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UFSC - FIL Prof. Selvino Assmann Subsídios de estudo Para uma crítica filosófica do ascetismo 1 Elettra STIMILLI No fragmento de 1921 - como se viu 2 - Benjamin nomeia (junto com Marx), como "sacerdotes" do culto capitalista, NIetzsche, Freud e Weber. Para além das críticas que se podem elaborar a respeito dos percursos indicados por eles, há um aspecto da sua reflexão que acaba sendo particularmente relevante para a perspectiva que aqui se gostaria de inaugurar. Em todos emerge um nexo problemático entre ascese e economia constitutivo do ser vivo humano. Na sua reflexão, a prática ascética é, mais ou menos explicitamente, identificada como dispositivo antropológico, cujo mecanismo de funcionamento é de maneira geral o mesmo para todos, embora apresentem argumentos diferentes: a técnica de contenção e de renúncia que a caracteriza em nenhum caso é reduzida à mera negação do ser vivo. O ascetismo sobretudo é visto,nas três análises, como o modo através do qual a vida humana, biologicamente sem fins determinados, encontra as suas formas de auto-subsistência. O "ressentimento" para Nietzsche, a "remoção" para Freud, e "o processo de racionalização" identificado por Weber são as diferentes modalidades que permitem analisar este mecanismo. No entanto, as três investigações fazem emergir , no seu interior, um excesso que não se esgota nele. A "vontade de nada" vinculada à vontade de potência (em Nietzsche) , o "problema econômico do masoquismo" (em Freud), e a "insensatez" da própria lógica 1 STIMILLI, Elettra. Per una critica filosófica dell'ascetismo. In: Il Debito del vivente. Ascesi e capitalismo. cap. VI. Macerata, 2o11, pp.207 ss. Tradução de Selvino Assmann. 2 A autora se refere ao capitulo anterior em que analisa o texto de Benjamin, O Capitalismo como religião. [Nota do Tradutor] 1

STIMILLI Leitura Filosofica Do Ascetismo (2)

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UFSC - FILProf. Selvino Assmann Subsdios de estudo

Para uma crtica filosfica do ascetismo[footnoteRef:1] [1: STIMILLI, Elettra. Per una critica filosfica dell'ascetismo. In: Il Debito del vivente. Ascesi e capitalismo. cap. VI. Macerata, 2o11, pp.207 ss. Traduo de Selvino Assmann.]

Elettra STIMILLI

No fragmento de 1921 - como se viu[footnoteRef:2] - Benjamin nomeia (junto com Marx), como "sacerdotes" do culto capitalista, NIetzsche, Freud e Weber. Para alm das crticas que se podem elaborar a respeito dos percursos indicados por eles, h um aspecto da sua reflexo que acaba sendo particularmente relevante para a perspectiva que aqui se gostaria de inaugurar. Em todos emerge um nexo problemtico entre ascese e economia constitutivo do ser vivo humano. Na sua reflexo, a prtica asctica , mais ou menos explicitamente, identificada como dispositivo antropolgico, cujo mecanismo de funcionamento de maneira geral o mesmo para todos, embora apresentem argumentos diferentes: a tcnica de conteno e de renncia que a caracteriza em nenhum caso reduzida mera negao do ser vivo. O ascetismo sobretudo visto,nas trs anlises, como o modo atravs do qual a vida humana, biologicamente sem fins determinados, encontra as suas formas de auto-subsistncia. [2: A autora se refere ao capitulo anterior em que analisa o texto de Benjamin, O Capitalismo como religio. [Nota do Tradutor]]

O "ressentimento" para Nietzsche, a "remoo" para Freud, e "o processo de racionalizao" identificado por Weber so as diferentes modalidades que permitem analisar este mecanismo. No entanto, as trs investigaes fazem emergir , no seu interior, um excesso que no se esgota nele. A "vontade de nada" vinculada vontade de potncia (em Nietzsche) , o "problema econmico do masoquismo" (em Freud), e a "insensatez" da prpria lgica racional e auto-reflexiva do lucro (em Weber) - de que, alis, partiu nossa reflexo - so os trs modos deste excesso.Por isso, devemos compreender preliminarmente em que sentido, sendo coerentes com o quadro de referncia cristo, a questo da "falta", que estaria na origem da vida humana, entendida ao mesmo tempo como "culpa" e como "dbito", est vinculada, de vrias maneiras, a esse excesso Assim emerge um mecanismo antropolgico ainda mais sofisticado em comparao com aquele meramente auto-conservativo, que tambm deve ser ressaltado. Uma anlise dos trs percursos que v nesta direo deveria abrir para uma discusso que problematize as interpretaes mais conhecidas neste campo. Mas sobretudo, chamando em causa a viso do homem como"ser em dbito" - que aparece, em modalidades diferenciadas, nos trs autores - esta investigao pretende contribuir tambm para colocar de novo em questo as dinmicas em ato nos modos capitalistas de produo do nosso tempo, que tm transformado o endividamento da vida de cada um em condio do prprio domnio de cada um, conforme Benjamin foi capaz de perceber com grande clarividncia.

1. Culpa e/ou dbito?O senso de culpa que, de muitas maneiras, representou um dos fundamentos da moral ocidental, normalmente foi associado ao conceito de responsabilidade, ao de inocncia, de julgamento ou de absolvio, sendo remetido assim a uma tcita sobreposio das categorias ticas com aquelas jurdicas, ou das categorias jurdicas com aquelas teolgicas; trata-se de uma indistino que, certamente, ainda precisa ser evidenciada. Nesta perspectiva, relevante a tentativa empreendida por Carl Schmitt. Cerca de dez anos antes do conhecido ensaio sobre a "teologia poltica", que tinha como focos a categoria da "soberania" - como "conceito limite" do direito - e a natureza "m" do ser humano - como seu pressuposto antropolgico (cf. Schmitt, Teologia poltica), ele publica um ensaio, com o titulo ber Schuld und Schuldarten [Sobre culpa e tipos de culpa], em que expe todas as dificuldades para definir a culpa em termos jurdicos. As dvidas, na sua abordagem, no s derivam das implicaes religiosas e morais ligadas a este conceito, mas sobretudo dependem do fato de que, segundo ele, "o problema da culpa , sob qualquer ponto de vista, um problema meta-legal" (meta gesetzlich), enquanto no tem a ver com "o direito penal positivo (positives Strafrechte)", ou com "a teoria da premeditao (Vorsatz) e da ao culposa (Fahrlssigkeit)" (cf. Schmitt ber Schuld und Schuldarten[footnoteRef:3], p. 155). Uma determinao jurdica do conceito de culpa, mais do que no seu "sentido material" (materielle Inhalt), do seu ponto de vista deve ser levada para que parta do seu "sentido formal" (formale Inhalt) (cf. ibid., p. 1-2), como categoria limite do direito. [3: SCHMITT, Carl. ber Schuld und Schuldarten. Eine terminologische Untersuchung. Breslau, Schletter'sche Buchhandlung, 1910 (nota Tradutor). ]

Em dois textos, contemporneos ao fragmento sobre o "capitalismo como religio", antes analisado e de algum modo conectados entre si, tambm Benjamin enfrenta o problema, remetendo a culpa constelao teolgico-jurdica. Tais escritos aparecem como se estivessem implicitamente em dilogo com as temticas schmittianas coevas, tendo tambm em conta os vnculos e os dissensos que - conforme foi observado - (cf Taubes[footnoteRef:4] e Stimilli[footnoteRef:5], pp. 117-119 e 249-265) unem e dividem os dois autores. No ensaio intitulado Por uma crtica violncia, de 1921, e em Destino e carter, do mesmo ano, Benjamin fala da "culpa da via nua natural" como aquilo sobre o qual se exerce o "domnio do direito sobre o ser vivo", separando, no prprio interior do ser humano, "o portador destinado culpa" (cf Benjamin[footnoteRef:6], vol. II, pp. 200-202). Na base de semelhante enfoque, - que de certa maneira aparece, como foi observado (cf. Agamben[footnoteRef:7] , pp. 72-76, e Esposito[footnoteRef:8], pp. 34-40), uma radicalizao daquela mesma expressa por Schmitt - talvez nada mais haja do que um "mito": o pressuposto de um sujeito soberano, fundamentalmente autnomo e padro de si, formalmente legitimado para julgar e exercer de modo violento o seu poder, separando no ser vivo humano o "portador" em relao culpa. Alis, no por acaso que Benjamin atribua a origem de tal domnio violncia, que ele chama, justamente, de "mtica", e na qual, como acontece na palavra alem Gewalt por ele usada a este propsito, violncia e poder jurdico se confundem. [4: TAUBES, J. La gabbia d'acciaio e l'esodo da essa o uno scontro su Marcione, ieri e oggi.. Em: Messianismo e cultura. Trad. it. Milano: Garzanti, 2001, pp. 373-384; ID. Cultura e ideologia. Em: Messianismo e cultura, op. cit., pp. 283-309.] [5: STIMILLI, E. Jacob Taubes. Sovranit e tempo messianico. Brescia: Morcelliana, 2004] [6: BENJAMIN, W. Gesammelte Schriften Bd I-VII. Org. por R. Tiedemann e H. Schweppenhuser. Frankfurt a.Main: Suhrkamp, 1974-1989.] [7: AGAMBEN, G. Homo sacer. Il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Einaudi, 1995.] [8: ESPOSITO, R. Immunitas, Protezione e negazione della vita. Torino: Einaudi,2002]

Tambm no fragmento antes examinado, o problema da culpa ocupa lugar central. Mas o poder que aqui aparece descrito no isola simplesmente a culpa ao separar a "vida nua" do homem e ao identificar nela o seu "portador", sobre quem exerce violncia; mais que isso, se torna a sua prpria fora geradora. Assim, para Benjamin, o capitalismo nada mais do que um culto ao qual "uma enorme conscincia da culpa, que no consegue suspender as prprias dvidas, " recorre [...] no para espiar com isso tal culpa, mas para a tornar universal", de modo que, lembrando suas palavras, se tornasse necessrio ver nele a primeira forma de um culto "gerador de culpa" (Cf. Benjamin, op. cit. vol. VI, p. 100).Seguindo os passos de Benjamin, poder-se-ia quase dizer que, com o capitalismo, de algum modo se tenha tornado possvel o exerccio de um domnio que, atravs da elaborao em termos econmicos da categoria teolgica e jurdica da culpa e a sua definitiva traduo em "dbito", teria conseguido perpetrar a violncia do direito "destimitificando" os seus efeitos. Sobretudo, porm, a partir destas premissas, parece estar destinada ao fracasso toda investigao genealgica das categorias morais ocidentais que no se confronte primeiro com a economia, antes de o fazer com o direito e com a teologia. A Genealogia da Moral de Nietzsche , sem dvida, a tentativa mais radical de reconstruir a origem econmica da normatizao tica ocidental. Nesse horizonte, indicativo o fato de que um dos pontos-chave do seu percurso consista justamente em vincular o "sentimento de culpa" com a experincia do "dbito". Ao procurar investigar a "ttrica tarefa" da "conscincia da culpa", apelando para um tom ridicularizador de quem quer acabar com tudo que o precedeu, Nietzsche se pergunta se "at agora, os genealogistas da moral alguma vez minimamente j imaginaram que [...] o conceito moral basilar de 'culpa' [tenha] tomado como sua origem o conceito muito material de 'dbito'"(Nietzsche, Genealogia della Morale, loc. cit. p. 161).A experincia da culpa como dbito (a palavra alem Schuld - lembre-se - tem ambos os significados), segundo Nietzsche, origina-se da "relao contratual entre credor e devedor", que remete "s formas fundamentais da compra, da venda, da troca, do comrcio" (ibid., p. 162) e que, de seu ponto de vista, " a mais antiga e originria relao entre pessoas que exista". precisamente na relao de compra e venda que, segundo Nietzsche, "pela primeira vez, se mediu uma pessoa com outra" (ibid. p. 268). O "valor" aquilo que d a medida entre quem est em dbito e quem est em crdito, revelando, assim, a sua natureza originariamente econmica[footnoteRef:9]. A partir deste vnculo desenvolve-se um sentimento de "obrigao", uma obrigao que deve ser des-debitada, a que deve ser remetido, segundo ele, o prprio "sentimento de culpa" que , justamente, a condio comum de quem se sente em culpa. Tambm a justia revela, no discurso nietzschiano, uma natureza fundamentalmente econmica, que precede o estabelecimento da verdade ou a proclamao do julgamento. Sob tal aspecto, nada mais do que "uma forma tardia, at refinada, do ato de julgar e de argumentar humano", que se alimenta da fora retributiva da pena, ou seja, do fato de que tenha sido possvel encontrar na dor uma "moeda de troca" pelo dano sofrido. [9: Sobre a origem econmica do valor moral e sobre a sua crtica ver tambm SCHMITT, Carl. Die Tyrannei der Werte [A tirania dos valores]. Stuttgart: Kohlhammer, 1967.]

Entre os intrpretes ps-heideggerianos de Nietzsche, Gilles Deleuze est certamente entre os acentuam com mais insistncia este aspecto. "Na relao credor-devedor - escreve Deleuze a este propsito - manifesta-se a atividade pr-histrica da cultura no seu processo de treinamento e de formao, em relao a tal atividade ele se apresenta como a 'mais antiga e mais originria relao entre pessoas', at mesmo anterior aos 'prprios incios de qualquer forma de organizao social', e constitui inclusive o modelo dos 'mais rudes e mais primitivos conjuntos comunitrios'. No crdito - e no mais na troca - Nietzsche vislumbra o arqutipo da organizao social: o homem obrigado a pagar com a do o dano causado, tido por responsvel por um dbito [...], indica o instrumento usado pela cultura para alcanar o prprio objetivo" (cf. Deleuze, L'Anti-Oedipe, loc. cit. pp. 202-203).Contrapondo o crdito troca com relao teoria proposta por Nietzsche sobre a origem da cultura, na passagem apenas referida Deleuze parece quase desejar manter implicitamente afastados do horizonte nietzschiano os estudos de antropologia social que se inspiram em Mauss, segundo o qual - como se observou - o "fato social total" tem origem numa troca munfica, num dom, e no numa relao de crdito e de dbito" (cf. Mauss)[footnoteRef:10]. De fato, as duas posies so contrapostas sob tantos aspectos, mas a tese de Nietzsche parece encontrar at mesmo confirmao nas investigaes de Mauss. Embora este tenha em vista distinguir a troca econmica da troca "total" do dom ( de que se originariam as relaes sociais) contudo no difcil ver que o "fato social total" por ele teorizado tenha sido suscitado pela cadeia de trocas que nascem da obrigao de dar algo em troca do dom, da obrigao de um contra-dom. Trata-se de uma obrigao que precede qualquer distino clara do mbito econmico com relao ao religioso, do mbito jurdico com relao ao moral; e, justamente por isso (no obstante a verso adocicada que Mauss gostaria de apresentar), no se diferencia tanto assim daquela que surge na posio nietzschiana. verdade que a tese de Nietzsche mais clara: a obrigao de desfazer-se do dbito, que se origina da mais antiga relao social entre os seres humanos - l onde "pela primeira vez [...] se mediu pessoa com pessoa" - nasce claramente de uma troca econmica e no de um dom; mas ambos, tanto a relao de crdito (na perspectiva nietzschiana ), quanto aquela munfica (na leitura de Mauss), origina-se de uma obrigao, que aquilo que, de nosso ponto de vista, deve ser investigado, tendo em vista aprofundar o nexo entre "culpa" e "dbito", que seja capaz de explicitar o problema antropolgico nele envolvido. [10: A relao entre Mauss e Nietzsche retomada explicitamente no Anti-dipo, no qual se l: "O grande livro da etnologia moderna no tanto o Ensaio sobre o dom de Mauss, mas a Geneaologia da Moral de Nietzsche [...]. Nietzsche de um material bastante pobre [...]. Mas no hesita, como Mauss, entre a troca e o dbito" ( Deleuze, F. Guattari, pp. 213-216; a citao da p. 2130]

2. O homem entre dficit biolgico e dbito pblicoFilogeneticamente, a obrigao toma forma, para Nietzsche, na relao entre devedor e credor. A ontognese deste fenmeno, por sua vez, segundo o seu discurso, remete prpria origem do homem. Na perspectiva nietzschiana, o homem, sob um ponto de vista evolutivo, surge da compensao que opera com respeito sua carncia originria de instinto animal. A sua vida , sem sentido prprio, uma economia, a maneira de administrar um dficit natural, um dbito biolgico, que como que "obrigado" a saldar. Tal obrigao afasta o homem do necessrio vnculo de predeterminao que caracteriza os instintos animais relativamente ao ambiente e manifesta seu domnio natural no mbito da possibilidade, ou melhor, segundo Nietzsche, no da "potncia", que, no entanto, sempre aparece vinculado com a "debilidade" de que nasce. A vida humana origina-se, para ele, da "mais radical entre todas as metamorfoses" a que a natureza jamais assistiu.

(.............................................................. Ver ainda Nietzsche ...)Se, na perspectiva nietzschiana, a vida humana se apresenta fundamentalmente como uma economia - a forma de gesto de um mal-estar inicial, de um dbito natural a salvar - devemos ento compreender em que sentido, nesta altura, seja possvel identificar no seu discurso uma certa ambiguidade profcua. A obscuridade a respeito deste problema est vinculada ideia segundo a qual na origem da vida no h nada que seja estvel ou bem definvel, mas haveria, sim, "foras" diferentes e diversas formas expresso das mesmas.Por um lado, privada das condies em que pode exercitar-se e separada daquilo que est em seu poder, a fora de que o homem estaria naturalmente dotado aparece voltar-se para o prprio interior e contra si mesma; deixa de ser ativa para se tornar reativa, dirigindo-se contra si mesma: "todos os instintos que no so descarregadas no exterior - afirma Nietzsche - voltam-se para o interior; a isso que chamo interiorizao do homem... eis a origem da 'm conscincia' " (ibid.). Por outro lado, porm, ele continua sustentando que "com o fato de uma alma animal revoltar-se contra si mesma, procurando tomar partido contra si mesma, apresentou-se sobre a terra algo de [to] novo, profundo, inaudito, enigmtico, cheio de contradies, e cheia de porvir, que o aspecto da terra com isso foi substancialmente transformado [...] Desde ento - segundo ele- o homem [...] atrai por si um interesse , uma tenso, uma esperana, quase uma certeza, como se com ele algo se anunciasse, algo se preparasse, como se o homem no fosse uma meta, mas apenas um caminho, um episdio, uma grande promessa" (ibid., p. 285).Com o objetivo de flagrar, nas pegadas de Nietzsche, um nexo entre antropologia e economia, devemos compreender de que maneira ele continua falando de "evoluo", em que sentido se pode discutir, nele, de uma realizao do homem que, ao mesmo tempo, seja uma verdadeira ultrapassagem; e, portanto, em que medida ele busque uma redefinio da espcie humana, em que os confins relativamente quilo que no humano (o animal e o inorgnico) no sejam estveis e definitivamente estabelecidos, mas possam, isso sim, sofrer contnuos deslocamentos.A "evoluo", para Nietzsche, no o "progressus na direo de uma meta, menos ainda um progressus lgico e de brevssima durao, alcanado com o dispndio mnimo de fora e de bens - mas antes a sucesso de processos de sujeitamento [...] com o acrscimo das resistncias que se movem continuamente contra, de tentadas metamorfoses de forma com objetivos de defesa e de reao, alm das bem sucedidas contra-aes" (ibid. p. 277). Neste horizonte, a "m conscincia" que teria surgido a partir da interiorizao da fora natural, separada daquilo que estava sob seu poder, , no deve ser entendida como a "meta" do processo evolutivo que univocamente chegaria ao homem a partir do animal. Nietzsche sobretudo defende que o sentimento de culpa, que dela se forma, no "um dado de fato, mas sim e unicamente a interpretao de um dado de fato, ou seja, de uma perturbao fisiolgica" (ibid.,p.333). Uma faculdade de interpretao seria, neste sentido, algo inerente fora de que se origina a prpria vida humana (cf. Butler, pp. 61-73[footnoteRef:11]). [11: BUTLER, J. The Psychic Life of Power. Stanford: Stanford University Press, 1997.]

Em termos nietzschianos, interpretar significa avaliar, determinar o que d valor a alguma coisa. A vida humana genealogicamente manifesta uma natureza prospectiva, o fato de originar-se a partir da avaliao econmica de um dficit biolgico. Os valores no so princpios preciosos por si mesmos, nem simplesmente relativos a um ponto de vista, mas antes derivam o prprio valor da avaliao como tal. No se pode, portanto, abstrair do modo atravs do qual alcanam o prprio valor. praticamente o mesmo discurso que faz Marx com relao "realidade" da abstrao. A avaliao, devolvida sua origem genealgica, no se reduz simples produo de valores objetivos, mas um modo de ser do homem. O que est nela em jogo a prpria maneira atravs da qual os valores so produzidos, e no o fato de serem valiosos por si. Aqui est a sua origem econmica, no momento em que Nietzsche chega a afirmar o que segue:Estabelecer preos, medir valores, imaginar equivalncias, trocar - isso ocupou de tal maneira o mais antigo pensamento do homem, que num certo sentido constituiu o pensamento: a se cultivou a mais velha perspiccia, a se poderia situar o primeiro impulso do orgulho humano, seu sentimento de primazia diante dos outros animais. Talvez a nossa palavra Mensch (manas) expresse ainda algo deste sentimento de si: o homem [Mensch, em alemo] designava-se como o ser que mede valores, valora e mede, como 'o animal avaliador'. Comprar e vender, juntamente como seu aparato psicolgico, so mais velhos inclusive do que os comeos de qualquer forma de organizao social ou aliana: foi apenas a partir da forma mais rudimentar de direito pessoal que o germinante sentimento de troca, contrato, dbito [Schuld], direito, obrigao, compensao, foi transposto para os mais toscos e incipientes complexos sociais (...). O olho estava posicionado nessa perspectiva[...], mas inexorvel no caminho escolhido, logo se chegou grande generalizao: "cada coisa tem seu preo; tudo pode ser pago" - o mais velho e ingnuo cnon moral da justia, o comeo de toda "bondade", toda "equidade", toda "boa vontade", toda "objetividade" que existe na terra (3wIbid. p. 269 - usada aqui a trad., portuguesa, p 54-55)A origem econmica da vida do homem , portanto, interpretada por Nietzsche tambm "sob o aspecto histrico", no interior da relao "entre os contemporneos e os seus progenitores" (ibid., p. 288). " dominante aqui a persuaso de que a espcie subsiste unicamente graas aos sacrifcios e s obras dos antepassados - e que estes devem ser ressarcidos com sacrifcios e obras: reconhece-se, portanto, um dbito que continua crescendo constantemente" (ibid., pp. 288-289), e no qual se origina "o temor pelo antepassado". "O progenitor acaba [assim] sendo transfigurado em deus", a tal ponto que, segundo Nietzsche, "talvez esteja precisamente aqui a origem dos deuses, uma origem [...] a partir do temor" (ibid.).Entre os deuses ele privilegia, e no por acaso, o Deus hebraico, em cujo confronto o homem prova um sentimento de culpa abissal. "Compreende em Deus as antteses extremas que consegue encontrar na relao com suas caractersticas e com instintos animais no resgatveis, reinterpreta estes mesmos instintos animais como culpa para com Deus" (ibid., p. 293). Enquanto no aparece "o expediente paradoxal e pavoroso" sugerido pelo cristianismo: "Deus mesmo que se sacrifica por culpa do homem, Deus mesmo que se ressarce por si prprio, Deus como nico que pode resgatar o homem em relao quilo que para o prprio homem se tornou irresgatvel" (ibid., p. 292). A ideia crist de "remisso", para Nietzsche, no implica uma libertao frente ao dbito, mas sua radicalizao; a dor nada mais paga do que os juros do dbito, prendendo a ele num eterno endividamento. Com o cristianismo "deve ficar pessimisticamente excluda de uma vez para sempre justamente a perspectiva de um resgate definitivo, e ora o olhar deve desconsoladamente embotar-se e projetar-se para trs frente a uma impossibilidade frrea, ora tais conceitos de 'culpa' e de 'dever' devem voltar-se para trs - mas contra quem? Est fora de dvida: em primeiro lugar contra o 'devedor' [...] e por fim at mesmo contra o 'credor'"(ibid., pp. 291-292): "O credor que se sacrifica pelo seu credor" (ibid.).Assim, o cristianismo aparece como a interpretao mais radical, a variante mais extrema da avaliao originria atravs da qual, segundo Nietzsche,, a vida humana se constitui como gesto de um dficit natural, de um dbito biologicamente inextinguvel. Interpretao reativa, contudo, fruto de "ressentimento", que age exclusivamente separando e desviando a fora originria, subtraindo fora ativa o seu poder, para a afastar da sua direo primria. A reao, nestes termos, no "contra-ao", mas sim, simplesmente, "no-ao". Tendo destrudo toda forma ativa, acaba destruindo tambm a si mesma, e no encontrando outro modo para continuar em vida seno aquele de continuar alimentando o dbito originariamente contrado.A perspectiva aberta por Benjamin no fragmento de 1921 - segundo a qual o capitalismo seria o movimento religioso que se reproduz na forma de um endividamento planetrio e parasitariamente se desenvolve a partir do cristianismo - encontra, ento, no discurso nietzschiano sobre a religio crist a sua primeira elaborao terica. Contudo, deve ser compreendido em que sentido, no mesmo texto, Benjamin sustenta que "o pensamento religioso capitalista" se encontra "magnificamente expresso na filosofia de Nietzsche", a ponto de fazer dele um dos "sacerdotes" do seu culto.Uma reflexo que caminhe nesta direo talvez possa trazer uma contribuio para compreendermos o mecanismo de endividamento, que ainda hoje, seja na forma do dbito pblico, seja na do dbito privado, continua alimentando as engrenagens da economia global.Nesse horizonte, especialmente relevante o fato de que o problema do dbito seja tomado seriamente em considerao tambm na anlise sobre a economia capitalista feita por Marx. O vigsimo quarto captulo da stima seo do Livro I de O Capital, integralmente dedicado delicada questo da "chamada acumulao originria" propriamente um captulo sobre o "dbito" ou sobre a "culpa" (no qual Schuld a palavra usada por Marx). No entanto, o que a est em jogo "o sistema do crdito pblico (des ffentlichen Kredit), ou seja, "o sistema do dbito do Estado (der Staatsschulden)"; o "dbito pblico (die ffentliche Schuld)" que "imprime a sua marca na era capitalista" (Marx[footnoteRef:12], p. 817). [12: MARX, K. konomisch-philosophische Manuskripte aus dem Jahre 1844. Em : MARX-ENGELS- Gesamtausgabe, Primeira parte, Vol. 3, Berlim, 1932; trad. ital. :Manoscritti economico-filosofici del 1844. Torino: Einaudi, 1968.]

O que est em jogo, segundo Marx, o modo atravs do qual o dinheiro se transforma em capital. "O dbito pblico transforma-se numa das alavancas mais enrgicas da acumulao originria. Com um toque de varinha mgica, ele confere ao dinheiro, que improdutivo, a faculdade de procriar, e assim o transforma em capital [...]. Na realidade, os credores do Estado no do nada, pois a soma emprestada acaba sendo transformada em obrigaes facilmente transferveis que, na mo deles, continuam a funcionar precisamente como se fossem tanto dinheiro em espcie.[...] O dbito pblico - segundo Marx - fez nascer as sociedades por aes, o comrcio de efeitos negociveis de toda espcie, a agiotagem, numa palavra, fez nascer o jogo da Bolsa e moderna bancocracia" (ibid. p. 817). Portanto, no dbito pblico que deve ser identificado aquilo que, na perspectiva de Marx, tem o poder de transformar o dinheiro em capital. O aumento de preos, o crescimento que atravs dele se produz, origina-se de uma falta, precisamente de um dbito. O nexo entre endividamento e acumulao to ntimo que Marx chega at mesmo a afirmar que "a nica parte da chamada riqueza nacional que passa realmente posse coletiva dos povos modernos ... o seu dbito pblico". disso que deriva, segundo ele, "com plena coerncia", "a doutrina moderna segundo a qual um povo se torna tanto mais rico quanto mais a fundo se endivida. O crdito pblico torna-se o credo do capital. E com o surgimento do endividamento do Estado, substitui-se o pecado contra o esprito santo, que aquele que no tem perdo, pela falta de f no dbito pblico" (ibid.)O que proporciona ao diagnstico benjaminiano do capitalismo, como fenmeno estruturalmente religioso, uma ulterior argumentao o fato de que a forma econmica do "crdito", justamente na fase da acumulao originria, revela, no discurso marxiano, a natureza sacramental de um "credo" - que "na economia poltica [...] exerce mais ou menos o mesmo papel que o pecado original assume na teologia" (ibid.,p. 777). Marx confirma esta perspectiva tambm noutro lugar.O processo sacramental de endividamento, de que se originaria a prpria produtividade do capital, na seo dedicada precisamente transformao do dinheiro em capital, literalmente representada por Marx como gnese intra-divina, dotada "de um processo vital prprio e de um movimento prprio". Ao descrever esta desenvolvimento, Marx afirma:Ao invs de representar relaes entre mercadorias, o valor entra agora, por assim dizer, em relao privada consigo mesmo. Distingue-se, como valor originrio, de si mesmo como plus-valor, da mesma maneira como Deus Pai se distingue de si mesmo como Deus Filho,e ambos so coetneos e constituem de fato uma s pessoa (ibid.,p. 188).E enquanto a circulao das mercadorias, segundo Marx, por mais abstrata que seja, continua sendo um "meio para um fim ltimo que est fora da esfera da circulao, ou seja, para a apropriao de valores de uso", "a circulao do dinheiro como capital fim em si mesma, pois a valorizao do valor s existe no interior de tal movimento sempre renovado" (ibid., p. 185).A forma de produo capitalista, fundada no dbito do trabalho no pago e na valorizao fim em si mesma do capital, identificada por Marx com o processo atravs do qual Deus - segundo os tericos cristos da "economia da salvao" - se revela a partir do nada no Filho encarnado. Em ambos os casos, a partir de um nada originrio se constitui um "movimento" de crescimento e de desenvolvimento, que acaba, porm, num movimento fim em si mesmo. Trata-se de um processo, de muitas maneiras, anlogo ao evolutivo, segundo o qual, no discurso de Nietzsche, o homem encontraria sua origem na compensao que age frente sua constitutiva falta de instinto animal.Se a vida humana - assim como a divina ou a do capitalismo - evolui a partir de um dficit inicial ( de um nada ou de um dbito originariamente contrado) para conservar-se em vida, e, portanto, segundo a perspectiva de Nietzsche, para sobreviver, nada mais pode fazer seno negar o prprio contedo vital, j por si negativo. Mas dessa maneira se separa dele de forma abstrata e autofinalizada. No discurso nietzschiano, isso significa usar a vida contra a vida e conter a morte atravs da morte e, assim, enfraquecer-se e degenerar, caminhar na direo oposta sua prpria gerao, e dar partida ao processo que caracteriza a civilizao ocidental inteira, a que tanto o cristianismo quanto o capitalismo - embora aparentemente s antpodas,e de fato seguindo a mesma lgica - pertencem de maneira bem ntima. Querendo, por sua vez, opor-se simplesmente a tal percurso degenerativo, negando-o, Nietzsche corre o risco de ficar enredado totalmente nele. Por isso, Benjamin afirma que o "sobre-homem nietzschiano" "o primeiro que ao reconhecer a religio capitalista comea a realiz-la", a tal ponto que "o pensamento religioso capitalista" estaria sendo, segundo ele, "magnificamente expresso na filosofia nietzschiana". Trata-se, ento, de compreender em que sentido no Sobre-homem nietzschiano seja possvel ver a forma realizada do domnio capitalista, e, sobretudo, qual o horizonte seu discurso poderia inaugurar tambm para o presente.

3. Ambiguidade do ideal asctico O intrprete de Nietzsche que, com maior convico, viu na sua reflexo o "cumprimento" da perspectiva tcnico-metafsica do ocidente, foi Martin Heidegger. Heidegger leu o pensamento de Nietzsche "em termos [...] econmicos", "no sentido da 'economia maquinal'", como aquilo que serve fundamentalmente " conservao da vontade de potncia" Heidegger[footnoteRef:13], p. 221). No conceito "heideggeriano" de vontade de potncia est implcito o resultado final da direo tomada desde o seu incio, segundo ele, pela metafsica. Neste horizonte, a abordagem econmica da sua leitura de Nietzsche no de forma alguma secundria frente ao mais conhecido discurso sobre a tcnica. [13: HEIDEGGER, M. Der europische Nihilismus. Em: Gesamtausgabe. Vol. 48. Frankfurt a.M., Klostermann, 1986.]

A forma de domnio aqui em jogo, para Heidegger, consiste justamente no fato de que, em Nietzsche, a vontade de potncia que estabelece as prprias condies denominadas, alis, como valores. "A metafsica da vontade de potncia - segundo Heidegger - enquanto tomada de posio que trans -avalia a metafsica ocorrida at agora [...] no se esgota no fato de que venham a ser postos valores novos com respeito aos que at agora se tem.Tudo aquilo que at agora sempre foi pensado e dito sobre o ente enquanto tal no seu conjunto, ela o faz aparecer luz do pensamento sobre o valor" (ibid., p. 128). O que parecia valer incondicionada e objetivamente em si - segundo o discurso de Heidegger - acaba tendo, em Nietzsche, a sua origem e o seu campo de validade na vontade de potncia Os valores so, neste sentido, "resultados de determinadas perspectivas de utilidade para a manuteno e o potenciamento de formas de domnio" (ibid., p. 100). "Com isso - segundo Heidegger - declara-se que a essncia dos valores encontra seu fundamento em 'formas de domnio'. Os valores so referidos por essncia ao 'domnio'. O domnio o ser-para-o-poder da potncia" ibid.p. 123). E isso no sentido de que, em Nietzsche, "a prpria potncia" de se nutre tal forma de domnio no tem "necessidade de fins" teis. "Ela sem fins", da mesma maneira em que. no discurso de Nietzsche, "o conjunto do ente sem-valor" (ibid. p. 147)."Esta falta-de-fins", segundo Heidegger, faria essencialmente parte, na abordagem de Nietzsche, "da essncia metafsica da potncia" (ibid.). Isso de tal modo que chega a sustentar que "se aqui se chega a falar de um fim, este 'fim' a falta de fins do incondicionado domnio do homem sobre a terra" (ibid.). Esta "falta de fins" justamente aquilo que, segundo Heidegger, a "vontade" transforma numa "potncia fim em si mesma".Este o ponto muito delicado, tanto da interpretao de Heidegger, quanto do discurso nietzschiano.para alm do horizonte do percurso percorrido at aqui. O que est em jogo precisamente a falta de fins determinados, co-essencial vida humana, a natureza potencial do agir humano, que desde Aristteles foi posta como tema da reflexo ocidental e, ao mesmo tempo, neutralizada pelo movimento autotlico de uma potncia abstrata fim em si mesma. Decisivo para esta passagem o fato de que o carter potencial da ao humana, a sua falta de fins determinados, tenha assumido, em Nietzsche, as caractersticas de um dficit, de um "dbito biolgico".[..............]O debate sobre Nietzsche sucessivo ao discurso de Heidegger - que ocorreu na Alemanha, na Itlia, mas sobretudo na Frana - para alm das diferenas, mesmo que sejam importantes, parece abrir para o repensamento de uma questo fundamental, no s no interior da crtica nietzschiana. Mais uma vez acredito que Deleuze que pe o problema nos termos mais claros: "A vontade de potncia deve ser interpretada de maneira completamente diferente: a potncia aquilo que na vontade quer, o elemento gentico e diferencial no interior da vontade. Por isso - segundo ele - a vontade de potncia essencialmente criadora" (Deleuze, loc. cit. p. 126). "A vontade de potncia - para Deleuze - no aspira, no busca, no deseja, e sobretudo no deseja a potncia; desta maneira ela essencialmente criadora e doadora. Ela d (ibid. p. 127).O fato de a potncia ser "o elemento gentico e diferencial no interior da vontade" por Deleuze remetido ao problema da "diferena" que ele vislumbra na origem da vida humana. Sobre este pensamento, o pensamento francs, mas em geral toda a filosofia ps-heideggeriana, continuou se interrogando a partir de Nietzsche, alm de o fazer a partir de Heidegger. Trata-se de um percurso que agora no possvel reconstruir. [....] . A leitura econmica do pensamento de Heidegger aqui proposta - que em ltima instncia coincide com a descrio de uma passagem "de uma economia principal", ainda ligada definio dos pressupostos metafsicos, "a uma economia anrquica da presena" (ibid, p. 99) - reconduz o seu discurso perspectiva nietzschiana de uma origem econmica do homem.[....]Este o horizonte em cujo interior Nietzsche lana a hiptese de algo bem diferente do homem que, para limitar e dominar o prprio contedo vital, acaba sujeitando-se sua prpria vida naturalmente carente. Por um lado, h, ento, sua tentativa de reconduzir s razes do corpo tudo que foi separado da tendncia fundamentalmente destrutiva da vida que, apesar disso, tinha por objetivo salvar; por outro, porm, h a exigncia de subtrair o corpo a uma mera degradao natural. Este o ponto em que a crtica nietzschiana do ideal asctico manifesta toda a sua eficcia, mesmo na sua ambiguidade.O ideal asctico, em ltima instncia, a chave de leitura atravs da qual Nietzsche interpreta a civilizao ocidental na sua totalidade, e,mais em geral, o agir humano como tal. Desvalorizao e negao da vida, que constituem o princpio central da "prxis asctica" , garantem na realidade a sua conservao e a sobrevivncia, mesmo que seja na forma de uma vida reativa, a tal ponto de leva r Nietzsche a considerar o ideal asctico como um verdadeiro "estratagema na conservao da vida" (Ibid., p. 324) Emblema do ideal asctico o padre, o pastor. O que o move " o desejo, feito carne, de um ser-em-um-outro-mundo, de um ser-em-um-outro-lugar, contudo"o grau supremo deste desejo [...] a potncia do seu desejar o toco que o prega aqui", de tal maneira que o pastor "se torna o instrumento obrigado a trabalhar para criar condies favorveis para ser-aqui e ser-homem - justamente com esta potncia mantm ancorado existncia o rebanho inteiro". O mecanismo inibidor prprio do ideal asctico, atravs do qual as energias vitais acabam sendo sublimadas e transpostas para um plano diferente ("em-um-outro-mundo", "em-um-outro-lugar") revela-se, na verdade, funcional conservao da vida e, portanto, conservao do poder de quem - justamente o padre - capaz de deter o seu governo. Mais do experincia do possvel, inscrita na vida humana, a prtica asctica acaba sendo, agora, neste sentido, um exerccio do poder; no s, porm, um poder sobre a mera conservao biolgica, mas sim sobre a prpria capacidade do homem de dar forma vida. Nietzsche chega at a afirmar que "este padre asceta, este aparente inimigo da vida, este negador - pertence precisamente" no s "s maiores foras conservadoras", mas tambm quelas "afirmativamente criadoras da vida" (ibid. pp. 324-325). Portanto, no s conservao, mas tambm inovao. Mas como pode, neste caso, a conservao concordar com uma atividade criadora?O ideal asctico manifesta, assim, no discurso nietzschiano, uma ambiguidade de fundo e, na crtica, Nietzsche permite que emerja um seu ser fundamentalmente profcuo (cf. Eugen Fink, p 169, e Di Marco, pp. 35 ss), que no se esgota na capacidade de conservao de uma forma abstrata de poder; uma vantagem que talvez seja possvel encontrar na origem da prpria espcie humana. No s a natureza fundamentalmente prospectiva do animal humano, o seu originar-se a partir da avaliao econmica de um dficit biolgico, no se resolve, para Nietzsche, numa forma evolucionisticamente linear de auto-conservao e de auto-domnio, a partir de uma falta inicial. O ser-em-vida do homem constitutivamente, para ele, no s um "ser em dbito", um vazio a preencher, mas como uma falta por excesso(cf. R. Esposito[footnoteRef:14], p. 91): biologicamente, uma no vida, cuja natureza essencialmente potencial exige um contnuo potenciamento - nos termos de Nietzsche, uma vontade de potncia. Tal potncia no se esgota na mera fixao de uma forma de domnio fim em si mesmo, mas sobretudo se abre para a prpria experincia da possibilidade. [14: ESPOSITO, Roberto. Bios. Biopolitica e filosofia. Torino: Einaudi, 2004.]

Neste horizonte, a peculiaridade da prtica asctica, para Nietzsche, no reside tanto na sua ao definitivamente repressiva com respeito s pulses; nela, no est em jogo apenas o processo de reao atravs do qual a fora ativa se torna reativa e se volta contra si. A prtica asctica, mais que isso, no discurso nietzschiano. acaba sendo propriamente uma tcnica de vida no s pela sua fora constantemente autoconservadora; e nem pela abstrata auto-referencialidade do seu domnio; mas sobretudo pela sua implcita capacidade de expanso de potncia. Tal possibilidade reside justamente no contato que ela instaura continuamente com o excesso, que inerente vida do homem. A estratgia de conteno, que lhe prpria, convive com a do desencadeamento da possibilidade de que inclusive se origina. Tambm a fora reativa, portanto, que se retorce contra si, se for levada ao excesso, se tornar negao que est destinada a auto-negar-se e a apresentar-se na forma da afirmao. A argumentao de Deleuze, a este respeito, totalmente convincente: no se trata de um hegeliano s avessas, um negativo, por sua vez, negado num processo dialtico de su0perao da alienao, mas uma negatividade que seja afirmada como tal; que se torna ela mesma uma afirmao vital. Nesse sentido, Nietzsche poderia dizer com Overbeck que "o impulso asctico to profundo no homem quanto o impulso oposto".Tal excesso do elemento vital inerente, para Nietzsche, prpria vida biolgica do homem. Enquanto tal, como equilbrio instvel e precrio, a vida humana pode redefinir-se continuamente, potencializando-se, de tal modo, que a conservao coincide, nela, com a prpria possibilidade de inovao,, com um novo ato de criao. Se a afirmao no o resultado sinttico de uma dupla negao, mas a livre expresso das foras que se produzem na auto-supresso da prpria negao,o sobre-homem nietzschiano no parece ser tanto ou apenas, como pretende Heidegger, o cumprimento da essncia tcnico-metafsica do homem, quanto, sobretudo, uma sua "destruio ativa" (Nietzsche[footnoteRef:15], Ecce Homo, Porque eu sou um destino, & 2). [15: NIETZSCHE, F. Ecce homo. Trad. it. Em: Opere. vol VI. Milano: Adelphi, 1969.]

Na ambiguidade que emerge da crtica nietzschiana dos ideais ascticos possvel entrever assim a formulao de uma economia asctica da existncia e uma natureza biolgica do ascetismo de que pode ter origem um alm-homem como "destruio ativa" do humano (cf. Sloterdijk[footnoteRef:16]). Trata-se de uma perspectiva que, mesmo no perdendo alguns traos de opacidade, pode contribuir para identificar possibilidades diferentes tambm para o presente. O que est em jogo uma libertao inovadora daquela "finalidade sem fim" com que a vida dos homens e das mulheres est marcada e que, hoje, justamente aquilo que tende a ser univocamente neutralizado numa empresa global fim em si mesma. [16: SLOTERDIJK, P. Du musst dein Leben ndern. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 2009).]

4. Mecanismos econmicos e fluxos do desejoUma "encarnao do 'ideal asctico' ", no sentido de Nietzsche foi explicitamente vislumbrado, nos anos setenta do sculo passado, na psicanlise (cf.Deleuze - Guattari, Anti-Edipo, p. 307).. Eram os tempos em que o mtodo analtico quase detinha o monoplio do "cuidado de si", no tendo sido ainda destitudo de outras prticas talvez menos onerosas. Portanto, falar de "ideal asctico" a propsito da psicanlise, queria dizer no s atacar o seu poder, mas sobretudo desnudar o seu vnculo com o dispositivo imperante do poder capitalista. Este ataque tomou forma num livro que fez sucesso. Aps o Anti-dipo, falar da conivncia entre psicanlise e capitalismo - como o faz Benjamin j em 1021 - em certo sentido algo quase bvio. A vinculao aqui identificada "no s ideolgica". A psicanlise parece, antes, depender "diretamente de um mecanismo econmico (dai nascem suas relaes com o dinheiro), atravs do qual os fluxos decodificados do desejo, assim como so tomados no interior da axiomtica do capitalismo, devem necessariamente ser direcionados para um campo familiar onde ocorre a aplicao desta mesma axiomtica: dipo como ltima palavra do consumo capitalista" (loc cit. p. 356-357).A defesa do capitalismo implcita na psicanlise, o fato de ela - como diz Benjamin - partir do "domnio sacerdotal deste culto", aqui condensada na teoria freudiana do complexo edpico, a que a psicanlise nada mais faria do que conceder "uma ltima territorialidade, o div, e uma ltima lei, o analista desptico e exator do dinheiro" (cf. ibid., p. 307). Mas o nexo com a capitalismo acaba sendo tambm fruto de outro vnculo no menos profundo, daquele entre psicanlise e economia poltica, como tambm havia intudo Foucault (cf. ibid.,pp. 341 e 345). O trabalho abstrato subjetivo, que a descoberta da economia poltica,coincide totalmente com a produo abstrata e subjetiva da libido na qual se fundamenta a psicanlise: "em suma, a descoberta de uma atividade de produo em geral e sem distino, assim como aparece no capitalismo, indissociavelmente aquela da economia poltica e da psicanlise, para alm dos sistemas determinados de representao" (ibid.,p. 344).O que relevante para ns, e que aqui foi ressaltado, que ambas estariam organizadas "m funo de uma falta anterior" (ibid., p. 31), um vazio que deve ser elaborado e posto em ao, no qual o "desejo se torna este abjeto medo de faltar" (ibid., p. 30). "Esta prtica do vazio - l-se no Anti-dipo - como economia de mercado a arte de uma classe dominante: organizar a falta na abundncia de produo, deslocar todo o desejo para o grande medo de faltar, fazer depender o objeto de uma produo real que se supe externa ao desejo (as exigncias da racionalidade), enquanto a produo do desejo passa ao fantasma ( nada mais do que o fantasma)" (ibid. p. 31)A abstrao do desejo como produto do dispositivo psicanaltico "familiar"", "a reduo da sexualidade a um 'segredinho sujo'", toda a sua "psicologia de padre" do sentimento de culpa, so os elementos fundamentais que fazem da psicanlise uma "nova encarnao do 'ideal asctico'" (ibid., p. 307). O mecanismo psicanaltico no encontraria impedimentos se o problema econmico do desejo fosse apenas "quantitativo"; tratar-se-ia apenas de reforar o eu contra as pulses. Mas tambm Freud, talvez tarde demais, se d conta do fato de que so inerentes economia desejante fatores "qualitativos" que obstaculizam o cuidado e cuja importncia ele mesmo, no final, reconhece, como se estivesse lastimando no o ter tido em conta suficientemente (nem Deleuze e Guattari deixam de se dar conta disso). Trata-se de compreender, ento, o que aconteceu com os fluxos qualitativos da libido, luz da derrota perpetuamente latente da sua economia qualitativa; e sobretudo, dar-se conta do que acontece quando o princpio do prazer j no tende a ser limitado mas, na forma abstrata do gozo, seja elevado a princpio de obrigao social.[....]

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