), nos quais nada comeu. Também não utiliza a palavra jejum.

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Não há qualquer texto ou contexto bíblico, interpretado sistematicamente, que conduza à compreensão de que o jejum deva ser praticado por outros motivos que não sejam a tristeza ou o luto; estes eram os requisitos da Lei para o judeu. Portanto, qualquer outra finalidade que qualquer um deseje dar às dietas sacrificiais fora destes requisitos representa nada menos que desvio, e isso inclui qualquer personagem das narrativas bíblicas e cada um de nosso tempo. Cristo Jesus não veio subjugar a Lei, veio cumpri-la.

Assim sendo, com base nesse entendimento é que o conjunto das narrativas de Mateus, Marcos e Lucas deve ser interpretado. Se Jesus necessitava humilhar-se para arrependimento de pecados ou estava tomado de tristeza e luto, então ele jejuou. Caso contrário, admitiremos que o Senhor deformou a Lei, utilizando práticas ascéticas reforçadoras do sistema religioso que depois procurou desacreditar.

Outro ponto importante a ser compreendido é que todo jejum ritual requeria abstinência alimentar, mas nem toda abstinência alimentar indicava um jejum ritual e intencional. Ao que parece, o discernimento semítico de Mateus o levara a entender que toda abstinência alimentar apontava para um jejum ritual, ao contrário dos outros evangelistas, que registram que Jesus nada comeu, mas não associa isso a um jejum. Prova disso é a ocasião em que Jesus despede a multidão que o seguia há três dias sem ter o que comer. Mateus registra que não deveriam despedi-los em jejum24.

Talvez seja a hora de admitirmos que a decisão do Senhor de nada comer no deserto (imposta, ou não, pelas circunstâncias) não tenha verdadeira relação com tudo o que já ouvimos sobre isso. Como não se tratava da necessidade de busca de perdão de pecados, nem de nenhuma festa judaica, nem havia motivo de tristeza e luto, por que o judeu Jesus jejuaria intencionalmente?

Em conjunto com Mateus 9.14-17 e Lucas 5.33-39, poderemos concluir que Jesus não jejuava, o que reforça a conclusão de que o Mestre não praticou asceticismo no deserto. É possível que o Senhor tenha deixado de se alimentar apenas por estar num deserto, onde não há, obviamente, alimentos.

Jesus foi batizado no Rio Jordão e logo em seguida retornou à Galileia. A geografia mostra que havia o deserto no meio do caminho, de forma que atravessá-lo era necessário e inevitável. O contexto nos ensina que o Senhor foi conduzido no deserto pelo Santo Espírito e lá foi tentado pelo diabo.

A narrativa demonstra ainda que a fome do Senhor em nada contribuiu para fortalecê-lo na tentação, como sugerem os ascéticos. Muito pelo contrário, tornou-o mais vulnerável ao Adversário, que tentou fazê-lo cair exatamente porque estava fragilizado. Não fosse sua fraqueza física, o diabo não teria proposto transformar pedra em pão, sugestão que Jesus, numa fração de segundo, poderia ter admitido, como homem, ser uma boa ideia. Felizmente não cedeu.

A intuição de que a abstinência alimentar do Senhor objetivou preparo espiritual ou revestimento de poder não pode estar mais longe da verdade. Ele já os tinha em plenitude. Ou há motivos para duvidar disso?

Os quarenta dias do Senhor no deserto têm também estreita ligação com os quarenta anos que os antepassados judeus peregrinaram no deserto (Deuteronômio 8.3). Jesus mesmo fez essa associação:

Assim, ele os humilhou e os deixou passar fome. Mas depois os sustentou com maná, que nem vocês nem os seus antepassados conheciam, para mostrar-lhes que nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que

24 Mateus 15.32

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procede da boca do Senhor. (NVI)

Esse texto profético revela a situação do homem em relação a Deus no deserto (figura da Lei de Moisés) e a salvação da morte com o envio do maná (Jesus). Deus permitiu que seu povo passasse infortúnios ao submetê-lo à Lei para revelar-lhe, mais tarde, a salvação pela Graça.

Esse versículo mostra que o pão – que é fruto do esforço humano, sua filosofia, sua justiça própria pela observância da Lei – não é capaz de conduzir o homem à vida de Deus. Somente um alimento que procede exclusivamente de YHWH pode infundir essa vida no homem. A Lei de Moisés não foi capaz de transmiti-la; somente Jesus, representado aqui pelo maná, é que tem a prerrogativa. Veja que o texto ligará o maná à palavra que procede da boca de Deus, e o evangelista João, em profusa inspiração, informa-nos que Jesus é a Palavra, que Jesus é Deus e estava com Deus no princípio25. Veja também que o texto não diz que somente de pão se alimentará o homem; o texto diz viverá o homem, ou seja, o único alimento que concede verdadeira vida é o maná Jesus.

O deserto prefigurou o tratamento, a peregrinação do homem em direção a Deus, numa revelação progressiva. O deserto de Jesus representou sobretudo a aventura do homem sob a Lei Mosaica, que apontava para o Messias, para a necessidade de um redentor. Esse redentor é a Palavra, o logos, que procede da boca de Deus, o maná, o Pão Vivo que desceu do céu, o Pão da Vida: Jesus.

Foi isso que o diabo ofereceu a Jesus: a proposta de produzir o próprio alimento, fruto de suas próprias forças, o velho embuste de recorrer à Lei e aos próprios esforços humanos para salvar a si mesmo. Jesus captou pelo Espírito a sagacidade do Adversário e instantaneamente evocou a profecia de Deuteronômio 8.3 para refutar a proposta ardilosa, dizendo que nem a justiça própria nem a Lei produzem a vida de Deus, mas somente o maná, a Palavra que sai da boca de Deus, ele mesmo, Jesus, é que pode realizar essa obra, e que o homem viverá por ele.

Com essa mesma proposta o diabo tem insidiado a Igreja, oferecendo a saída mais fácil, de confiar nos próprios meios e na Lei para receber a vida de Deus. Infelizmente, muitos incautos têm seguido esse caminho.

Casta de demôniosCom base em Mateus 17.14-21, alguns sustentam que o rigor dietético

transmite poder e capacita o crente, especialmente por causa da conclusão apresentada no verso 21.

E, quando chegaram à multidão, aproximou-se-lhe um homem, pondo-se de joelhos diante dele, e dizendo: Senhor, tem misericórdia de meu filho, que é lunático e sofre muito; pois muitas vezes cai no fogo, e muitas vezes na água; e trouxe-o aos teus discípulos; e não puderam curá-lo. E Jesus, respondendo, disse: Ó geração incrédula e perversa! até quando estarei eu convosco, e até quando vos sofrerei? Trazei-mo aqui. E repreendeu Jesus o demônio, que saiu dele, e desde aquela hora o menino sarou. Então os discípulos, aproximando-se de Jesus, em particular, disseram: Por que não pudemos nós expulsá-lo? E Jesus lhes disse: Por causa da vossa pouca fé; porque, em verdade vos digo que, se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá — e há de passar; e nada vos será impossível. [Mas esta casta de demônios não se expulsa senão pela oração e pelo jejum].

Esse episódio mostra os discípulos do Senhor confusos e constrangidos por

25 João 1.1

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não terem conseguido expulsar um demônio (essa tarefa, embora possa se tornar bastante difícil, jamais será mal sucedida se for realizada em nome de Jesus e com fé).

Os discípulos interrogaram Jesus sobre o motivo do insucesso. Em resposta, Jesus aplacou a dúvida apontando como causa a pouca fé deles (ou ausência de fé) e complementou que bastaria ter fé do tamanho de um grão de mostarda para resolver a desordem, e nada lhes seria impossível.

Mateus, judeu publicano, tendo vivido toda a sua vida no Judaísmo, teve outra oportunidade de demonstrar seu apreço pelo jejum nos momentos difíceis da vida, e não deixou de registrar a necessidade da ascese naquele momento. E assim o fez. Os versículos de Mateus 17.21 e Marcos 9.29 são harmônicos com o ambiente semita, o que já não ocorre com o texto correspondente de Lucas.

[Mas esta casta de demônios não se expulsa senão pela oração e pelo jejum]. (Mateus 17.21)

E disse-lhes: Esta casta não pode sair com coisa alguma, a não ser com oração [e jejum]. (Marcos 9.29)

Esta conclusão parte do pressuposto de que os textos acima, ladeados por colchetes, são genuinamente compatíveis com os melhores originais em grego.

Contudo, no estudo da formação do cânon do Novo Testamento, foram levantadas muitas controvérsias sobre as origens desses dois versículos. Determinados editores os incluem entre colchetes, informando essa dúvida. O estudo dos manuscritos Sinaiticus e Vaticanus, datados do ano 350 d.C., nos oferece mais elementos sobre textos não-canônicos.

Em algumas versões de bíblias em grego simplesmente não encontramos o versículo inteiro de Mateus 17.21, e o versículo de Marcos 9.29 finaliza com a palavra “oração”.

Não sabemos se existe algum manuscrito anterior ao Sinaiticus e ao Vaticanus que omite esses trechos. Não sabemos também se estes fragmentos foram incluídos por copistas ou se foram excluídos das versões seguintes.

No esforço de proclamação do Evangelho ao mundo, houve a necessidade de tradução para diversos idiomas e produção em massa de Bíblias. No início isso era feito manualmente por escribas e copistas, que distribuíam sob encomenda seus trabalhos, que por sua vez serviram de material para outros copistas, num ciclo que se repetiu por vários séculos, dando ensejo a versões onde constam esses versículos e outras não. Qual das versões corresponde ao primeiro texto? Não temos como saber com certeza, mas temos como inferir com boa margem de segurança, mediante algumas evidências.

Sabe-se que o evangelho de Lucas é o mais tardio dos sinóticos e utilizou Mateus e Marcos como fonte, contudo Mateus 17.21 não foi reproduzido. O quarto evangelho, João, não cita o fragmento e nem registrou qualquer prática ascética de Jesus.

É inusitado que Lucas tenha omitido a importância do rigor dietético da sua versão do episódio26, e surpreende o fato de João jamais ter ensinado sobre o jejum. Se de fato Jesus praticasse asceticismo ou mesmo lhe desse alguma importância, João teria eternizado o ensino ou pelo menos retratado algum momento, o que não ocorreu.

26 Lucas 9.37 Em diante

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Esta parece uma indução sem base, mas não é. Quando narramos qualquer fato, tendemos a incluir todos os detalhes que nos parecem relevantes e excluir o que é sabido de todos, o óbvio, mas por causa do que lemos em Mateus 9.14-17, a prática do jejum por Jesus e seus discípulos não era óbvia.

Não há real problema em aceitar um ensino bíblico a partir de um ou dois versículos se esse ensino guarda harmonia com o conjunto geral das Escrituras. Mas não é esse o caso de Mateus 17.21 e Marcos 9.29. Como dito, em toda a Escritura não há amparo seguro para afirmarmos que o asceticismo possa servir de preparação contra Satanás.

Kenneth Hagin, em seu livro “Guia para o jejum equilibrado” (1999), admite que o ascetismo não muda Deus, nem a situação, e nem serve para fortalecimento espiritual, porém ensina que Jesus possa ter dito as palavras de Mateus 17.21, com a ressalva de que ele o fizera por ainda não ter morrido e sido glorificado, e que, portanto, ainda havia a necessidade do rigor dietético para revestimento de poder aos discípulos. Essa tentativa do pastor Hagin, de explicar a insólita conclusão de Jesus (se é que ele a fez de fato), apenas reforça o estranho impacto que a afirmação transmite. E era de se esperar; essas últimas palavras de Mateus 17.21 não têm nada a ver com o conceito de aflição de alma veterotestamentário e não se coadunam com o elevado conceito de relacionamento que Jesus procurou desfraldar.

Jesus jamais poderia ter sugerido que os discípulos deviam abster-se de alimentos para obterem poder. Esta seria uma inovação destoante de todo o Antigo Testamento.

Havendo riscado a cédula que era contra nós, nas suas ordenanças, a qual de alguma maneira nos era contrária, e a tirou do meio de nós, cravando-a na cruz. (...) Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados, que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo. (Colossenses 2.14-17)

Levando isso em conta, resta-nos concluir que a razão do insucesso dos discípulos nesse lance foi a falta de fé e não a falta de rigor dietético. Toda a explanação de Jesus pautou-se na ausência de fé dos seus discípulos.

Se o asceticismo era mesmo importante no confronto com demônios, e este confronto poderia ocorrer a qualquer momento, os discípulos deveriam estar constantemente preparados para que não ocorresse aquele fiasco. Porém, alguns dias antes, Jesus desculpou seus discípulos quanto a isso, exigindo liberdade para assuntos que a Lei de Moisés não prescrevia. Os discípulos do Mestre comiam e bebiam ao mesmo tempo em que o sistema religioso orientava a observância de regras tradicionalistas.

... Por que jejuamos nós e os fariseus, muitas vezes, e os teus discípulos não jejuam?... (Mateus 9.14)

Portanto, posta a análise de todos esses aspectos, conclui-se que é um desatino atribuir a Jesus a última explicação27. Não há como afirmar categoricamente que o trecho de Mateus 17.21 seja um acréscimo de algum copista, que se perpetuou; não há como provar isso objetivamente. O texto está lá, em certas versões, e se de fato corresponde ao que narra, é plausível que não tenham sido proferidas por Jesus. Não poderia o Senhor liberar seus discípulos para comerem e beberem enquanto estivesse com eles e em seguida dar-lhes uma reprimenda em função do despreparo

27 Mateus 17.21

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pela negligência com jejuns. Não é consistente que Jesus tenha, em todo o tempo, atribuído o problema à ausência de fé dos discípulos e no momento seguinte embaraçar-se. Jesus, após ter dito que nada vos será impossível; se tu podes crer, tudo é possível ao que crê, não poderia concluir de forma tão contraditória: Ah! Quase me esqueço de alertá-los. Esta casta de demônios é especial e não pode sair com coisa alguma, a não ser com oração e sacrifício da carne. Somente a fé não lhes será suficiente.

O Sermão do MonteOutro texto bastante utilizado para a defesa do asceticismo é o que se encontra

em Mateus 6.16-18.

Quanto jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas (...) e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.

O capítulo 6 de Mateus trata, entre outras coisas, das três principais práticas da piedade judaica de então: a ajuda aos necessitados, a oração e o jejum. Nessa seção se estabelece um contraste entre fazer os atos piedosos para serem vistos pelos outros e fazê-los para que somente Deus os veja.

Jesus procurou corrigir a visão com advertências de como esmolar, orar e jejuar. Os religiosos de então realizavam essas obrigações de forma que pudessem ficar em evidência e serem louvados pelos outros.

Alguns acreditam que Jesus, por intermédio dessas instruções, encorajou a austeridade dietética, pois disse “quando jejuardes”, apontando para um momento futuro no qual considerou certa a necessidade de não comer para alguma finalidade especial.

Jesus nunca intencionou extinguir o tradicionalismo judaico de forma brusca e insensível. Ele sabia que isso não é possível em tão pouco tempo.

Ele espera de nós mudança de hábitos – sobretudo aqueles que nos afastam da Graça – mas não de forma truculenta e superficial. As mudanças que Jesus nos pede, ele mesmo nos capacita a produzir e sempre objetivam nos aproximar dele, para um estreito relacionamento. Quando o Senhor denunciou desvios, normalmente o fez por meio de parábolas, utilizando exemplos do cotidiano, conduzindo os seus ouvintes à reflexão e ao confronto consigo mesmos.

As práticas ascéticas não precisariam ser imediatamente afastadas, mas corrigidas e gradativamente substituídas por uma consciência de entrega do ser em espírito e em verdade. O asceticismo, quando e se praticado, deveria ser reacomodado aos requisitos originalmente estabelecidos, a saber, nas datas apropriadas de algumas festas e dias de luto. Os judeus estavam fazendo a coisa certa por motivos errados e da forma errada. Jesus completou sua orientação com a promessa de que Deus recompensaria os que observassem a prática sem motivação exibicionista, em demonstração de falsa santidade e temor a Deus. É incongruente que o Senhor, nesta passagem, tenha encorajado o que temos visto estarrecidos em nossos dias: deixar de comer para busca de poder, resposta de oração, preparo espiritual, quebra de maldições, confronto com demônios e outros fins.

Em Mateus 6.16-18, Jesus objetivou resgatar a motivação original e despretensiosa da aflição da alma, que naquele momento continuava a ser negligenciada, apesar da dureza com que Deus advertira a respeito, pela boca de Isaías e Zacarias.

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Os discípulos de JesusAbaixo segue transcrito um trecho da Enciclopédia da Vida de Jesus28 (2ª

Edição – p. 459/462), organizada por Louis-Claude Fillion, um judeu-francês pertencente a uma família ilustre que se rendeu a Cristo no Século XIX.

Fillion, com maestria, por ter sido judeu e profundo conhecedor das Escrituras e do Cristianismo, tem muito a nos ajudar com sua abordagem bidimensional, pois pondera tanto pelo Judaísmo quanto pelo novo e vivo caminho em Cristo Jesus. Esse pesquisador formulou a seguinte pergunta a si mesmo: Por que Jesus e seus discípulos não jejuavam? E encontrou a seguinte resposta:

Naquela época, estavam em Cafarnaum alguns discípulos de João Batista que, imitando a austeridade da vida de seu mestre, dedicavam-se a frequentes jejuns e faziam, em horários predeterminados, longas orações. Os fariseus e geralmente os israelitas piedosos também jejuavam frequentemente, conforme nos dizem os Evangelhos (Mateus 6.16-17; Lucas 2.37; 18.12) e o Talmude. Normalmente, faziam isso às segundas e quintas-feiras, porque, de acordo com a tradição, Moisés havia subido ao monte Sinai numa quinta-feira e descido na segunda.Mesmo que a legislação mosaica não prescrevesse aos judeus mais que um só dia de jejum a cada ano, na festa do Yom Kippur, ou Dia da Expiação (em setembro ou outubro, conforme Levítico 16.29-31; 23.27-32; Números 29.7; Atos 7.9), aquela prática de consagração era tão natural que, por si mesma, era recomendada como boa obra às almas piedosas. Por isso, é várias vezes mencionada no Antigo Testamento e no Novo Testamento (Isaías 31.3; II Samuel 2.16; Daniel 10.3; João 1.14; 2.12,15). Os membros da primeira igreja ainda destinavam lugar importante ao asceticismo.O dia em que Levi preparou aquele célebre jantar coincidiu com um jejum de devoção dos discípulos de João Batista e dos fariseus. Isso destacava ainda mais a diferença entre eles, e a ocasião era propícia para todo o tipo de crítica.Os discípulos de João Batista, aproximando-se por sua vez do Salvador, perguntaram-lhe: Por que jejuamos nós, e os fariseus, muitas vezes, e os teus discípulos não jejuam? (Mateus 9.14). Teria esta pergunta sido sugerida pela malevolência dos escribas e dos fariseus, cujo objetivo era colocar Jesus em aperto? Não é improvável, devido ao fato de que os discípulos de João Batista já haviam sido movidos por sentimentos de inveja (João 3.26). A companhia dos fariseus pode ter confirmado esta suposição.Interrogado deste modo, Jesus ficava responsabilizado pela conduta dos seus discípulos. Então, ele respondeu, com uma linguagem bem familiar aos discípulos de João e usando um argumento bem simples: Podem, porventura, andar tristes os filhos das bodas, enquanto o esposo está com eles? Dias, porém, virão em que lhes será tirado o esposo, e então jejuarão (Mateus 9.15).Esta primeira parte da resposta do Mestre já esclarece toda a questão. A imagem, tanto expressiva quanto graciosa que ele tomou das cerimônias nupciais dos judeus, era tanto mais eficaz quanto pouco antes o próprio João Batista havia empregado na presença de vários de seus próprios discípulos, representando o Messias como místico Esposo que havia descido do céu para celebrar suas bodas com a sua Noiva (João 3.29-31).Os amigos do esposo, naturalmente, eram os discípulos de Jesus, pois a principal missão deles era conduzir as almas puras e santas, que formariam a sua Igreja, sua esposa celestial, até o Salvador (II Coríntios 11.2). Portanto, aquele era o tempo das bodas e, consequentemente, tempo de festa e de alegria. O jejum, ao contrário, era uma manifestação de tristeza e de dor. Não seria, pois, uma estranha atitude condenar ao jejum os convidados às bodas enquanto duravam as solenidades nupciais?Seria, pois, uma contradição extrema, porque não havia motivos para impor jejuns de devoção aos discípulos de Jesus enquanto ele, o esposo divino, estava entre eles. Mas, conforme prosseguiu o divino Mestre, não tardaria o dia em que o Noivo seria tirado violentamente do meio de seus amigos. Foi aí que Jesus enfatizou: Então, jejuarão.Algo importante a ser observado: Jesus associou a alegria às bodas, à sua presença; e o jejum, à sua paixão e morte – tinha constantemente de abrir os olhos dos discípulos em relação à sua hora. Porém, o argumento de Jesus foi ainda mais admirável pelo fato de ele não censurar os jejuns dos fariseus nem os dos discípulos de João Batista, mas simplesmente exigir liberdade para seus discípulos em assuntos que a Lei de Moisés não prescrevia. Para

28 Considerada a mais completa publicação do mundo com informações sobre JESUS e seu ministério.

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fortalecer sua tese, Jesus acrescentou novas considerações, não menos atrativas, apresentadas, em forma de breves parábolas, que na verdade são verdadeiros princípios.

Há estudiosos que rejeitam o fato de que Jesus esteja permanentemente dirigindo, inspirando e consolando a Igreja. Isto porque esta tarefa é destinada ao Espírito Santo e Jesus está à direita do Pai, intercedendo por nós como advogado (do grego parakleto)29. Mas sustentar essa tese é desconstruir a Trindade, é negar a coexistência em uma só substância do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Vejo os céus abertos e o Filho do homem em pé, à direita de Deus. (Atos 7.56)

Jesus está à direita do Pai, mas também está entre nós. Os teólogos mais conservadores consideram que o termo “noivo” não pode ser associado a Jesus em qualquer circunstância. O argumento é de que Jesus somente será o noivo quando vier nas nuvens arrebatar a noiva. Antes de isso acontecer, Jesus funcionará como parakleto, estando em pé ao lado do Pai, intercedendo por nós.

Mas virão dias quando o noivo lhes será tirado... (Lucas 5.35)

A compreensão da triunidade de Deus sempre foi um desafio. A mente humana parece não ter sido dotada de tamanha capacidade. Trindade é uma palavra que não se encontra na Bíblia. É um conceito teológico criado para explicar o que não se pode fazer de forma realmente adequada, pois excede a capacidade de qualquer ser humano, limitados que somos, ante ao Deus Eterno. A Bíblia ensina que o Pai é Deus, que Jesus é Deus e que o Espírito Santo é Deus. A Bíblia também ensina que há um só Deus. Portanto, são três pessoas distintas em uma só. Mesmo podendo compreender alguns fatos sobre a relação das diferentes pessoas da Trindade umas com as outras, a Trindade, como foi concebida teologicamente, é limitada.

Portanto, é perfeitamente admissível que Jesus, sendo também Deus Onipresente, esteja no nosso meio, seja qual for a designação mística que a ele possamos atribuir, seja Advogado, Noivo, Intercessor, Consolador, Maravilhoso Conselheiro, Deus Poderoso, Pai Eterno ou Príncipe da Paz.

Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, e o governo está sobre os seus ombros. E ele será chamado Maravilhoso Conselheiro, Deus Podero-so, Pai Eterno, Príncipe da Paz. (Isaías 9.6)

A compreensão das três pessoas da Trindade Divina não deve ocorrer de forma a separá-las, mas uni-las. Alguns nesse caminho quase dão ensejo à existência de três deuses, dada a forte ênfase em três pessoas distintas. Há coisas que são difíceis de entender, como já nos advertiu o apóstolo Pedro30, todavia não parece equivocado admitirmos que onde um está os outros dois também estão.

Jesus afirmou que o luto não era para os convidados às núpcias. Na ilustração do Mestre, ele mesmo era o noivo, e enquanto estivesse presente não haveria necessidade de luto. Na sua ausência sim, seria esperado que os seus discípulos manifestassem profunda tristeza, com jejuns (na cosmovisão judaica), e dessa forma Jesus anunciava sua iminente morte.

Na sequência, Jesus voltou ressurreto, ascendeu aos céus e recebemos o

29 Marcos 16.19; Atos 2.33, 7.56; Hebreus 10.12 e I Pedro 3.2230 II Pedro 3.16

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Espírito Santo. O luto termina, a alegria retorna e o asceticismo para os messiânicos perde o sentido.

Fillion finalmente conclui, dizendo que:

Jesus não tinha restrição alguma em tomar emprestado, para suas comparações, os mais humildes usos da vida doméstica para expressar com eles verdades muito elevadas. Desta vez, ele justificou o procedimento dos seus discípulos com os argumentos retirados do dia a dia daqueles que o ouviam.

Ninguém deita remendo de pano novo em vestido velho, porque semelhante remendo rompe o vestido, e faz-se maior a rotura. Nem se deita vinho novo em odres velhos; aliás, rompem-se os odres e entorna-se o vinho, e os odres estragam-se; mas deita-se vinho novo em odres novos, e assim ambos se conservam. (Mateus 9.16-17)

Que mulher sensata colocaria um remendo de pano novo em uma roupa velha, ou que homem cuidadoso de seus interesses encheria de vinho novo, que ainda está fermentando, em alguns odres velhos, cujo couro, enfraquecido pelo uso, seria incapaz de resistir a um trabalho de fermentação?No oriente bíblico, vale a pena observar aqui, eram utilizados como recipientes de água, de vinho, de azeite e de outros líquidos, odres de pele de animais, com dimensões variadas. Os odres apareceram frequentemente representados nos mais diversos monumentos encontrados nas descobertas arqueológicas.Tanto no sentido próprio como no sentido figurado, não resulta em boa harmonia pano velho com pano novo, odres velhos com vinho novo. São coisas antagônicas. Não seria sábio uni-los intimamente. Igualmente, um novo espírito requer ou exige formas novas. O espírito cristão, principalmente, não pode ser embaraçado em sua forma de expressão, que é grandíssima, pelas barreiras velhas criadas pelo Judaísmo. Assim, teria sido desastroso para o Judaísmo envelhecido tentar rejuvenescer costurando aqui e ali remendos de tecido novo, cortados da religião trazida por Jesus. De igual modo, teria sido também desastroso, para o Cristianismo, tentar confiná-lo, mesmo que temporariamente, nas antiquadas formas da Lei mosaica.Que os fariseus e os discípulos de João Batista se entregassem aos seus jejuns frequentemente, se isso os contentava. Os discípulos de Cristo se ocupariam de obras melhores; seu Mestre se resguardaria de enxertar o galho de sua Igreja no tronco meio apodrecido do Judaísmo dos escribas, cuja situação já era impossível de ser restabelecida.Os vestidos gastos e os odres velhos representam muito bem a teocracia do Antigo Testamento e, em particular, aquele conjunto de tradições de austeras práticas que quiseram impor ao nosso Senhor Jesus Cristo e aos seus discípulos. Da mesma forma, o tecido novo e o vinho novo são figuras muito expressivas do espírito novo, generoso, que o Evangelho estava trazendo ao mundo. Uma mistura de duas religiões e de dois espíritos teria produzido lamentáveis e extremas consequências.Após a partida de Jesus para o céu, foram vistas diversas tentativas de o Judaísmo estabelecer um freio, um policiamento, à conduta do Cristianismo. Os judaizantes criaram na Igreja primitiva uma perigosa conduta, a pretexto de recompor a religião do Sinai, aplicando ao Cristianismo pedaços de tecidos velhos do Judaísmo. Mas não ficou muito bem, e foi rejeitado.A terceira comparação, que diz que ninguém, ao beber vinho velho, quer em seguida beber vinho novo, expressa a mesma verdade. Da mesma maneira, a pessoa que, desde a infância, está acostumada a um sistema religioso, dificilmente se habitua a um novo sistema, e muito menos se deixa moldar por uma nova religião. O vinho velho simboliza o Judaísmo, e o vinho novo, o Cristianismo. E, aqui, poderíamos até supor que Jesus estaria desculpando bondosamente o procedimento de seus adversários, dando-lhes tempo para se acostumarem ao vinho novo do Evangelho. Como quer que seja, a analogia de Jesus era extraordinária!

PRÁTICAS ASCÉTICAS COMO FONTE DE PODERHá farta literatura (não teológica) que procura encorajar os sacrifícios da carne

com promessas de dividendos espirituais. Diversos textos, opiniões e experiências pessoais procuram provar que Deus aprecia o ascetismo e o recompensa. Ávidas por soluções e respostas rápidas para seus anseios e na busca por experiências mais significativas com Deus, as pessoas são convencidas por líderes de retórica simples,

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mas persuasiva, de que o caminho do asceticismo é realmente eficaz.A abordagem é diversificada, e isso ocorre por falta de diretriz bíblica clara para

o assunto. Porém, quando precisamos tomar um caminho e a Bíblia não nos apresenta direção clara, é necessário estudo profícuo em busca das respostas.

O senso popular ensina o asceticismo de várias formas e graus: à base de líquidos, o completo, dieta de legumes, a pão e água e outros. Cada um orientado para uma finalidade, como um remédio que deve ser administrado conforme a doença. Se a questão é grave, aconselha-se uma disciplina mais austera, com a exclusão total de alimentos. Se o assunto é simples, basta uma abstinência moderada, de um dia; neste caso, talvez baste suprimir o café da manhã. Porém, um exame mais acurado do Texto Bíblico não deixa de pé qualquer dessas hipóteses.

Algumas pessoas fizeram uso desses recursos por anos a fio, e depois de uma odisseia não viram a solução de seus casos e foram acometidos com gastrite.

No livro “O poder secreto do jejum e da oração” (Mahesh Chavda, 2002), a partir da experiência pessoal do autor, o asceticismo é uma clava de dinamite carregada de poder espiritual.

Mahesh Chavda propõe uma questão intrigante: Como o jejum de fato funciona? Ele mesmo responde: “Eu não conheço todas as respostas porque este é, sem dúvida, um dos maiores mistérios de Deus, mas creio que posso compartilhar o que tenho aprendido com o Senhor”. Na sequência, relata vários fatos inusitados, todos atribuídos à eficácia da frugalidade alimentar, “um dos maiores mistérios de Deus”, segundo o autor.

Essa visão é acompanhada por líderes religiosos das mais diversas doutrinas. Sem fundamento bíblico responsável, não se pode legitimar o asceticismo como fonte de poder porque lhe sobrevieram eventos supostamente sobrenaturais. Se maravilhas acontecem depois de ginásticas espirituais (e nem sempre acontecem), não necessariamente ocorrem em função dessa disciplina. Devemos ser tardios em atribuir poderes e virtudes a iniciativas humanas e ritos. Quando ocorrem fatos extraordinários da parte de Deus, devem ser atribuídos à fé, apesar de nós, e não por causa de nossas virtudes.

Pessoas que têm apreço pelo asceticismo, especialmente o jejum, e são mais diligentes, ensinam que deve haver cuidados com a saúde. O jejum para o diabético, por exemplo, pode causar desmaios e até a morte, mesmo que seja compensado por outra refeição, pois o uso da insulina ao lado do jejum pode diminuir os níveis de açúcar no sangue a níveis perigosos, submetendo o doente a risco de morte. Se isso é um fato, ficamos mais uma vez em certa dificuldade para assimilar que Deus atribua valor ao asceticismo, sobretudo para o domínio da carne e contra demônios.

Esse ensino é uma grande contradição. Quem ensina que o jejum é eficaz nega-o imediatamente ao afirmar que há quem não deva jejuar. Ora, se o jejum de fato pode trazer algum aperfeiçoamento espiritual, os diabéticos, por exemplo, estarão sempre deficitários, em face da própria saúde, posto que são impedidos da prática desse “importante recurso espiritual”. Então, oxalá Deus cure todos os diabéticos para que possam realizar tão extraordinária disciplina ou que, pelo menos, não sejam eles privados da vida de Deus por inanição espiritual!

O ASCETISMO E OS GENTIOSA compreensão da diferença entre povo judeu de nascimento e não-judeu, na

história, é fundamental para percebermos a providência de Deus no tempo.

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Antes do exílio na Babilônia, em 586 a.C, o nascido em Judá era um judaíta. Após o exílio, os então judaítas se dispersaram por toda aquela região. Havia judaítas por toda parte. É nesse contexto que, historicamente, passou-se a chamar de judeus os partidários do Judaísmo, pois não havia mais a figura exata do nascido em Judá. Como o nascido em Israel era sempre iniciado no Judaísmo, essas naturezas se fundem. Por isso Paulo se ocupa em explicar a natureza de um verdadeiro judeu, desassociando-o inteiramente do local de seu nascimento.

Não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é meramente exterior e física. Não! Judeu é quem o é interiormente, e circuncisão é a operada no coração...(Romanos 2.28-29 NVI)

Jesus disse que no seu nome esperarão os gentios31. Se você não é judeu – adepto do Judaísmo – então é gentio. Em Atos, capítulo 15, lemos que houve sérias controvérsias entre judeus e gentios quanto às práticas judaicas, que os apóstolos estavam forçando aos gentios. Finalmente, depois de sérias discussões, decidiu-se que não era correto obrigar os gentios a praticarem o que era próprio do Judaísmo (exigível dos judeus). Como únicas exceções, recomendaram aos gentios que se abstivessem das coisas sacrificadas aos ídolos, do sangue, da carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas. Estas recomendações foram consideradas genuinamente “extrarreligiosas”. Além de apontarem para aspectos de higiene e boa conduta moral básicas, foram postas para que não houvesse dificuldades no convívio entre gentios e judeus, já que os gentios passaram a frequentar os templos onde Moisés era lido.

Após essa decisão, foi estabelecida a separação entre valores judeus (culturais e transitórios) e valores de Deus (eternos e imutáveis). Por deliberação dos apóstolos, os gentios não precisariam seguir os preceitos do Judaísmo. Nem mesmo o judeu seguidor de Jesus (judeu messiânico) estaria ainda sujeito a essas leis, conforme João 1.17 e Romanos 6.14.

Nesse contexto, de fato Jesus nunca proibiu explicitamente a aflição da alma com jejuns. Contudo, há evidências de que Jesus procurou desencorajar essas práticas, apontando um caminho melhor, de forma que não há na Bíblia orientação dirigida à Igreja para o asceticismo.

Deus prometeu a Abraão: Em ti serão benditas todas as nações da terra (Gênesis 26.4), e Joel profetizou: derramarei do meu espírito sobre todos os povos (Joel 2.28). Portanto, era plano de Deus formar o Corpo de Cristo com filhos eleitos do mundo inteiro. Isso equivale dizer que o Evangelho destinado aos gentios é o mesmo Evangelho de Jesus Cristo, mas a sua expressão torna-se diferenciada, sua abordagem é sensivelmente contrastada. Surge então o Evangelho da incircuncisão, confiado ao apóstolo Paulo, homem escolhido por Deus para o ministério junto aos gentios. Não há dois Evangelhos. A referência aos Evangelhos da circuncisão e da incircuncisão é apenas para demonstrar que houve a designação de dois ministérios distintos, um junto aos judeus e outro, aos gentios; o primeiro confiado a Pedro, o segundo, a Paulo.

Antes, pelo contrário, quando viram que o Evangelho da incircuncisão me estava confiado, como a Pedro o da circuncisão (Porque aquele que operou eficazmente em Pedro, para o apostolado da circuncisão, esse operou, também, em mim, com eficácia, para com os gentios). (Gálatas 2.7-8)

31 Mateus 12.21

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A mim, o mínimo de todos os santos, me foi dada esta Graça, de anunciar entre os gentios, por meio do Evangelho, as riquezas incompreensíveis de Cristo. (Efésios 3.8)

Portanto, cometemos equívoco quando aplicamos, de forma descontextualizada, preceitos da Lei Mosaica e o tradicionalismo judaico à Igreja do Senhor Jesus, presente em toda a face da terra, onde não há judeu, nem grego, nem brasileiro, nem francês, nem árabe; onde não há ênfase em qualquer nação ou cultura em especial.

O LEGALISMOLegalismo é tentar controlar a conduta pela adesão estrita a um conjunto de

regras que enfatizam a letra, e não o espírito das regras, acompanhada pela condenação moral daqueles que escolhem não seguir essas regras.

Também pode ser identificado quando criamos um padrão de comportamentos exteriores e criamos indicadores para medir se alguém é ou não é bom ou espiritual.

É muito fácil os líderes da igreja induzirem as pessoas a sentir culpa falsa em áreas que Deus nunca indicou como pecado. O legalismo é a raiz do ativismo, do perfeccionismo, do estresse e da depressão. O legalista não entende nem experimenta a Graça de Deus. Para ele, a Graça é apenas uma teoria abstrata. A doutrina pela qual o legalista rege a vida é a de tentar demonstrar, o tempo todo, que é bom e aceitável, que nada é de graça e que tudo tem um preço. O livro “O poder curador da Graça”, de David Seamands, trata profundamente disso.

Algumas pessoas consideram as dietas frugais como o principal sinal de humildade, associando-as a II Crônicas 7.14, que diz: Se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar e orar, buscar a minha face e se afastar dos seus maus caminhos, dos céus o ouvirei, perdoarei o seu pecado e curarei a sua terra. Para algumas pessoas, a humilhação está condicionada ao sacrifício voluntário, embora o texto bíblico acima não faça menção a isso.

O legalista acredita que suas conquistas espirituais vêm por esforço próprio. Proclamar que está jejuando é procurar o louvor e o reconhecimento dos homens; é a ponta do iceberg de um ego inchado pelo orgulho. Nos púlpitos, nas rádios e na TV não é difícil ouvirmos obreiros que fazem questão de dizer que estão se sacrificando, e que o fazem sempre, e por isso Deus consegue fazer alguma coisa. Tudo isso evidencia a predisposição do homem em querer sobressair a partir de sua própria justiça. No fundo, a mensagem que fica é que Deus não poderia fazer nada se não fosse o “meu sacrifício”.

Perceba o engano do orgulho trabalhando em um homem que confia em si mesmo.

E disse, também, esta parábola, a uns que confiavam em si mesmos, crendo que eram justos, e desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo, a orar; um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo, desta maneira: Ó Deus, graças te dou, porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo quanto possuo. O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque, qualquer que a si mesmo se exalta, será humilhado, e, qualquer que a si mesmo se humilha, será exaltado. (Lucas 18.9-14)

JUDAIZANTES

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A identidade com Israel tem feito com que a Igreja contemporânea venha silenciosamente incorporando ritos, crenças e costumes provenientes do Judaísmo. Este fenômeno iniciou-se no Brasil há cerca de trinta anos e intensificou-se a partir de ministérios chamados profético-apostólicos, que entendem ter recebido de Deus a missão de trazer a Igreja de volta às suas bases bíblicas e ajudar a estabelecer o Reino de Deus na Terra, com foco em Amós 9.11.

Dessa forma, está instalado hoje um movimento judaizante que tenta reavivar símbolos e festas do Antigo Testamento, interpretando aquela parte da Bíblia como se não houvesse princípios de distinção quanto ao contexto, destinatários e objetivo de cada seção bíblica. Isso explica o uso cada vez mais frequente, na Igreja, de votos, especialmente o do Nazireado e o de raspar a cabeça. Não há fundamento neotestamentário a respaldar sua aplicabilidade hoje, principalmente entre gentios.

As práticas de autonegação com rigor dietético não apareceram com os judaizantes, mas o que já vinha sendo praticado de forma degenerada está sendo realçado. Esses novos ministérios têm tentado reavivar elementos que só faziam sentido no vencido sistema judaico, para incorporação à Igreja. A mensagem dessa nova visão ministerial gira em torno de temas como restauração, restituição, sacrifício, prosperidade e conquista. Nesse caminho, o emprego da subjugação da carne como arma militar contra o alto escalão de principados e potestades tem lugar certo. Para esse segmento, sem o asceticismo não há como prosperar.

É oportuno lembrar que a Igreja nasceu do Judaísmo e distanciou-se de Jerusalém ao longo da história, aproximando-se de Roma32, deixando os primórdios do Evangelho e a doutrina dos apóstolos. As primeiras lideranças ministeriais da Igreja eram de judeus. O Cristianismo passou a ser assim chamado porque os judeus não receberam a Jesus Cristo. Caso contrário, o Judaísmo continuaria sua linha pós-messias apregoando a mensagem salvadora do kerigma33.

Portanto, podemos admitir que o Cristianismo seja uma dissidência do Judaísmo. Mas o que vemos hoje em algumas congregações tem sido difícil sustentar com fundamentos bíblicos. O Evangelho tendo alcançado os gentios tornou a Igreja universalizada, predominantemente gentílica, tornando os elementos inerentes ao Judaísmo sem valor prático e espiritual fora dele. Assim é que já nos tempos retratados em Atos capítulo 15, houve necessidade de estabelecimento de limites às regras que deveriam ser dispostas aos gentios, ocasião em que todo o arcabouço cultural e religioso judaico foi afastado. Uma vez que os crentes primitivos tiveram essa clareza e discernimento – pelo Santo Espírito – ficamos em sérias dificuldades para compreender o porquê de essas práticas estarem sendo novamente encorajadas.

Na maioria dos casos, as comunidades cristãs evangélicas que abrigam esses desvios são as mesmas que relegaram a segundo plano o estudo sistemático da Bíblia. A facilidade com que pastores são ordenados ao ministério é preocupante. Esses homens, embora possam ser verdadeiros seguidores de Jesus e notoriamente usados por Deus, nem sempre são provados no conhecimento da Palavra e logo são postos à frente de pessoas para ensinar e aconselhar. Talvez seja este o verdadeiro motivo da multiplicação de superstições no meio evangélico, com ênfase no asceticismo, nos costumes judaicos e na atribuição de poder a ritos e objetos.

32 Em função da suposta conversão ao Cristianismo do imperador romano Flavius Valerius Constantinus, conhecido como Constantino I, no ano 325.33 Nas Escrituras, a soma de todas as verdades se chama kerigma, em grego. O kerigma é a proclamação da verdade, que revela a pessoa e a obra de CRISTO.

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Porque, tendo a Lei a sombra dos bens futuros e não a imagem exata das coisas... (Hebreus 10.1)

Logo após a ascensão de Jesus, a Igreja começou a sofrer fortes pressões dos recém-chegados do Judaísmo, que começaram a impor condições aos gentios para serem aceitos na Igreja, determinando que se circuncidassem. Paulo combateu esse deslize, defendendo que a fé em Cristo é que proporciona o relacionamento com Deus na nova dispensação, conforme Gálatas 5.1-11.

Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a meter-vos debaixo do jugo da servidão. Eis que eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará. E de novo protesto a todo o homem, que se deixa circuncidar, que está obrigado a guardar toda a Lei. Separados estais de Cristo, vós os que vos justificais pela lei; da Graça tendes caído. Porque nós, pelo espírito da fé, aguardamos a esperança da justiça. Porque, em Jesus Cristo, nem a circuncisão nem a incircuncisão têm virtude alguma; mas, sim, a fé que opera por amor. Corríeis bem; quem vos impediu, para que não obedeçais à verdade? Esta persuasão não vem daquele que vos chamou. Um pouco de fermento leveda toda a massa. Confio de vós, no Senhor, que nenhuma outra coisa sentireis; mas, aquele que vos inquieta, seja ele quem for, sofrerá a condenação. Eu, porém, irmãos, se prego ainda a circuncisão, por que sou, pois, perseguido? Logo, o escândalo da cruz está aniquilado.

Sendo universal e livre em Cristo, a Igreja quer se aproximar do Judaísmo e se meter novamente debaixo de jugo de servidão, retornando ao um degenerado sistema de obrigações religiosas.

VINHO NOVO REQUER ODRES NOVOS

Disseram-lhe então eles: Por que jejuam os discípulos de João muitas vezes, e fazem orações, como, também, os dos fariseus, mas os teus comem e bebem? E ele lhes disse: Podeis vós fazer jejuar os filhos das bodas, enquanto o esposo está com eles? Dias virão, porém, em que o esposo lhes será tirado, e, então, naqueles dias, jejuarão. E disse-lhes, também, uma parábola: Ninguém tira um pedaço dum vestido novo para cosê-lo em vestido velho, pois que romperá o novo e o remendo não condiz com o velho. E ninguém deita vinho novo em odres velhos; de outra sorte, o vinho novo romperá os odres, e entornar-se-á o vinho, e os odres se estragarão; mas o vinho novo deve deitar-se em odres novos, e ambos, juntamente, se conservarão. E ninguém, tendo bebido o velho, quer logo o novo, porque diz: Melhor é o velho. (Lucas 5.33-39)

Os fariseus e os seguidores de João Batista observavam atentamente os discípulos de Jesus. Assim como hoje, os religiosos de plantão, colecionadores de justiça própria, estão sempre à espreita, para de alguma forma censurar a liberdade daqueles que foram alcançados pela Graça do Pai. Os religiosos se acham mais merecedores de bênçãos, se revoltam contra os infortúnios da vida porque não merecem o sofrimento, pois são mais cumpridores da Lei, mais piedosos, já que seguem fielmente as regras, para se manterem acima dos que não as observam.

Os discípulos de Jesus preferiram seguir o Cordeiro para além das normas impostas pela tradição e pela cultura. Os fariseus e os discípulos de João provavelmente não compreenderam a boa notícia que o Senhor anunciava.

Se os discípulos de Jesus não jejuavam, podemos inferir que Jesus não jejuava. Se Jesus jejuasse, seus discípulos também o fariam.

... na realidade não havia justificativa para essa indagação. Fossem esses homens melhores estudantes das Escrituras, e teriam conhecido a) que o único jejum que, por algum esforço da imaginação, podia-se derivar da lei de Deus era aquele vinculado ao dia da expiação (Lv 23.27), e b) que segundo o ensino de Isaías 58.6-7 e Zacarias 7.1-10, o que Deus exigia não era um

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jejum literal, mas amor, tanto vertical quanto horizontal.34

Brennan Manning, em “O Evangelho Maltrapilho” (2005), diz que Jesus se banqueteava enquanto João jejuava. Enquanto o chamado de João à conversão estava essencialmente ligado a práticas penitenciais, o chamado de Jesus está fundamentalmente associado a ser companheiro de mesa, a comer e beber com Jesus, em quem a atitude misericordiosa de Deus para com os pecadores é manifestada. Partir o pão com Jesus era uma celebração festiva de bom companheirismo na qual havia salvação. O ascetismo não era apenas impróprio, mas impensável na presença do Noivo.

Veja o que ocorreu no batismo do Senhor. João Batista (representando profeticamente a Lei e os Profetas)35 sai de cena, e Jesus (Graça) assume o seu lugar para sempre. O próprio João Batista sentenciou: É necessário que ele cresça e que eu diminua (João 3.30). Isto é, chegara o dia em que a antiga aliança deu lugar à outra, nova e eterna, cumprindo-se as profecias de Isaías 9.6-7 e Daniel 7.14. Essa nova e eterna aliança não veio para complementar a antiga, veio para substituí-la, sem negá-la. O tipo foi finalmente substituído pelo seu antítipo. A sombra deu lugar ao definitivo. A obra eterna de Jesus se manifestou ali, tendo sido consumada com sua morte na cruz36 e continuada com sua ressurreição, ascensão e descida do Espírito Santo.

A Lei e os Profetas duraram até João: desde então é anunciado o reino de Deus, e todo o homem emprega força para entrar nele. (Lucas 16.16)

Jesus disse que seus discípulos deviam afligir a alma quando o noivo lhes fosse tirado. Que sutileza! Nesse momento o Senhor provocou seus interlocutores, remetendo o asceticismo ao seu sentido original, isto é, à aflição de alma em ocasiões de profunda comoção. O Senhor Jesus se referiu, em Lucas 5.33-39, à autonegação por causa da tristeza provocada pela sua ausência nos três dias em que estaria no sepulcro37.

Não parece ser possível, por qualquer forma que se queira interpretar, que Jesus tenha dado outro sentido ao rigor dietético naquele diálogo com os discípulos de João e dos fariseus. Se foi outro o sentido do asceticismo nesse diálogo, Jesus negou a Lei.

Jesus veio primeiramente para os judeus. Foi necessário primeiro restaurar a casa de Israel. A abordagem do Senhor foi sempre direcionada à casa de Israel. O tempo de o Evangelho alcançar os gentios chegou bem mais tarde, com o ministério do apóstolo Paulo, em cumprimento de Joel 2.28.

Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel. (Mateus 15.24)

Não me envergonho do Evangelho, porque é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, depois do grego. (Romanos 1.16)

Os ensinos de Jesus não foram excludentes ou de predileção, mas devemos levar em conta que foi plano de Deus que Jesus tivesse, como objetivo inicial, o seu povo peculiar.

De fato, nos três dias de sua morte o mundo ficou em trevas espirituais. Sem 34 “Comentário do Novo Testamento”, vol. 1 – William Hendriksen, Ed. Cultura Cristã, 1ª Ed. – 2001, pág.604.35 Mateus 11.13 e Lucas 16.1636 João 19.3037 Lucas 24

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Deus, sem Jesus, ainda sem o Espírito Santo. Passadas essas coisas, Jesus ressuscitou e, antes de sua ascensão ao céu, disse: e eis que eu estou convosco, todos os dias, até a consumação dos séculos (Mateus 28.20). Nesse momento, lembramos novamente do que Jesus havia dito aos discípulos: Podem vocês fazer os convidados do noivo jejuar enquanto o noivo está com eles?

Jesus está conosco e não há motivo de luto. Práticas rituais em sinal de luto e tristeza sob o argumento de que Jesus está ausente soa inadequado, “porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mateus 18.20).

Com as imagens usadas, o Senhor nos ensina a necessidade de uma atitude totalmente nova frente à sua mensagem. Onde Jesus está não há motivo de tristeza ou desesperança para a noiva (a Igreja).

...e eis que eu estou convosco, todos os dias, até a consumação dos séculos. (Mateus 28.20)

Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos. (Filipenses 4.4)

CONSAGRAÇÃO E SANTIFICAÇÃOÉ preciso compreendermos que a consagração não acontece a partir de

extensas orações, unções com óleo, escalada de montes, vigílias, e muito menos com dietas frugais. Práticas penitenciais da carne, portanto, também não servem para consagração.

A expressão “consagrado” vem do hebraico qodesh e do grego hagios, que significam dedicado, santo, santificado, puro, moralmente sem culpa. A consagração decorre de um ato de Deus. Um rei hebreu era consagrado com o derramamento de óleo sobre sua cabeça pelo profeta. Esse óleo foi prefiguração do Espírito Santo, hoje concedido a todo aquele que crê. Santificação e consagração basicamente remetem à mesma ideia, que é a separação para uso exclusivo de Deus. No Novo Testamento, passamos a ser consagrados quando recebemos o selo do Espírito Santo.

Santificação e consagração também podem ser entendidas como processo perene de aperfeiçoamento, porém decorrem da separação para uso exclusivo de Deus. Assim, o crente consagrado deve manter-se limpo a partir da decisão perseverante de honrar a Deus em tudo, por meio da prática da Palavra e da oração, numa entrega completa, guardando-se da corrupção do mundo38, e isso deve proceder-se num verdadeiro estilo de vida, e não por algumas horas ou dias. É meninice o entendimento de que após um dia de austeridade com a carne estaremos consagrados e prontos para alguma tarefa espiritual.

O que desce ou não ao estômago não pode ter influência na qualidade do relacionamento com Deus. Jesus mesmo advertiu que o que contamina o homem é o que lhe sai da boca, e não o que entra39.

Parafraseando a expressão contida na quarta tese de Lutero, enquanto persistir o ódio de si mesmo, isto é, da própria tendência pecaminosa, que nos coloca em oposição a Deus, devemos levar uma vida constantemente em consagração. A vereda do justo é como a aurora, que vai brilhando, brilhando, até ser dia perfeito40. Apesar disso, devemos saber que Deus nos ama, e não há o que possamos fazer ou

38 Tiago 1.27 e I Pedro 1 e 239 Mateus 15.1140 Provérbios 4.18

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deixar de fazer que possa mudar isso.Em Filipenses 3.12 em diante, Paulo explana bem o estado de seu ânimo,

dizendo que não considerava já ter alcançado o alvo, mas esquecendo-se do que deixou para trás, prosseguia para as coisas que estavam adiante de si. Ele não ficava se lamuriando por uma queda ou se vangloriando pelas vitórias. Na vida de Paulo, as coisas do passado pertenciam ao passado; o que interessava era o presente, que devia ser trabalhado com visão no futuro. Assim também devemos proceder, e a santificação deve fazer parte permanente dessa conduta, sem legalismo ou dogmatismo.

O apreço pelo ascetismo é acentuado para algumas pessoas ao ponto de que não conseguem mais separar a oração dos exercícios penitenciais. Para elas, oração para ser eficaz tem de ser de barriga vazia, ou no monte, ou no milho, ou de madrugada. Tem de ter sacrifício associado.

O ASCETICISMO E A ENVIO DOS SETENTAJesus enviou 70 discípulos41 com instruções minuciosas e nada referiu aos

sacrifícios penitenciais. Quando retornaram, disseram com alegria contagiante: até os demônios se nos

sujeitam. E Jesus acrescentou: Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões e toda a força do Inimigo, e nada vos fará dano algum.

O ensino de que só se expulsa demônios, ou certa categoria deles, com preparação prévia em dietas frugais é uma contradição.

Há cinco versículos no livro de Atos dos Apóstolos (escrito por Lucas) que mencionam o asceticismo – vide lista no final. Esse tipo de prática ainda era presente na igreja recém estabelecida em função da tradição judaica ainda marcante no cotidiano deles. O fato de a igreja de então, predominantemente de judeus, ainda exercitar alguns aspectos do velho pacto é aceitável e não legitima a prática para a Igreja.

O que de Deus é gerado conserva-se a si mesmo, e o maligno não lhe toca. (I João 5.18)

Não deis lugar ao diabo. (Efésios 4.26-27)

Temos ouvido muitos argumentos em defesa de dietas especiais, atribuindo-lhes poderes e virtudes, mas não encontramos um sequer que resista ao exame sistemático das Escrituras. Todos se amparam em exemplos equivocados e mal interpretados, versos isolados, sem contexto, e, principalmente, em experiências pessoais. Esses ensinos trazem nas entrelinhas a mensagem perigosa de que Jesus não é suficiente para o enfrentamento contra as hostes espirituais do mal e que, portanto, precisa de muletas.

E, chegando-se Jesus, falou-lhes, dizendo: É-me dado todo o poder no céu e na terra. (Mateus 28.18)

E estes sinais seguirão aos que crerem: Em meu nome expulsarão os demônios... (Marcos 16.17)

A IDEOLOGIA DO SACRIFÍCIOO senso comum de sacrifício aponta para o que se faz com dificuldade, com

alto custo, além do esforço normal. Um estudante precisa fazer sacrifício para passar

41 Lucas 10.1-24

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num concurso. Comprar um imóvel pode exigir sacrifício. Tomar um remédio amargo é um sacrifício, e assim por diante. No meio religioso essa noção está presente também. O pensamento de que podemos avançar no campo espiritual trilhando o caminho do sofrimento ou empreendendo ações que exigem esforço além do normal seria agradável a Deus.

Entretanto, o sentido correto de sacrifício no Antigo Testamento está na aniquilação de uma coisa em favor de outra. Sacrifício vem do termo sacro (sagrado). Sacrificar significa tornar sagrado, separar, tornar inútil para o uso secular.

Os israelitas ofereciam sacrifício de animais a Deus em troca de perdão pelos seus pecados. Eles mesmos, agentes do pecado, nada sofriam ou excediam suas forças. Quem sofria era o animal, que era esfolado para que seu sangue servisse para remissão do transgressor. O sacrifício nesses moldes ocorre em várias religiões e é sinônimo de oferta. Quem o faz acredita que seu deus se agradará e retribuirá.

A “teologia” do Sacrifício permanece uma questão em aberto, não apenas para as religiões que ainda realizam esses rituais, mas também para as que não mais os praticam, sejam eles das formas mais diversas. A história mostra que os sacrifícios sempre estiveram vivamente presentes no pensamento religioso no mundo inteiro, sobretudo no Islã, no Candomblé, nos cultos gnósticos da Grécia Antiga, no Judaísmo, no Budismo, no Catolicismo e outras. No Judaísmo, o sacrifício é conhecido como Corban42, que trabalha a ideia de vir para perto de Deus.

As religiões apresentam diversas razões pelas quais os sacrifícios podem ser realizados:

Os deuses necessitam do sacrifício para seu sustento e para a manutenção de seu poder, que diminuiria sem o sacrifício;

Os bens sacrificais são utilizados para realizar uma troca com os deuses, que prometeram favores aos homens em retribuição pelos sacrifícios;

A vida e o sangue das vítimas dos sacrifícios conteriam algum poder sobrenatural, cuja oferenda agrada os deuses;

A vítima do sacrifício é oferecida como bode expiatório, para aplacar os deuses, para que o mal não recaia sobre os homens;

Os sacrifícios privam as pessoas de comida e de outras comodidades, por isso constituem também uma disciplina ascética;

Coisas sacrificadas geralmente se tornam parte da renda da organização religiosa, por vezes base da economia para sustentar a estrutura.

Entendido isto, observamos que no Cristianismo reformado ainda se atribui relevância aos sacrifícios, embora nem sempre seja admitido. Trata-se da necessidade de se fazer o que possa atrair a atenção divina, como dar dízimos e ofertas em valor acima das possibilidades, orar em montes de difícil acesso, orar de madrugada ou em longas vigílias, e penitências diversas.

Esses sacrifícios, que são verdadeiras práticas ascéticas, são realizados para Deus com o intuito disfarçado de escambo, apesar de o escritor aos Hebreus, num extraordinário trocadilho, ter ensinado que o único sacrifício aceitável a Deus em nosso tempo é o louvor, traduzido em palavras que o exaltam.

Portanto, ofereçamos sempre, por ele, a Deus, sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que confessam o seu nome. (Hebreus 13.15)

No Antigo Testamento, Deus ordenava que os israelitas oferecessem

42 Marcos 7.11

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sacrifícios de animais no santuário ou no tabernáculo. Quando os israelitas chegaram à Canaã, ordenou-se que todos os sacrifícios terminassem, exceto os que aconteciam no Templo de Jerusalém. Naquele contexto, Deus pedia sacrifícios como um sinal de sua aliança com o povo de Israel. O sacrifício também era feito para que Deus perdoasse os pecados, uma vez que o animal era punido no lugar do pecador. Essa foi, inclusive, a razão e o sentido da oferta de Cristo na cruz do Calvário, pagando cabal e definitivamente por todos os nossos pecados, cessando para sempre a necessidade desse tipo de oferenda.

Resumidamente, o problema não está em fazer, está em por que fazer. O que fazemos é sempre antecedido por uma motivação, um entendimento, de forma que podemos estar sinceramente errados. Na medida em que procuramos o respaldo correto na Palavra de Deus, as nossas práticas tenderão a se afastar de verdades aparentes e superstições. Não há e nunca houve poder nos ritos. Os cerimoniais do Israel antigo, em si mesmos, não conduziam o povo a lugar nenhum. Numa revelação progressiva, representavam apenas sombras do que havia de se manifestar em Cristo. O novo e vivo caminho ao Santo dos Santos foi aberto por Jesus, basta entrar com ousadia43.

Ainda a respeito das orações em montes e madrugadas para intensificação de experiências com Deus, há os que programam o despertador para a hora mais inoportuna. Acreditam que orar no momento mais difícil agradará a Deus, pelo esforço que exige, acelerando a possibilidade da bênção. Nesse caminho, são comuns descompensações do organismo, cansado durante o dia e insônia à noite, irritabilidade e estresse, pela falta do repouso.

Talvez devessem considerar que a noite deve ser prioritariamente destinada ao descanso físico, mental e espiritual, para o enfrentamento de um novo dia, que apresentará seus desafios. É preciso respeitar os limites do corpo.

Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão de dores, pois assim dá ele aos seus amados o sono. (Salmo 127.2)

Em paz, também, me deitarei e dormirei, porque só tu, Senhor, me fazes habitar em segurança. (Salmo 4.8)

Sobre as orações em montes ou vales, prática apreciada sobretudo pelos pentecostais, parece estar implícito que Deus privilegia lugares especiais. Esforçam-se escalando lugares altos acreditando que ali o Senhor se fará presente com mais poder. Senhoras de idade, homens engravatados, crianças e adolescentes sobem, muitas vezes em jejum, vencendo dificuldades do terreno, baseados em textos como Êxodo 19.20 e em supostas revelações, para orarem, ao passo que Jesus nos ensina que o lugar de adoração é pouco importante, desde que busquemos ao Pai em espírito e em verdade, preferencialmente em secreto.

Nossos pais adoraram neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar. Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem, em que, nem neste monte, nem em Jerusalém, adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura aos que assim o adorem. Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade. (João 4.20-24)

De acordo com Colossenses 2.20-23, podemos estar enamorados com a

43 Efésios 3.12

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aparência de sabedoria e com o rigor espiritual, que não têm eficácia para o aperfeiçoamento dos santos, não acrescentam nada e, ao contrário, têm servido de jugo para as pessoas que ainda não compreenderam o propósito da Graça oferecida em Cristo Jesus.

O Evangelho da cruz não solicita sacrifícios inventados e glórias fabricadas. A ideologia do sacrifício vende o sofisma de que quanto pior melhor, quanto mais sofrido mais Deus se agrada, maior o galardão, configurando um embuste que não resiste ao confronto com a Palavra de Deus.

JEJUM - TIPO E ANTÍTIPOA tipologia é o estudo das figuras, símbolos, cerimônias e ordenanças do

Antigo Testamento que prefiguram elementos e valores celestiais. O símbolo era o tipo (sombra) e sua projeção, ou manifestação definitiva, é o seu respectivo antítipo (imagem exata).

Porque, tendo a Lei a sombra dos bens futuros e não a imagem exata das coisas ... (Hebreus 10.1)

Os tipos não se reduzem a elementos tangíveis. Diversos preceitos do Antigo Testamento foram tipos que encontraram no ministério eterno de Cristo o correspondente antítipo.

O jejum no Antigo Testamento sempre era acompanhado de pano de saco e cinza. Os judeus, em circunstâncias especiais, rasgavam as suas roupas e se vestiam de pano de saco. Manifestavam externamente o sofrimento interior e o estado de espírito no momento. Uma pessoa vestida de pano de saco manifestava pelo menos uma das seguintes situações:

Luto:Jacó rasgou as suas roupas, se vestiu de pano de saco e lamentou o filho por

muitos dias. Segundo uma falsa notícia, José havia sido despedaçado por um animal

selvagem44.Por causa da morte de Abner, chefe do exército, Davi deu ordens a Joabe e ao

povo: Rasgai as vossas vestes, cingi-vos de sacos e ide pranteando diante de Abner.(II Samuel 3.31)

Aflição por uma tragédia pessoal ou nacional:O rei Ezequias, diante da ameaça de Senaqueribe e da afronta de Rabsaqué,

rasgou as suas roupas, cobriu-se de pano de saco e entrou na casa do Senhor. E os que ele enviou para falar sobre o problema a Isaías estavam todos cobertos de pano de saco45.

Dois séculos depois, quando Assuero (Xerxes I), do império medo-persa, decretou a morte de todos os judeus, moços e velhos, crianças e mulheres, em um só dia, Mordecai, primo de Ester, rasgou as vestes e se cobriu de pano de saco e de cinza, e, saindo pela cidade, clamou com grande e amargo clamor46.

Convicção de pecado, tristeza e arrependimento:Esta é a razão mais comum para o uso do pano de saco. O rei Acabe, depois

de ter caído em si pelo crime cometido contra Nabote, rasgou as suas vestes, cobriu-

44 Gênesis 37.3445 II Reis 19.1-346 Ester 4.1-4

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se de pano de saco e jejuou; dormia em sacos, e andava cabisbaixo47. Os ninivitas se arrependeram com a pregação do profeta Jonas e proclamaram

um jejum. Todos se vestiram de panos de saco. O próprio rei de Nínive levantou-se do seu trono, tirou de si as vestes reais, cobriu-se de pano de saco e assentou-se sobre cinza. Até os animais foram cobertos de pano de saco. Trata-se de um arrependimento nacional, provocado pela ameaça de destruição da grande cidade de Nínive48.

O pano de saco sugere o despojamento das roupas que identificam a pessoa na sociedade. Ao rasgar-se e cobrir-se de pano de saco, a pessoa sinalizava desprezo pela sua condição social para se apresentar a Deus totalmente nua de seu status, bens e honra.

As cinzas sugerem a ideia de que nada somos. Misturando-se às cinzas, a pessoa indicava que conhecia sua extrema limitação nesta vida. Do pó viemos e para o pó retornaremos49.

E o rigor dietético, como já vimos, apontava para a tristeza e a humilhação. A abstinência de alimento terreno sinalizava que as provisões materiais do mundo são insipientes para o espírito e que o alimento celestial é o que se busca.

Por que o pano de saco e a cinza se diluíram após o Pentecostes e o mesmo não ocorreu com o jejum? Por que ainda se tem dado tanta importância a dietas especiais?

Na revelação progressiva de Deus, mandamentos anteriores são substituídos por posteriores. Em questões que não envolvem alteração em nenhum padrão moral intrínseco (que é baseado na natureza de Deus), o Senhor tem a liberdade de alterar os mandamentos que ele deu às suas criaturas, de forma a servir a seus propósitos gerais, dentro do processo de redenção. Por exemplo, podemos comparar isso com os pais que, numa fase da vida de seus filhos, deixam-nos comer com a mão, para mais tarde ensiná-los a usar uma colher. Posteriormente, ainda, eles instruem seus filhos a não mais usarem uma colher, mas sim um garfo. Não há contradição alguma nesse processo. (Norman Geisler50)

O estudo da tipologia indica que a abstinência de alimentos era apenas uma sombra. A imagem real, para os que estão verdadeiramente em Cristo, é produzida pelo novo nascimento, pois é o Espírito Santo que produz a comunhão e a intimidade do crente com Deus, e não mais a mecânica do asceticismo. É o Espírito que conduz o crente à consciência do pecado, da justiça e do juízo.

Mas eu lhes afirmo que é para o bem de vocês que eu vou. Se eu não for, o Conselheiro não virá para vocês; mas se eu for, eu o enviarei.(João 16.7-8 NVI)

Alguém disse ter inventado a pílula que mata a sede. Tomava-se uma pílula com um copo d’água. Receita infalível. A sede vai embora. O usuário, desatento, atribui todos os créditos a esse remédio extraordinário. É exatamente isso que ocorre quando se ora com o estômago vazio. Apropriam-se os créditos na conta dos nossos próprios esforços humanos, quando, na verdade, o que moveu os céus foi a oração.

Quando a Bíblia manda orar, quer dizer orar, e não embute complementos. O asceta inveterado acredita que a oração não pode ser eficaz desacompanhada de um 47 I Reis 21.2748 Jonas 3.5-1049 Gênesis 3.1950 Apologista norte-americano, Ph.D. em Filosofia pela Loyola University Chicago.

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sacrifício da carne. Não há nada mais perigoso do que ir além do texto bíblico, formando doutrinas a partir de deduções e inferências irresponsáveis.

...aprendais a não ir além do que está escrito, não vos ensoberbecendo a favor de um contra outro. (I Coríntios 4.6)

Nota-se que alguns, pela elevada deferência ao asceticismo, colocam-no acima da própria oração. Há aqueles, inclusive, que nem sequer oram, apenas afligem a alma com exercícios dietéticos.

Os elementos do culto formal judaico – jejum, pano de saco e cinza – faziam parte de um importante manifesto, e quase sempre eram vistos juntos. Cada um com seu significado próprio.

Hoje, o Espírito Santo gera em nós os mesmos efeitos:Primeiro: Na relação com Deus, no coração devemos nos vestir de pano de

saco, para nos esquecermos de nossa condição social. Todos nós somos iguais para Deus. Ele não faz acepção de pessoas.

Segundo: Na relação com Deus, no coração devemos nos cobrir de cinzas como prova de que sabemos quem somos, de onde viemos e para onde iremos. Nossa existência física é limitada e frágil. Agora estamos vivos, daqui a um minuto não sabemos.

Terceiro: Na relação com Deus, no coração devemos estar em jejum, em sinal de que valorizamos e sabemos bem a importância que tem o alimento celestial, o maná, pouco importando o suprimento deste mundo.

Ficaremos com sérias dificuldades se importarmos práticas do Judaísmo para a Igreja. Em se tratando das tradições e dos aspectos cerimoniais, pior. O ambiente gentílico não necessita de enxertos judaizantes. É belíssima a espiritualidade dos judeus, mas esta não pode ser tomada como universal e ser difundida para além das fronteiras de Israel ou onde estiverem judeus praticantes.

A presença de Jesus é motivo para celebração, como numa festa de casamento. Não foi por acaso que Jesus iniciou seu ministério em uma festa de casamento, ao transformar água em vinho, uma bebida sem sabor, sem cheiro e sem cor (Lei), em outra saborosa e de cor vívida (Graça). O vinho, nesse contexto, representa alegria.

Em Lucas 5.33-39, a resposta de Jesus demonstrou o erro do asceticismo praticado sem a compreensão do propósito da Graça.

Perceba a fina ironia do Senhor no v. 39, em resposta aos que lhe perguntaram:

E ninguém, tendo bebido o velho, quer logo o novo, porque diz: Melhor é o velho.

Os religiosos jamais aceitaram o vinho novo de Jesus, porque o vinho velho lhes parecia melhor. Sendo assim, que permanecessem os religiosos com o velho tradicionalismo, mas que não viessem importunar os discípulos do Senhor, chamados a experimentar o sabor da novidade de vida.

PERCEPÇÃO SELETIVARecentemente o mundo foi desafiado pelo vírus H1N1, da gripe A, conhecida

como gripe suína. Uma prova de que o tradicionalismo judaico ainda inclui o rigor dietético como um dos mecanismos espirituais para a efetivação da ação divina foi

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noticiada pelo portal Gospel Prime, em janeiro/2010, reproduzida abaixo. Perceba nessa matéria o que significa o ascetismo religioso em Israel e compare com a nossa vivência cristã reformada:

Bênçãos, jejum e o som do tradicional shofar, um instrumento judeu de sopro feito a partir do chifre de um animal, foram alguns dos métodos escolhidos pelos rabinos em Israel para espantar a gripe A.O rabino chefe sefardita, Shlomo Amar, pediu aos judeus devotos para que guardem jejum nesta quarta-feira e dediquem o dia à oração, a fim de prevenir a expansão do vírus A (H1N1) pelo país.Entre o pôr do sol desta terça-feira até o cair da noite de hoje, os fiéis devem estudar a Torá (livro sagrado judeu) e olhar para dentro de si para refletir sobre sua conduta para com seus irmãos e com Deus, segundo um comunicado divulgado pela chefia rabínica.Aqueles que não puderem jejuar por um dia completo deverão pelo menos tentar fazê-lo durante metade do dia, para fazer sua contribuição ao esforço espiritual coletivo destinado a combater a ameaça da nova gripe.O jejum poderá ser trocado por um voto de silêncio ao longo de toda a quarta-feira para aqueles fiéis que não podem ficar sem comer, segundo as instruções da chefia rabínica sefardita para conseguir o favor divino e evitar uma epidemia da gripe A em Israel.Segundo o rabino chefe sefardita, o jejum, a oração e a boa conduta podem influir para que o Deus todo-poderoso, que tem o poder de curar, nos abençoe e nos alivie desta doença.A proposta de Amar para tanto foi apoiada por algumas das mais importantes autoridades religiosas judaicas do país, atentas ao risco da gripe A, que já deixou nove mortos e contaminou mais de duas mil pessoas em Israel.O rabino Ovadia Yosef, líder espiritual do partido ultra-ortodoxosefardita Shas e os juízes da Grande Corte Rabínica Rabi Ezra Bar Shalom e ZionBoeron se uniram à proposta de Amar e a divulgaram entre seus fiéis.O jejum como penitência para combater epidemias tem uma base bíblica, argumentam estes quatro rabinos. Eles lembram que o Talmude (que reúne as discussões rabínicas sobre leis judaicas) narra como o rabino Yehuda decretou o jejum de seu povo após ter conhecimento de uma praga entre os porcos.Na semana passada, 50 rabinos e fiéis, em sua maioria cabalistas, também deram sua contribuição para afastar a gripe do Estado judeu ao sobrevoar o país em círculos entoando orações e tocando o shofar.Enquanto seu avião dava voltas em torno de Israel, os passageiros tocaram o shofar por sete vezes e fizeram orações destinadas a espantar as doenças.

Este fato ocorreu em Israel, mas parece ter sido testemunhado por qualquer irmão em um culto de domingo à noite, no cotidiano da igreja. Admira o fato de que muitos que professam fé no Senhor Jesus se vejam embaraçados com as tradições de uma religiosidade que nega que o Messias veio e tem os olhos na Lei e não na Graça; um povo que, a despeito de ser ainda destinatário de tantas promessas, tem zelo por Deus, mas sem entendimento, na medida em que ignora a justiça que vem de Deus51; um povo que ainda hoje está perdido num legalismo exacerbado, que proibe o acionamento de um botão de elevador num Shabat52, com base em Êxodo 20.10.

Conforme já disse Philip Yancey, temos a tendência de enxergar o que procuramos. Isso se chama percepção seletiva, que é a tendência que as pessoas têm de se voltarem com mais atenção para os fatos que apoiam suas crenças e referenciais sócio-culturais.

Se procurarmos imagens nas nuvens e nos desenhos dos azulejos, provavelmente encontraremos.

O mesmo acontece na leitura, num filme, num diálogo. Se você acredita firmemente em alguma coisa, tudo o que ler e ouvir poderá ser usado como material para reforçar sua crença. Sempre haverá certa resistência para admitir o contrário,

51 Romanos 10.1-452 Nome dado ao dia de descanso semanal no judaísmo, simbolizando o sétimo dia em Gênesis, após os seis dias da Criação. Apesar de ser comumente dito ser o sábado de cada semana, é observado a partir do pôr-do-sol da sexta-feira até o pôr-do-sol do sábado.

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embora possam ser muitas as evidências. O desafio é ser imparcial, porém é difícil se colocar acima de conceitos preestabelecidos na própria mente para estudar um tema e produzir respostas sem contornos de simpatia e crenças pessoais.

Para tudo o que acreditamos ser verdade poderemos encontrar respaldo na Bíblia, bastando ler aquilo que nos interessa da forma que se encaixe em nossas verdades. Portanto, expressões do tipo “isso é bíblico” e “a Bíblia diz” podem ser bastante vagas. O desafio é procurar, com a máxima imparcialidade, melhorar nossas convicções para se ajustarem à Palavra de Deus. O que ocorre, todavia, é que somos tentados a procurar na Bíblia supostos amparos para nossas convicções.

Não há nada de errado com a visão seletiva. O que é rejeitável é a visão tendenciosa, que despreza as evidências para ficar, de forma incondicional, ao lado do que se acredita. Este trabalho apresenta uma argumentação que não deixa de ser resultado de uma percepção seletiva. Ao concordar ou discordar – e é preciso que haja um posicionamento de cada um de nós em relação ao que cremos – você também estará provavelmente sendo influenciado pela sua visão seletiva. O desafio que proponho é submeter nossas percepções a um parâmetro objetivo e rejeitar o resto. Nesse caminho é sempre necessário estarmos abertos aos fatos, opiniões, informações e esclarecimentos, deixando sempre os assuntos sobre a mesa. Por mais convicção que possamos ter sobre qualquer assunto, é sábio supormos que pode ainda faltar algum elemento.

Não podemos ter medo de defender nosso ponto de vista, mas também não precisamos ter vergonha de admitir que estávamos errados. Essa busca constante faz parte de nosso amadurecimento, de nossa busca pela perfeição.

...cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente. (Romanos 14.5)

Aquele fato ocorrido em Israel, portanto, servirá ao mesmo tempo para valorizar e também para afastar o asceticismo da igreja. Depende do ponto de vista. Para uns ficará claro que essa prática é anacrônica e está longe da mais pura doutrina do Cristianismo reformado, não indo muito além de uma tradição judaica. Para outros, ela apenas confirmará a importância do afligir a alma com alto rigor dietético, porque se o Talmude e os principais rabinos de Israel o recomendam é sinal de que tem o seu valor.

CASOS REAISCaso 1: Ronaldo é um jovem que se preparou por alguns anos para missões

fora do Brasil. Ele me contou que empreende longos períodos de abstenções alimentares visando ganhar suporte espiritual para evangelizar sadus eunucos53 indianos. Ronaldo foi ensinado que os sadus fazem sacrifícios dessa natureza por 40 dias e alcançam um nível espiritual para o mal que não é possível superar sem um exercício de mesma intensidade.

Caso 2: Marilene veio compartilhar um problema difícil. Havia quatro anos, o marido a abandonara com os filhos e se envolvera com outra mulher. Em nossa conversa, Marilene disse entre soluços e lágrimas: Estou há mais de 30 dias sem comer chocolate, num propósito para solucionar esse problema. Escolheu abster-se de chocolate para oferecer a Deus o que mais gostava, em autonegação.

Caso 3: Em um culto de oração, Eliana relatou seu problema com desemprego,

53 Homens castrados, considerados santos no budismo e no hinduísmo.

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que passava por sérias restrições financeiras e esperava uma providência do Senhor. Em busca da solução, a irmã Luíza sugeriu-lhe abstenção alimentar por três dias e determinou a unção com óleo de sua carteira de trabalho.

Estes três casos são reais. Centenas poderiam ser citados. Os nomes são fictícios e detalhes foram suprimidos. Repare que estes exemplos retratam o mesmo pano de fundo: a percepção de que o asceticismo tem o condão de transmitir força, virtude e poder às pessoas, e facilita a ação do Senhor. As pessoas envolvidas acreditam que o asceticismo afeta decisivamente a esfera espiritual.

A devoção aos exercícios corporais tem levado pastores a se absterem de alimento de forma austera e a orientarem suas ovelhas ao mesmo, sempre antes de eventos julgados importantes, e até mesmo antes da pregação de uma mensagem. Ninguém pode correr o risco de ser o elo fraco de um grupo. Acreditam que estarão, com isso, mais bem preparados e imunes a ataques satânicos. Com certos sacrifícios, alguns acreditam que terão sido revestidos de poder, com um escudo que os colocará em vantagem contra forças espirituais do mal. Acredita-se que seus sentidos espirituais ficam mais aguçados quando estão em autoflagelação.

Imagine o leitor se para todo confronto com as trevas, precisemos utilizar as mesmas armas do inimigo. Imagine o leitor até onde pode ir a criatividade das pessoas na busca por artifícios que possam sensibilizar Deus e ativar o seu poder, para neutralizar o mal.

Essas histórias nos remetem aos rituais pagãos, nos quais os infelizes participantes, para chamar a atenção de seus deuses ávidos por sangue, se cortam, se mutilam, se contorcem.

Que relação de causa e efeito poderíamos estabelecer entre o sofrimento auto-imposto e a bênção recebida? Até que ponto o ascetismo afeta o sucesso de nossos empreendimentos espirituais? Que respaldo nas Escrituras poderíamos destacar para responder categoricamente a essas perguntas, no ambiente neotestamentário?

A EXPERIÊNCIA PARTICULAR E A BÍBLIAAtribuir ao jejum poder misterioso e sobrenatural, além de descontextualizado é

equivocado. Nenhuma exegese responsável conduz à ideia de que o jejum afeta a esfera espiritual. No desenrolar da história, as diversas circunstâncias conduziram os hebreus, involuntariamente, a atribuir aos exercícios dietéticos um poder que não pode transmitir, e infelizmente a Igreja tem se deixado seduzir pela superstição que passou a envolver essas práticas, perpetuando um desvio.

Retomando a pergunta inicial, “que proveito pode haver nas dietas especiais e abstinências em geral para a qualidade da vida espiritual?”

Podemos concluir agora mais assertivamente que há dois tipos de asceticismo religioso, o primeiro “puro”, que serviria apenas para disciplina espiritual, sem qualquer afetação da esfera espiritual; e o segundo “místico”, que se aplicaria a finalidades sobrenaturais, para influência no meio espiritual.

Então, sob o aspecto místico, não há qualquer proveito nas dietas frugais. Porém, como disciplina espiritual, com restrições, pode haver algum proveito, para remoção de vícios. Contudo, a virtude não está nas abstinências, mas na moderação em tudo (Filipenses 4.5; II Timóteo 1.7).

Consta no final deste trabalho uma lista de referências bíblicas que tratam do jejum, na qual se pode verificar que não há um contexto sequer que sustente a ideia de que dietas especiais possam ser eficazes na busca por poder, mortificação da

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carne ou proteção contra forças do mal. Deus nos oferece meios de nos equiparmos de tudo isso, mas não é dessa forma.

Há pessoas que pretendem cultivar relacionamento com Deus a partir de experiências pessoais, julgando que podem seguir seguras assim, apesar do que a Bíblia diz. Como ensinam Henry Blackaby e Claude King, quando estudamos a Bíblia, não devemos nos basear em casos isolados. A experiência é válida somente se for confirmada pela Bíblia. Nossas experiências não podem ser nossos guias. Cada experiência deve ser controlada e compreendida à luz da Bíblia. Não podemos duvidar da experiência das pessoas, mas devemos sempre questionar a interpretação do que foi experimentado, se está ou não de acordo com a Palavra de Deus.

Quem ressalta experiências geralmente acredita que procurar respaldo bíblico para tudo é limitar Deus e dogmatizar a fé, sugerindo que a Bíblia é apenas parte da revelação. Para esses, Deus deixou para nós a missão de continuar, de certo modo, os registros das revelações, como se o cânon bíblico ainda estivesse aberto. Esse posicionamento tem ensejado muitos desmandos e doutrinas de homens.

Como obreiros de Deus, responsáveis e íntegros, só deveríamos admitir o que a Bíblia respalda sistematicamente. Se assim não for, não necessitaríamos da Revelação Escrita para sinalizar a vontade de Deus. Colocaríamos a Bíblia de lado e passaríamos a pautar a vida com base na experimentação.

No Cristianismo evangélico verificamos, muitas vezes, comportamento de manada (desculpe-me a expressão rude). Se perguntarmos o fundamento bíblico para certas condutas, ouviremos respostas como: Não sei o que a Bíblia diz a respeito, mas todo mundo faz. Meu líder disse que é assim e vai funcionar comigo.

CONCLUSÃOEm Filipenses 3.15-16 há um conselho: Se alguém pensa de forma diferente,

não deve haver preocupação, porque Deus de tudo nos esclarecerá. Devemos andar com boa consciência, de acordo com o que já alcançamos da parte de Deus.

Philip Yancey54, em seu livro “Descobrindo Deus nos Lugares Mais Inesperados”, garante que tendemos a enxergar o que procuramos. Na época em que o microscópio foi inventado, os cientistas acreditavam que os espermatozoides tinham a forma de pequenos embriões e a mulher servia de incubadora. Investigando com os primeiros microscópios, eles viram e desenharam esses embriões como homenzinhos. Eles viram o que procuravam, o que já estava esquematizado em suas crenças. Eles observaram no microscópio, ainda rudimentar, algumas imagens distorcidas, mas induzidos pela crença, identificaram nas imagens cabeça, braços e pernas. Às vezes, como aqueles cientistas, vemos coisas que na realidade não estão lá.

Como vimos, em relação ao asceticismo na igreja, os argumentos que o refutam são bastante vigorosos, a partir de fundamentos escorados em jamais dar crédito a alguma coisa que não tenha alicerce para provar a verdade.

A disciplina com o corpo físico, em si, tem pouca ou nenhuma eficácia espiritual. Em Colossenses 2.20-23 lemos que essas práticas não têm valor contra a sensualidade, contra as paixões que conduzem à imoralidade. A origem de nossas fraquezas reside em um espírito ainda corrupto e não no corpo físico (carne).

Resumidamente, portanto, subjugando-nos com disciplina ascética ou não, realizando seja o que for, estejamos sempre lúcidos, e que nossas ações sempre

54 Nascido em 1949, é escritor e jornalista americano. Seus livros são lidos em 25 idiomas pelo mundo todo, fazendo dele um dos mais vendidos autores cristãos.

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sejam antecedidas de ponderação, domínio próprio e respaldo das Escrituras. Não podemos nos assemelhar a seres brutos, que agem por instinto, e deixar que outros nos dirijam a partir de seus próprios conceitos, pois cada um dará conta de si mesmo a Deus.

Pois bem, o sacrifício de iniciativa humana, em alguns casos em que é praticado, com base em testemunhos, antecede o sobrenatural. O problema está em estabelecer o nexo causal; não há base bíblica para se dar essa relação. Dessa forma, o crente em Cristo deve saber que Deus age apesar de nós, apesar do rigor dietético, apesar de nossos equívocos.

Na verdade, o argumento de que o asceticismo em nada pode interferir na esfera espiritual é bastante lacônico. Revisando este texto, fiquei com a impressão de que estava num tribunal defendendo a liberdade em Cristo para condenação de tudo o que desfigura essa liberdade. Não foi essa a intenção inicial, mas bem que poderia ter sido.

Não conheço argumentos sóbrios e corretamente aduzidos que sustentem a tese de que práticas sacrificiais tragam benefícios realmente importantes e permanentes. Todos os dias Deus tem nos usado poderosamente pela sua exclusiva misericórdia, apesar de nós, pois está sempre à procura do único atributo que o agrada: a fé. Com ou sem sacrifício, Deus tem usado os que têm fé, nem que seja do tamanho de um grão de mostarda.

Se você aprendeu toda a sua vida que podemos atribuir ilimitados poderes espirituais às práticas que nos induzem ao autossofrimento, inclusive contra os demônios, estas palavras devem ter sido recebidas com ceticismo e até repugnância. Especialmente no meio religioso, tendemos a expelir tudo aquilo que não compreendemos bem ou é contrário àquilo em que sempre acreditamos.

O objetivo, no entanto, jamais foi causar-lhe desconforto ao confrontá-lo algumas vezes, motivo pelo qual insisto encarecidamente que releve quaisquer colocações ainda não assimiladas ou destoantes do seu entendimento. Peço que releve, e não que rejeite imediatamente. Permita-se, pelo menos, pensar no caso.

Os manuais de podes e não podes só nos prendem ao sistema farisaico, de normas cristalizadas, que têm servido para obscurecer o caráter de Deus e nos municiar de uma imagem antibíblica dele. Não é porque fazem da liberdade uma confusão que devemos agora rejeitá-la. Os hebreus também desejaram voltar para o Egito por não saberem como lidar com a nova realidade.

A questão central não é fazer ou deixar de fazer isso ou aquilo, tão somente, de forma também mecânica, sem reflexão. A solução estará sempre na busca do Deus da Bíblia, como auxílio irrestrito do Espírito Santo que faz da letra fria a viva Palavra de Deus. Esse Deus os complexos sistemas religiosos são incapazes de revelar. Nesses dias difíceis em que vivemos, é preciso, mais do que nunca, buscarmos discernir entre o que seja embuste do sistema religioso e o que seja genuinamente ensino do Espírito Santo. Toda e qualquer lição que embace um profícuo relacionamento de amor e confiança com o Senhor precisa, obrigatoriamente, ser visto com reserva. Isso não significa a defesa de um evangelho barato, permissivo e frouxo, mas um genuíno culto racional.

A Bíblia pertence ao povo, não aos líderes, e esperávamos que surgisse uma nova luz da Palavra quando a congregação inteira estudasse as passagens. (Paul Stevens, 1998)

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Assim sendo, é necessário que nos posicionemos sabiamente para resistir, em amor e tolerância, o domínio imposto pelo tradicionalismo religioso, que tem se oposto ao relacionamento com Deus. Pontos de vista difusos entre nós, líderes ou não, apóstolos, profetas, mestres, pastores e evangelistas, ensejam o exercício da tolerância e do amadurecimento das nossas convicções. Portanto, devemos nos unir pela fé, uma vez gerada em nossos corações pelo Senhor.

Que o Espírito Santo nos ajude!

Um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias. Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente. Porque o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo. A fé que tens, tem-na para ti mesmo perante Deus. Bem aventurado é aquele que não se condena naquilo que aprova. (Romanos 14.5,17,22)

CITAÇÕES BÍBLICASTermos hebraicos: tsuwm (Strong # 6684) / tsowm (Strong # 6685)

Jz 20.26 / Realizado por causas da derrota para os benjamitas; 1Sm 7.6 / Realizado por todo o Israel, sob a direção de Samuel, em arrependimento pelos pecados; 1Sm 31.13 / 1Cr 10.12 / Realizado pelos homens que sepultaram Saul e seus filhos, em sinal de luto; 2Sm 1.12 / Realizado por Davi e seus homens por causa da morte de Saul e Jonatas; 2Sm 12.16-23 / Realizado por Davi por causa do seu filho com Bate-Seba (após o período de orações e jejum a criança veio a falecer); 1Rs 21.9-12 / Decretado por Jezabel com vistas ao julgamento arranjado, que culminou na condenação de Nabote; 1Rs 21.27 / Realizado por Acabe em sinal de humilhação; 2Cr 20.3 / Proclamado por Josafá antes de uma batalha; Ed 8.21-23 / Proclamado por Esdras junto ao rio Aava, para humilhação e pedido de proteção a Deus na viagem; Ne 1.4 / Realizado por Neemias, pela restauração dos muros de Jerusalém; Ne 9.1 / Realizado pelo povo de Jerusalém, confessando seus pecados; Et 4.3 / Realizado pelos judeus, com profunda tristeza, após o decreto de Hamã; Et 4.16 / Proclamado por Ester, antes do encontro com o rei; Et 9.31 / Em conexão com a festa de Purim; Sl 35.13 / Realizado por Davi em face de sua tristeza e profunda humilhação; Sl 69.10 / A causa de Davi sendo atacada; Sl 109.24 / A causa da fraqueza física de Davi; Is 58.3-6 / O tipo de jejum que agrada a Deus; Jr 14.12 / Aquilo que é inaceitável a Deus; Jr 36.6-9 / Baruque lendo o livro num dia de jejum; Dn 9.3 / Daniel orando por Jerusalém; Jl 1.14 / Diante do Dia do Senhor; Jl 2.12 / Quando se voltando para Deus de todo coração; Jl 2.15 / Proclamada pelo soprar da trombeta em Sião; Jn 3.5-9 / Proclamado pelo rei de Nínive.

Termos gregos: nesteia (Strong # 3521) / nesteuo (Strong # 3522) Mt 4.2 / Por Jesus, por 40 dias; Mt 6.16-18 / Não deve ser praticado como pelos hipócritas; Mt 9.14 / Pelos discípulos de João e os fariseus; Mt 9.15 / Pelos convidados quando o noivo for tirado; Mc 2.18 / Pelos discípulos de João e os fariseus; Mc 2.19-20 / Pelos convidados quando o Noivo for tirado;

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Lc 2.37 / Realizado por Ana adorando no templo; Lc 5.33 / Pelos discípulos de João e os fariseus; Lc 5.34-35 / Pelos convidados quando o noivo for tirado; Lc 18.12 / Legalismo do fariseu; At 10.30 / Realizado por Cornélio; At 13.2-3 / Separação de Barnabé e Saulo; At 14.23 / Eleição de anciãos da igreja; At 27.9 / Em navegação perigosa; 2Co 6.5 / Por Paulo, em açoites e prisões; 2Co 11.27 / Por Paulo, em trabalhos e fadigas.Nota: Em Mt 17.21 - Mc 9.29 - 1 Co 7.5, não vem a palavra ‘jejum’ nos melhores manuscritos.

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