23
XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 10 a 13 de Setembro de 2013, Salvador (BA) Grupo de Trabalho 26: Sexualidades, corporalidades e transgressões Título: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes Autor: Ercílio Neves Brandão Langa 1 1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected].

Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Neste artigo analiso sexualidade, gênero, raça e suas interseccionalidades entre imigrantes africanos(as) residentes em Fortaleza. Pertencentes a diversos grupos etnolinguísticos, tais sujeitos apresentam identidades multiculturais e distinções de várias ordens a marcar suas vidas no Ceará, constituindo uma diáspora. Nesse cenário, os africanos não estão inteirados dos limites sociais de raça e classe existentes, rompendo fronteiras estabelecidas, verificando-se preferência afetiva de homens africanos por mulheres brasileiras brancas. Partindo dos conceitos de diáspora de Gilroy (2001) e de interseccionalidade de Crenshaw (2002), analiso as sexualidades entre africanos e africanas, entre africanos(as) e brasileiras(os) e, as ressignificações sexuais ocorridas no contexto migratório. Nas interações afetivas, africanos(as) na condição de negros(as) são colocados em posição inferior e de subalternidade, ocupando lugar secundarizado para relacionamentos estáveis. Ao mesmo tempo, são objeto de desejo sexual para encontros fortuitos sem compromissos afetivos. Para compreensão do fenómeno avanço como questões: o que a experiência de imigração produz nas identidades sexuais dos imigrantes africanos? Como pensar sociabilidades afetivas entre africanos e brasileiros num contexto marcado pela discriminação racial? Adentrando esse universo, utilizo como via metodológica a observação etnográfica, entrevistas abertas e conversas informais, com registro sistemático no caderno de campo.

Citation preview

Page 1: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

1

XVI Congresso Brasileiro de Sociologia

10 a 13 de Setembro de 2013, Salvador (BA)

Grupo de Trabalho 26: Sexualidades, corporalidades e transgressões

Título: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras

interseccionalidades de sujeitos imigrantes

Autor: Ercílio Neves Brandão Langa1

1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. E-mail:

[email protected].

Page 2: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

2

Resumo: Neste artigo analiso sexualidade, gênero, raça e suas interseccionalidades entre imigrantes africanos(as) residentes em Fortaleza. Pertencentes a diversos grupos etnolinguísticos, tais sujeitos apresentam identidades multiculturais e distinções de várias ordens a marcar suas vidas no Ceará, constituindo uma diáspora. Nesse cenário, os africanos não estão inteirados dos limites sociais de raça e classe existentes, rompendo fronteiras estabelecidas, verificando-se preferência afetiva de homens africanos por mulheres brasileiras brancas. Partindo dos conceitos de diáspora de Gilroy (2001) e de interseccionalidade de Crenshaw (2002), analiso as sexualidades entre africanos e africanas, entre africanos(as) e brasileiras(os) e, as ressignificações sexuais ocorridas no contexto migratório. Nas interações afetivas, africanos(as) na condição de negros(as) são colocados em posição inferior e de subalternidade, ocupando lugar secundarizado para relacionamentos estáveis. Ao mesmo tempo, são objeto de desejo sexual para encontros fortuitos sem compromissos afetivos. Para compreensão do fenómeno avanço como questões: o que a experiência de imigração produz nas identidades sexuais dos imigrantes africanos? Como pensar sociabilidades afetivas entre africanos e brasileiros num contexto marcado pela discriminação racial? Adentrando esse universo, utilizo como via metodológica a observação etnográfica, entrevistas abertas e conversas informais, com registro sistemático no caderno de campo.

Palavras-chave: Imigrantes africanos. Sexualidade. Identidade. Raça. Interseccionalidade.

Introdução: o contexto histórico-político da emergência da diáspora africana em

Fortaleza nas relações entre Brasil e África

A vinda de estudantes africanos no estado do Ceará, na condição de imigrantes,

teve início na segunda metade da década de 1990, com o primeiro grupo oriundo de

Angola.2 Nesse período, vinham somente estudantes de países africanos de língua oficial

portuguesa para integrar-se na Universidade Federal do Ceará (UFC), através do

Programa de Estudantes Convênio – de Graduação (PEC-G).3 Entretanto, a partir de 1998,

inicia-se a imigração de estudantes bissau-guineenses e cabo-verdianos e, dois anos

depois, estudantes são-tomenses, angolanos e moçambicanos. No início dos anos 2000,

há um aumento significativo do número de estudantes africanos residentes no Ceará, cuja

maioria vem estudar em faculdades particulares, com contratos firmados em seus países

de origem, a partir de publicidade e vestibulares realizados em Guiné-Bissau.

O aumento da imigração de estudantes africanos para o Brasil, no início do século

2 Informação verbal fornecida pelo presidente da Associação de Estudantes Africanos no Estado do Ceará

(AEAC), estudante africano residente no Ceará há mais de uma década. 3 Programa de Estudantes Convênio – de Graduação, administrado de forma conjunta pelo Ministério das

Relações Exteriores e pelo Ministério da Educação, fazendo parte dele 45 países, com 32 países efetivos que enviam estudantes de África, da América Latina e de Timor-Leste. O continente africano apresenta o maior contingente de alunos, com 20 países que enviam estudantes todos os anos. Em 2010, haviam ingressado nas universidades federais e estaduais brasileiras, 383 estudantes africanos, em sua maioria, oriundos de Guiné-Bissau, Cabo-Verde e Angola.

Page 3: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

3

XXI é também impulsionado pelo discurso governamental do presidente Luiz Inácio Lula da

Silva e sua política de cooperação e aproximação com a África.4 Tal política de

cooperação, em curso, visa particularmente atingir o ensino superior, através de criação de

distintos mecanismos, como estágios profissionais, bolsas de estudo e convênios, no

sentido de viabilizar a vinda de africanos para estudar no Brasil.

No contexto de diferentes estratégias mobilizadoras, estudantes africanos saem de

seus respectivos países com expectativas acadêmicas em relação ao Brasil, devido ao

maior nível de desenvolvimento econômico, tecnológico e de produção acadêmica,

alimentando esperanças de facilidade de inserção por conta de uma língua e culturas em

comum – a língua portuguesa, a culinária, a religiosidade e a cultura negra trazida pelos

escravos a permear a vida brasileira.

Conforme afirma Mourão (2009), nos anos 2000, os estudantes africanos

participantes do convênio com universidades públicas brasileiras se autodenominavam

“comunidade africana em Fortaleza”, que incluía, somente, jovens de nacionalidades cabo-

verdiana e bissau-guineense, então unidos e voltados para questões comuns, como

adaptação e resolução de problemas cotidianos. A autora argumenta que, mesmo assim,

essa união na diáspora não dissipou as diferenças históricas de classe, renda, prestígio e

grau de escolaridade entre os cidadãos oriundos dos dois países.

Ao longo dos anos, o número de estudantes africanos imigrantes cresceu,

constituindo um contingente de imigrantes a tornar-se complexo em sua diversidade.

Atualmente, verifica-se um crescente segmento de estudantes de países, classes sociais e

credos religiosos distintos, oriundos não apenas de países lusófonos, mas também de

países de expressão inglesa e francesa, como é o caso da Nigéria e da República

Democrática do Congo.

Tal imigração tem gerado grupos e movimentos, a congregar estudantes africanos

em um processo de mobilização e organização em diversas agremiações estudantis,

cabendo destacar: a Associação de Estudantes Africanos no Estado do Ceará – AEAC, a

Associação de Estudantes da Guiné-Bissau no Estado do Ceará – AEGBECE, a Fundação

de Estudantes Cabo-verdianos nas Faculdades do Nordeste – FEAF e, o Movimento

Pastoral de Estudantes Africanos – MPEA. Este último movimento, hoje, revela-se com

maior articulação e visibilidade, destacando-se em ações de promoção e defesa dos 4 Ao longo dos oito anos do governo Lula, de 2003 a 2010, o intercâmbio estudantil entre o Brasil e países

africanos foi intensificado. Em seus dois mandatos, o presidente Lula visitou 27 países africanos, enquanto seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, visitou apenas três países.

Page 4: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

4

direitos dos estudantes africanos e denunciando as situações por que passam esses

sujeitos, por meio de reuniões entre estudantes e faculdades, elaboração de relatórios,

encaminhamento de processos na justiça e realização de manifestações públicas.

Na condição de estudante africano integrante dessa diáspora, sinto-me interpelado

a estudar esse fenômeno, problematizando-o como objeto de estudo. Neste artigo, procuro

compreender as questões de sexualidade, gênero, raça e suas interseccionalidades entre

imigrantes africanos e africanas na cidade de acolhida.

Nesse sentido, primeiro fiz uma contextualização da emergência da diáspora

africana nas relações entre Brasil e África. Em seguida, problematizo a noção de diáspora

como uma chave teórica e analítica para compreender a presença desses sujeitos. Em

terceiro, apresento reflexões sobre o encontro com a alteridade racial e cultural assim

como sobre as distinções entre os imigrantes. Depois discuto a questão da raça no

contexto migratório e o lugar dos imigrantes na cidade de Fortaleza. Em quinto, faço uma

reflexão sobre a condição das mulheres africanas, a questão do gênero, trabalho e

afetividades. E, por fim, abordo acerca das interações afetivo-sexuais entre os(as)

imigrantes e homens e mulheres brasileiros(as).

A diáspora africana em Fortaleza: considerações teóricas

Denomino “diáspora africana” à crescente presença de estudantes oriundos de

diversos países africanos – Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Nigéria,

República Democrática do Congo e São-Tomé e Príncipe – em Fortaleza. Pertencentes a

diversos grupos etnolinguísticos, tais sujeitos apresentam identidades multiculturais e

distinções de várias ordens a marcar as suas vidas em território cearense. Tal diáspora é

constituída majoritariamente por indivíduos do sexo masculino, predominantemente bissau-

guineenses e cabo-verdianos, com um contingente cada vez maior de mulheres.

A noção de diáspora, que movimento nesta pesquisa, é inspirado nos escritos de

autores dos estudos pós-coloniais, como Du Bois, Gilroy e Hall. Na sua acepção original, o

termo se reporta à dispersão do povo judeu pelo mundo. Entretanto, a utilização desse

termo se referindo às populações afrodescendentes é cunhada por Du Bois (2007),

inspirado na condição de populações negras em distintas regiões no continente americano,

que vivenciavam condições comuns de subalternidade e opressão, racializadas e

discriminadas por conta de seu passado escravo e tinham como principal característica em

comum, a experiência do sofrimento causado pela escravidão racial na modernidade.

Page 5: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

5

Já Hall (2011) utiliza a noção de diáspora para se referir às identidades

heterogêneas dos imigrantes oriundos da região do Caribe na Grã-Bretanha, seus mitos de

origem, as necessidades e os perigos que enfrentam sob a globalização. O autor faz uma

crítica às concepções essencialistas étnicas, raciais e nacionais da identidade acerca da

cultura e da política de localização, resgatando o conceito de identificação como um

processo de articulação e costura nunca completa, engendrada pelos sujeitos diaspóricos.

O conceito de identidade desenvolvido por ele apresenta-se como estratégico e

posicional. Seu argumento principal é de que na modernidade tardia, as identidades são

cada vez mais fragmentadas e fraturadas, multiplamente construídas ao longo dos

discursos, práticas e posições que podem ser cruzar ou ser antagônicas (HALL, 2010).

Na sua ótica, o que caracteriza as populações diaspóricas é a condição de

hibridismo. O autor vincula as discussões sobre identidade aos processos e práticas que

têm perturbado o caráter estabelecido de muitas populações e culturas nacionais, se

referindo aos processos de globalização, modernidade, migração forçada ou livre,

fenômenos esses que têm se tornados globais.

Assim, afirma a perspectiva de que as identidades e as identificações constituem

processos sempre em construção, a partir das negociações que os indivíduos efetivam ao

longo de suas trajetórias. Logo, em Hall, as identidades apresentam-se como processos

em aberto, em movimento, que expressam diferentes contextos sociais e trajetórias

peculiares de cada indivíduo, [...] “elas invocam uma origem que residiria num passado

histórico, têm a ver com a utilização de recursos da história, da linguagem e da cultura

para a produção não daquilo que somos, mas daquilo no qual nos tornamos” (HALL, 2010:

108-109).

Gilroy (2001) estuda a diáspora constituída pelas populações afrodescendentes nos

territórios que constituem o Reino Unido e EUA, optando pela designação Atlântico Negro.

O autor apresenta uma noção de diáspora distinta como negociação de rotas, uma

alternativa ao retorno às raízes, à metafísica da raça, da nação e de uma cultura territorial

fechada, codificada no corpo, perturbando a mecânica do pertencimento.

Esta versão da diáspora é distinta porque ela enxerga a relação como algo mais do que uma via de mão única. Ela nunca ofereceu apenas resposta aos interesses, tanto acadêmicos como políticos, que tentaram negar as sobrevivências africanas, seus contágios e as influencias da escravidão para além dela. Esta abordagem das relações diaspóricas surge depois que a lógica cultural da combinação, do tangenciamento e as suplementaridade foi estabelecida [...] (GILROY, 2001:21).

Page 6: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

6

Seu conceito de diáspora supera as definições essencialistas, até então usadas

para caracterizar as populações negras deslocadas de seus territórios de origem,

baseadas na raça negra e raízes cultuais no continente africano como território de origem.

Sua visão inovadora aponta para a diáspora em termos de negociação de rotas, de

intercâmbios entre culturas políticas que tomam lugar dentro de um contexto baseado na

memória social e como consciência e identidades ativamente produzidas pela experiência

daquilo que ele designa de terror racial – escravidão racial, sistema de plantação,

colonialismo, segregação – das populações negras e afrodescendentes.

Ao invés de uma visão de diáspora unificada partindo de África e suas raízes, Gilroy

(2011) propõe uma visão rizomática, encarando as comunidades negras conectadas em

distintos lugares a partir de uma memória social do terror racial. Assim, propõe a noção de

diáspora como alternativa ao conceito de raça, rompendo com o território, com o lugar de

origem, com a posição e com a consciência como fatores explicativos.

De fato, as noções de diásporas anteriores à sua obra situavam-na como algo

referente ao passado, como fenômeno racial, econômico-demográfico e como raiz cultural.

Gilroy (2011) e Hall (2001) pensam a diáspora para além dos essencialismos, encarando

como fruto da hibridização racial e cultural. Esses autores têm em comum, o fato de

pensarem as populações afrodescendentes espalhadas pelo mundo como uma realidade

racial e cultural criada pela memória social da escravidão, na qual, o hibridismo seria a sua

principal característica.

Por sua vez, Gordon & Anderson (1999) fazem uma análise dos modelos teóricos

desenvolvidos entorno do conceito de diáspora, concluindo que tais perspectivas

concentram-se em aspectos essencialistas comuns a várias populações afrodescentes ou,

direcionam seus focos na diáspora como condição de hibridização caracterizada pelo

deslocamento e identidades dispersas. Os dois autores recomendam a realização de

estudos de caráter etnográfico para uma melhor compreensão dos processos de

identificação diaspóricos e uma mudança de foco das pesquisas, passando-se a analisar

os processos através dos quais, as pessoas se identificam diante do outro enquanto

negros ou afrodescendentes.

Olhando o cenário migratório em estudo, percebo que a diáspora africana em

Fortaleza apresenta-se distinta das óticas dos autores acima mencionados, pois, ela

resulta de um processo suis generis de migração voluntária de indivíduos nos finais do

século XX, em busca de melhores condições de estudos e de vida.

Page 7: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

7

Africanos em Fortaleza: do encontro com a alteridade racial e cultural à política de

distinções

No contexto migratório de Fortaleza, os estudantes imigrantes africanos enfrentam

desafios cotidianos, particularmente, dificuldades econômicas de sobrevivência

considerando o elevado custo de vida nesta metrópole, em relação às suas possibilidades

financeiras. Parte significativa do contingente de estudantes afirma sentir-se discriminada

no cotidiano, por conta da cor da pele e da própria origem africana, em graus e formas

distintas das discriminações encontradas nos países de origem. Nas suas reflexões,

Gusmão (2006) circunscreve a própria posição do Brasil ao receber a diáspora africana:

Um país multirracial e integrante dos chamados “países emergentes”, mas que se

diferencia dos países europeus, até muito recentemente privilegiados na busca por

qualificação de quadros por parte dos Palop. Em questão, a posição de um país

relativamente periférico na divisão internacional do trabalho, com um passado

igualmente de colonização portuguesa e que, estruturalmente mestiço e negro,

pensa-se branco e europeu. Em debate, a existência de processos intensos de

discriminação e racismo na realidade brasileira e a percepção e a vivência do sujeito

negro e africano nesse contexto (GUSMÃO, 2006:16).

Os estudantes imigrantes africanos integrados às universidades federal e estadual,

que constituem a minoria e, sobrevivem das bolsas do PEC-G e de outros convênios

firmados entre o Brasil e seus países de origem. Já o segmento maior que estuda em

faculdades particulares, recebe dinheiro das famílias para pagar mensalidades e manter-se

na faculdade, complementando a sua renda por meio de trabalhos clandestinos – em lojas

e mercadinhos, salões de beleza, oficinas, fábricas e construções, restaurantes ou mesmo,

nos estacionamentos de grandes shoppings centers e supermercados, ou, ainda, em

“casas de família” como babás – para assim, garantir a sobrevivência e a própria

locomoção na cidade.

Dentro deste grupo de estudantes imigrantes inseridos nas faculdades particulares,

um segmento deles, particularmente mulheres jovens, nos tempos livres, dedica-se ao

comércio de roupas e calçados entre Fortaleza, São Paulo e seus países de origem.5 Um

grupo seleto de estudantes de faculdades particulares, com destaque para os cabo-

5 As rotas comerciais também incluem o trajeto Fortaleza, São Paulo, Lisboa. Durante a pesquisa etnográfica

e convivência com este grupo, presenciei discussões telefônicas entre familiares e parceiros por conta de dívidas em dinheiro e compromissos não cumpridos na venda de roupas africanas. Por outro lado, também tenho notícia de africanos presos por tráfico internacional de drogas em aeroportos brasileiros e portugueses nesses trajetos.

Page 8: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

8

verdianos, sobrevive e estuda de forma tranquila, graças ao dinheiro enviado por familiares

residentes em África e por parentes imigrantes em países da Europa e América do Norte.

As faculdades particulares, – como mecanismo de atração – dizem garantir estágios

remunerados para estudantes ao final dos cursos de Administração, Contabilidade,

Marketing, Comunicação, Ciências e Gestão de Informação. Na realidade, são oferecidos

aos estudantes africanos, “estágios remunerados” que são formas de trabalho precário

como panfleteiros, vigias de lojas nos shoppings centers e em estacionamentos ou como

operadores de vigilância eletrônica, em um artifício usado para contornar a norma que os

proíbe de trabalhar.

No cotidiano, os estudantes africanos percebem a dificuldade dos brasileiros em

chamá-los pelos nomes próprios, substituindo-os pela categoria nativa brasileira “negão” e

facilmente esquecem as nacionalidades e os nomes dos países de origem, diluindo tudo

na categoria genérica de africano. Mendes (2010:98) enfatiza que, “os estudantes

africanos não estão inteirados dos limites sociais tradicionalmente construídos pelos

brancos para segregar os negros. Não estão informados desses espaços de exclusão, eles

rompem as fronteiras estabelecidas e transitam em espaços brancos”.

Os estudantes imigrantes africanos, nos percursos cotidianos em Fortaleza,

percebem a distância social dos brasileiros negros que, muitas vezes, acreditam que os

africanos são playboys, sujeitos ricos oriundos das elites políticas africanas, ou então são

indivíduos que vêm ao Brasil ocupar os lugares que, por direito, seriam seus. Existe ainda

entre os brasileiros negros a representação de que os africanos são cotistas, isto é,

estudantes beneficiários das cotas raciais no ensino superior no Brasil. A rigor, as formas

de interação dos estudantes africanos com a população cearense, no cotidiano, tende a

expressar mecanismos de discriminação, colocando-os na posição de outsiders.

Contrariamente às percepções e representações da sociedade de acolhida que os

unifica, encarando-os como sujeitos homogêneos e oriundos de uma África – idealizada no

imaginário social brasileiro–, estudantes africanos(as) não se sentem iguais. Sentem-se

diferentes uns em relação aos outros na condição de imigrantes de diferentes países

africanos e, até mesmo, quando pertencem a regiões distintas de um mesmo país,

manifestam “estranhamento” uns em relação aos outros.

Na realidade, os imigrantes distinguem-se entre si no tocante à nacionalidade,

gênero, classe, renda, status, origem familiar e, principalmente pelo consumo de roupas,

calçados, aparelhos celulares, demonstrando a existência de distinções e hierarquizações

Page 9: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

9

sociais (BOURDIEU, 2008).6

Assim, no cotidiano da diáspora africana emergem distinções sociais e diferenças

identitárias entre os próprios estudantes que se distinguem, segundo o sexo, a cultura, a

religião – se é islâmica, evangélica ou católica –, conforme o país de origem e seu nível de

riqueza – rico ou pobre –, conforme a região de origem – se é rural ou urbana –, de acordo

com a classe social, nível de renda familiar e prestígio social. E, também se diferenciam

conforme o nível acadêmico e tipo de instituição de ensino que frequentam – se é pública

ou particular, se é federal ou estadual –, de acordo com as marcas de roupa que vestem,

com o estilo de vestir e música que escutam – se é ocidental, africana ou brasileira – e, até

mesmo com o tipo e marca de bebida que consomem.

De fato, pesquisas com estudantes africanos em países europeus e no Brasil

mostram que, mesmo sendo tratados como homogêneos pelos países de acolhida e de

habitarem os mesmo espaços e “[...] serem em tudo semelhantes, pela mistura racial,

pobreza, muitas vezes, eles não se veem como iguais, se estranham e se odeiam

mutuamente” (GUSMÃO, 2006:11). Após certo período de convivência em Fortaleza, em

contato com novas realidades culturais, religiosas, de gênero e de sexualidade, os

estudantes africanos vão se adaptando, se aculturando, mas, ao mesmo tempo, esboçam

formas de resistência aos novos valores.

O contexto migratório e o lugar dos estudantes imigrantes africanos em Fortaleza

As profundas transformações mundiais na modernidade, aceleradas pelos

processos de globalização e mundialização do capital, o capitalismo informacional, as

mudanças nas conexões entre tempo e espaço, trocas transnacionais, aceleração dos

deslocamentos mundiais, fluxos de imigrantes vendo mudando as paisagens urbanas das

grandes metrópoles. Como consequência, os modelos de análise tradicionais utilizados

pelas ciências sociais não mais dão conta das transformações político-econômicas,

espaciais, culturais e identitárias vivenciadas nas grandes metrópoles, particularmente,

quando contam com a presença de grupos imigrantes.

Appadurai (2004) aponta que os meios de comunicação eletrônicos e as migrações

são a marca do mundo presente, no qual, as imagens, os textos, os modelos e as

6 De acordo com Bourdieu (2008), a distinção corresponde a uma estratégia de diferenciação que está no

âmago da vida social. É uma propriedade relacional que marca um desvio, uma diferença em relação a outrem e que funda uma hierarquia entre indivíduos e grupos, constituindo o suporte de estratégias inscritas nas práticas sociais.

Page 10: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

10

narrativas que chegam pelos meios de comunicação de massa marcam a diferença entre

as migrações do passado e as atuais.

No caso da imigração de estudantes africanos para o Brasil, é necessário lembrar

que aliada aos convênios educacionais, a televisão e as mídias eletrônicas desempenham

papel importante na transmissão de imagens. As telenovelas brasileiras que, há mais de

duas décadas invadem os lares em países africanos de língua portuguesa desempenham

papel de destaque neste processo de tradução cultural. 7 Mais recentemente, a presença

de igrejas evangélicas brasileiras nesses países tornou ainda mais favorável, a ideia de

Brasil no imaginário social africano. Por outro lado, as mídias e redes sociais como Yahoo,

Orkut, Facebook, vêm desempenhando papel de intermediário nesta interação global

desigual, por meio de notícias, publicidade, fotografias, contas, perfis, fan pages e profiles.

É nesse contexto de emergência de diversos fenômenos transnacionais que

imigrantes africanos passam a circular nas ruas e, emergem como estudantes nas

universidades públicas e faculdades particulares, colorindo com suas roupas, cabelos e

tons de pele a etnopaisagem 8 de Fortaleza. Para sobreviver, pagar contas, mensalidades

das faculdades e se locomover, trabalham como garçons e garçonetes em restaurantes e

clubes noturnos, particularmente, na zona litoral e em restaurantes localizados em zonas

privilegiadas da cidade, cujos donos são gringos europeus. 9 Desempenhando as mesmas

funções ou como seguranças em restaurantes, churrascarias, supermercados, shoppings

centers de brasileiros, mas também empregados em lojas de comerciantes coreanos e

chineses no centro da cidade como atendentes, vendedores, e por fim como mecânicos,

soldadores, eletricistas em pequenas oficinas de brasileiros. Memmi (2007) bem descreve

a aparição de sujeitos imigrantes em metrópoles coloniais:

Em suma, o metropolitano aceitaria o imigrante se ele fosse invisível e mudo; ora, a partir de certa densidade demográfica, o fantasma adquire uma terrível consistência; ainda mais pelo fato de que, mais seguro por causa do número, ousa, ao contrário, falar alto, e em sua língua natal, a às vezes vestir-se com seu traje tradicional. (MEMMI, 2007:108).

7 De acordo com Spivak (2010) apud Costa (2012) a noção de tradução cultural – esboçada a partir da teoria

e práticas etnográficas e, posteriormente explorada pelas teorias pós-coloniais – baseia-se na visão de que qualquer processo de descrição, interpretação e disseminação de ideias e visões de mundo está sempre preso a relações de poder e assimetrias entre linguagens, regiões e povos. 8Expressão utilizada por Appadurai (2004) para designar paisagens de pessoas que constituem o mundo em

deslocamento que habitamos: turistas, imigrantes, refugiados, exilados, trabalhadores convidados e outros grupos e indivíduos em movimento, que constituem um aspecto essencial do mundo e parecem afetar a política das nações e entre as nações sem precedentes. 9 Expressão nativa brasileira usada para designar o turista estrangeiro de raça branca, normalmente, europeu

e norte-americano.

Page 11: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

11

Em 2011, a Polícia Federal do Ceará registrou mil, duzentos e sessenta estudantes

africanos no estado, dos quais mil cursavam diversas faculdades particulares, cento e

trinta estavam integrados na Universidade Federal do Ceará e vinte na Universidade

Estadual do Ceará, sendo a maioria proveniente dos países africanos de língua oficial

portuguesa (BRÁS, 2011).

De fato, o número de imigrantes se apresenta muito maior do que o cadastrado pela

Polícia Federal, pois muitos estudantes imigrantes se encontram em situação irregular.

Geralmente, no ano seguinte de estada em Fortaleza, um número significativo dos

imigrantes não consegue prorrogar o visto de estudante com o qual entrou no Brasil e,

parte dos estudantes africanos chega a Fortaleza vindo de outros estados brasileiros. Uma

parcela significativa de estudantes, a maioria, vinculada às faculdades particulares,

vivenciam condições precárias de vida.

Neste esforço de apropriar-me dos percursos da diáspora africana em Fortaleza,

entendo, particularmente, ser fundamental compreender as experiências de deslocamentos

das mulheres africanas e suas vivências em Fortaleza, a partir do estudo de suas

identificações, construções identitárias, inserções e interações. Nas linhas seguintes,

abordos as experiências, os dramas sociais e as interseccionalidades dessas mulheres.

Neste cenário, impõem-se várias questões analíticas: que mudanças a experiência

de migração produz nas identidades destas jovens mulheres? Como pensar suas

inserções em uma sociedade racializada? Quais os seus lugares na estrutura social e

como se dá a inserção social dessas mulheres na sociedade de acolhida?

Ser mulher, negra, imigrante e africana em Fortaleza: escola, trabalho, gênero, raça,

afetividade e suas interseccionalidades

As mulheres constituem minoria entre os estudantes imigrantes africanos. Tal

situação parece refletir a existência de sistemas patriarcais e desigualdades de gênero em

suas sociedades de origem, nas quais, as famílias preferem investir na educação dos filhos

do sexo masculino em detrimento das meninas, por questões de herança e continuidade

da linhagem. De fato, em muitas sociedades africanas, o acesso à educação, emprego

ainda não está universalizado, particularmente, aquelas com populações islamizadas, onde

esses direitos tornam-se ainda mais restritos para as mulheres.

Entretanto, faz-se necessário esclarecer que neste trabalho, ocupo-me de mulheres

africanas imigrantes não como vítimas, mas como protagonistas. Penso nessas mulheres

Page 12: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

12

como personagens com capacidade de ação nas tramas do cenário migratório, e de

encontrar soluções próprias para o seu dia-a-dia.

De fato, alguns estudos sobre populações diaspóricas e imigrantes apresentam as

mulheres como vítimas, oprimidas, sem capacidade de agência. Na cidade de Fortaleza,

mulheres e homens imigrantes de distintos países africanos têm revelado capacidade de

adaptação, se locomovendo pela cidade e levando consigo a cultura, identidade e

estruturas de seus países de origem.

No seu estudo, Gilroy (2001) chama atenção para as discussões sobre o lugar do

gênero na diáspora e como o corpo das mulheres entraram nos discursos nacionais e

tornaram-se lócus da produção das diferenças étnicas e da continuidade das linhagens.

Em Fortaleza, a maioria das mulheres africanas está em cursos de graduação em

faculdades privadas, poucas conseguem “furar a peneira” e cursar pós-graduação. Além

da desigualdade econômica, no acesso à educação, de gênero e de classe, as mulheres

africanas sofrem também com o racismo nas ruas, instituições de ensino e nos locais de

trabalho, ainda que nem sempre, explicitamente, reconhecido como forma de opressão.

Elas desempenham papéis importantes e ocupam lugares distintos na reprodução física e

cultural da diáspora.

As diferenças de gênero se tornam extremamente importantes nesta operação anti-política, porque elas são o signo mais proeminente da irresistível hierarquia natural que deve ser restabelecida no centro da vida diária. As forças nada sagradas da biopolítica nacionalista interferem nos corpos das mulheres, encarregada da reprodução da diferença étnica absoluta e da continuação de linhagens de sangue específicas. A integridade da raça ou da nação, portanto emerge como a integridade da masculinidade. Na verdade, ela só pode ser uma nação coesa se a versão de hierarquia de gênero for instituída e reproduzida. (GILROY, 2001:18-19).

Diante da alteridade, das distintas formas de discriminação e de inclusão, ocorrem

processos de interpelação racial e de ressignificação identitária (Sahlins, 1990) 10, nos

quais, as africanas passam a assumir-se como mulheres negras, heterossexuais,

estudantes e trabalhadoras e pertencentes às diferentes igrejas cristãs. Tais

ressignificações identitárias são fruto do encontro com a diversidade racial, sexual, de

gênero e de classe no Brasil.

As dificuldades e distintas formas de discriminação enfrentadas pelas imigrantes

10

Sahlins (1990) usa a noção de ressignificação em referência aos novos sentidos atribuídos pelos indivíduos às suas ações. Na sua ótica, dependendo do contexto vivido, historicamente situado, pode haver mudanças na relação de posições entre as categorias culturais dos indivíduos.

Page 13: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

13

africanas, suas interpelações raciais e ressignificações identitárias assemelham-se aquilo

que Turner (2005) define como dramas sociais 11, ou seja, dificuldades de se recriar

universos sociais e simbólicos no mundo contemporâneo, onde os indivíduos se veem

sozinhos e abandonados diante da responsabilidade de darem sentido à sua vida. De

acordo com o autor, o drama social seria uma experiência vivida que remete à noção de

perigo, propiciando aos indivíduos acesso ao universo social e simbólico, que opõe o

cotidiano ao extraordinário.

Os estágios remunerados – que, na realidade são formas de trabalho precário –

representam uma forma de inserção das mulheres africanas no mercado de emprego, a

partir dos quais, boa parte delas é atraída para os cursos como administração,

enfermagem e áreas afins que, ainda a meio do curso, garantem empregos como

enfermeiras, atendentes, garçonetes, etc. Outro segmento importante dessas jovens

mulheres consegue emprego em pequenos comércios como atendentes em padarias,

lanchonetes, sorveterias, papelarias, assim como conseguem alguma renda trançando os

cabelos de africanas(os) e brasileiras(os) negros, de modo a sobreviver e se locomover na

cidade.

Aliado às rendas conseguidas nesses trabalhos e biscates, a maioria das

estudantes recebe apoio financeiro de familiares em África e, de irmãos e namorados

residentes no Brasil, de modo a garantir a sobrevivência na diáspora. Por outro lado, é

necessário destacar a adesão dessas mulheres às diferentes igrejas – evangélicas,

batistas, adventistas, mórmons, católicas – brasileiras, como uma forma de inserção social

e de diminuição da vulnerabilidade. As igrejas costumam abrir oportunidades de emprego,

escolaridade e até de casamentos, desde que se mantenham fiéis às congregações

religiosas.

A imigração para o Brasil apresenta-se como uma experiência vivida 12, única e

significativa, sentida de forma intensa que, forma e transforma a vida e trajetória dessas

11

De acordo com Dawsey (2005) apud Turner (2005), o drama social aparece como um modelo de leitura da realidade em sociedades tribais, pensado em quatro momentos: ruptura, crise e intensificação da crise, ação reparadora e desfecho. O drama apresenta-se como um momento importante de reparação da crise, já a ruptura assemelha-se a uma revolução, e a intensificação da crise com as dificuldades encontradas para ressignificar o mundo e, finalmente, a crise como a responsabilidade de dar sentido ao seu universo. 12

Turner (2005) define literalmente experiência como “tentar, aventurar-se, correr riscos”, onde experiência e perigo derivam da mesma raiz. Turner distingue três tipos de experiências: a experiência cotidiana que diz respeito à experiência simples, passiva, de aceitação dos eventos cotidianos; experiência vivida, experiência única que acontece ao nível da percepção como a dor ou o prazer que podem ser sentidos de forma mais intensa e; experiências formativas que se distinguem de eventos externos e reações internas a elas, como a iniciação a novos modos de vida, aventuras amorosas, que podem ser pessoais ou partilhadas.

Page 14: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

14

jovens mulheres. Quase sempre, a experiência migratória é ressignificada de forma

positiva, vista como oportunidade de formação, aprendizado e crescimento na carreira

profissional. Porém, também é vista uma mudança no modo de ser e estar na vida por

conta das dificuldades econômicas, em conseguir trabalho, pagar contas pessoais, inserir-

se profissionalmente e afetivamente.

Nesse sentido, pode-se pensar na existência de identidades em processo as

mulheres africanas, moldadas pelas negociações que vão efetuando ao longo de suas

trajetórias em Fortaleza, que modificam o seu “eu” interior, seu modo de ver e de estar na

vida.

Afetividades subalternizadas: o lugar das mulheres africanas no mercado afetivo

Em termos de interações afetivo-sexuais vivenciadas pelas africanas verificam-se

diversas formas de arranjos, namoros com africanos – do mesmo país/etnia ou de

país/etnia diferente –, e com homens brasileiros, muitas vezes, em nítidas relações de

submissão a envolver dependência econômico-financeira.

As mulheres africanas costumam relacionar-se, particularmente, com homens que

contribuam para seu equilíbrio financeiro. Nesse cenário, percebo que as mulheres negras

– particularmente as africanas – ocupam o último lugar em termos de preferencias afetivas

em Fortaleza. Entretanto, tal realidade também se mostra válida para os homens africanos.

De fato, pesquisas de Berquó (1987) chamam atenção para a existência de um

maior quantitativo de mulheres negras morando sozinhas no Brasil, na condição de viúvas,

solteiras ou separadas. A este fenômeno afetivo, Silva (2008) designa metaforicamente de

“solidão da mulher negra”. Tal solidão deve principalmente por conta da subjetividade e

preterimento afetivo de mulheres negras por parte de homens negros e brancos, numa

sociedade brasileira racialmente hierarquizada.

Fanon (1983) chama atenção para a existência de um número de frases, provérbios

e linhas de conduta – entre as mulheres negras – que regem a escolha de um namorado

branco e de rejeição do homem negro, em sociedades coloniais. O autor chama atenção

para a condição de submissão das mulheres negras nos relacionamentos com homens

brancos, questionando sobre a possibilidade de existência de amor verdadeiro nessas

interações, pois, seriam caracterizadas pelo sentimento de inferioridade interiorizado pelas

últimas. Fanon (1983) argumenta que a mulher negra entra nesses relacionamentos numa

posição desigual, sendo sempre desprezada e nunca tolerada no meio social branco, cujo

Page 15: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

15

amor pelo homem branco seria impossível e proibido em todas as sociedades.

As mulheres africanas imigrantes em Fortaleza apresentam escolhas afetivas

distintas e independentes da raça, mas, revelam preferências por aspectos como classe

social e etnia. Assim, entre estas, verificam-se poucos relacionamentos com homens de

países distintos dos seus, ou por homens com pouco poder econômico.

Diante da experiência de preterimento afetivo, as jovens africanas apresentam

diversas estratégias de autoestima e inserção nesse mercado afetivo, que vão do

investimento na estética e valorização da aparência pessoal, a frequência à salões de

beleza e academias de ginástica, dentistas, ao uso de diversos acessórios como óculos,

pulseiras, colares, bolsas. Assim como por meio de trajes e roupas abrasileiradas ousadas,

– vestidos com decotes, saias e shorts curtos – ou de roupas africanas coloridas, mas

também, através do uso de cosméticos da linha black power, tranças africanas, apliques,

extensões e mechas nos cabelos.

Como diria De Certeau (1998), as mulheres africanas têm as “suas estratégias e

táticas" de inserção e sobrevivência no mercado afetivo-sexual de Fortaleza. De fato, em

seus relatos, as mulheres africanas apontam diferenças significativas nos seus

relacionamentos com homens africanos e com brasileiros, nos quais, os últimos aparecem

como mais carinhosos menos algozes, demonstrando assim, que trocam “olhares”, flertam

e interagem com homens brasileiros.

Nesses relacionamentos percebe-se a sua preferência por homens de certa classe

social ou poderio econômico, ou que sejam sensíveis à sua condição financeira. Mas

também por homens que trabalhem e que contribuam para pagar as despesas cotidianas.

Em tais relações, parece haver certa preferência por homens brasileiros, por

representarem maiores oportunidades de inserção, contatos e conhecimentos na cidade.

É necessário ressaltar o papel da violência, que parece permear e estruturar suas

relações afetivas com homens africanos, tidos como “brutos”. De fato, são notórias as

queixas de mulheres africanas e brasileiras sobre a violência nos relacionamentos com

homens africanos.13 Nos discursos das africanas, percebe-se produção do homem

13

São incontestes os episódios de violência física e simbólica de homens africanos em seus relacionamentos com mulheres africanas e brasileiras. Tal fato torna-se visível pela quantidade de denúncias feitas por amigos e vizinhos e pelos Boletins de Ocorrência abertos, por mulheres brasileiras na única Delegacia da Mulher existente em Fortaleza. Se as mulheres brasileiras denunciam essas situações e dirigem-se à delegacia, as mulheres africanas parecem consentir tal violência. Assim, torna-se necessária uma pesquisa sobre a violência no namoro e no ficar com homens africanos nesta diáspora e o diferencial nas reações entre mulheres africanas e brasileiras diante da violência.

Page 16: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

16

brasileiro como ideal – carinhoso, diferente, mas também ciumento –, criando-se uma

escala hierarquizada de “brutalidade masculina” diferenciada entre os homens brasileiros e

homens africanos. Entretanto, suas falas parecem ignorar ou invisibilizar a “brutalidade”

advinda do relacionamento com o homem brasileiro de maior poderio econômico.

A inversão de papéis nas interações afetivas entre homens africanos e mulheres

brasileiras

Nos encontros cotidianos, em diferentes situações e circunstâncias, cearenses e

africanos, de ambos os sexos, olham-se de forma ambivalente, discriminando-se e

sexualizando-se. Nas interações, os estudantes imigrantes africanos, na condição de

negros e imigrantes, portanto, sujeitos marginais, são colocados em posição inferior e de

subalternidade, ocupando um lugar secundarizado em termos de preferências afetivas

para relacionamentos estáveis. Ao mesmo tempo em que são objeto de estigma, os

estudantes africanos são também objeto de desejo sexual para encontros fortuitos, sem

compromissos afetivos.

Por sua vez, os africanos também desenvolvem olhares estigmatizantes em relação,

sobretudo, às mulheres negras brasileiras e à população composta por lésbicas, gays,

bissexuais e travestis (LGBT). No entanto, no âmbito da diáspora africana, tem-se, ainda

com menor expressão e visibilidade, trocas de olhares entre africanos(as) e brasileiros(as)

do mesmo sexo que, assumem distintas identidades como homossexuais, gays, e lésbicas,

em relações veladas, subterrâneas, não assumidas em público.

Torna-se necessário considerar o universo simbólico que circunscreve os negros no

imaginário brasileiro, pois, os olhares que discriminam e, ao mesmo tempo, sexualizam

negros e negras africanas têm raízes históricas no Brasil, remontando ao período da

escravidão, com ressignificações contemporâneas.

De fato, as relações afetivo-sexuais entre africanos(as) e brasileiros(as) são

dominadas por representações hipersexualizadas acerca do outro, no tocante às

performances, aptidão e tamanho dos órgãos sexuais, revelando desejo e fetiche sexual

acerca do homem africano, tido, no imaginário social, como bom de cama, insaciável, com

performances sexuais acima da média e sempre disponível para satisfazer fantasias de

mulheres e homens cearenses. Já no interior da diáspora africana, o Brasil é visto como

um lugar exótico, país do carnaval e da sexualidade liberada, caracterizado pela

diversidade sexual e de gênero.

Page 17: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

17

Durante os momentos de interação, há esforço de africanos e de brasileiros para

encarnar estereótipos existentes acerca da sexualidade do outro, dominados por

curiosidade e interesses mútuos onde a raça é peça fundamental da diferença cultural.

Nesse tipo de busca, e aproximações, a iniciativa pode partir tanto de africanos, assim

como de brasileiros. Tais encontros articulam gênero, raça, etnicidade e são mediados por

sexo, afetos, presentes e dinheiro (PISCITELLI et al., 2011).14

É fato inconteste que raça, sexo, formas corporais e cabelos apresentam-se como

fatores de atração, existindo preferência de africanos por mulheres brasileiras corpulentas,

de pernas grossas, de pele mais clara e, particularmente, por mulheres louras. Nesse

mercado sexual, africanos têm preferência por mulheres brasileiras brancas em detrimento

das brasileiras negras e das mulheres africanas. Em seu habitus, os estudantes tendem a

gostar de “mulheres cheinhas”, com carne, com seios e bundas avantajadas, tal é tipo ideal

de mulher gostosa, propalada pelos africanos.

Já entre mulheres brasileiras, existe a atração por africanos de pele mais escura,

pelos mais altos e de corpo atlético. Normalmente, as brasileiras que se interessam pelos

estudantes africanos são mulheres brancas mais velhas, coroas,15 mas também moças

das classes populares, mulheres gordas, ou que não se enquadram no ideal estético e de

beleza imposto pela sociedade do capital e sua lógica de mercantilização e do

consumismo. Algumas dessas mulheres possuem uma renda mediana ou alta, poder de

compra e de consumo, carro, casa própria, carreira profissional, condições que, muitas

vezes, atraem os caça-brasileiras,16 jovens estudantes imigrantes africanos que somente

se relacionam afetiva e sexualmente com mulheres brasileiras.

Tais preferências afetivo-sexuais, fundadas em determinados atributos tidos como

desejáveis e atraentes – raça, origem, cor do cabelo, formato do corpo, classe, posição

social, renda e outras formas de afirmação e diferenciação – encarnam múltiplas

expressões discriminatórias, configurando aquilo que Crenshaw (2002) e Piscitelli (2008)

designam de “discriminação interseccional ou interseccionalidade”.

14

Em seu trabalho, Piscitelli (2011) interessa-se, particularmente, pelas interações afetivo-sexuais entre imigrantes do sexo masculino de países pobres com mulheres, gays e travestis de outros mais desenvolvidos, que envolvem estereótipos, relações de dominação, casamentos binacionais etc. 15

Categoria nativa brasileira com que são designados homens e mulheres mais velhos. Tal termo é ressignificado pelos imigrantes africanos que, passam a chamar de coroas não somente mulheres mais velhas, mas também mulheres que não se enquadram no ideal estético feminino vigente no Brasil. Assim, o uso do termo é ampliado às mulheres gordas e outras não muito bonitas. 16

Termo inspirado em Cantalice (2009), na sua análise acerca das interações afetivo-sexuais entre jovens brasileiros e turistas do sexo feminino de países nórdico-europeus.

Page 18: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

18

Crenshaw (2002) argumenta que as discriminações de raça, etnia, gênero, classe,

renda, não são mutuamente excludentes, e assim, muitas vezes se sobrepõem e se

intersectam, criando complexas conexões onde se juntam dois, três ou mais elementos.

Assim, a autora propõe a noção de discriminação interseccional como uma ferramenta

capaz de circunscrever hibridizações nos processos discriminatórios. Tomando como

exemplo a discriminação racial, a autora norte-americana aponta que, em determinados

contextos, esse fenômeno se apresenta de maneira específica e diferenciada para os

indivíduos, atingindo, de formas distintas, homens e mulheres.

Já Piscitelli (2008) propõe a interseccionalidade como categoria analítica para

apreender a articulação de múltiplas formas de diferenças e desigualdades, esclarecendo

que em muitas situações, não se trata somente de discriminação racial, étnica, sexual, de

gênero ou de classe em esferas separadas, mas, sim, da diferença em seu sentido amplo

a articular múltiplas expressões de discriminação. Tal noção se baseia na premissa de que

as pessoas têm identidades múltiplas, derivadas das relações sociais, históricas e

estruturas de poder, experimentando de forma diferente as várias formas de dominação e

discriminação nas suas trajetórias.

Cumpre salientar que as interações entre jovens africanos e mulheres brasileiras

também ocorrem em meio a tensões e choques culturais e, alguns africanos sentem-se

usados em relacionamentos permeados de poder e de dominação (BOURDIEU, 2002).

Nessas relações, as mulheres brasileiras bancam quase tudo, ou seja, pagam as contas

no cotidiano, em supermercados, lojas, restaurantes, aluguel de apartamentos,

mensalidades das faculdades e outras formas de ajuda. E, o fato de mulheres brasileiras

não assumirem, publicamente, o relacionamento afetivo com africanos, o caráter

descartável das relações, o ficar – relações fugazes e fluídas que podem durar de algumas

horas a uma semana, ou um mês no máximo, são outras situações que representam

violência simbólica17 que atingem homens africanos na sua autoestima, ao mesmo tempo

que viabilizam melhores condições de vivência na diáspora.

Nesse padrão de interação, são as brasileiras quem mandam e ditam os momentos,

as circunstâncias e os lugares em que estas relações podem ocorrer. Nesses processos,

17

De acordo com Bourdieu (2002), a violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante quando ele dispõe – para pensar e para se pensar, ou para pensar a sua relação com ele- mais do que instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, faz esta relação ser vista como natural. Assim, as classificações são incorporadas e naturalizadas, como por exemplo, alto/baixo, masculino/feminino, negro/branco.

Page 19: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

19

os homens africanos terminam por experienciar posições inversas que as assumidas no

contexto das suas terras de origem, perpassadas de configurações machistas, de

dominância e mando.

Fanon (1983) argumenta que os relacionamentos interaciais entre negros e brancos

revelam uma antiga política adotada de forma consciente ou não de embranquecimento da

raça negra – uma tentativa de salvar/melhorar a linhagem familiar, de modo a assegurar a

brancura das gerações seguintes. Na sua ótica, a prática do embranquecimento da raça

reflete a valorização da raça branca e ao mesmo tempo o complexo de inferioridade de

homens e mulheres negros(as). Tais relações revelariam relações de poder e de

dominação existentes entre brancos e negros ao longo da história humana, criados

primeiro na esfera econômica e social e, depois interiorizados pelos indivíduos. 18 O autor

mostra-se crítico em relação aos casamentos interaciais, considerando-os reveladores da

prática de embranquecimento da raça, adotada pelos negros diante do mundo branco

como estratégia de ascensão social e de melhoria de sua raça e de futuras gerações.

De fato, em muitas sociedades coloniais, ter filhos mestiços ou brancos permite a

determinadas famílias uma melhoria na posição social, assim como o acesso a lugares

econômicos e políticos de prestígio, que normalmente são de difícil acesso para os mais

escuros, assim como evita os constrangimentos da discriminação racial.

18

Fanon (1983) desenvolve uma análise da subjetividade de gênero e de raça em sociedades coloniais na década de 1950, privilegiando a diferença sexual para compreender a dimensão psíquica do racismo. Para tal, apresenta um esquema geral relativo a sociedades coloniais, mas que ele considera ser válido para todos os países, no qual, o homem branco é representado como senhor ou como macho que, pode se relacionar com muitas mulheres negras, muitas vezes, pelo estupro. O autor conclui que, mesmo havendo segregação entre brancos e negros em várias sociedades coloniais, verificava-se a existência de uma grande quantidade de indivíduos mestiços. Nessas sociedades, quando uma mulher branca se envolvia com um homem negro, a relação toma um aspecto romântico, considerado uma dádiva e não um estupro. Nas sociedades coloniais haveria uma tendência para aceitação de relacionamentos afetivos entre homens brancos e mulheres negras, mas ao mesmo tempo, uma recusa de relacionamentos afetivo-sexuais entre homens negros e mulheres brancas ou mulatas.

Page 20: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

20

Conclusões preliminares

Este trabalho representa uma tentativa de compreender o cotidiano da vida de

jovens africanos e africanas residentes em Fortaleza, a partir do gênero, educação, classe,

renda, raça, sexualidade e outras categorias interseccionais. Parti da noção de diáspora

como unidade analítica e explicativa da trajetória desses sujeitos imigrantes, a partir das

visões de autores como Gilroy, Hall, autores que apresentam uma visão rizomática e

antiessencialista acerca da diáspora, explorando a heterogeneidade das construções

identitárias e seus hibridismos.

A diáspora africana em Fortaleza demonstra ser um fenômeno suis generis,

constituída por indivíduos de diferentes países, diversidade etnolinguística, cultural e

nacional, com gênese em acordos de cooperação na área de educação. Ela emerge em

determinado contexto histórico das relações político-econômicas entre Brasil e África,

intensificada por um discurso governamental de cooperação e aproximação entre países

irmãos – que falam a mesma língua e apresentam culturas próximas frutos da escravidão.

Tal diáspora tem gerado grupos e movimentos estudantis africanos, envolvidos em

processos de mobilização para a conquista e defesa de seus direitos. Suas grandes

características são a distinção e a hierarquização, pois, à medida que o número de

indivíduos aumenta a diáspora complexifica-se, abrindo espaços para diferenciações

segundo a nacionalidade, grau de riqueza do país, classe social, gênero, religião, status e

origem familiar, mas também pelo consumo de roupas, calçados, aparelhos celulares, etc.

Diante da alteridade, as mulheres imigrantes ressignificam suas identidades,

afirmando-se negras, heterossexuais, estudantes, trabalhadores e cristãs, vivenciando

dramas sociais distintos daqueles vivenciados pelos homens – uma menor inserção e

adaptação e o preterimento no mercado afetivo. Mesmo assim, elas apresentam suas

estratégias e táticas, interagindo afetivamente com brasileiros e africanos independente da

raça, mas de acordo com a nacionalidade e classe social e, em nítidas relações de

submissão a envolver dependência econômica. Já entre os homens africanos, percebe-se

uma preferência por mulheres brancas, mas também ocupando uma posição inferior, de

subalternidade e secundária em termos de preferências afetivas, vivenciando uma inversão

de posições inversas das relações de poder e mando assumidas em suas sociedades de

origem. Tornando-se objeto de desejo para encontros fortuitos, para ficar. Neste cenário,

raça, sexo, formas corporais, cabelos, mas também classe e renda apresentam-se fatores

de atração e de rejeição na diáspora, onde os sujeitos ocupam posições mutáveis.

Page 21: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

21

Referências

APPADURAI, ARJUN. Dimensões Culturais da Globalização: a modernidade sem

peias. Trad. Telma Costa. Lisboa: Teorema, 2004.

BECKER, HOWARD. Outsiders: estudo de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 2008.

BERQUÓ, Elza. Nupcialidade da População Negra no Brasil. Campinas: NEPO

UNICAMP, 1987.

BHABHA, Homi. A Outra Questão: o estereótipo, a discriminação e o discurso do

colonialismo. In:_________. O Local da Cultura. 5ª reimp. Belo Horizonte: Editora UFMG,

2010. cap. III. p. 105-128.

BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. 1ª reimp. São Paulo:

Edusp, 2008.

______. Questões de sociologia. Lisboa: Fim de Século, 2003.

______. A Dominação Masculina. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

BRÁS, Janaína. [Estudantes] Africanos na Capital sentem ‘na pele’ o preconceito. O Povo,

Fortaleza, 22 de ago. 2011. Especial, p. 4.

CANTALICE, Tiago da Silva T. “Dando um Banho de Carinho!”- os caça-gringas e as

interações afetivo–sexuais em contextos de viagem turística (Pipa-RN). 2009. 260 p.

Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas.

Universidade Federal de Pernambuco- RE, 2009.

COSTA, Cláudia. Feminismo e Tradução Cultural: sobre a colonialidade do gênero e a

descolonização do saber. Portuguese Cultural Studies, v. 4. 2012, p. 41-65.

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da

discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, v.10, n.001, jan.

2002, p. 171-188.

DAWSEY, John. Victor Turner e a Antropologia da Experiência. Revista Cadernos de

Campo, n. 13, 2005, p. 163-176.

De CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes,

1998.

Page 22: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

22

DU BOIS, W. E. The Negro. Pennsylvania: The Pennsylvania State University, 2007.

FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução de Caldas, Adriano. Rio de

Janeiro: Fator, 1983.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid

Knipel Moreira. São Paulo: Editora 34, Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes,

Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da Identidade deteriorada. 4ª

ed. Rio de Janeiro: LTC,1988.

GORDON, Edmund. T; ANDERSON, Mark. The African Diaspora: toward an ethnography

of diasporic identification. The Journal of American Folklore, vol. 112, n. 445, 1999, p.

282-296.

GUSMÃO, Neusa M. Os Filhos de África em Portugal: antropologia, multiculturalidade

e educação. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A

Editora, 2006.

___________. Pensando a diáspora: reflexões sobre a terra no exterior. In___. Da

Diáspora: identidades e mediações culturais. (Org.) SOVIK, Liv. 1ª ed. atual. Belo

Horizonte: UFMG, 2011, p. 25-48.

__________. Quem Precisa de Identidade? In: Identidade e Diferença: a perspectiva

dos estudos culturais. (Org.) da SILVA, Tomaz Tadeu. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p.

103-133.

ITAMARATY. Ministério das Relações Exteriores. Divisão de Temas Educacionais.

Programa PEC-G. disponível em http://www.dce.mre.gov.br/PEC/G/historico.html. Acesso

em: mai 2012.

MEMMI, Albert. O Imigrante. In:_____________. Retrato do Descolonizado árabe-

muçulmano e outros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. cap. 2, p. 99-185.

Page 23: Africanos e Africanas em Fortaleza: sexualidade, gênero, raça e outras interseccionalidades de sujeitos imigrantes. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 2013. Ercilio Langa

23

MENDES, Pedro Vítor Gadelha. Racismo no Ceará: herança colonial, trajetórias

contemporâneas. 2010. 95 p. Monografia (Bacharelado Ciências Sociais), Universidade

Federal do Ceará, Fortaleza.

MOURÃO, Daniele E. Identidades em Trânsito: África “na pasajen” identidades e

nacionalidades guineenses e cabo-verdianas. Campinas: Arte escrita, 2009.

PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de

migrantes brasileiras. Revista Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008. p. 263-274.

__________________et al. Introdução: transitando através de fronteiras. In:________

(orgs.). Gênero, sexo, amor e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o

Brasil. Campinas/São Paulo: UNICAMP/PAGU, 2011. p. 5-30.

SILVA SOUZA, Claudete, A. A Solidão da Mulher Negra: sua subjetividade e seu

preterimento pelo homem negro em São Paulo. 2008, 185 f. Dissertação (Mestrado em

Ciências Sociais), Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Trad. de Almeida, Sandra et al. Belo

Horizonte: Editora da UFMG. 2010.

TURNER, Victor. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis, Rio de

Janeiro: Vozes, 1974.

________________. Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da Experiência

(primeira parte), de Victor Turner. (Trad.) RODRIGUES, Herbert, (Rev.) DAWSEY, John.

In: Revista Cadernos de Campo, n. 13, 2005, p. 177-185.