A Teoria Biologica de Humberto Maturana e Sua Repercussao Filosofica

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Miriam Monteiro de Castro Graciano

A TEORIA BIOLGICA DE HUMBERTO MATURANA E SUA REPERCUSSO FILOSFICA.Dissertao de Mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre. rea: Lgica e Filosofia da Cincia. Orientador: Paulo Roberto Margutti Pinto. Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Cincia Humanas da UFMG

1997

AGRADECIMENTOS SUMRIOFICHA CATALOGRFICA

100 GRACIANO, MIRIAM. G731t A teoria biolgica de Humberto Maturana e sua repercusso filosfica. / Miriam Monteiro de Castro Graciano. Belo Horizonte: UFMG / FAFICH, 1997. 205 p. Dissertao (Mestrado em Filosofia) UFMG. FAFICH 1. Autopoiese. 2. Filosofia da Biologia. 3. Filosofia da Cincia. 4. Epistemologia. 5. Cognio. 6. Cincias Cognitivas. I. Maturana, Humberto. II. Ttulo.

Este exemplar corresponde redao final da dissertao defendida e ............................... com a nota ................ pela Banca Examinadora, constituda pelos professores:

_________________________________ Prof. Dr. Paulo Roberto Margutti Pinto Orientador

_________________________________ Prof. Dr. Carlos Roberto V. Cirne-Lima

________________________ Prof. Maria Cristina Magro

Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincia Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais - Belo Horizonte

Dedico este trabalho memria da minha querida amiga Adriana.

AGRADECIMENTOS Institucional: o

Agradeo Coordenao para o Aperfeioamento do Pessoal de Ensino Superior (CAPES), assim como ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, ao Departamento de Filosofia da PUC-RS e Faculdad de Ciencia de la Universidad de Chile por apoiarme economica, institucional e academicamente na realizao desta dissertao.

Em Belo Horizonte:Agradeo especialmente ao Professor Paulo Roberto Margutti Pinto pela pacincia, destreza e dedicao com que sempre me orientou, durante a graduao de filosofia, quando monitora de sua disciplina, e novamente no mestrado. A extenso de sua compreenso da filosofia, assim como do humano, foram fatores decisivos que viabilizaram a realizao desta atividade. Agradeo Norma e Cristina, secretrias da Ps-Graduao da Faculdade de Filosofia da UFMG, pelo carinho e ateno com que me trataram ao se dedicarem a questes que poderiam ser simplesmente fria e burocraticamente realizadas. Agradeo Professora Cristina Magro, da faculdade de Letras da UFMG, por nossas "conversaes", sempre acompanhadas de tamanha amizade, delicadeza e cordialidade, uma verdadeira lio de sabedoria que, em gestos, cotidianamente acompanham as suas palavras, sempre tambm to sbias. Agradeo ao Professor Nelson Vaz, do ICB-UFMG, por acolher-me em seu laboratrio, presenteando-me com suas brilhantes reflexes e sincera amizade. Ele sempre me incentivou academicamente, assim como foi quem me despertou para a leitura de Maturana. Por tudo isso lhe tenho muito apreo. Agradeo ainda aos demais professores, funcionrios e colegas do laboratrio de imunobiologia. Agradeo a Professora Anayanse Correa Brenes, da Faculdade de Medicina da UFMG, por ter-me iniciado na vida acadmica, despertando em mim o interesse pela leitura crtica; ensinando-me a refletir sobre as nossas certezas e a descobrir, ao investig-las, que elas no so to certas assim. Agradeo tambm aos demais professores, funcionrios e colegas do DMPS.

Em Porto Alegre:Agradeo ao Professor Cirne Lima, da PUC-RS, pela carinhosa acolhida e preciosa orientao no estudo da histria do princpio de causalidade, assim como pela possibilidade de ver e conviver de to perto com esta unio de envergadura e delicadeza intelectual nele concretizada. Agradeo aos Professores Thadeu Weber e Eduardo Luft, tambm da PUC-RS, pelo gentil acolhimento e pelas conversas to esclarecedoras. E a minha amiga Sabrina por ter-me recebido em sua casa, por puro carinho e amizade, em um momento to difcil da minha vida.

Em Santiago:Agradeo ao Professor Humberto Maturana Romesn, pela primorosa orientao no estudo da histria do pensamento evolutivo, com um conseqente aprofundamento nas questes biolgicas fundamentais, assim como amadurecimento e esclarecimento acerca das principais questes de seu prprio sistema terico. Mas sobretudo, agradeo-lhe tambm pelo prazer da convivncia.

Agradeo ao Professor Jorge Mpodozis por tudo mesmo: pelas aulas, pelas discusses e esclarecimento de dvidas, pelas brincadeiras e pela seriedade na resoluo de problemas burocrticos, acadmicos e habitacionais. Agradeo s Professoras Elisa Sentis e Roxana Pey, assim como ao Professor Juan Carlos Lettelier pela extrema gentileza de me hospedarem em suas casas. Agradeo ao Solano, funcionrio da Universidad de Chile, assim como a todos os colegas e demais professores do laboratrio de neurocincia por toda a ateno, carinho e preocupao com que sempre se dirigiram a mim. Agradeo tambm a Cristian Tapia, dentre tantas outras coisas, pela correo da redao final do estudo sobre evoluo.

Em Salvador:Agradeo ao Antnio Marcos Pereira, pesquisador da UFBA, pela amabilidade em discutir comigo, em pleno carnaval baiano, o terceiro captulo da presente dissertao. Agradeo-lhe tambm pela amizade, e-mails e comentrios repletos de perspiccia.

Sem qualquer formalidade:

Agradeo aos meus pais, irmos e amigos por silenciosa e inevitavelmente nos ensinarmos, na convivncia, como viver melhor. E j que o nosso ser se concretiza no devir de nosso viver, para mim, isto tudo o que importa. Cada vez que um ser humano morre, um mundo humano desaparece, muitas vezes de maneira irrecupervel. Isto no uma banalidade sentimental, uma realidade biolgica. O mundo o que vivemos, nosso fazer em qualquer dimenso, desde o caminhar at a palavra, a concretizao de nossa estrutura biolgica. No sabemos fazer os muros incas porque o ltimo pedreiro que podia faz-lo ao viver, morreu, e com sua morte acabou uma linhagem da histria humana. Talvez se houvesse ficado algum relato... talvez se houvesse sobrevivido algum aprendiz.... A falta da prtica leva ao esquecimento e morte, ao fim da histria. E quando isso acontece, s vezes um mundo se acaba de forma irrecupervel. Esse o nosso risco, a morte do presente no esquecimento do passado porque ningum seguiu a linhagem. H linhagens que vale a pena seguir. (Humberto Maturana em: "El Sentido del Humano")

SUMRIORESUMO 1 INTRODUO 2 Primeira Parte

OS FUNDAMENTOS BIOLGICOS DA TEORIA DE HUMBERTO MATURANA Captulo 1: Percepo, Iluso e Conhecimento 11 Captulo 2: Evoluo Biolgica e Conhecimento Humano 31 Captulo 3: Domnios de Descrio: Fisiologia e Conduta 56

Segunda Parte AS REPERCUSSES DAS IDIAS DE MATURANA PARA O DEBATE FILOSFICO Captulo 4: Filosofia e Cincia como Dimenses do Viver Humano 84 Captulo 5: Caminhos Explicativos: O Diagrama Ontolgico de Humberto Maturana 107 Captulo 6: Razo e Emoo 126 Captulo 7: As idias de Maturana e o problema da contradio 167 (MANCANTE) CONCLUSO 182 BIBLIOGRAFIA 189

RESUMOHumberto Maturana um neurobilogo que concebeu uma teoria biolgica do conhecimento. Ainda que o tenha feito sob um ponto de vista cientfico, sua teoria apresenta conceitos e noes originais que nos auxiliam em nossas reflexes filosficas. Primeiro, porque ele um neurocientista falando do conhecimento, assunto tradicionalmente reservado filosofia, a partir de um ponto de vista cientfico no

reducionista. Segundo, porque ele reconhece e aponta explicitamente, em um de seus artigos, que o conhecimento cientfico e filosfico no independem um do outro, pois trata-se de duas dimenses do viver humano. Terceiro, porque, ao expor sua teoria, ele nos indica que, como seres vivos, somos constitutivamente incapazes de observar um mundo de objetos independentes daquilo que fazemos ao observ-lo. Quarto, porque ele exclui a viabilidade da ocorrncia de impresses sensveis sem cair em uma perspectiva racionalista nem idealista, pois, como cientista, no abre mo do papel da experincia na produo do conhecimento. Quinto, porque ele traz a contingncia para o interior de uma proposio tautolgica, apontando assim para a relatividade de nossos discursos sem fragilizar o seu prprio discurso. Atravs dessas questes, Maturana nos conduz em uma reflexo que ao mesmo tempo epistemolgica, ontolgica e tica. exatamente esse o objetivo deste trabalho, o de analisar: A Teoria Biolgica de Humberto Maturana e sua Repercusso Filosfica.

INTRODUO possvel falar da histria do pensamento ocidental como uma histria de dicotomizaes. Fala-se de filosofia aristotlica em oposio filosofia platnica; de empirismo, em oposio a racionalismo; de relativismo, em oposio filosofia sistemtica; ou ainda, de filosofia analtica, em oposio filosofia dialtica. A oposio que se faz entre filosofia e cincia parece ser uma extenso desta tendncia dicotomizao do pensar. Pode-se afirmar que estes pares de opostos diferem entre si quanto a aspectos metodolgicos ou sistemticos. No obstante, todos derivam de uma mesma atitude, que a meu ver pode-se traduzir na oposio entre essncia e aparncia, entre o universalnecessrio e o particular-contingente. Aristteles ope uma filosofia que busca dar conta do mundo sensvel, e portanto do acidental, filosofia do mundo ideal e necessrio em Plato. Empirismo e racionalismo debatem se no objeto ou no sujeito que se d a gnese do conhecimento, enfrentandose em diversas outras questes, dentre elas a da fundamentao do conhecimento. Dizse que os filsofos relativistas apontam para o particular, pois afirmam que conhecer interpretar a realidade, enquanto a filosofia sistemtica aponta para o universal, no intuito de dar conta da realidade como um todo. Os filsofos analticos desconhecem a lgica dialtica, considerando a sntese dialtica como um erro analtico; e os filsofos dialticos, por sua vez, rejeitam o mtodo linear analtico, tomando-o como fragmentador da razo. Por fim, filsofos e cientistas se desconhecem mutuamente, os primeiros considerando a cincia como um conhecimento meramente conjetural, posto que a observao emprica sempre uma observao do particular e que, portanto, no pode dar conta da realidade como um todo, e os segundos considerando a filosofia como um conhecimento meramente especulativo que no d conta da realidade emprica. No obstante, em nosso sculo, surgiu uma teoria cientfica que trata estas questes de forma original. Refiro-me Biologia do Conhecer de Humberto Maturana. Maturana um neurobilogo chileno que formulou uma teoria geral sobre os seres vivos e sobre o envolvimento da atividade biolgica na gerao do conhecer. Entretanto, ao faz-lo, ele estabeleceu um rompimento com muitas das tradicionais oposies e pressupostos que julgamos fundamentais na histria do nosso pensamento

Ocidental. Este pensador da biologia, e portanto da vida, ao se envolver com a biologia da cognio acabou por se envolver tambm com questes tradicionalmente reservadas filosofia, tais como as questes sobre o conhecer, o ser e a moral. Este trabalho consiste em uma apresentao e anlise, sob um ponto de vista filosfico, das implicaes da teoria biolgica de Humberto Maturana para esta mesma rea do conhecimento humano a partir da qual pretendo analis-la. Deste modo, esta dissertao encontra-se dividida em duas partes. Na primeira parte explicito e analiso os fundamentos biolgicos do pensamento de Humberto Maturana sob trs aspectos, e em trs momentos distintos. No primeiro captulo, enfoco a questo do conhecimento atravs da contraposio entre os fenmenos de "percepo" e "iluso". Este confronto se faz imprescindvel na medida em que Maturana, atravs da experimentao, prope-nos que a percepo no consiste na captao de informaes, nem na aquisio de impresses sensveis, assim como a iluso no pode ser apontada atravs de um confronto direto com a realidade, uma vez que ns seres vivos somos constitutivamente incapazes de uma observao direta da realidade. No segundo captulo, enfoco a questo do conhecimento a partir de um paralelo com a teoria da evoluo das espcies proposta por Maturana e colaboradores. Nesse captulo explicito outros conceitos biolgicos, no abordados no captulo precedente, assim como contextualizo a teoria evolutiva de Maturana atravs de um debate com a teoria evolutiva hegemnica, que a Teoria Sinttica. Esta discusso se faz necessria na medida em que a teoria de Maturana vem a ser uma alternativa que questiona e problematiza muitas das questes apontadas pela Teoria Sinttica. Por outro lado, fundamental compreender a teoria evolutiva de Maturana, pois ela no s integraliza o todo de seu pensamento como tambm ilustra a perspectiva sob a qual enfoca o fenmeno cognitivo, ao estabelecer um paralelo entre os conceitos de "adaptao" e "aprendizado". Alis, como veremos neste captulo, teorias evolutivas e cognitivas so duas faces conceituais da concepo biolgica geral que se adota. A reflexo e mudana conceitual na abordagem de uma destas duas dimenses do vivo implica em uma reelaborao conceitual da outra. Sendo assim, apesar deste trabalho ser um trabalho filosfico, ele se inicia pela experincia. Primeiro, porque o autor aqui abordado comea pela experimentao. Segundo, porque, ao reconceitualizar a noo de experincia, Maturana acaba por desmistific-la. Isto , Humberto Maturana no considera a experincia como algo exclusivo do fazer cientfico, mas sim como algo pertencente vida cotidiana. Ele afirma que nenhum ser humano, em nenhum momento, fala ou escuta algo fora da sua experincia, pois todos ns pertencemos a uma histria e temos uma histria. E a nossa histria, enquanto seres humanos, a histria de seres que vivem imersos na experincia do observar na linguagem. A compreenso deste enunciado se far no decorrer dos captulos subseqentes, entretanto sua completa elucidao se far possvel apenas no quinto captulo, quando, atravs da anlise do Diagrama Ontolgico de Humberto Maturana, analiso a repercusso de sua teoria para a ontologia. A primeira seo do quinto captulo consiste em uma elucidao desse diagrama e explicitao dos argumentos de Maturana. Est

reservada segunda seo desse captulo uma ampla discusso em torno das implicaes ontolgicas, assim como das possveis dificuldades enfrentadas por Maturana. Para tanto, lano mo do brilhante trabalho de Mingers que analisa as aplicaes e implicaes da teoria da autopoiese. Considero este trabalho como brilhante, no por concordar com sua argumentao, mas por acreditar que ele explicita as dificuldades que todos ns encontramos quando nos encontramos com a teoria de Maturana. Mediante a escassez de bibliografia auxiliar, um verdadeiro presente encontrar um livro que torna to claras as dificuldades de compreenso da teoria da autopoiese, pois, ao tentar critic-la e refut-la, Mingers nos possibilita ver as suas crticas como perguntas que revelam uma confuso de domnios explicativos, assim como nos auxiliam a encontrar os pontos da teoria cujo desapercebimento possibilitam tal confuso. Entretanto, ainda que este captulo seja fundamental para a compreenso do todo da teoria de Maturana, o que faz dele um dos captulos mais importantes da dissertao no s por isso, como tambm pelo fato de que a tendncia marcante da histria do pensamento ocidental a de perguntar pelo "ser" julguei necessrio e mais didtico discutir antes a questo da linguagem, assim como analisar o modo de constituio de nossas teorias filosficas e cientficas, a partir de reflexes apresentadas pelo prprio autor que aqui investigamos. A discusso sobre a linguagem feita ainda na primeira parte da dissertao, atravs da anlise de dois domnios de descrio, a fisiologia e a conduta dos sistemas vivos. Esse terceiro captulo se encontra na primeira parte da dissertao por envolver a anlise de conceitos fundamentalmente biolgicos. Por outro lado, Maturana um cientista, e como tal ele busca explicar a linguagem, vendo-a como um fenmeno biolgico que implica na compreenso da fisiologia e de seu entrelaamento com a conduta como possibilidade de nosso ser e viver humanos. Uma vez explicitadas estas trs questes, a da percepo, da evoluo e da linguagem como fenmenos biolgicos, abre-se a possibilidade de compreenso da extenso da teoria da autopoiese, assim como a possibilidade de anlise de sua repercusso filosfica. Deste modo, na segunda parte da presente dissertao, analiso as implicaes filosficas da teoria de Humberto Maturana atravs de uma reflexo que ao mesmo tempo epistemolgica, ontolgica e tica. O quinto captulo, como j apontado, dedicado reflexo ontolgica. no quarto captulo que procuro explicitar e analisar as implicaes epistemolgicas da teoria de Maturana. Neste captulo, problematizo a concepo que Maturana tem da filosofia e da cincia. freqente em filosofia apontar-se as dificuldade de validao das afirmaes cientficas como verdades universais ou saberes definitivos (Popper, 1974). Alm disto, tambm freqente apontar-se as dificuldades que as diversas teorias da cincia tm em definir o seu objeto de estudo, assim como em dar-lhe fundamentao e justificao (Chalmers, 1993). Este enfoque se deve basicamente s dificuldades que os

epistemlogos enfrentaram ao tentarem estabelecer um modelo lgico que explique o conhecimento cientfico. Por outro lado, a tentativa de se estabelecer um modelo histrico de anlise da cincia (Kuhn, 1978), tambm conduziu a determinados impasses conceituais. Entretanto, ao tomar a prpria atividade cientfica como um modelo para anlise do que seja a cincia, Maturana nos possibilita encontrar perguntas e respostas diferentes das at ento apontadas. Dentre elas, a do abandono da tentativa de fundamentao ultima do conhecimento, seja ele cientfico ou de qualquer outra natureza; assim como a de conceber as afirmaes cientficas como argumentos de uma dada classe, e no fragmentos de um mundo objetivo independente de ns, apesar desta viso de mundo estar implcita na pergunta que os cientistas tradicionalmente se fazem; e a de apontar a cincia e a filosofia como dimenses de nosso viver humano, enfatizando que as palavras no pertencem literatura douta mas vida cotidiana, e que, portanto, a onde devemos escut-las. No sexto captulo, analiso as implicaes ticas do pensamento de Humberto Maturana. Neste captulo problematizo, de forma apenas introdutria, a dicotomia entre "razo" e "emoo" tal como apresentada na tradio filosfica, para analisar, ento, nas sees seguintes a concepo tica de Maturana. Na primeira seo deste captulo, analiso particularmente a maneira como Maturana conceitualiza "emoo" e "razo", buscando evidenciar como a reconceitualizao desses termos dissolve a dicotomia e contradio entre eles. J na segunda seo, apresento a definio de sistemas sociais e no sociais e a dissoluo da aparente contradio entre individual e coletivo frente a tal definio. atravs da reflexo sobre a constituio do social e da compreenso da cultura como uma rede de conversaes que as implicaes ticas da teoria de Maturana se fazem mais evidentes, assim como se explicita a sua postura poltica. E finalmente, no stimo e ltimo captulo, fao uma discusso mais tcnica, especificamente filosfica, procurando localizar a teoria de Humberto Maturana frente o debate filosfico atual. Para tanto, lancei mo do argumento da contradio performativa utilizado por Apel e pela filosofia ps-kantiana como argumento definitivo e contrrio filosofia ps-nietzschiana, particularmente o neopragmatismo norteamericano, que se recusa a ver a filosofia como saber da totalidade. Neste momento, tento mostrar como, ainda que se desconheam totalmente os argumentos, linguagem e mesmo a definio de linguagem proposta por Maturana, no se pode critic-lo ou acus-lo de contradio performativa, uma vez que ele no prope como tese central proposies autocontraditrias, mas sim proposies tautolgicas, e portanto necessrias. Entretanto, tais proposies trazem em seu interior, de forma explcita, a contingncia de nosso argumentar, o que o aproxima do pragmatismo. Contudo isso, este trabalho de mestrado consiste em um ousado empreendimento, posto que transita por quase toda a filosofia, visando apontar, e mais que apontar, compreender a extenso e dimenso de uma teoria cientfica. Entretanto, apesar da ousadia, ele se justifica na medida em que as reflexes de Maturana envolvem todas as questes condizentes ao humano, inclusive aquelas de maior interesse filosfico. Ignorar um pensamento desta dimenso pode significar uma grande perda para a filosofia. Por outro lado, escassa a bibliografia em torno desta teoria, particularmente quando se trata de uma proposta de anlise interna, isto , de uma investigao conceitual que adota como referncia para a anlise da teoria as mesmas referncias

adotadas pelo autor que a concebeu. A maioria dos trabalhos publicados que fazem referncia a esta teoria so trabalhos que apenas utilizam o conceito de autopoiese em reas especficas do conhecimento humano, de forma descompromissada ou desapegada ao rigor conceitual da teoria com a qual ele foi concebido. Trata-se de trabalhos que apenas aplicam o conceito de maneira especfica, no perspectivas de anlise filosfica do mesmo. Entretanto, esta exatamente a proposta do presente trabalho: fazer uma apresentao geral do sistema terico de Humberto Maturana, apontando a sua repercusso para a filosofia.

SUMRIOCaptulo 1:

PARTE IOS FUNDAMENTOS BIOLGICOS HUMBERTO MATURANA DO PENSAMENTO DE

Captulo 1PERCEPO, ILUSO E CONHECIMENTO

Geralmente, quando se pensa em percepo, pensa-se em rgos sensoriais e captao de informaes de um meio. Ou seja, quando se faz referncia ao fenmeno denominado "percepo", faz-se referncia capacidade que os seres vivos supostamente tm de construir representaes do meio a partir da captao de caractersticas dos objetos existentes neste mesmo meio, de tal modo que lhes seja possvel interagir adequadamente no mundo em que vivem. Humberto Maturana nos alerta para essa questo, mostrando que ela est presente at mesmo na etimologia da palavra "percepo", pois esta palavra provm do latim percipere que significa precisamente "apoderar-se de", ou ainda "obter por captura". Entretanto, ele se pergunta se ns, seres vivos, somos constitutivamente capazes de apoderarmo-nos ou captarmos caractersticas dos objetos do mundo. Por outro lado, ele se pergunta tambm se o meio ambiente no qual vemos um organismo vivo no ato de percepo pode especificar o que ocorre neste organismo; pois, se perceber captar algo do mundo, ento o mundo determina, de algum modo, o que se passa na estrutura dos sistemas vivos. Para responder estas questes, faz-se necessrio apresentar alguns fenmenos, descritos por Maturana, que so fundamentais tanto para a compreenso da colocao destas perguntas quanto para o entendimento da definio de percepo por ele mesmo apresentada.

Vou tratar aqui de apenas quatro experimentos atravs dos quais Maturana baseia sua argumentao sobre a percepo e o conhecimento. Trs destes experimentos dizem respeito ao fenmeno da viso de cores e possibilitam a observao de que so numerosas as situaes fsicas diferentes nas quais temos experincias cromticas que consideramos iguais. Maturana afirma que denotamos tais equivalncias aplicando o mesmo nome cor que vemos ou indicando com atitudes que tais experincias cromticas no se distinguem, ou so eventos pertencentes a uma mesma categoria. Em um de seus trabalhos da fase inicial (Maturana, Uribe & Frenk, 1968), ele cita e descreve experimentos nos quais, face a diferentes combinaes de comprimento de onda, podemos ter a mesma experincia cromtica, isto , ver a mesma cor; ou, inversamente que, face s mesmas combinaes de comprimento de ondas, podemos ter experincias cromticas distintas, ou seja, ver cores diferentes. Um destes experimentos consiste na projeo de mosaicos de quadrados em tons de cinza colocados simultaneamente em dois projetores, postos em registro. Um dos projetores emite luz branca e o outro, dotado de um filtro vermelho, emite luz vermelha. O resultado a projeo de um mosaico de quadrados com diferentes tons de rosa e vermelho. Entretanto, ao se girar 90 o slide que projeta um dos mosaicos em um dos projetores, ainda que as combinaes de comprimentos de onda projetadas permaneam idnticas, surgem efeitos visuais distintos, isto , varia a cor que se v sobre os diversos quadrados; tons de amarelo, verde, violeta e azul podem ser vistos. Esta variao, na "cor que se v" surge com a simples mudana da posio de um dos mosaico em um giro de 90. A este fenmeno podemos acrescentar dois outros, tambm relativos viso de cores: o fenmeno da "constncia de cores" e o fenmeno da "sombra de cores". O fenmeno da "constncia de cores" ocorre conosco cotidianamente. Em experimentao, este fenmeno obtido atravs da projeo de luz com diferentes comprimentos de onda sobre um mesmo anteparo, que consiste em um mosaico de quadrados de vrias cores, dispostos sempre na mesma posio uns com relao aos outros. Este experimento revela que, independentemente do comprimento de onda da luz projetada sobre o mosaico, as cores observadas nos diversos quadrados se mantero sempre as mesmas. Ainda que, de um quadrado visto com uma determinada cor ao ser iluminado com luz branca, possamos dizer que se apresenta em tom mais escuro ao ser iluminado com luz vermelha, este quadrado continuar sendo visto sempre como sendo da mesma cor. O fenmeno da "constncia de cores" pode ser explicado atravs da teoria que afirma que no mundo fsico existem objetos com a propriedade de refletir preferencialmente um determinado comprimento de onda que, ao atingir as clulas receptoras da retina, captado e representado como uma cor particular. Por isso, no importa que varie a fonte luminosa, pois o objeto observado que tem a propriedade de refletir preferencialmente um determinado comprimento de onda; isto , a cor uma propriedade de algo que podemos observar na natureza. Entretanto, esta teoria no explica o primeiro fenmeno aqui descrito. Ou seja, essa teoria no explica porque, ao se alterar a posio relativa dos quadrados de um mosaico em tons de cinza, altera-se a cor vista. Se um objeto reflete preferencialmente um determinado comprimento de onda, e isso o que lhe confere sua

cor, por que passamos a captar e representar cores distintas, quando nem a fonte luminosa, nem o objeto iluminado foram modificados? Por outro lado, temos tambm o fenmeno da "sombra de cores", que ocorre quando, ao iluminar simultaneamente um anteparo branco com as cores branca e vermelha, obtemos uma sombra ora vermelho-escuro, ora verde, no local em que deixa de ser projetada respectivamente a luz branca ou vermelha pela anteposio de um objeto qualquer, ou de nossa prpria mo, entre um desses focos de luz e o anteparo (Maturana & Varela, 1994). A teoria que postula a cor como uma propriedade dos objetos do mundo fsico tambm no capaz de explicar o fenmeno da "sombra de cores". Para explicar o primeiro e terceiro fenmenos aqui apresentados, foi proposta outra teoria neurobiolgica, segundo a qual a viso um fenmeno subjetivo, determinado exclusivamente pela estrutura do sujeito cognoscente. Esta teoria afirma que a cor que vemos no pode ser um aspecto objetivo do mundo externo, pois existem muito mais comprimentos de ondas distintos do que receptores especficos na retina, assim como muito mais tonalidades de cores do que comprimentos de ondas espectrais. Portanto, o fenmeno da viso de cor deve ser um fenmeno subjetivo-relacional, que se d atravs de distintos graus de excitao, assim como atravs de distintas combinaes destes graus de excitao, em cada um dos fotoreceptores retinianos. Esta teoria, entretanto, tambm incapaz de explicar o fenmeno da "constncia de cores", isto , ela no explica porque combinaes de comprimentos de onda totalmente diferentes podem gerar a percepo de uma mesma cor. Maturana aponta ainda que, devido s caractersticas dos receptores da retina, no podemos falar nem da atividade isolada de um receptor, nem da composio espectral ou da intensidade de luz que o excita; pois a atividade da retina sempre ambgua em relao a esses parmetros, at mesmo a atividade de um grupo de receptores ambgua em relao a tais parmetros. Por outro lado, a explicao da viso como um fenmeno subjetivo segue, de algum modo, explicando a percepo como captao de aspectos do mundo fsico, pois a linguagem nela utilizada tambm implica na existncia de objetos do mundo como fatores que estimulam, e portanto, determinam de algum modo a atividade dos receptores retinianos. Este seria um aspecto contraditrio da teoria, posto que ela afirma ao mesmo tempo que os objetos do mundo determinam e no determinam a atividade visual. Sendo assim, Maturana conclui que nem a teoria de um mundo objetivo e independente a ser captado pelos sentidos, nem a teoria de que a percepo seja um fenmeno subjetivo, exclusivamente dependente do nvel de excitao de clulas ou conjunto de clulas receptoras de nossa retina, capaz de explicar o fenmeno da viso de cores. Ele observa tambm que, se quisermos compreender o fenmeno da viso, particularmente da viso de cores, deveremos levar em conta todos os fatos que digam respeito viso, buscando propor um nico mecanismo que seja capaz de explic-los. E na tentativa de explicar todos estes fenmenos conjuntamente, Maturana nos prope que se por um lado impossvel correlacionar a experincia cromtica a parmetros fsicos e portanto no satisfatria a explicao da viso nem como um fenmeno objetivo, nem como um fenmeno subjetivo por outro lado, possvel correlacion-la ao nome atribudo s cores. Mas ao fazer isso, ele passa a correlacionar estados internos de atividade do sistema nervoso, isto , ele passa a correlacionar a experincia cromtica, o

ato de ver as cores, com outro aspecto da prpria atividade do sistema nervoso, o ato de dar nome s cores. Deste modo, ele comea a descrever e investigar a atividade do sistema nervoso de um modo que fecha este sistema. Neste momento, ele prope que o sistema nervoso fechado em si mesmo e, portanto, autodeterminado. Ainda que estes experimentos pertenam fase inicial do trabalho de Maturana, onde evidenciamos apenas um esboo daquilo que viria a tornar-se, anos mais tarde, uma teoria ao mesmo tempo biolgica e epistemolgica plenamente desenvolvida, em textos subseqentes, o prprio autor declara a importncia destas investigaes para a compreenso de sua obra, assim como para a compreenso da elaborao do conceito de autopoiese, e conseqentemente das noes de percepo e conhecimento s quais a anlise deste conceito conduz.... geralmente estudamos a percepo tentando mostrar como os aspectos do ambiente abstrados pelos sensores so usados para gerar uma representao do mundo exterior como uma reconstruo desse mundo. (...) o sistema nervoso no pode operar dessa maneira. (....) Em 1968, h quatorze anos atrs, publiquei, com Gabriela Uribe e Samy Frenk, um artigo que ningum levou a srio, no qual mostrvamos que se poderia gerar todo o espao de distines cromticas humanas tentando correlacionar relaes de atividade das clulas ganglionares da retina com os nome das cores, em um ato que fecha sobre si mesmo o operar do sistema nervoso. De fato, o que tal artigo faz mostrar que se no se pode gerar o espao cromtico humano como um espao perceptivo tentando correlacionar a atividade da retina com os estmulos visuais em termos de energia espectral, esse espao pode ser gerado correlacionando-se classes de relaes de atividade entre diferentes tipos de clulas ganglionares da retina com o nome dado cor vista.

O quarto experimento, com o qual eu gostaria de ilustrar a discusso sobre percepo, iluso e conhecimento, foi realizado por Sperry em 1943, repetido por Maturana nos anos cinqenta e mencionado em vrios dos trabalhos de Maturana (e.g. Maturana, 1995b). Esse experimento consiste em girar cirurgicamente os olhos de anfbios em 180, demonstrando que esses animais recuperam a viso, mas se orientam na conduta de captura de uma presa com um desvio igual ao do ngulo de giro dos olhos. A retina de um animal pode ser dividida em retina anterior, posterior, superior e inferior. Ao se fazer um giro de 180 nos olhos de um animal, o que antes era retina anterior passa a ser retina posterior, assim como o que antes era retina superior passa a ser retina inferior, e vice-versa. Deste modo, ainda que o animal recupere a viso, o que ocorre o seguinte: diante de uma presa que se apresenta em seu campo visual anterior, ele lana sua lngua como se a presa fosse apresentada em seu campo visual posterior, ou seja, sempre com um desvio de 180. Sperry, ao realizar este experimento pela primeira vez, fez duas classes de perguntas. A primeira foi de carter anatmico. Ele se perguntou se as fibras pticas secionadas se projetavam nos mesmos locais do crebro, restabelecendo as conexes de modo idntico ao anterior. A resposta a esta pergunta foi afirmativa: as conexes originais se restabeleciam. A segunda pergunta, por sua vez, foi de carter comportamental. Sperry se perguntou tambm se estes animais aprendiam a corrigir a pontaria, e a resposta obtida foi negativa. Maturana afirma que a primeira pergunta aparece no mesmo domnio que a sua resposta, ou seja, trata-se de uma pergunta anatmica respondida em termos tambm anatmicos. J a segunda pergunta, ele a v como uma pergunta enganadora que revela uma confuso de domnios de descrio. Primeiro, porque ela foi feita no domnio da conduta do sistema vivo, ao passo que sua resposta foi buscada no domnio da estrutura deste sistema. Segundo, porque ela pressupe que o ato de ver um ato de apontar para um objeto externo. Maturana diz nunca ter ouvido algum, exceto ele mesmo, dizer que:

... tais experimentos giram o mundo do observador em relao aos sapos e salamandras operadas, e (...) estes animais no cometem erros, mesmo que morram de fome por nunca mais voltar a capturar uma presa.

Ele afirma que o observador quem espera que em uma salamandra, ao ser apresentada uma mosca em seu campo visual anterior, deve ser desencadeada uma resposta da lngua em direo ao lugar onde ele, o observador, v a mosca, e no em outra direo. Entretanto, a salamandra (o sistema vivo) no "v" um objeto (mosca) externo neste ou naquele local, pois o que ela "v" so suas correlaes internas uma excitao em um determinada regio da retina se associa sempre ao arremesso da lngua em uma determinada posio. O que um sistema vivo "v" o que a sua histria mostra. Maturana afirma que no h possibilidade biolgica de apreenso sensvel, tampouco de distino entre iluses e percepes no momento em que as experienciamos. Portanto, aquilo que denominamos "percepo" no pode consistir em um fenmeno de apreenso de caractersticas de um mundo de objetos, nem aquilo que denominamos "iluso" pode ser mensurado ou avaliado a partir da ausncia de um isomorfismo entre a estrutura do sistema vivo e um mundo externo e independente; posto que na experincia e na estrutura do ser vivo percepo e iluso constituem uma mesma classe de fenmenos, so indistinguiveis uma da outra. Sendo assim, Maturana nos prope que a distino de um fenmeno como "percepo" ou "iluso" sempre feita a posteriori, atravs da referncia a uma outra experincia que, ou confirma a primeira experincia como uma percepo, ou a invalida de tal modo que ela passa a ser considerada como uma iluso. Isto , a distino entre iluso e percepo s pode ser feita atravs da referncia de uma experincia a outra experincia e no por um isomorfismo a algum parmetro fsico. Ele chega a esta concluso a partir de uma anlise biolgica, que revela que a correspondncia entre a observao da conduta do ser vivo em seu meio e a observao do meio nem sempre ocorre. Sendo assim, a percepo no pode consistir em um processo de captao de informaes atravs dos rgos sensoriais com subseqente formao de uma representao interna daquilo que se encontra diante e fora do sujeito cognoscente. Perceber , segundo Maturana e Mpodozis, configurar objetos pela conduta (Maturana & Mpodozis, 1987), e no captar uma informao nos termos da neurobiologia hegemnica; ou ter impresses sensveis, nos termos da filosofia empirista. Eles afirmam que as situaes que reconhecemos como perceptuais so condutas que o observador descreve, so regularidades de conduta exibidas pelo organismo em seu operar em congruncia com o meio no qual se encontra. Entretanto, um observador pode apontar a conduta de um sistema vivo como a conduta de distino de um objeto, ao poder associar essa conduta circunstncia ambiental que a desencadeou.... quando um observador afirma que um organismo exibe percepo, o que este observador considera um organismo que suscita um mundo de aes atravs de correlaes senso-motoras congruentes com o ambiente no qual o observador o v conservar sua adaptao.

Maturana afirma que o fenmeno da percepo consiste no suscitar de um mundo de aes. Ele afirma que sempre que falamos em percepo, assim como conhecimento, referimo-nos determinadas condutas apontando-as como adequadas em um domnio por ns mesmos especificado.

Entretanto, antes de prosseguirmos com a discusso sobre o conhecimento, faz-se necessrio introduzir alguns conceitos fundamentais da teoria de Humberto Maturana, cujo desconhecimento inviabilizam a compreenso de seu pensamento. Estes conceitos so os conceitos de sistema, estrutura, organizao, autopoiese, acoplamento estrutural e determinismo estrutural. 1.1. Uma teoria da organizao dos seres vivos: conceitos fundamentais. Segundo Maturana, o ato cognitivo bsico o ato da distino. Ele afirma que sempre que indicamos um ente, objeto, coisa ou unidade, estamos realizando um ato de distino que separa isso que indicamos como algo distinto de um fundo, como algo distinto daquilo que apontamos como sendo o seu meio. Ao mesmo tempo, este ato o que especifica as propriedades de tal ente e estabelece os critrios para o seu reconhecimento. Isto , Maturana nos faz notar que, se sabemos realizar a operao de distino de determinadas unidades, ento poderemos perceb-las, cont-las, descrevlas, decomp-las. Ao distinguir uma unidade, podemos descrev-la como simples ou composta. Se a descrevemos como simples, estamos assumindo-a como uma unidade que tem determinadas propriedades constitutivas. Se definimos uma determinada unidade como possuindo estas ou aquelas propriedades tudo que teremos a fazer, ento, descrever tais propriedades. Por outro lado, se descrevemos uma unidade como composta, estamos assumindo que ela possui componentes que podem ser especificados atravs de operaes adicionais de distino. Maturana define uma unidade composta como uma unidade que se realiza atravs da sua organizao. Deste modo, o que temos a fazer no descrever as propriedades de um nico elemento, mas explicar as relaes de um conjunto de componentes. a organizao deste conjunto de unidades simples, que constituem um sistema, o que determina a suas propriedades. Por isso, Maturana descreve um sistema como um conjunto definido de componentes. A organizao , para ele, a relao que se deve dar entre os componentes de uma unidade composta para que ela seja definida como membro de uma classe particular de sistemas. Maturana diferencia "organizao" de "estrutura", identificando a ltima no s aos componentes, como tambm s relaes entre componentes que, conjuntamente, constituem uma dada unidade ao possibilitar a sua organizao:Entende-se por estrutura de algo os componentes e relaes que concretamente constituem uma unidade particular realizando a sua organizao. A estrutura de um sistema envolve mais dimenses que a organizao, pois inclui componentes e relaes. De fato a organizao de um sistema um subconjunto das relaes de sua estrutura e nela se realiza. Por isso, a estrutura de um sistema pode variar de dois modos: a) de modo que o sistema conserve sua organizao, e portanto, sua identidade de classe; e b) de modo que o sistema perca sua organizao, no conserve sua identidade de classe, e se desintegre.

Maturana criou o conceito de "autopoiese" no intuito de definir os sistemas vivos, de um modo tal que apontasse e explicitasse o tipo de organizao que eles possuem. Auto, do grego: prprio, si mesmo, e poiesis: fazer, so termos que indicam uma caracterstica fundamental dos sistemas vivos, a de serem sistemas dinmicos, produtos de seu prprio funcionamento, e cuja organizao permanece invariante enquanto eles se autoproduzirem.

De uma forma mais tcnica e biolgica, Maturana entende por "autopoise" uma rede fechada de produo de componentes, sendo estes componentes que produzem esta mesma rede de relaes que os gera.Um sistema dinmico que definido como uma unidade composta como uma rede de produo de componentes que, a) atravs de suas interaes regenera recursivamente a rede de produes que os produz, e b) realiza a rede como uma unidade constituindo e especificando seus limites no espao no qual eles existem, um sistema autopoitico.

Um sistema autopoitico pode ser descrito como de primeira, segunda ou terceira ordem. Um sistema autopoitico de primeira ordem um sistema vivo, unicelular, uma rede de transformaes moleculares que produz seus prprios componentes e que a condio de possibilidade deste componentes, incluindo entre eles a sua membrana. A membrana de uma clula , por sua vez, a condio de possibilidade do operar da rede de transformaes moleculares que a produz. Um sistema autopoitico de segunda ordem um sistema vivo, metacelular, que se conserva enquanto tal na medida em que se mantm a autopoiese de suas clulas componentes; assim como o organismo, enquanto totalidade, se conserva na medida em que se conserva a rede de processos dinmicos que ele mesmo . Desta forma, ainda que a vida de um sistema autopoitico de segunda ordem transcorra no operar de seus componentes, no sero as propriedades destes componentes que determinaro o sistema como um todo. Pode-se ainda falar em sistemas autopoiticos de terceira ordem. Estes sistemas so comunidades, ou aglomerados de sistemas autopoiticos de segunda ordem, cuja manuteno fundamental para a manuteno e realizao da autopoiese dos seres que as constituem, como, por exemplo, um formigueiro. Maturana afirma que qualquer sistema pode ser explicado ao se mostrar as relaes entre suas partes e as regularidades de suas interaes, na medida em que se faz evidente a sua organizao. Entretanto, para compreendermos completamente um sistema, no basta examin-lo em sua dinmica interna, necessrio tambm observ-lo em sua circunstncia e no contexto de seu operar. aqui que se introduz outro conceito fundamental para a compreenso da teoria de Humberto Maturana. Refiro-me ao conceito de acoplamento estrutural. Acoplamento estrutural definido por uma histria de interaes recorrentes, no instrutivas que direcionam a congruncia entre dois ou mais sistemas, por exemplo, entre um ser vivo e seu meio. O acoplamento estrutural o resultado de uma histria de mtuas mudanas estruturais congruentes, enquanto unidade autopoitica e meio no se desintegrarem. Vejamos, de acordo com o prprio autor, como explicar interaes congruentes mas no instrutivas entre dois sistemas determinados estruturalmente, a partir do conceito de acoplamento estrutural.Sistemas autopoiticos podem interagir uns com os outros sob condies que resultam no acoplamento da conduta. Nesse acoplamento, a conduta autopoitica de um organismo A torna-se uma fonte de deformao para um organismo B, e o comportamento compensatrio do organismo B age, por sua vez, como uma fonte de deformao para o organismo A, cujo comportamento compensatrio age de novo como uma fonte de deformao para B, e desse modo recursivamente at que o acoplamento interrompido. Sendo assim, desenvolve-se uma srie de interaes encadeadas de tal modo que, embora em cada interao a conduta de cada organismo seja constitutivamente independente com relao

gerao da conduta do outro, porque ela apenas determinada internamente pela estrutura do organismo em questo, cada um para o outro organismo, enquanto a cadeia persiste, uma fonte de deformaes compensveis (...). O organismo A no determina e no pode determinar a conduta do organismo B porque, devido natureza da prpria organizao autopoitica, toda mudana, pela qual um organismo passa, necessria e indubitavelmente determinada por sua prpria organizao.

interessante notar que, ao mesmo tempo em que fala de acoplamento estrutural, Maturana fala tambm de determinismo estrutural. Esta articulao conceitual s se torna possvel atravs da elaborao e explicitao de um outro conceito mais fundamental, o de "unidade autopoitica". Este conceito, atravs do termo "autopoiese", dota os sistemas vivos de uma circularidade e fechamento operacional que inviabilizam qualquer tipo de interao que envolva a noo de transmisso causal. Deste modo, ainda que acoplado a outros sistemas, vivos ou no, toda mudana estrutural de um sistema autopoitico ser determinada pela estrutura prvia deste mesmo sistema. Por outro lado, o termo "unidade" s aparece e faz sentido se pensado como algo que distinguimos da circunstncia na qual o vemos existindo. 1.2. Percepo e conhecimento. Os conceitos aqui apresentados, levam a afirmaes interessantes, seno surpreendentes. Uma delas a de tornar indissociveis dois campos de saber tradicionalmente disjuntos na filosofia, o campo da ontologia e o da epistemologia. Maturana e Varela afirmam, em uma de suas obras mais extensas e importantes (Maturana & Varela, 1994), que o ser e o fazer de uma unidade autopoitica so inseparveis, pois no h separao entre produtor e produto em um sistema vivo a sua existncia dada em seu operar. Por outro lado, eles afirmam, nesta mesma obra, que todo conhecer o fazer daquele que conhece, o conhecer uma ao efetiva que permite a um ser vivo continuar sua existncia no mundo que ele mesmo traz a tona ao conhec-lo. neste sentido tambm que o ato de perceber constitui o percebido, tornando mais clara a afirmao de que "perceber configurar objetos na conduta".... todo processo de conhecer est necessariamente fundado no organismo como uma unidade e no fechamento operacional do seu sistema nervoso, da que todo seu conhecer seu fazer como correlaes senso-efetoras nos domnios de acoplamento estrutural no qual existe.

tambm, logo no incio desta mesma obra, que Maturana e Varela estabelecem um dos seus aforismos mais importantes:Todo fazer conhecer e todo conhecer fazer.

O significado e extenso deste aforismo tornam-se mais claros no decorrer da produo intelectual de Maturana. Em um de seus textos subseqentes (Maturana, 1991a), ao se perguntar pelo problema da cognio, Maturana inicia seu discurso enumerando distintos saberes e demonstrando que quando queremos saber se algum sabe alguma coisa, fazemo-lhe uma pergunta e esperamos como resposta uma ao, esperamos que ele ou ela faa alguma coisa satisfatria em relao pergunta formulada. Entretanto, ao dizer isso, Maturana no aponta para a questo da essncia, como faz o personagem Scrates em diversos dilogos platnicos. Em diversos de seus dilogos (e.g. Teeteto e Mnon), Plato, atravs de um de seus interlocutores responde inicialmente a uma questo formulada enumerando tipos diferentes do objeto em questo. Entretanto, esta apenas uma etapa preliminar, atravs da qual ele sugere a necessidade de encontrarmos

um denominador comum a todos aqueles objetos. Maturana, ao contrrio, no referido texto (Maturana, 1991a) aceita a resposta enumerativa como legtima, e atravs dela aponta para o fato de que o problema a ser colocado no o da essncia do conhecimento, mas o da conduta adequada. O problema, para ele , ento, o da identificao da conduta adequada, na medida em que ela satisfaa quele que faz a pergunta. Para ele, no h outra forma de avaliar o conhecimento, e o que devemos demonstrar como surge a conduta adequada. Segundo Maturana, a resposta satisfatria, ou a conduta adequada, ocorre quando aquele que faz a pergunta no continua perguntando. Uma explicao perdura enquanto a mesma pergunta ou uma nova pergunta no emerge. Sendo assim, o ouvinte, o questionador, quem decide o que uma explicao, e ela vai ser aquela que o satisfaa. Em outras palavras, ele afirma que o conhecimento conduta adequada em um domnio particular que fica especificado por uma pergunta. Portanto, para falar da cognio, preciso fornecer uma explicao que tenha a ver com a conduta de um sistema vivo. Deste modo, o conhecimento, assim como a percepo, definido pelo observador atravs de um critrio por ele mesmo estabelecido, e no da correspondncia ao real. Por outro lado, se os sistemas vivos so sistemas determinados estruturalmente, qualquer coisa que diga respeito a esse sistema deve ser explicada como um fenmeno determinado pela sua estrutura. Isto , devemos explicar a conduta de um sistema vivo, enquanto um fenmeno biolgico, fazendo referncia estrutura do ser vivo e no a algo que lhe seja exterior. por isso que no nos possvel explicar biologicamente o conhecimento utilizando como artifcio argumentativo um mundo cognoscvel externo ao observador (conhecedor). Mas, se os sistemas vivos so sistemas dinmicos que esto sob contnua mudana estrutural, temos ento uma nova questo. Como mostrar que a estrutura de um sistema vivo mudou de modo a gerar ou uma conduta em particular, ainda no observada, ou de presenciarmos a persistncia de uma dada conduta, embora saibamos que a estrutura continua variando? Maturana responde a esta questo fazendo um paralelo com uma questo mais geral, que a da evoluo dos seres vivos. Segundo este autor, as mudanas estruturais de um organismo resultam da sua prpria dinmica. Entretanto, se dois organismos, "idealmente iguais" em um estado inicial, passarem por seqncias diferentes de interaes, como resultado teremos histrias individuais diferentes. Por outro lado, se a histria de interaes mantida, organismo e meio tero histrias congruentes, embora um no especifique no outro qual mudana deva ocorrer. Por isso, aps uma histria de interaes, ns observadores falamos de uma correspondncia entre estrutura do meio e estrutura do organismo, correspondncia essa que no acidental, mas resultado necessrio de uma histria. Por isso, tambm, Maturana afirma que o fenmeno cognitivo um momento de uma histria de interaes que implica na conservao da correspondncia estrutural entre organismo e meio, sendo que o mundo comum surge na comunidade do viver. Mais ainda, ele afirma que o fenmeno cognitivo e o operar de um sistema vivo so a mesma coisa, pois:sistemas vivos so sistema cognitivos, e o viver, enquanto processo, um processo de cognio.

Deste modo, retomaremos, no captulo seguinte, a discusso sobre o conhecimento, ao fazermos um paralelo entre a teoria evolutiva proposta por Humberto Maturana e a questo do conhecimento humano.

Captulo 2

EVOLUO BIOLGICA E CONHECIMENTO HUMANO

Atualmente, podemos apontar quatro teorias evolutivas muito bem definidas e experimentalmente fundamentadas. A teoria de Lamarck, que tem como pano de fundo a filosofia tomista, concebendo um mundo natural hierarquizado e habitado por criaturas imperfeitas, que, por imitarem a Deus em sua eficincia causal, seguem em direo ao aperfeioamento de suas estruturas. A natureza, em Lamarck, concebida como dotada de autonomia, mas porque assim foi criada, o mais perfeitamente possvel. O "hbito", ou "modo de vida", proposto como o mecanismo que gera a diversificao das espcies. Entretanto, esta teoria tornou-se inconcebvel frente compreenso que temos hoje da natureza; primeiro, porque ela no admite a extino de algumas espcies como fenmeno natural e espontneo; segundo, porque ela fere a noo de determinismo estrutural dos sistemas vivos ao apontar as transformaes do meio como causa da transformao do "hbito" e, conseqentemente, da estrutura biolgica do ser que o adquire; terceiro, porque ela necessita da hiptese da gerao espontnea para se integralizar enquanto teoria. A teoria darwiniana da evoluo foi a segunda teoria evolutiva proposta. Esta teoria mantm a importncia da conduta no devir histrico dos seres vivos, e, ao propor a "seleo natural" como o mecanismo gerador das transformaes das espcies, apontando o meio como um mero selecionador de mudanas estruturais espontaneamente ocorridas nos sistemas vivos, supera o problema com o determinismo estrutural. Darwin mantm, de Lamarck, no s a importncia da conduta para o processo de transformao das espcies, mas tambm a noo de "herana de caracteres adquiridos" (Darwin, 1988). Estas duas noes, por sua vez, sero duramente criticadas e eliminadas de uma terceira teoria evolutiva, a Teoria Sinttica. Esta teoria localiza o determinismo estrutural dos sistemas vivos em sua estrutura gentica, apontando que at mesmo a conduta geneticamente determinada. Deste modo, esta teoria no s nega a importncia da conduta no devir dos seres vivos, como tambm adquire um carter fortemente teleonmico, na medida em que concebe o gene como armazm de toda a informao e direcionamento do processo evolutivo. A quarta teoria a qual me refiro a Teoria da Deriva Natural. Esta teoria resgata a importncia da conduta para o processo evolutivo, criticando duramente a Teoria Sinttica, ao mesmo tempo que aponta o surgimento de novas linhagens e a herana como processos sistmicos e espontneos que ocorrem no viver dos seres vivos sem qualquer direcionamento ou intencionalidade.

Teorias cientficas podem e s vezes so de fato abandonadas ou substitudas. Isto foi o que ocorreu com pelo menos duas das teorias evolutivas brevemente apresentadas. Tanto a teoria lamarckista quanto a teoria darwiniana foram abandonadas ou pelo menos modificadas em aspectos tericos fundamentais, de tal modo que muito dificilmente algum consideraria a teoria evolutiva vigente como idntica a qualquer uma delas. A princpio, pode parecer estranho considerar a teoria lamarckista como uma teoria cientifica que explique o fenmeno evolutivo. No obstante, Lamarck props (e foi o primeiro a faz-lo) uma teoria evolutiva baseando-se em observaes e proposies cientficas. Ainda que sua teoria no tenha vingado, nem mesmo no seu tempo, muitos de seus conceitos e noes so retomados e valorizados tanto em Darwin quanto na teoria defendida por Humberto Maturana, Francisco Varela e Jorge Mpodozis. Refirome noo de "modo de vida", que tem um papel fundamental na explicao da evoluo biolgica, tanto na teoria lamarckista, quanto na Teoria da Seleo Natural e da Deriva Natural. Darwin, embora muitos no saibam, elogia Lamarck em vrios momentos de sua obra capital, alm de fundamentar suas afirmaes na observao de plantas e animais domsticos, atitude esta anteriormente adotada por Lamarck. Por outro lado, e talvez por no possuir uma teoria gentica to restritiva quanto a Teoria Sinttica, Darwin, surpreendentemente, admite o costume (hbito em Lamarck e modo de vida em Maturana & Mpodozis) como fator guia do processo evolutivo. No obstante, ao afirmar que os seres vivos competem pela sobrevivncia, Darwin obscureceu a espontaneidade do processo evolutivo, assim como forneceu elementos a serem retomados de forma extremamente teleonmica pela Teoria Sinttica da evoluo, coisa que ele mesmo havia buscado abandonar em sua proposta terica. A Teoria Sinttica da evoluo consiste em uma releitura da teoria da evoluo das espcies proposta por Darwin, a partir de dados experimentais provenientes particularmente da biologia molecular e da gentica. Ela recebeu esse nome por se tratar de um esforo terico que fazia uma sntese da Terica Clssica (darwiniana) com a Teoria Gentica proposta por geneticistas e matemticos no primeiro tero do nosso sculo (Hull, 1975). Entretanto, ao fazer isso, estes cientistas na verdade abandonam a Teoria da Seleo Natural, e com ela, a importncia do modo de vida no transcurso da evoluo das espcies. Por outro lado, eles fixam a estrutura e o determinismo estrutural dos seres vivos em um de seus componentes, o genoma, afirmando que at mesmo a conduta de um ser vivo determinada geneticamente. Estes dois aspectos conceituais da teoria Sinttica so o foco da ateno e crtica de Humberto Maturana e Jorge Mpodozis no livro "Origen de las Especies por Medio de la Deriva Natural". Entretanto, por se tratar de uma discusso terica muito especfica, analisaremos, antes de qualquer confronto ou paralelo, alguns conceitos biolgicos que, alm de serem fundamentais para a compreenso do pensamento evolutivo, so tomados em sentido completamente distinto em cada uma das teorias envolvidas. 2.1. Explicitao e anlise de alguns conceitos biolgicos. A distino mais fundamental do pensamento biolgico contemporneo a distino entre gentipo e fentipo. Estes dois conceitos foram elaborados em funo das

investigaes de Weismann. Ele foi o naturista que vetou a possibilidade de se pensar em herana de caracteres adquiridos atravs de um experimento aparentemente simples. Ele cortou, por vrias geraes, as caudas dos camundongos que usava como reprodutores, e observou que, apesar disto, os descendentes continuavam apresentando caudas. A partir deste e outros experimentos, ele criou, ento, as noes de plasma germinal e plasma somtico, apontando que todos os processos biolgicos deveriam ser compreendidos de forma unidirecional e exclusivamente determinados pelo plasma germinal. Os conceitos de gentipo e fentipo no so de sua autoria, entretanto traduzem basicamente sua idia de que os sistemas vivos so constitudos a partir de um ncleo central que contm toda a informao e plano de construo das demais estruturas. Deste modo, os seres vivos passaram a ser definidos e compreendidos como um sistema composto de duas partes distintas. Uma delas, este ncleo central e duro, foi apreendida atravs das noes de genoma, cdigo gentico ou gentipo. Desde ento, o gentipo passou a ser identificado como o responsvel pela determinao e orientao de todo o processo biolgico da formao de um ser vivo a partir de uma clula primordial possibilidade de surgimento de novas espcies. O conceito de fentipo o conceito par do de gentipo, e designado a todas as outras estruturas de um ser vivo que no o seu genoma inclusive, diz-se do fentipo que ele pode ser definido como "caractersticas visveis" de um ser vivo. Neste contexto, o que um ser vivo herda de seus ancestrais um pool gentico, e se ele se parece com seu progenitor porque o gentipo herdado determina este fentipo semelhante e aparente. Entretanto, Maturana e Mpodozis no tomam estes conceitos neste sentido. Alm de no fazerem uma ciso e oposio to grande entre fentipo e gentipo, eles desdobram estes dois conceitos em quatro. Eles falam em fentipo e fentipo ontognico, gentipo e gentipo total. Tal distino s faz sentido a partir de sua perspectiva terica. Entretanto, o mais fundamental aqui que, ao fazer isso, o conceito de fentipo deixa de ser tomado em termos de "aparncia" em oposio noo "essncia", reservada ao conceito de gentipo. Fentipo, para Maturana e Mpodozis, a realizao de um ser vivo em seu domnio de existncia. Ele o:. presente estrutural e relacional de um organismo que determina, momento a momento, o seu modo de relao e interao em um meio, durante sua realizao como tal no curso de sua ontogenia (...). O fentipo de um organismo se constitui em seu encontro com o meio, de modo que de fato cada organismo se realiza como totalidade no seu domnio de interaes e relaes em seu fentipo, e vive em um fentipo ou outro segundo se dem suas relaes e interaes.

Por outro lado, o termo "fentipo ontognico" definido como a transformao fenotpica de um organismo ao longo do seu viver. Estes conceitos, assim redefinidos, conduzem reflexo de que aquilo que normalmente se denomina "fentipo" no seno um momento estrutural de um ser vivo, um corte que um observador faz no tempo. Por outro lado, ao proporem o conceito de fentipo ontognico, Maturana e Mpodozis esto considerando fundamentalmente que a estrutura de um ser vivo no uma estrutura fixa, mas mutvel, assim como esto alertando para o fato de que o fentipo muda de forma contingente ao viver e no de acordo a uma determinao gnica. J com relao ao gentipo, eles tambm o consideram, de acordo com a tradio, como conjunto de genes em termos de DNA. Entretanto, eles acrescentam a essa noo a de "gentipo total", apontando-o como a estrutura inicial de um organismo, que inclui no s o seu genoma, mas todos os seus componentes. Ou seja, "gentipo total" a

totalidade estrutural de um ser vivo, incluindo seus componentes (genticos e no genticos) e relaes entre componentes que determinam e possibilitam um ser vivo a se realizar enquanto tal. nesse sentido, e neste momento, que eles conciliam constituio gentica e modo de vida na determinao do processo evolutivo, pois no mais o genoma, mas sim o gentipo total, que, enquanto estrutura total inicial, determina o campo de possibilidade do curso epignico. Deste modo, o genoma no apontado como fator nico na constituio de um sistema vivo. Ao mesmo tempo, esta rede conceitual tambm veta a noo de "herana de caracteres adquiridos", pois aponta os sistemas vivos como sistemas determinados exclusivamente por sua prpria estrutura. A epignese correntemente compreendida como o processo de transformao de uma clula primordial, mediante sucessiva formao e adio de novas partes que no existiam previamente no ovo. Mas tambm este conceito redefinido por Maturana e Mpodozis. Epignese a:... transformao estrutural, momento a momento, de um organismo no devir da sua ontogenia a partir de um gentipo total, que surge do jogo de sua prpria dinmica estrutural e das mudanas estruturais que neles so desencadeadas em suas interaes com o meio, que, por sua vez, seguem um curso contingente ao curso do fluir de suas interaes. Na epignese se conservam a organizao autopoitica do ser vivo e sua adaptao ou congruncia operacional em seu domnio de existncia.

Outro grupo de conceitos que retomado e reelaborado por Maturana e Mpodozis o par filogenia/ontogenia. Em geral, podemos definir ontogenia como o processo de transformao e desenvolvimento de um ser vivo desde a fecundao maturidade reprodutiva, sendo que alguns autores a consideram apenas como as diversas fases do desenvolvimento embrionrio. A filogenia descrita, por sua vez, como as diversas mudanas evolutivas pelas quais uma determinada espcie passa. Tradicionalmente o conceito de ontogenia foi utilizado para explicitar e exemplificar o conceito de filogenia. precisamente isso que fez Ernesto Haeckel ao propor a "lei biogentica", que afirmava que a ontogenia recapitula a filogenia, ou seja, que um sistema vivo, durante a fase embrionria, passa por todas as fases evolutivas pelas quais passou a espcie a que pertence. Como veremos, Maturana, Mpodozis e Varela tambm reconceitualizam estes dois termos, e de tal modo que a ontogenia no mais descrita como um resumo visvel da filogenia, ao mesmo tempo que esta passa a ser compreendida como um processo de entrelaamento entre a conservao e mudana dos distintos fentipos ontognicos.Filogenia: sucesso reprodutiva de ontogenias com conservao de um fentipo ontognico fundamental, e conservao ou afluxo de outros fentipos ontognicos secundrios que se intersectam com este em sua realizao. A ontogenia a histria de mudanas estruturais de uma unidade sem que esta perca a sua organizao.

Estas divergncias conceituais apontam, desde j, para o grau de divergncia terica que podemos assinalar entre a Teoria Sinttica e a Teoria da Deriva Natural. Pois, de um lado, a Teoria Sinttica parte da ciso e dicotomizao entre fentipo e gentipo, de tal modo que podemos indic-la como uma verso biolgica e contempornea da clssica e grega dicotomia entre aparncia e essncia. Por outro lado, esta mesma dicotomia ser,

sob todos os seus aspectos (biolgicos e filosficos), suprimida ao longo de toda a obra de Humberto Maturana, como se tornar mais evidente nos captulos 3 e 5. Creio que, com estes esclarecimentos conceituais, temos agora elementos para discutir e compreender tanto a Teoria Sinttica da evoluo, quanto a Teoria da Deriva Natural e as suas crticas ao neo-darwinismo.

2.2. A Teoria Sinttica da evoluo. A Teoria Sinttica uma teoria que tem como pressuposto fundamental a luta das espcies pela sobrevivncia como fator guia do processo seletivo, e conseqentemente, como fator determinante do surgimento e/ou desaparecimento de espcies biolgicas (Mayer, 1976). Ao mesmo tempo, ela define "espcie" em termos genticos, localizando o determinismo estrutural dos seres vivos em sua estrutura gentica, assim como concebe a herana biolgica como um fenmeno gentico, que portanto, deve ser explicado em termos de recombinao e transferncia gentica. Deste modo, ela concebe o fentipo de um organismo como a expresso do gentipo. Isto , a Teoria Sinttica afirma que o gentipo determina o fentipo em todos os mbitos do processo de transformao de uma espcie. Esta noo tomada como um pressuposto bsico fundamental pela Teoria Sinttica, a partir do qual ela vem a afirmar que toda variabilidade, tanto quantitativa quanto qualitativa, dos caracteres fenotpicos dos indivduos que compem uma populao tm origem gentica, devido ocorrncia de mutaes, recombinaes, fraturas, delees ou duplicaes de genes. Todos estes processos, por sua vez, podem ocorrer tanto como resultado de interaes com o meio, como tambm podem ocorrer aleatria e casualmente, sem nenhuma relao causal (Monod, 1971). Sendo assim, e para efeitos de clculo em gentica de populaes, a apario da variabilidade gentica considerada como um evento infreqente e casual. Ou seja, a variabilidade dos seres vivos explicada como o resultado de um processo reprodutivo imperfeito, que d lugar a uma descendncia com modificaes. Estas modificaes, por sua vez, surgem com o prprio processo reprodutivo, sem qualquer correlao com a histria de vida do progenitor, ou com influncias ambientais que o grupo possa sofrer. Toda esta argumentao, ao mesmo tempo que parte do pressuposto de que os caracteres adquiridos no so herdados, no visa outra coisa seno assegurar este mesmo pressuposto do qual parte. Por outro lado, a Teoria Sinttica tambm afirma que no processo de transformao das espcies o meio constitui um agente ativo, na medida em que ele atua sob a forma de uma fora, ou presso seletiva, que determina a direo do processo de transformao. Ou seja, pode-se inferir destas afirmaes que toda mudana em uma linhagem precedida necessariamente de uma mudana do meio, no qual vivia o grupo ancestral, que direciona o curso da(s) mudana(s) nos seres vivos descendentes em direo maior adaptao a essa nova circunstncia. Isto , cabe ao meio o papel de restringir, estabilizar e homogeneizar a variabilidade dos caracteres fenotpicos, selecionando-os e estendendo-os populao descendente.

Entretanto, a partir destas questes, podemos inferir que a Teoria Sinttica prope o processo evolutivo como um processo que surge a partir de uma dada mudana gentica em uma populao de indivduos, que , ao mesmo tempo, um fenmeno contingente e uma resposta adaptativa a condies prvias do meio ambiente. Esta "tenso" entre contingncia e necessidade adaptativa se fundamenta, precisamente, na tentativa de conciliao entre Teoria Gentica e Teoria da Seleo Natural. Isto , ela fruto da noo de que a variabilidade de alguns indivduos de uma populao, gentica e contigentemente determinada, conferir vantagens, potenciais ou reais, na luta pela existncia com outros indivduos, do mesmo grupo ou de algum outro grupo muito prximo. Esta argumentao deriva das noes de livre competio, vantagens e maior produo, nas quais se apoia a Teoria Sinttica, que a faz ver o processo evolutivo como um processo de otimizao. Conseqentemente, ela aponta os indivduos de uma determinada espcie como seres dotados de distintos graus de adaptao, frente aos quais os mais adaptados se reproduziro mais e eliminaro seus competidores menos hbeis na luta pela sobrevivncia. Entretanto, a resposta adaptativa no algo que se expressa de forma individual, seno como uma modificao do pool gentico de uma populao de indivduos. o patrimnio gentico de uma populao o que mudado, ou remodelado, como fruto da ao seletiva do meio. Aqui, temos outra tenso, ou melhor, um paradoxo conceitual, pois ainda que, no processo de formao de novas espcies, o meio atue exclusivamente sobre os organismo vivos, selecionando os diversos fentipos, a nvel do genoma que detectaremos seus efeitos. Por outro lado, se os seres vivos so seres cujas mudanas evolutivas seguem uma direo adaptativa determinada pela mudana do meio, em sua magnitude, signo, e extenso, eles no so mais do que entes passivos ao processo evolutivo, e este processo como um todo no se encontra determinado, em sentido causal, nem pelo ser vivo, nem por parte de sua estrutura, seno que por algo a ele externo. a circunstncia ambiental o que direciona o todo do processo, ao selecionar e fixar novas espcies. Como mencionamos anteriormente, todos estes paradoxos se devem ao fato da Teoria Sinttica querer estabelecer o processo evolutivo como um processo com alto grau de determinao gentica, alegando que os caracteres adquiridos no so herdveis, ao mesmo tempo que mantm, de forma dogmtica, a noo de seleo e competio pela sobrevivncia. Mpodozis (1995) aponta que a Teoria Sinttica trata a relao organismo/meio de um modo unidirecional, pois afirma que os organismo se adaptam ou esto adaptados ao meio, de um modo tal que, para o organismo, seu encontro com o meio questo de vida ou morte, ao passo que para o meio tal encontro indiferente. Como conseqncia dessa unilateralidade da relao de um organismo com seu meio, assim como do telos adaptativo nela produzido, os seres vivos entram em competio uns com os outros pela existncia. Ele afirma, tambm, que, ao definir as espcies em termos genticos, como grupos de indivduos que, efetivamente, ou potencialmente, compartem genes atravs da reproduo, o processo de formao de uma espcie requer o estabelecimento de barreras ao fluxo gnico. Segundo Mpodozis, essa mesma noo de espcie e

especiao leva tanto riqueza e inspirao da teoria, como a suas mais graves dificuldades. A beleza dessa noo seria a de levar a examinar de muito perto os modos de vida e histria dos organismos. Os problemas biolgicos mais graves seriam os de limitar a discusso dos conceitos, fenmenos e mecanismos, em torno dos vertebrados, concebendo-os como "boas espcies", pois, nessa teoria, no h muito espao para o estudo daquelas categorias taxonmicas que no podem ser definidas em termos genticos, assim como ela dificulta a anlise e explicao da diversificao daquelas espcies que apresentam outras formas de reproduo, como por exemplo, a partenognese ou a reproduo vegetativa. 2.3. A Teoria da Deriva natural. Mpodozis e Maturana apresentam profundas divergncias conceituais com relao teoria anteriormente apresentada. Elas se iniciam no momento em que argumentam no existir seres vivos mais ou menos adaptados. Para fazer esta crtica, eles partem de um princpio, em si mesmo tautolgico, que afirma que a conservao da adaptao entre ser vivo e meio condio de existncia do ser vivo. Isto , eles afirmam que a congruncia operacional entre seres vivos e suas circunstncias condio constitutiva de sua existncia. Logo, no pode haver seres vivos mais ou menos adaptados, pois ou os seres vivos conservam sua adaptao e vivem, ou no a conservam e morrem. Por outro lado, precisamente por isso que se pode dizer que os seres vivos e suas circunstncias mudam juntos em um processo que transcorre naturalmente como uma deriva estrutural sem exibir qualquer esforo, intencionalidade ou propsito. O prprio termo "deriva" j conotaria esse carter sistmico e espontneo do viver. Como fruto desta anlise terica, muitos outros conceitos da tradio biolgica, alm dos j apontados, sero questionados por Maturana e Mpodozis. Um dos conceitos j apresentados que vamos retomar agora o de "presso de seleo". A crtica que Maturana e Mpodozis fazem ao uso e interpretao deste conceito fundamental para a compreenso da teoria por eles proposta. Eles apontam que o conceito de presso de seleo traz implcita a idia de que o meio preexista ao ser vivo que nele distinguimos. Com efeito, para que algo externo e independente da estrutura do sistema vivo selecione mudanas estruturais vantajosas, necessrio conceber que este algo j estava presente quando estas mudanas ocorreram. Frente este debate, Maturana e Mpodozis utilizam o princpio do terceiro excludo, como analisaremos no pargrafo seguinte, para afirmar que meio e sistema vivo mudam juntos, sendo que o meio no preexiste ao ser que nele vive. Em biologia, existe o termo "nicho", que designa aquela parte do meio ambiente que no pode ser caracterizada com independncia do ser vivo que o ocupa. Entretanto, se no podemos dizer que o nicho exista com independncia do ser vivo que o ocupa, e que portanto ele no preexiste a este ser vivo, tampouco podemos afirmar que o meio preexista ao ser vivo, pois o todo no pode existir sem as suas partes. Ou seja, afirmar a presena de um mecanismo tal como o de presso de seleo leva a uma contradio conceitual ao ignorar o princpio do terceiro excludo, pois implica em afirmar, ainda que implicitamente, que o meio e no preexistente ao ser vivo que nele se encontra.

Por essa mesma razo, eles consideram vazias de sentido argumentaes que se baseiam na concepo de nichos vagos.O observador induz o nicho ou domnio de existncia do ser vivo como a parte do meio na qual o ser vivo de fato se encontra a cada instante de seu viver. O nicho ou domnio de existncia do ser vivo, portanto, no caracterizvel com independncia do ser vivo que o constitui. O nico modo pelo qual o observador pode conhecer o nicho de um ser vivo usando esse mesmo ser vivo como indicador. Para o observador, que pode tratar o meio como contendo o ser vivo assim como incluindo seu nicho, este pode aparecer como preexistindo ao ser vivo que o ocupa. Mas (...), na medida em que o meio inclui o nicho e o nicho no preexiste ao ser vivo, tampouco preexiste o meio ao ser vivo que o ocupa; mas antes, surge com ele.

Por outro lado, se o meio surge com o ser vivo que o ocupa, e no preexiste a ele, o fenmeno da seleo natural dever ser aceito, ou apontado, como o resultado do processo de diversificao das espcies, e no como o mecanismo gerador deste mesmo processo. Esse mais um dos argumentos contrrios ao conceito de presso de seleo.No restam dvidas de que um observador, que ao olhar uma populao que muda em dois momentos distintos de sua histria, v uma sobrevida diferencial de algumas das classes de indivduos que a compem, pode dizer de maneira legtima que os sobreviventes foram selecionados no devir dessa histria. O que o observador no pode dizer que o mecanismo que gera a sobrevida diferencial observada seja uma seleo. A seleo o resultado de tal sobrevida diferencial e portanto no pode ser sua origem. Portanto, o que um observador chama de seleo (...) de fato o resultado de um processo sistmico no dirigido por nenhuma fora ou presso.

Maturana e Mpodozis apontam que as espcies surgem em uma deriva filognica. Ou seja, eles afirmam que a diversificao das espcies um processo sistmico e histrico, no qual as distintas classes de organismos surgem em um meio cuja dinmica estrutural independente deles, ainda que ambos mudem conjunta e congruentemente uns com relao aos outros. Em conseqncia deste enfoque, a conduta volta a adquirir um papel fundamental para a compreenso do processo evolutivo. Segundo Maturana e Mpodozis, o fluir da conduta de um ser vivo que modula o curso de sua epignese. Entretanto, a conduta de um organismo no especifica nem determina as mudanas estruturais dos organismos, ela apenas limita e guia o curso de sua deriva ontognica. A conduta definida por eles como uma realizao dinmica do organismo no fluir de suas interaes em um meio; como realizao de um modo de vida que a cada instante parte da realizao de um fentipo ontognico. Posto que a conduta de um ser vivo surge da relao organismo-meio, a dinmica estrutural desse mesmo organismo que a dinmica de um ser autopoitico tambm no pode determinar a conduta, ainda que participe da sua gerao. por isso que eles afirmam que em um sentido estrito no pode haver determinao gentica de aspectos da conduta de um organismo, j que esta surge de maneira sistmica durante a sua deriva ontognica.Podemos dizer, portanto, que a conduta dos seres vivos o mecanismo que guia o suceder da deriva ontognica e da deriva filognica, e no a constituio gentica ou uma presso externa. A conduta, ao limitar a deriva gentica no curso da conservao de uma linhagem, guia o curso desta sem determinar quais mudanas genticas se produzem nele.

Maturana e Mpodozis criticam radicalmente o reducionismo da Teoria Sinttica. Segundo eles, as semelhanas e diferenas que vemos entre os seres vivos resultam das dinmicas de constituio e conservao das linhagens, e no da presena de algum tipo

particular de molcula. Eles afirmam tambm que os distintos genomas constituem distintos modos de gerar genealogias, mas no geram, nem determinam, o fenmeno da herana. A herana , para eles, um fenmeno sistmico, dinmico e relacional que possibilita a conservao da organizao particular do ser vivo que se reproduz. Eles defendem a idia de que a conservao gentica ocorre na medida em que se conserva tambm o modo como se transforma o fentipo dos organismos de uma dada espcie no decorrer de suas histrias individuais; assim como na medida em que o modo de vida tpico da espcie a qual pertencem estes organismo. Deste modo, a conservao do genoma parte da conservao de uma maneira particular de realizao da autopoiese de um sistema vivo, e como parte deste fenmeno sistmico, ela no pode determin-lo. Para Maturana e Mpodozis todas as caractersticas de um ser vivo resultam de um processo global do qual os seus componentes participam, entretanto, de um modo tal que nenhum deles possa ser, por si mesmo, o responsvel pelo todo deste processo. Eles afirmam ainda que o modo de realizao da autopoiese, o operar de um organismo enquanto sistema, que se deve conservar de gerao em gerao, para que uma linhagem de seres vivos possa ser definida. Entretanto, enquanto h reproduo, h a possibilidade de variao no modo como se realiza a autopoiese e, conseqentemente, h a possibilidade de que na sucesso de reprodues se conserve um novo modo de realizao da autopoiese, o que levaria, ento, ao surgimento de uma nova linhagem de seres vivos. Sendo assim, a evoluo das espcies compreendida como um processo geral, sucessivo, espontneo e inevitvel. Por outro lado, sendo a herana um fenmeno sistmico, que guia o devir transgeracional de cada classe de ser vivo, a conduta cumpre um papel fundamental no devir da deriva filognica ao definir o que conservado na realizao do viver de cada linhagem.(..) o estabelecimento de uma nova linhagem implica que se gerou uma dinmica sistmica organismomeio, que se conservar enquanto as variaes que se produzem no gentipo total no interfiram com a conservao do fentipo ontognico que define essa linhagem. Que o surgimento de uma nova linhagem no seja um processo gentico ainda que a gentica o faa possvel, o que faz da diversificao das linhagens um processo que pode ocorrer em poucas geraes, tanto na conservao quanto na mudana, e o que faz possvel a coderiva de seres e sistemas que tm dinmicas de mudana estrutural que so operacionalmente independentes. (...) a conduta opera de fato como a dinmica de conservao do fentipo ontognico e o modo de vida, e guia o curso da deriva filognica. Assim, uma mudana de conduta que comece a conservar-se de gerao em gerao em uma linhagem de seres vivos, constitui de fato uma mudana no fentipo ontognico conservado na reproduo desses seres vivos, e a fundao de uma nova linhagem. Se esta nova linhagem se conserva, a transformao de conduta operar como um limite e referncia no afluxo do gentipo total dos organismos membros dessa nova linhagem, e tal mudana ocorrer no como o resultado de uma dinmica seletiva, mas sim como o resultado de uma deriva gentica filognica delimitada pela deriva filognica natural da linhagem.

Como podemos notar na citao anterior, Maturana e Mpodozis tambm discutem o dogma da lentido do processo de diversificao das espcies. Essa afirmao, de que a mudana deve operar-se lentamente, foi estabelecida desde Lamarck, reafirmada por Darwin (que inclusive alertava que se algum pudesse provar que mudanas evolutivas poderiam ocorrer repentinamente, toda sua teoria se encontraria invalidada), e mantido como verdadeiro dogma at hoje. Maturana e Mpodozis no afirmam que a mudana evolutiva lenta, nem que repentina, mas sim que ela pode ocorrer de um modo ou de outro. Esta possibilidade est de acordo com os estudos de fsseis, e nos ajuda a ver que

o fato de no se encontrar os elos evolutivos perdidos pode dever-se a que eles nunca existiram. Entretanto, o fato terico mais relevante desta discusso o de que, embora em sua argumentao Maturana e Mpodozis firam o determinismo gentico, eles no esto, de modo algum, falando a partir de um ponto de vista lamarckista. Com efeito, afirmar que a conduta tem um papel fundamental no devir da deriva filognica dos seres vivos no o mesmo que dizer que a necessidade de adaptar-se a uma determinada circunstncia leva ao uso e desuso de determinadas partes do organismo de tal modo que umas se desenvolvem enquanto outras desaparecem. Por outro lado, afirmar que a herana um fenmeno sistmico e no molecular tampouco o mesmo que falar em herana de caracteres adquiridos. Maturana e Mpodozis afirmam que as variaes na realizao de uma conduta se d dentro de um campo de condutas possveis que no se herdam; o que ocorre neste caso que, ao se estabilizar um certo conjunto de relaes em torno de um modo de vida (ou conduta) possvel, ou todo o sistema muda e conserva tais relaes, ou ento ele se desintegra como sistema de uma dada classe. Isto , ou o organismo conserva o conjunto de relaes (e isso inclui conduta e gentica) que faz dele um organismo de uma classe particular; ou ento ele no conserva tais relaes e se desintegra como organismo dessa mesma classe. Este processo pode resultar tanto na origem de uma nova espcie quanto na extino da espcie em questo. Ou seja, Maturana e Mpodozis tratam a histria evolutiva como una histria de conservao e mudana, que explica tanto a diversificao da biosfera quanto a manuteno ou extino de determinadas espcies.A histria dos seres vivos no um processo de progresso ou de avano em direo a algo melhor, apenas a histria de conservao dos distintos modos de viver que se conservaram porque os organismos que os viveram, viveram at sua reproduo.

Quanto ao surgimento da vida na terra, este fica explicado atravs da hiptese de um surgimento contingente de unidades autopoiticas em uma dinmica de variao, vida e morte. Alis, toda a teoria de Humberto Maturana, tanto no que diz respeito origem da vida quanto ao que se refere evoluo das espcies e ao surgimento do sistema nervoso, gira em torno do conceito de autopoiese, sendo que todos os fenmenos biolgicos se explicam e se justificam atravs da manuteno da identidade autopoitica de um ser vivo. Por outro lado, como ele aponta todo domnio de interao de um ser vivo como um domnio cognitivo, e posto que o ser de uma unidade autopoitica se d em seu fazer, e conhecer fazer (atuar, ter uma conduta adequada no domnio em que ela se realiza), Maturana desvincula a noo de cognio da presena do sistema nervoso, associando-a ao viver. Para Maturana no h como desassociar o conhecer do ser. Em conseqncia, ele no apontar o sistema nervoso como rgo sede do conhecimento, pois a cognio no fruto da presena do sistema nervoso. Tudo que o sistema nervoso faz expandir o domnio cognitivo do sistema vivo, ampliar o domnio de condutas possveis. Ou seja, quanto mais plstico o sistema nervoso de um ser vivo, mais plstico tambm esse ser se torna, e maior e mais diversificados os seus domnios de interao. Com relao ao surgimento do ser humano, Maturana o associa manuteno de um modo de vida centrado no ato de recolher e compartilhar alimentos, na colaborao

entre machos e fmeas no cuidado da prole, na convivncia sensual (expanso sensorial), na sexualidade das fmeas vinculadas ao seu prprio interesse e disposio e no a perodos espaados de cios, e tudo isso no mbito de um pequeno grupo de indivduos. Segundo Maturana, ainda hoje conservamos este modo de vida, que oferece todas as condies para o surgimento da linguagem, e com ela (simultnea e indissociavelmente), para a expanso do sistema nervoso.... "ser humano" corresponde a um modo de viver de uma classe particular de ente fisiolgico que o Homo sapiens sapiens. Com isso estou dizendo que se temos a fisiologia e a anatomia de Homo sapiens sapiens, e no temos o modo de viver humano, no temos um ser humano. Mas tambm estou dizendo que teramos um conflito de reconhecimento de identidade se vssemos um modo de viver humano em uma biologia que no a de Homo sapiens sapiens.

Maturana afirma que no basta ser Homo sapiens sapiens para sermos humanos, pois ainda que a fisiologia seja fundamental, o viver humano, o fato de vivermos com outros seres humanos imersos na linguagem, que nos humaniza. Ou seja, no entrelaamento de nossa fisiologia, que possibilita e determina nosso ser biolgico, com o "modo de vida", que nos define como uma linhagem de seres vivos, que somos humanos e conhecemos.... a linhagem humana surgiu na histria evolutiva do grupo de primatas bpedes ao qual pertencemos, quando o conviver na linguagem comeou a se conservar gerao aps gerao como o modo de conviver que com sua conservao definiu e constituiu, da em diante, a dita linhagem. (...) Ns seres humanos modernos somos o presente dessa histria, e existimos como o resultado presente de um devir particular de transformaes anatmicas e fisiolgicas em torno da conservao do viver no conversar.

por isso tambm que Maturana e Varela afirmam que a linguagem o modo peculiar do nosso ser e estar no fazer humano. Em conseqncia, todo conhecimento humano, inclusive o seu fundamento, no pode ser assinalado fora da linguagem. Isto , o conhecimento humano implica em um fazer reflexivo na linguagem.Toda reflexo, incluindo a reflexo sobre os fundamentos do conhecer humano, d-se necessariamente na linguagem, que nossa forma peculiar de sermos humanos e estarmos no fazer humano. Por isso, a linguagem tambm o nosso ponto de partida, nosso instrumento cognitivo, e nosso problema.

Sendo assim, nosso ser e conhecer tipicamente humanos surgem do acoplamento de nossa corporalidade Homo sapiens sapiens, como o domnio de nossa fisiologia, com o nosso modo de vida particular, o linguajar, como o domnio de nossa conduta. Entretanto, o paralelo entre evoluo biolgica e conhecimento torna-se mais evidente no momento em que Maturana faz a distino entre instinto e aprendizado. Ele aponta como instintivas todas aquelas condutas de um ser vivo que so determinadas pela dinmica de estado de forma dependente da estrutura adquirida pela espcie no processo evolutivo. Sob este aspecto, a conduta instintiva fruto da histria evolutiva de uma dada espcie. Com relao ao aprendizado, ele o aponta como aquelas condutas de um ser vivo que so determinadas pela dinmica de estados de seu sistema nervoso de forma dependente da experincia. Sob este aspecto, o aprendizado fruto da histria individual de acoplamento estrutural de um ser vivo. Para Maturana, o aprendizado no deve ser descrito em termos de aquisio de representaes do ambiente, pois tanto o comportamento aprendido quanto o comportamento instintivo so determinados pelo presente estrutural do sistema nervoso e do organismo ao qual ele se acopla. E, como um sistema vivo um sistema autopoitico, todas as suas mudanas estruturais,

inclusive as ocorridas em um sistema aprendiz, devem ser compreendidas como fenmenos autodeterminados. Ou seja, todas as interaes observadas em um sistema vivo resultam de mudanas estruturais autodeterminadas, mesmo quando se tratar da estabilizao de um dado comportamento. Conseqentemente, este contexto terico veta toda e qualquer noo que implique nas idias de interaes instrutivas, ou transmissibilidade causal, como argumentos explicativos para o viver ou o conhecer.

Captulo 3

DOMNIOS DE DESCRIO: FISIOLOGIA E CONDUTA

Maturana afirma que uma unidade composta uma unidade que pode ser distinguida em dois domnios fenomnicos distintos, pois ela deve ser tratada simultaneamente como uma totalidade e como uma unidade que, por ser composta, tambm pode ser analisada e decomposta em suas partes constituintes. Um destes dois domnios fenomnicos , portanto, o domnio no qual descrevemos os seus componentes e as interaes entre estes componentes. O outro domnio fenomnico atravs do qual podemos analisar esta mesma unidade o seu domnio prprio de existncia, que surge com as interaes da unidade composta enquanto unidade simples, ou seja, enquanto uma totalidade e no mais uma multiplicidade de partes constituintes.(...) um cientista deve distinguir dois domnios fenomnicos quando observar uma unidade composta: (a) o domnio fenomnico prprio dos componentes da unidade, que o domnio no qual todas as interaes dos componentes acontecem; e (b) o domnio fenomnico prprio da unidade, que o domnio especificado pelas interaes da unidade composta enquanto unidade simples. Se a unidade composta um sistema vivo, o primeiro domnio fenomnico, no qual as interaes dos componentes so descritas com relao ao sistema vivo que eles constituem, o domnio dos fenmenos fisiolgicos; o segundo domnio fenomnico, no qual um sistema vivo visto como se fosse uma unidade simples que interage com os componentes do ambiente no qual sua autopoiese realizada, o domnio dos fenmenos comportamentais.

Portanto, para Maturana, ns, seres vivos, existimos simultaneamente em dois domnios distintos e no intersectantes, que podem ser descritos como os domnios de nossa fisiologia e de nossa conduta. Segundo este autor, a fisiologia aparece como um domnio legtimo de descrio no momento que distinguimos um sistema vivo como uma unidade composta, e por isso, uma des