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Último draft do livro de metafilosofia publicado pela EDUFRN. C. F. Costa – ppgfil/UFRN A INDAGAÇÃO FILOSÓFICA POR UMA TEORIA GLOBAL ________________________ CLAUDIO F. COSTA 1

A INDAGAÇÃO FILOSOFICA Claudio F Costa UFRN.doc

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Último draft do livro de metafilosofia publicado pela EDUFRN. C. F. Costa – ppgfil/UFRN

A INDAGAÇÃO FILOSÓFICA POR UMA TEORIA GLOBAL

________________________ CLAUDIO F. COSTA

EDUFRN

Natal, 2005

1

* Heráclito

Nun scheint mir, gibt es ausser der Arbeit des Kunstlers noch eine andere, die Welt sub specie aeterni einzufangen. Es ist – glaube ich, der Weg des Gedankens, der gleichsam über die Welt hinfliege und sie so lässt, wie sie ist – sie von oben von Fluge betrachtend.** Wittgenstein Science is what we know; philosophy is what we don’t know. (…) Science is what we can prove to be true; philosophy is what we can’t prove to be false. Bertrand Russell

_____________

* A sibila com boca raivosa proferindo palavras sem riso, sem adorno e sem incenso, alcança mais de mil anos pelo deus que nela habita. ** Assim parece que junto ao trabalho do artista há ainda outro, que é o de capturar o mundo sub specie aeterni. É – eu creio, o caminho do pensamento que, por assim dizer, voa sobre o mundo deixando-o como está – visto de cima, de seu vôo.*** Ciência é o que conhecemos; filosofia é o que não conhecemos. (...) Ciência é o que podemos provar que é verdadeiro; filosofia é o que não podemos provar que é falso.

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SUMÁRIO

PREFÁCIO, p. 6

I. INTRODUÇÃO: OBJETIVOS E METODOLOGIA, p. 81. Observações Metodológicas

II. FILOSOFIA COMO ANÁLISE CONCEITUAL: UM CASO DE DEFINIÇÃO REDUTORA, p. 151. Os atalhos da crítica da linguagem2. Filosofia como análise da linguagem3. A falácia objetual na filosofia analítica4. Observações conclusórias: paralelo com o Organon aristotélico

III. FILOSOFIA COMO ANTECIPAÇÃO CONJECTURAL DA CIÊNCIA, 451. O caráter inevitavelmente conjectural da indagação filosófica2. A idéia da filosofia como protociência3. Origens e divisões da ciência4. Alguns exemplos de insights filosóficos protocientíficos5. Fissão6. O núcleo resistente de problemas filosóficos residuais: duas

hipóteses7. Nossa idéia geral da ciência8. Por uma concepção não-restritiva de ciência9. Por que conceber a filosofia como um empreendimento

protocientífico?10.Conseqüências da concepção proposta

IV. RELIGIÃO E OS REMANESCENTES MÍSTICOS DA FILOSOFIA, p. 871. Filosofia e religião: a abordagem genética2. A lei comtiana dos três estágios

3

3. Uma breve avaliação da lei de Comte4. Filosofia como uma indagação transitória entre religião e

ciência5. Conclusões

V. A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E ARTE, p. 1171. O sabor artístico de alguns escritos filosóficos: similaridades

externas2. Similaridades internas entre filosofia e arte

VI. PARA UMA EXPLICAÇÃO GLOBAL: INTEGRANDO AS CONFIGURAÇÕES CRITERIAIS, p. 126

1. Filosofia como uma atividade cultural derivada2. Uma explicação integradora da atividade filosófica

VII. COROLÁRIOS E PROSPECTOS, p. 1371. Formas da Filosofia2. Três fases históricas na evolução da filosofia3. A filosofia lingüístico-analítica nas rodas da história4. O futuro da filosofia

NOTAS

BIBLIOGRAFIA

4

PREFÁCIO

O presente texto é uma versão em português e ampliada do livro The

Philosophical Inquiry: Towards a Global Account (UPA: Langham, 2002),

que escrevi enquanto pesquisador visitante na Universidade da Califórnia em

Berkeley, em 1999.

Meu objetivo nesse livro é esboçar uma teoria global da natureza da

filosofia, mais sistemática e complexa e talvez mais concludente do que

eventuais concorrentes. Essa teoria é global no sentido de envolver qualquer

espécie de indagação filosófica, o que só se torna possível por ela ter sido

desenvolvida a partir de uma ampla perspectiva histórico-cultural. Essa

perspectiva mais ampla nasce de uma investigação das conexões da filosofia

com as atividades culturais mais fundamentais, que são a ciência, a religião e

a arte. Em sua relação com as últimas a filosofia é identificada com uma

atividade cultural derivada, cuja identidade resulta dela ser uma espécie de

amálgama de elementos provenientes do pensamento científico, da religião e

da arte.

Semelhanças e diferenças são investigadas. Em sua proximidade com a

arte a filosofia pode ser concebida à maneira de uma “arte da razão”,

unificando e integrando elementos conceituais com uma liberdade e

flexibilidade próximas daquela com a qual a arte unifica e integra os

elementos sensíveis (uma semelhança que vemos confirmada pela idéia

freudiana de processo primário de pensamento, posto que tanto a filosofia

quanto a arte seriam produto do processo primário, definido como aquele

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cujas cargas afetivas são móveis, por não se associarem rigidamente a

representações correspondentes). Em sua proximidade com a religião, a

filosofia tende à maior amplitude em suas sínteses, as quais inevitavelmente

contém elementos especulativos e não-cognitivos, que necessariamente vão

além daquilo que pode ser consensualmente obtido como resultado concreto

da investigação.

Por fim, em sua proximidade com a ciência, a filosofia é um esforço

cognitivo direcionado à aproximação da verdade e a resultados efetivos,

mesmo que nunca chegue a alcançá-los. As relações entre filosofia, arte e

religião são dinâmicas, alterando-se no curso da história: pode ser notado

que com o gradual, mas constante, desenvolvimento da ciência, a filosofia

tende a afastar-se da religião e da arte para aproximar-se aos poucos da

ciência.

Essa característica dinâmica da relação entre filosofia e ciência nos leva a

supor que a primeira possa ser pensada como um esforço conjectural ou

especulativo antecipador da ciência – como uma protociência. Tal suposição

– que é central ao texto – foi muitas vezes considerada como limitadora e

empobrecedora de nossa compreensão da atividade filosófica. Essa objeção

certamente procede quando se tem em vista uma concepção positivista ou

reducionista da investigação científica. Contudo, o conceito de ciência por

mim adotado é muito mais liberal e flexível, sendo a idéia básica de há

muito conhecida por filósofos que investigam o modo de funcionamento da

comunidade científica, como é o caso de John Ziman, que definiu a ciência

em termos de conhecimento público consensualizável. Seguindo as mesmas

linhas de Ziman, defendo que a concepção mais intuitiva e plausível da

natureza da ciência é a de que esta é toda e qualquer investigação que tem

por fim a verdade, conquanto esta seja gerada por uma comunidade crítica

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de idéias (capaz de satisfazer exigências de objetividade, racionalidade,

liberdade etc.), de tal modo que esta última seja capaz de obter um acordo

consensual legítimo sobre a verdade ou falsidade de seus resultados. Frente a

uma concepção tão liberal de ciência, a filosofia evidencia-se naturalmente

como o seu pendant protocientífico. Pois ela se torna simplesmente aquela

indagação objetivadora da verdade, que embora gerada em uma comunidade

crítica de idéias, ainda não se tornou remotamente capaz de alcançar um

acordo consensual legítimo sobre a verdade ou falsidade dos seus resultados.

Uma conseqüência importante de aceitarmos uma concepção de filosofia

como conjectura antecipadora da ciência é relativizar – e não simplesmente

refutar – a idéia de que a filosofia consiste em uma atividade de análise

conceitual. O que chamamos de filosofia analítica – a filosofia como análise

conceitual – passa a ser apenas a filosofia como antecipação de uma ciência

da linguagem (Austin), ou então, como resultado de progressos semióticos

típicos do século XX (que incluem o uso da lógica dos predicados e a análise

dos usos ordinários das expressões), simplesmente a filosofia marcada pela

ênfase propedêutica no elemento lingüístico-conceitual, no acento semântico

(Quine), capaz de prevenir confusões lingüístico-conceituais, e, em adição a

isso, capaz de tomar em sua devida consideração a nossa presente imagem

científica do mundo.

Gostaria de expressar meus agradecimentos ao professor John R. Searle,

por ter me aceito em Berkeley, e à CAPES, pela concessão da bolsa de pós-

doutorado sem a qual o presente livro não poderia ter sido escrito.

Natal, 2005

7

I

INTRODUÇÃO: OBJETIVOS E METODOLOGIA

Entre os muitos problemas filosóficos, o problema da natureza da

filosofia não é certamente o mais importante ou excitante. Não obstante, ele

é um dos mais desconfortáveis para o filósofo. Pois como pode alguém

pretender fazer filosofia, ou fazê-la corretamente, se não é sequer capaz de

nos dizer o que está tentando fazer? Esse livro é um esforço no sentido de

fornecer uma explicação geral da natureza da indagação filosófica, não sob

uma perspectiva particular, mas com base em um exame abrangente da

filosofia em seu desenvolvimento histórico e em suas conexões com outras

atividades culturais.

Uma objeção feita freqüentemente à tentativa de prover uma explicação

unificada da natureza da filosofia é a de que se trata de uma matéria tão

multifacetada e mutável, que qualquer esforço para capturá-la em um

apropriado arcabouço teórico estará destinado ao fracasso. Não se pode

classificar núvens por suas formas, como uma vez notou Wittgenstein. No

entanto, não seria possível investigar a filosofia teoreticamente, se acaso

fossemos capazes de determiná-la com base em critérios originados de uma

perspectiva suficientemente genérica e flexível? Afinal, de um modo geral,

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ao menos, há muito que a meteorologia classificou os tipos de núvens, ao

menos, por suas formas. Nos próximos capítulos mostrarei que uma

aproximação teorética geral da natureza da filosofia é possível. Neles, uma

sucessão de argumentos será reunida de modo a criar um arcabouço teórico

suficientemente abrangente e poderoso para nos prover dos meios capazes

de identificar e mapear o território filosófico. Antes de começarmos, porém,

algumas considerações metodológicas precisam ser feitas.

1. OBSERVAÇÕES METODOLÓGICAS

Há dois pontos metodológicos a serem considerados. O primeiro diz

respeito à distinção entre duas diferentes abordagens da natureza da

filosofia: a prescritivista e a descritivista.

A abordagem prescritivista ambiciona dizer o que a filosofia deveria ser;

ela é uma proposta para o que deveria ser chamado por esse nome. A

definição sugerida por Carnap, segundo a qual a filosofia é uma investigação

da sintaxe lógica da linguagem científica(1), a concepção de Heidegger da

filosofia como a ciência da seridade do Ser (do Ser em si)(2), a concepção

wittgensteiniana da filosofia como uma terapia contra o enfeitiçamento de

nosso entendimento pelos meios da linguagem(3)... tudo isso foram

prescrições, propostas concernentes àquilo que esses filósofos acreditavam

que a filosofia deveria ser. Uma abordagem prescritivista não pode ser dita

verdadeira ou falsa simplesmente ao ser comparada com a praxis histórica

real da filosofia, pois não é uma abordagem feita com a intenção de

representar essa praxis. Com relação a essa praxis, a abordagem

prescritivista somente pode ser bemsucedida, se adotada, ou malsucedida, se

não adotada. E de fato, algumas abordagens prescritivistas foram

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bemsucedidas nesse aspecto. A virada epistemológica inadvertidamente

imprimida à filosofia moderna por Descartes foi uma prescrição

bemsucedida, pelo menos por algum tempo. E o mesmo pode ser dito sobre

a virada lingüística que Frege, Russell e Wittgenstein imprimiram à filosofia

do século vinte. Dizendo o que a filosofia deveria ser, a abordagem

prescritivista permanece desinteressada da prática passada da filosofia. Para

dizer figurativamente, ela “olha para o futuro”.

A abordagem descritivista, por sua vez, não pretende dizer o que a

filosofia deveria ser, mas o que a filosofia de fato tem sido. Ela “olha para o

passado”, tentando tornar explícitas as condições criteriais que a

comunidade filosófica implicitamente admitiu para a identificação da

filosofia, em seu sentido técnico ou acadêmico, durante toda a história dessa

disciplina, ou ao menos com relação a alguns de seus segmentos históricos

ou regionais. Abordagens descritivistas constituem o tipo de explicação mais

provavelmente encontrado em dicionários de filosofia e em livros-texto do

que nas doutrinas dos filósofos, pois os últimos costumam estar mais

comprometidos com o avanço de suas próprias perspectivas pessoais,

freqüentemente revisionárias. Entretanto, quando C. D. Broad definiu a

filosofia como a busca de uma concepção geral do mundo e do lugar do

homem nele(4), quando G. E. Moore sugeriu que a filosofia, entre outras

coisas, é uma tentativa de fornecer uma descrição geral das mais amplas

classes de coisas do universo e do modo como elas estão relacionadas umas

com as outras(5), quando Ernst Tugendhat escreveu que a filosofia é a

elucidação da rede formada pelos conceitos constitutivos de nosso

entendimento como um todo(6), o que esses filósofos estavam tentando fazer

era satisfazer um paradigma descritivista, na medida em que tentavam cobrir

tanto quanto possível a extensão do que sempre foi chamado de filosofia.

10

O tempo parece trabalhar a favor das abordagens descritivistas, pois é

possível que com o passar do tempo o espaço para as abordagens

prescritivistas se torne sempre menor, enquanto o espaço para as abordagens

descritivistas certamente se torna maior. Se um dia a filosofia chegar a um

fim, não restará mais espaço para propostas. Hoje, quando alguns sugerem o

declínio ou mesmo do fim da filosofia, a abordagem descritivista parece se

tornar mais a mais interessante. Dessa espécie será, com efeito, a abordagem

metafilosófica adotada nesse livro.

É importante tornar claro em que sentido falarei de ‘filosofia’ sob a

perspectiva descritivista. Não é no sentido vernacular da soma das crenças

não examinadas geralmente mantidas pelas pessoas de maneira a dirigir as

suas vidas, e também não é em nenhum sentido popular, como quando se

fala da filosofia como sabedoria condutora da existência humana. A

investigação ficará aqui restrita ao sentido próprio, técnico, culto, acadêmico

ou erudito da palavra, o sentido no qual a tradição filosófica ocidental tem

usado para referir-se a si mesma e que se encontra paradigmaticamente

exemplificado nas obras dos mais proeminentes filósofos dessa tradição. Ao

tornar esse sentido erudito explícito, espero poder fazê-lo com os critérios

pelos quais usamos a palavra “filosofia” referencialmente, de maneira a

identificar o que lhe pertence e o que não. Mais do que isso, quero realizar

um esforço de fundamentação, justificando a existência de tais critérios de

identificação ao evidenciar que eles podem ser derivados da “localização

epistêmica” da filosofia no território da cultura, ou seja, de sua relação com

três atividades culturais fundamentais, que são a ciência, a religião e a arte.

Mas o que nos intitula a esperar que seja possível oferecer uma

explicação unificada da natureza da filosofia? A tarefa parece prima facie

plausível porque não apenas temos (talvez enganosamente) o sentimento de

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que o termo “filosofia” possui algum tipo de sentido erudito ou acadêmico

unificado, mas também porque pessoas adequadamente treinadas são

capazes de distinguir com alguma segurança o que conta ou não como

filosofia nesse sentido. Disso parece seguir-se que, por meio de um exame

suficientemente cuidadoso das aplicações do termo, nós seríamos em

princípio capazes de tornar explícitas as condições que têm guiado nossas

decisões de usá-lo ou não, explicando-as e organizando-as na forma de uma

caracterização ou teoria metafilosófica global. Embora não deixe de ser

possível que o termo “filosofia” não tenha qualquer sentido técnico unívoco,

adotarei a tese de que tal sentido exista como uma hipótese de trabalho para

ser avaliada através de seus resultados.

Também poderia ser objetado o seguinte. Somos admitidamente

inconscientes dos critérios que aplicamos para identificar os designata de

termos gerais centrais de nossa linguagem natural, como “conhecimento”,

“verdade”, “bem”. Eles estariam exprimindo categorias atemporais do

pensamento, incrustradas em nossa compreensão do mundo desde tempos

imemoriais. Mas o termo “filosofia” não pertence a essa classe, sendo de

surgimento muito mais recente, não havendo associada a ele uma gramática

criterial implícita a ser resgatada. Que essa objeção é insuficiente pode ser

mostrado quando consideramos que também somos inconscientes dos

critérios de aplicação de termos técnicos ainda mais recentes, como “teoria”,

“explicação”, e “observação”, tal como são usados nas ciências. Se

perguntamos ao cientista filosoficamente não-informado o que significa

“explicação científica”, ele terá grande dificuldade de dar uma resposta

articulada, sendo forçado a apelar para exemplos. É tarefa do filósofo da

ciência tornar explícitos os complexos significados desses termos. Ora, por

que não poderia essa idéia aplicar-se também à filosofia em si mesma? De

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fato, o conceito de filosofia foi introduzido em nossa cultura acadêmica há

longo tempo, sofrendo subseqüentemente um desenvolvimento próprio, um

desenvolvimento aparentemente sustentado pela natureza própria da

atividade filosófica e do que lhe pode ser dado como objeto de investigação.

Se pudéssemos tornar explícitos os critérios para a identificação do que

chamamos de filosofia de uma maneira que também esclareça por que

precisa ser assim, provendo um rationale para o uso da palavra, uma teoria

da natureza da filosofia, nós chegaríamos a uma análise filosoficamente

interessante desse conceito. Através dessa análise, nós não só estaríamos

entendendo melhor o que o filósofo está tentando fazer, mas também

prevenindo a prática enganosa de filosofia.

O segundo ponto que desejo endereçar diz respeito a dois perigos opostos

com os quais nos defrontamos em questionamentos metafilosóficos. O

primeiro pode ser chamado de pobreza. A definição de filosofia como uma

explicação do mundo como um todo e do lugar que o homem nele ocupa,

embora muito inclusiva, é por certo excessivamente vaga e pouco

informativa. Além do mais, se nós a considerarmos mais de perto, veremos

que ela não é bem sucedida em nos prover sequer de uma condição

necessária, posto que há muitas filosofias que não chegam a fazer isso, e

menos ainda de uma condição suficiente, posto que a religião também é

capaz de fazer o mesmo. A pobreza limita a maioria das explicações

descritivistas. Buscando escapar dessa vacuidade, freqüentemente chegamos

a obter sucesso em dizer algo mais definido à custa da generalidade. Esse

segundo tipo de inadequação pode ser chamado de redutivismo, sendo uma

limitação quase inevitável à abordagem prescritivista. A notória definição

carnapiana de filosofia como a investigação da sintaxe lógica da linguagem é

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um exemplo de redutivismo, pagando pela vantagem da precisão, um

exorbitante preço em exclusão.

A teoria global descritivista da natureza da filosofia a ser desenvolvida

neste livro busca preservar a extensão do objeto de investigação sem cair nas

limitações de uma caracterização insuficientemente informativa. Quero

mostrar que isso é possível na medida em que a abordagem descritivista for

capaz de integrar o que parece ser descritivamente verdadeiro em certas bem

conhecidas concepções da natureza da filosofia, que resultam da

investigação de suas relações próximas com a ciência, a religião e a arte,

bem como com o próprio meio lingüístico através do qual ela opera.

14

II

FILOSOFIA COMO ANÁLISE CONCEITUAL: UM CASO DE DEFINIÇÃO REDUTORA

Tão logo finalidades científicas colocam grandes exigências na fineza das distinções, o olho nu torna-se insuficiente. O microscópio, contudo, é para tais finalidades perfeitamente adequado, embora por isso mesmo para todas as outras inútil.

Gottlob Frege

Nosso objetivo é trazer as palavras de volta de suas férias metafísicas para a linguagem ordinária.

Wittgenstein

Uma núvem de filosofia se condensa em uma gota de gramática.

Wittgenstein

Quando, como metafilósofos descritivistas, lançamos um olhar sobre a

história da filosofia, há algumas explicações de sua natureza que somos

tentados a rejeitar sem maiores considerações. Esse é o caso de qualquer

explicação baseada no objeto próprio ou no método próprio da filosofia.

Pois há uma variedade quase tão grande de objetos e métodos quanto de

filosofias ou, pelo menos, de movimentos filosóficos. Além disso, as muitas

áreas da filosofia teórica e prática parecem ter uma correspondente

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variedade de objetos específicos, variando também a metodologia para

corresponder ao objeto. Somente o metafilósofo prescritivista pode ainda ter

a esperança (ou fantasia) de divisar o objeto de investigação próprio da

filosofia. Já o descritivista tenderá a ver tais formas de explicação como

inerentemente redutivas, estreitando desnecessariamente as fronteiras da

filosofia.

Como a minha intenção é construtiva mais do que crítica, irei examinar

somente uma concepção da natureza da filosofia que a identifica com um

método próprio e, freqüentemente, com um objeto de investigação próprio.

Trata-se de uma concepção subjacente a desenvolvimentos extremamente

importantes da filosofia do século XX, ou seja, da concepção extremamente

influente e ainda amplamente aceita de que o método próprio da filosofia é o

de análise conceitual e de que o objeto próprio da filosofia é o que pode ser

chamado de a estrutura lógico-gramatical de nossos conceitos mais

centrais. Essa concepção foi sustentada por filósofos como Ludwig

Wittgenstein, Friedrich Waismann, A. J. Ayer, P. F. Strawson, Michal

Dummett, Ernst Tugendhat, R. E. Brandom e muitos outros.

A concepção da filosofia como análise conceitual foi seriamente

desafiada pela assim chamada “virada naturalista”, promovida especialmente

por W. V. O. Quine(7). Para ele, a filosofia é mais do que uma mera questão

de investigação lingüístico-conceitual, posto que ela não é algo

essencialmente distinto da ciência empírica. Não há efetivamente nenhuma

distinção real a ser traçada aqui: a filosofia forma um continuum com a

ciência, e as distinções que podem ser traçadas são meramente artificiais,

algo como as fronteiras entre os diversos estados de um mesmo país(8).

Embora esse ponto de vista tenha algumas vantagens, o problema é que

nenhum advogado da virada naturalista seria capaz de explicar porque nós

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todos permanecemos tão pouco dispostos a ver as fronteiras entre a ciência e

a filosofia como o resultado de acordos convencionais arbitrários. A tese

quineana de que a distinção entre filosofia e ciência resulta de uma decisão

artificial não explica por que sentimos uma resistência tão grande à idéia de

alterar as fronteiras presentes, chamando de ciência o que tem sido chamado

de filosofia e vice-versa. Mais além – e isso me parece decisivo – a tese não

explica porque não precisamos apelar para nenhum novo acordo

convencional, quando identificamos uma nova teoria como sendo filosófica

ao invés de científica, ou vice-versa. A concepção da filosofia como análise

conceitual tem ao menos o mérito de tentar responder a essas questões por

meio de uma explicitação do que seriam as características distintivas da

filosofia.

Embora existam muitas versões da concepção de filosofia como análise

lingüístico-conceitual, quero reduzi-las de modo um tanto artificial a duas

formas gerais, de maneira a mostrar melhor as limitações intrínsecas dessa

concepção. Chamarei essas duas formas de filosofia como análise

lingüístico-conceitual de a) crítica da linguagem e de b) análise da

linguagem. Ao fazermos crítica da linguagem buscamos analisar ou elucidar

conceitos de modo a dissolver confusões filosóficas. Ao fazermos análise da

linguagem, procuramos analisar conceitos em busca de um melhor

entendimento de nossa arquitetura conceitual, ou então na tentativa de

transformá-la e aperfeiçoá-la. No que se segue irei explicar o que entendo

por cada uma dessas formas de filosofia, mostrando que, a despeito de seus

próprios méritos, elas falham em nos oferecer uma adequada explicação da

natureza da filosofia.

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1. OS ATALHOS DA CRÍTICADA LINGUAGEM

A crítica da linguagem busca evidenciar falhas em argumentos

filosóficos, muitos deles pertencentes à filosofia tradicional. Isso tem sido

historicamente realizado de duas maneiras. A primeira como uma análise da

estrutura lógica das sentenças – o que chamarei de forma de análise

sintaticamente orientada. A segunda espécie de análise constitui-se de um

exame cuidadoso dos significados ou usos das expressões de nossa

linguagem ordinária em seus contextos interpessoais – o que chamo de

forma pragmaticamente orientada de análise. Uso as expressões “forma de

análise sintaticamente orientada” e “pragmaticamente orientada”

respectivamente em substituição a uma distinção de conotação algo mais

restritiva, a velha e enganosa distinção entre filosofia da linguagem ideal

(guiada pela lógica) e filosofia da linguagem ordinária (guiada pela

linguagem do cotidiano). Essa distinção é enganosa porque a história da

filosofia analítica mostrou que nada impede que uma investigação da

linguagem ordinária seja conduzida sob um ponto de vista lógico, como de

fato aconteceu em casos como o tratamento formalizado da teoria dos atos

de fala através de uma lógica ilocucionária por J. R. Searle, ou como a

explicação veritativo-funcional apresentada por P. F. Strawson para o

conceito de pressuposição em On Referring; por outro lado, também nada

nos impede de conduzir investigações da linguagem ideal sob a perspectiva

de sua realização na linguagem ordinária, como é evidenciado, por exemplo,

pelo estudo dos usos de partículas lógicas na linguagem ordinária.

18

A forma sintaticamente orientada de crítica da linguagem pode ser

exemplificada pela observação de filósofos analíticos, como Russell e

principalmente Ryle(9), de que uma razão subjacente à criação da doutrina

das idéias por Platão pode ter sido uma confusão gerada pela similaridade

superficial entre a gramática lingüística de sentenças como “A beleza é

agradável” e “Sócrates é calvo”. Conduzido por tais similaridades, Platão

teria concluído que, desde que o sujeito de sentenças como a última é um

nome próprio se referindo a um particular, o sujeito de sentenças como a

primeira também precisa ser um nome próprio e referir-se a um particular.

Contudo, como não existe “a beleza” no mundo visível, “a beleza” deve

habitar um mundo que é somente inteligível, o mundo das idéias, situado na

“região supraceleste”. Contra essa conclusão, a crítica da linguagem,

baseada na moderna lógica dos predicados, mostra que as estruturas lógicas

de ambos os tipos de sentença são apenas aparentemente idênticas, posto

que a primeira sentença tem uma estrutura lógica que é muito diversa de sua

estrutura lingüística superficial. Enquanto “Sócrates ( = s) é calvo ( = C)”

tem a forma lógica “Cs”, uma sentença como “A beleza é agradável” é

logicamente analisável como uma abreviação da sentença “Para todo x, se x

é belo (= B), então x é agradável (= A)”, ou “(x) (Bx -> Ax)”, onde “belo” é

evidenciado como não sendo realmente um nome próprio, mas uma

expressão predicativa. A sugestão de críticos da linguagem como Ryle era a

de que a identidade superficial na forma sujeito-predicado de ambos os tipos

de sentença confundiu Platão, fornecendo-lhe uma razão ilusória para a

construção de um castelo de cartas metafísico.

O segundo exemplo – agora da uma crítica da linguagem

pragmaticamente orientada – concerne à exposição das distorções

lingüísticas que estariam subjacentes ao argumento da ilusão, um argumento

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colocado por epistemologias representacionalistas (e fenomenalistas)

opostas ao realismo. Nesse argumento, casos são considerados em que

objetos parecem diferentes do que eles realmente são, como a colher que,

parcialmente imersa em um copo d’água, parece entortada. A consideração

desses casos leva-nos à conclusão de que percebemos as coisas

indiretamente: aquilo que diretamente percebemos não são os objetos

materiais, mas somente nossas representações (ou impressões sensíveis)

deles. Opondo-se a tal conclusão, críticos da linguagem como J. L. Austin

argumentaram que não dizemos que não percebemos diretamente os objetos,

mas apenas as suas representações; o que realmente dizemos é que nós

vemos os objetos (como a colher no copo d’água) diretamente, embora não

como eles realmente são. Assim, quando olho (com ambos os olhos) para o

meu nariz, eu não digo que realmente vejo dois narizes, mas antes que vejo o

meu próprio nariz duplicado; e quando vejo uma moeda como sendo elíptica,

não digo que estou vendo um objeto elíptico, mas que estou vendo um objeto

redondo que parece elíptico(10).

Exemplos como esses servem para mostrar não somente as qualidades,

mas também os limites da crítica da linguagem. Pois é evidente que a

doutrina platônica das idéias, como uma tentativa de explicar nossa

compreensão da função dos termos gerais (da generalidade e predicação), e

as objeções representacionalistas ao realismo direto (tanto na forma

fenomenal como científica do argumento da ilusão) permanecem além do

alcance de uma crítica puramente lingüística. Uma razão para pensar assim é

que os argumentos para a admissão de idéias como o fundamento explicativo

da generalidade e predicação, assim como os argumentos para a admissão de

representações (perceptos, sensações, fenômenos, sense data, qualia...)

como os mais imediatos objetos da experiência, mediando inevitavelmente

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nosso acesso ao mundo externo, têm ambos um conteúdo substantivo que só

parece capaz de ser definitivamente refutado através de considerações

extralingüísticas. Isso se torna mais evidente quando consideramos que com

base no resultado substantivo desses argumentos alguém poderia defender a

necessidade de correção de nossos hábitos lingüísticos ordinários irrefletidos

por meio da introdução de convenções mais adequadas, que tornassem

correto falar de idéias não-psicológicas, não mentais, ou dizer que aquilo que

imediatamente percebemos são de fato nossas sensações, perceptos, sense-

data etc.

Geralmente, a crítica da linguagem não é vista como uma concepção da

natureza da filosofia, mas somente como uma maneira crítica de fazê-la. Não

obstante, a crítica da linguagem tornou-se uma concepção da natureza da

filosofia nos escritos de Wittgenstein, que teria concebido a filosofia como

uma espécie de terapia lingüística sem qualquer conteúdo positivo

próprio(11). Mesmo sendo questionável em que extensão Wittgenstein teria

endossado tal modo de ver, dado que ele também fez observações que se

afastam dele, essa concepção pode ser (e de fato tem sido) facilmente

retirada de seus textos, e irei expô-la aqui por aquilo que ela é capaz de nos

ensinar(12).

A concepção terapêutica da filosofia afirma que muito dela

(especialmente da filosofia tradicional) é resultado de confusão lingüística.

Filósofos são indivíduos possuídos por um irresistível anseio por

generalidade (craving for generality)(13), que os predispõem a serem

enganados pelas estruturas superficiais de nossa linguagem, levando-os à

construção de “castelos de cartas” teoréticos, ou, quando isso causa

contradição, acabando por reduzi-los a desesperançados prisioneiros de “nós

do pensamento”. Em face disso, a boa filosofia deve ser terapêutica: o

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objetivo do filósofo terapêutico é desmontar os castelos de carta teoréticos

do metafísico especulativo e desfazer os nós do pensamento nos quais

pensadores mais austeros enlearam-se a si mesmos. E o modo de fazer isso

não é por meio da construção de teorias, nem pela explicação de coisa

alguma, mas através de uma descrição dos modos pelos quais efetivamente

usamos nossas palavras – por trazer essas palavras, como Wittgenstein diria,

de volta de suas férias metafísicas para o seu trabalho lingüístico cotidiano.

Sendo assim, a filosofia deve tornar-se um empreendimento puramente

destrutivo, somente bemsucedido quando o filósofo, liberto de suas

preocupações metafísicas, tal como um paciente psicanalítico liberto de suas

fixações neuróticas, torna-se capaz de esquecer a filosofia.

O problema com a concepção terapêutica da filosofia é que ela corta os

galhos curto demais. Nenhuma crítica da linguagem tem sido bemsucedida

em ser inteiramente não-teorética e não-explicativa. O próprio trabalho de

Wittgenstein é um bom exemplo desse fracasso, embora esse fato seja

geralmente ocultado pelo caráter fragmentário e elusivo de seus escritos(14).

Considerem-se, por exemplo, suas observações sobre nomes próprios nas

Investigações Filosóficas(15). Elas são concebidas como uma crítica à

“teoria do rótulo” dos nomes próprios, pela qual o significado de um nome

próprio é o objeto apresentado por ele de modo similar ao rótulo de uma

garrafa apresentando o seu conteúdo. No entanto, ao refutar essa teoria

Wittgenstein está, intencionalmente ou não, ideando uma versão mais

sofisticada da teoria do feixe (bundle theory) dos nomes próprios, a qual

explica o significado de nomes como “Moisés” pelas diferentes descrições a

ele associadas, como “o homem que conduziu os israelenses através do

deserto”, “o homem que viveu naquele tempo e lugar e que foi chamado

“Moisés”, ou “o homem que quando criança foi retirado do Nilo pela filha

22

do faraó”. (Usando o vocabulário próprio de Wittgenstein poderíamos

adicionar que essas descrições são expressões de regras para a identificação

do objeto nomeado, regras que devem constituir conjuntamente aquilo que

queremos dizer com o nome próprio, mais precisamente, o seu sentido

referencial.) Assim, as sugestões de Wittgenstein são teoréticas, posto que a

sua eficácia terapêutica depende de uma sugerida generalização para todos

os nomes próprios; e suas observações são também explicativas, posto que

elas objetivam explicar como podemos identificar pessoas usando nomes

próprios. Mais além, essas mesmas idéias foram independentemente

retomadas mais tarde, na sugestão explicitamente teorética e explicativa de

uma teoria do feixe para nomes próprios por J. R. Searle(16). Exemplos

como esse mostram que uma terapia filosófica, para ser efetiva, para curar a

doença e não somente minorar esse ou aquele sintoma ocasional, deve ser

baseada em generalizações dotadas de poder explicativo. Essas

generalizações, quando desenvolvidas, forçam-nos a abandonar o terreno da

descrição da linguagem ordinária em direção a construções teóricas cada vez

mais elaboradas. Crítica e teoria, concluímos, não podem ser completamente

separadas uma da outra; elas são os lados opostos da mesma moeda

filosófica, parecendo ser matéria meramente circunstancial quando um

filósofo prefere enfatizar um ou outro lado.

2. FILOSOFIA COMO ANÁLISE DA LINGUAGEM

O fracasso da concepção puramente terapêutica da filosofia leva-nos a

considerar aquela da filosofia como análise da linguagem. Esse é o lado

construtivo, teorético, da moeda filosófica, capaz de fornecer suporte à

crítica da linguagem e possivelmente mesmo de torná-la uma extensão de si

23

mesma. A análise da linguagem também pode ser feita de um modo

sintaticamente orientado (como “filosofia da linguagem ideal”) ou de um

modo pragmaticamente orientado (como “filosofia da linguagem ordinária”).

Como exemplo da forma sintaticamente orientada está o esboço de uma

estrutura geral requerida pela sintaxe de qualquer língua encontrado na

distinção introduzida por Carnap entre regras de formação (especificando

símbolos e sentenças bem formadas) e regras de transformação

(determinando as possíveis relações entre as sentenças)(17). Por sua vez, um

exemplo de análise da linguagem em sua forma pragmaticamente orientada é

a teoria dos atos de fala de Searle, a qual sustenta que a estrutura de nossas

ações comunicativas é geralmente redutível à forma F(p), em que p é o

conteúdo proposicional e F é a força ilocucionária, esta última definindo o

tipo de compromisso interpessoal que o falante propõe que seja associado ao

seu conteúdo(18).

Construções analíticas como essas são teorias muito gerais, possuidoras

de interesse intrínseco, posto que elas são empreendimentos investigativos

capazes de conduzir-nos à proximidade dos horizontes científicos. De fato,

a distinção introduzida por Carnap entre regras de formação e de

transformação já foi há muito incorporada em diferentes domínios da lógica

simbólica (que se desenvolve hoje como uma ciência formal), e a teoria dos

atos de fala pertence hoje ao domínio da pragmática lingüística, mais do que

à filosofia. Embora tais construções teóricas também possam ser usadas

como instrumentos críticos, essa não é a principal razão para o seu

desenvolvimento, que é a de ampliar as fronteiras de nosso conhecimento.

No que se segue, irei expor uma versão full-blooded da concepção da

filosofia como análise da linguagem. Essa versão pertence à forma

pragmaticamente orientada, estendendo-se aos limites de tolerância e

24

defensabilidade, incorporando, quando necessário, até mesmo formas

sintáticas de análise. Algo próximo dessa versão pode ser encontrado, com

diferenças individuais, nas concepções de praticantes tardios e melhor

aconselhados dos métodos analíticos, como Peter Strawson e Ernst

Tugendhat.

Uma assunção básica da concepção full-blooded da filosofia como

análise da linguagem é a idéia de que não temos consciência da estrutura

extraordinariamente complexa dos conceitos mais centrais de nossa

linguagem natural, os quais costumam ser intrinsecamente relacionados uns

aos outros, como os conceitos de verdade, conhecimento, crença, percepção,

causa, tempo, bem, justiça, beleza etc. Essa falta de consciência tem uma

explicação: não aprendemos esses conceitos por meio de definições

explícitas, mas, desde a infância, através de uma praxis não-cognitiva de

exemplificações positivas e negativas, na qual nosso aprendizado é

repetidamente submetido à correção interpessoal. Conseqüentemente,

embora pareça claro que nós conhecemos os significados de palavras como

“verdade”, “tempo” e “beleza”, posto que nós sabemos usá-las corretamente,

nós permanecemos incapazes de descrever como usamos essas palavras, ou

seja, de tornar as regras constitutivas de seus significados (conceitos)

explícitas. Essa é a razão pela qual, embora sejamos plenamente capazes de

usar essas palavras corretamente, nós nos embaraçamos seriamente quando

nos é pedido que expliquemos o que queremos dizer com elas. Devido a essa

falta de consciência das regras que governam o uso das palavras, confusões

filosóficas podem facilmente surgir: filósofos, particularmente aqueles que

se ocupam com metafísica especulativa, têm confundido sistematicamente

os usos de nossas expressões; e já vimos como a crítica da linguagem

funciona, analisando as estruturas lógico-sintáticas dos conceitos relevantes

25

ou fazendo uma análise ou “descrição” dos usos das palavras que as

expressam em situações concretas, de maneira a demonstrar a

implausibilidade dessas tentativas. Em si mesma, a filosofia analítica da

linguagem não é um empreendimento crítico; seu interesse principal é o de

construir teorias objetivando explicitar e aprofundar as nossas estruturas

conceituais mais centrais. Contendo generalizações, essas teorias também

têm valor explicativo. E o seu objetivo mais distintivo é fornecer o que nós,

junto com Wittgenstein, poderíamos chamar de uma representação sinóptica

(übersichtliche Darstellung): uma sinopse da estrutura gramatical dos

conceitos mais fundamentais de nossa linguagem(19). Desde que esses

conceitos se encontram geralmente inter-relacionados, uma representação

sinóptica também pode tornar explícita a relação sistemática entre eles,

objetivando elucidar o que Tugendhat chamou de a malha conceitual

(begriffliches Netzwerk) constitutiva de nosso entendimento como um

todo(20).

Para completar nosso quadro, é importante dizer algo sobre o traço mais

penetrante da filosofia analítica. É o que Quine chamou de acento semântico

(21) e que eu – sem medo da intencionalidade – prefiro chamar de ênfase

lingüístico-conceitual. Trata-se de uma espécie de ênfase discursiva nos

elementos lingüísticos e conceituais. Por meio do acento semântico, aspectos

lingüístico-conceituais de nossas expressões são focalizados de maneira a

tornar explícitas distinções lingüístico-conceituais mais sutis e prevenir

confusão. Para dar exemplos, a questão “O que são números?” foi

parafraseada por Frege como “O que é o significado de sentenças contendo

palavras-número?”, e a asserção wittgensteiniana “O mundo é feito de fatos,

não de coisas” foi parafraseada por Carnap como “A palavra-conceitual

‘mundo’ é entendida de tal maneira que por meio dela somente o sistema dos

26

fatos, não o das coisas, pode ser referido”. Essa noção de acento semântico é

reminiscente do conceito carnapiano de modo de dizer formal, que para ele é

o modo de dizer adequado aos assuntos filosóficos, ou seja, às questões

lingüístico-conceituais. Contudo, como foi notado com muita perspicácia

por Quine, a distinção carnapiana é falsa na medida em que ele quer torná-la

caracterizadora da filosofia enquanto tal. A noção de acento semântico difere

do modo de falar formal por ser concebida como aplicável não somente às

sentenças filosóficas, mas a toda sentença concebível: “Acento semântico”,

escreveu ele, “aplica-se em todo lugar. ‘Há masurpiais na Tasmânia” pode

ser parafraseado como ‘’Masurpial’ é verdadeiro para algumas criaturas na

Tasmânia’, se há qualquer ponto nisso. Apenas acontece de ser o acento

semântico mais útil em conexões filosóficas”(22).

A noção de acento semântico ou lingüístico-conceitual pode ser explicada

mais claramente quando consideramos que, por razões técnicas, ao fazermos

filosofia analítica, apresentamos os nossos argumentos – de maneira mais ou

menos explícita – em uma metalinguagem que nos permite centrar o

discurso em nossas palavras e nos conceitos por elas expressos. Contudo, é

importante sublinhar que isso é usualmente feito por meio de uma

metalinguagem semântica e não meramente por uma metalinguagem

sintática. Essa consideração torna possível responder à objeção de que a

filosofia analítica, sendo um empreendimento lingüístico, inevitavelmente

deixa de fora o mundo (ver nota 25). Para esclarecer esse ponto, compare as

duas sentenças seguintes:

(a) “’Cracóvia’ é uma palavra-nome com oito letras”.

(b) “’Cracóvia’ é o nome de uma cidade localizada a 50° ao norte do

equador e a 20° ao leste do meridiano de Greenwich.”

27

Na sentença (a) usamos a metalinguagem sintática para falar de uma

palavra como sinal físico. Na sentença (b) usamos uma metalinguagem

semântica para falar não somente de uma palavra, mas também sobre o que

ela significa. Usando um vocabulário fregeano, podemos dizer que pela

utilização de uma metalinguagem semântica estamos tornando explícitos os

sentidos de nossas palavras, e que ao fazermos isso também estamos falando

sobre aquilo a que elas se referem, ou seja, sobre o mundo, ao menos na

medida em que essas referências, os objetos, eventos, propriedades... são

avaliáveis para nós por meios conceituais (Frege chamou de sentido de um

nome de Art des Gegebenseins eines Gegenstandes: o modo de se dar do

objeto). Em suma: por meio de uma metalinguagem sintática, falamos

somente dos signos em abstração de seus significados – esse é o caminho do

formalismo seco. Já por meio de uma metalinguagem semântica,

preservamos os sentidos e não só os signos, falando de ambos – esse é o

caminho filosófico, pelo qual a análise da linguagem pode ser estendida das

palavras ao que se quer dizer com elas e assim ao próprio mundo. A ênfase

conceitual é um modo de centrar nossa atenção na linguagem sem excluir

nada de valor que possa ser representado pela linguagem.

Embora a forma sintaticamente orientada de análise da linguagem

praticada por filósofos como Carnap, Quine, Donald Davidson e Samuel

Kripke também empregue o acento lingüístico-conceitual, ela difere de

maneira importante da concepção full-blooded de análise em suas atitudes

com relação às exigências do senso comum e da linguagem ordinária que o

representa. Filósofos sintaticamente orientados dão muito mais peso à

consistência interna de suas teorias formalmente orientadas do que ao

eventual acordo dessas teorias com o senso comum que as intuições da

28

linguagem ordinária exprimem, estando sempre preparados para sacrificar a

última pela primeira.

Com efeito, muitas das idéias da forma sintaticamente orientada de

análise da linguagem estão em flagrante contradição com essas intuições.

Qual é a razão disso? Penso que a resposta não seja difícil de ser encontrada.

Somos perfeitamente capazes de aprender a sintaxe de uma linguagem – as

regras para a combinação de seus signos – em um estado de ignorância, sem

conhecer as referências desses signos e suas combinações, sem conhecer os

seus significados, e como usá-los em situações concretas. Mas o oposto é

bem menos concebível: não podemos ter acesso adequado aos sentidos de

combinações de signos e aos modos como esses signos são usados sem

conhecer as suas funções sintáticas, ou seja, como eles podem ser

combinados na construção de sentenças bem formadas. Isso significa que

embora o entendimento da dimensão sintática da linguagem não

pressuponha o entendimento da dimensão pragmática, para esta última ser

adequadamente entendida, já é pressuposto o entendimento da dimensão

sintática (e semântica) (ver capítulo VII, seção 3). Isso também significa que

essa dimensão pragmática carrega consigo, ao menos como pressuposto,

todo o conjunto de regras de significado da linguagem, um conjunto

articulador de nossas intuições lingüístico-conceptuais, de nossas intuições

de senso comum acerca dos significados de nossas expressões, a ser

manifesto nos modos pelos quais as usamos. Isso quer dizer que a forma

sintaticamente orientada de análise, sendo independente da dimensão

pragmática, pode ser desenvolvida em abstração da dimensão pragmática e,

conseqüentemente, também em desacordo com ela, sem perda de

inteligibilidade. Uma conseqüência disso é que o analista conceitual

sintaticamente orientado sente-se mais livre para confrontar assunções

29

fundamentadoras da racionalidade da linguagem e de nossas visões comuns

do mundo, mesmo que de maneira ilusória, quando o seu procedimento for

redutivo e dependente de uma rejeição gratuita dessas assunções. (Isso

explica, por exemplo, por que os argumentos de Quine ou Kripke podem

facilmente se opor ao senso comum lingüístico, enquanto os argumentos de

Searle ou Strawson só são capazes disso a preço de visível inconsistência.)

Na próxima seção as conseqüências teóricas que filósofos tiraram das

concepções recém-descritas serão avaliadas criticamente, de maneira a

mostrar que a concepção de filosofia como análise da linguagem (e,

conseqüentemente, também como crítica da linguagem), embora capaz de

mostrar-nos como a filosofia pode dever ser, é incapaz de mostrar-nos o que

a filosofia é.

3. A FALÁCIA OBJETUAL NAFILOSOFIA ANALÍTICA

Muitos defensores da filosofia como análise conceitual pensam que suas

concepções conduzem à conclusão de que, como o filósofo está expondo a

estrutura conceitual de nossa linguagem, ele não está

(a) de modo algum desenvolvendo qualquer hipótese especulativa sobre o mundo, como o filósofo especulativo tradicional havia feito,

e ele também não está

(b) de modo algum desenvolvendo qualquer hipótese empírica sobre o mundo, como fazem os cientistas da natureza (mesmo que o empreendimento de descrição do modo como a linguagem realmente trabalha possa ser visto como empírico(23)).

30

Meu objetivo nesta seção é mostrar que nem a asserção (a) nem a

asserção (b) pode ser satisfeita pela praxis efetiva da filosofia como análise

da linguagem, e que a pretensão de que elas possam ser preenchidas repousa

em uma insidiosa falácia objetual. Além disso, por mostrar que essas

asserções são falaciosas, pretendo também demonstrar ser errônea a

assunção de que do ponto de vista do objeto de investigação a filosofia

analítica distingue-se de outras atividades investigativas, uma vez que ela

tem como objetivo o esclarecimento de estruturas conceituais e, por

conseqüência, não teria como objetivo uma explicação do mundo enquanto

tal. O comprido argumento que usarei para evidenciar esse ponto não é um

modelo de linearidade e transparência, mas aqui vai:

Para mostrar que o analista conceitual não é bem-sucedido em assegurar

que a análise conceitual possui um objeto de investigação diferente do objeto

da filosofia tradicional e da ciência em geral, precisamos começar

considerando a sua praxis efetiva. As teses (a) e (b) poderiam com efeito ser

consistentemente mantidas se o analista conceitual tivesse se limitado à

análise lógica da estrutura das sentenças, ou a uma tediosa, quasi-

lexicográfica descrição dos significados das palavras-conceituais

filosoficamente relevantes de nossa linguagem natural. Mas isso não é o que

ele efetivamente faz. De maneira a alcançar qualquer espécie de relevância

filosófica, o analista conceitual deve dar um passo adiante: deve inquirir

nossa praxis real de pensamento sobre as coisas, descobrindo nessa praxis

conceitos para os quais ainda não há qualquer palavra em nossa linguagem,

tais conceitos sendo escolhidos em virtude de fatores tais como coerência e

poder explicativo. Como esses conceitos recém-descobertos podem ser

expressos somente através de novas concatenações de palavras, o analista

conceitual é freqüentemente levado a substituir essas concatenações por

31

novos termos de arte, inventados por razões de economia discursiva. Alguns

exemplos ilustram esse procedimento: o proponente de uma teoria das ações

comunicativas pode fazer uma análise de nossos “atos de fala” sob a

perspectiva de sua “força ilocucionária”; alguém engajado em filosofia do

conteúdo pode tentar analisar a função representacional de nosso

enunciados, o seu “significado factual”, em termos de “regras de

verificabilidade”; um epistemólogo pode sugerir uma análise do conceito de

“conhecimento proposicional” (knowing that) em termos de “crença

verdadeira justificada ultimadamente não-refutada”.

Quando refletimos sobre esses procedimentos, um primeiro ponto a ser

considerado é que o procedimento supostamente analítico contém um

momento de síntese hipotética. Estruturas conceituais profundas são

primeiramente descobertas para somente então serem analisadas (ver nota

57). Mas ao proceder assim o filósofo já está fazendo um trabalho de

generalização – ou, como podemos também dizer, ele está tentando trazer à

superfície um tipo de “unidade sintética” que (ao menos para o analista

pragmaticamente orientado) já estaria presente nos usos de nossa linguagem.

O problema é que a adequação dessas recém-descobertas unidades

conceituais é altamente hipotética. Isso é mostrado pelo fato de que os

significados dos termos gerais usados para explicar uma nova unidade

conceitual são eles próprios controversos; de fato, o filósofo está tentando

estabelecer conceitos recém-descobertos justificados por sua consistência

com todo o tecido conceitual de crenças conscientemente ou

inconscientemente assumidas por ele como o mais coerente e verdadeiro, o

que torna o seu empreendimento inevitavelmente conjectural. Na busca de

um equilíbrio reflexivo o filósofo sugere hipóteses eventualmente frutíferas.

Essas hipóteses são sobre a estrutura empírica da linguagem, no caso da

32

teoria dos atos de fala, sobre a função representacional de nossos

enunciados, no caso mais especulativo do princípio da verificabilidade, e

sobre a forma pela qual a mente avalia o nosso “saber que”, no caso da

definição proposicional de conhecimento. O esforço todo pode ser

considerado em muitos casos e em certa medida análogo ao trabalho de

descoberta de uma lei da natureza nas ciências naturais, ou seja, a algo capaz

de explicar uma variedade de casos individuais e capaz de ser

posteriormente confirmado ou infirmado pela experiência, mesmo que ela

seja concernente a hábitos lingüísticos, no primeiro caso, ou à forma

possível de certos processos cognitivos, nos outros casos.

Penso que um analista conceitual liberal não terá grande dificuldade em

aceitar essas objeções. Mas ele usualmente insistirá que, mesmo sendo o seu

procedimento analítico concreto precedido de um momento hipotético de

síntese, ele está sempre tentando tornar explícito o que já pertence ao nosso

sistema conceitual e nunca, como o cientista empírico ou o filósofo

especulativo, indo além desse sistema ao elaborar hipóteses sobre o mundo

real. No entanto, quando nós examinamos os exemplos dados, vemos que

muito do que os filósofos analíticos dizem também pode ser interpretado

como tratando de fatos empíricos, mesmo que sejam muito gerais e digam

geralmente respeito ao relacionamento de nossas representações com o

mundo, mais do que com o mundo em si mesmo. De fato, quando

examinamos outros exemplos de análise, como os que são advindos do

campo da metafísica analítica ou da filosofia da mente, vemos que esses

fatos podem muito bem fazer parte do próprio mundo empírico. Considere,

por exemplo, o caso da análise do conceito de consciência em filosofia da

mente. Seguindo uma sugestão introduzida por D. M. Armstrong, tornou-se

hoje muito comum a distinção entre duas formas mais importantes de

33

consciência: a consciência perceptiva (o estar em vigília, percebendo o

mundo) e a consciência introspectiva (a submissão de estados mentais ditos

“conscientes” a introspecções ou cognições de segunda ordem acerca deles)

(24). Essa distinção pode ser dita conceitual, mas ela também diz respeito a

classes de fenômenos empíricos, ou seja, a fenômenos mentais difusamente

situados no espaço e no tempo.

Embora essa pareça ser uma conclusão claramente insatisfatória, o

analista conceitual ainda tem uma resposta para ela. Ele poderá dizer que ela

é aceitável pois, como o mundo é refletido na estrutura de nossos conceitos,

ao analisá-los nós também estamos dizendo algo sobre o mundo. Como A. J.

Ayer notou:

A distinção entre ‘sobre a linguagem’ e ‘sobre o mundo’ não é de modo

algum abrupta, pois o mundo é o mundo que nós descrevemos, o mundo

como ele figura em nosso sistema conceitual. Ao explorar nosso sistema

conceitual você está, ao mesmo tempo, explorando o mundo(25).

Embora isso seja verdadeiro e confirmado por nossas considerações

anteriores acerca da ênfase conceitual, a resposta de Ayer aponta claramente

para o fato de que não podemos distinguir o objeto de investigação próprio

da filosofia por referência à análise de nossas estruturas conceituais. Pois em

um sentido similar podemos sugerir que o cientista empírico e o metafísico

especulativo estão fazendo um trabalho de “análise conceitual”, a única

diferença sendo a de que eles não são conscientes disso, posto que não têm a

preocupação em focalizar os aspectos lingüístico-conceituais de suas

investigações por meio de uma metalinguagem semântica. Tentarei tornar

34

este último ponto mais claro levantando objeções separadas contra as teses

(a) e (b).

Considere-se a tese (a): diversamente dos filósofos especulativos, os

filósofos analíticos não estão fazendo asserções conjecturais sobre o mundo.

Contra essa tese é importante ressaltar que a história recente da filosofia

tem mostrado que todos os domínios e posições da filosofia tradicional

podem ser identificados no trabalho de filósofos ditos analíticos (e por

alguns mesmo chamados de pós-analíticos). Sequer faz sentido defender que

a filosofia analítica não é especulativa, pois essa história mostra que as

distinções que os filósofos mantiveram entre

Filosofia crítica e Filosofia especulativa

(ocupada com a defini- (objetivando alcançar conclusões gerais

ção e análise crítica sobre a natureza do universo e sobre

dos conceitos de nossa nosso lugar e expectativas nele)

vida diária e ciências) (C. D. Broad),

Metafísica imanente e Metafísica transcendente

(limitando-se ao mundo (objetivando ir além dos sentidos,

dos sentidos) relacionando-se com o mundo

supra-sensível) (W. H. Walsh),

Metafísica descritiva e Metafísica revisionária

(ocupada com a descrição (tentando criar uma nova

de nossas estruturas reais estrutura de pensamento)

de pensamento) (P. F. Strawson),

35

encontram um certo paralelo no domínio da filosofia analítica na distinção

entre

os resultados da análise e os resultados da análise da linguagem

da linguagem pragmati- sintaticamente orientada.

camente orientada (filo- (filosofia da linguagem ideal)

sofia da linguagem or-

dinária)

De fato, há uma razão profunda para a existência desse paralelo. É que a

dependência das intuições de senso comum e das correspondentes intuições

lingüísticas mantida pela filosofia crítica e pelas metafísicas imanente e

descritiva corresponde a uma similar dependência mantida pelo analista

conceitual pragmaticamente orientado. Em contrapartida, nós vimos que o

analista conceitual sintaticamente orientado quase não sente a necessidade

de ter a mesma consideração com nossas intuições ordinárias espelhadas na

linguagem, lembrando sob esse aspecto o filósofo especulativo.

Essas observações sugerem que a distinção entre filosofia analítica e

tradicional não chega a ser uma distinção de objeto de investigação. De fato,

se formos suficientemente imaginativos, toda a metafísica especulativa pode

ser traduzida em um modo de discurso lingüístico-conceitualmente

acentuado, ou seja, expressa de maneira a legitimar uma pretensão do

filósofo especulativo de estar fazendo análise filosófica da mesma maneira

que o analista conceitual. Para considerar um exemplo radical, considere o

conceito de eu puro na metafísica transcendental de Fichte. O eu puro é algo

apenas intelectualmente acessível, que põe (setzt) o mundo externo para pôr-

36

se a si mesmo (pôr Selbstsetzung) simultaneamente como uma necessária

oposição a ele. Ora, seria hoje pouco surpreendente se filósofos analíticos

contemporânos simpáticos ao idealismo decidissem traduzir tais asserções

em uma análise do conceito de “eu elusivo” como constituindo e sendo

constituído pela realidade social sob assunções anti-realistas. Mesmo que tal

anti-realismo venha a ser no fundo tão escassamente inteligível e

especulativo quanto o modelo fichteano, ele não será menos defensável do

que algumas idéias do construtivismo social contemporâneo em filosofia da

ciência(26).

Embora esse tipo de estratégia possa ser facilmente concretizado pelo

analista conceitual sintaticamente orientado, já vimos que ele daria algum

trabalho ao analista conceitual pragmaticamente orientado, posto que parece

chocar-se contra as intuições de senso comum que a linguagem ordinária

espelha. Não obstante, mesmo aqui tal estratégia não é inviável: o analista

pragmaticamente orientado pode manter que o desacordo com nossas

intuições é apenas aparente, e tentar mostrar que há um modo de harmonizar

o que está dizendo com o pano de fundo de nossas crenças ordinárias

(Berkeley antecipou tal estratégia quando pretendeu que seu imaterialismo

estava apenas refletindo as verdadeiras expectativas do senso comum de

pessoas ainda intocadas pela filosofia!).

Para sumarizar: porque o trabalho dos filósofos analíticos

pragmaticamente orientados inclui momentos de síntese hipotética em que

novos conceitos são pensados e descobertos, esse trabalho é capaz de conter

(mesmo que apenas indiretamente) inesperadas especulações metafísicas, as

quais podem ter conseqüências até mesmo no modo como fundamos nossa

apreensão da realidade empírica. O analista conceitual sintaticamente

orientado pode fazer tais especulações com consciência mais leve, pois ele

37

pode sacrificar o acordo com as suas expectativas intuitivas acerca do

mundo, sem fazer com que se perca a inteligibilidade de seus argumentos,

dado que para ele essa inteligibilidade é fortemente sustentada por sua

própria coerência formal. Mas mesmo o analista pragmaticamente orientado

pode fazer especulações metafísicas ao afirmar que os conceitos que

introduz podem ser requeridos para uma mais adequada tomada de

consciência de nossas concepções ordinárias acerca do mundo. Parece, pois,

que todos os domínios da metafísica tradicional podem de um ou de outro

modo ser alcançados pela análise lingüístico-conceitual. Portanto, manter

que há realmente uma distinção de objeto de investigação entre filosofia

como análise conceitual e filosofia tradicional, mesmo em suas formas mais

especulativas, é hipostasiar o papel meramente instrumental da ênfase

lingüístico-conceitual.

Um argumento similar se aplica à tese (b), a qual afirma que a filosofia

difere das ciências empíricas por restringir-se à investigação conceitual.

Que essa tese é falsa já deveria se ter tornado claro, posto que nosso

último exemplo de análise conceitual dizia respeito também ao mundo

natural, mesmo que de uma forma indireta. Mas o ponto em questão pode ser

apresentado de forma mais dramática. Suponha, primeiramente, que exista

um analista conceitual inteiramente conseqüente, o qual, assumindo a

concepção ampla de análise por nós descrita, crê que conceitos e relações

entre conceitos sejam o objeto de investigação próprio da filosofia, o objeto

capaz de distingui-la de outras áreas do conhecimento. Então, como ele iria

considerar a ciência? Não seria difícil para ele perceber que Einstein, para

chegar à conclusão de que a velocidade da luz é a mesma para todos os

observadores, teve de analisar o conceito de simultaneidade quando o

aplicava a observadores movendo-se a grandes velocidades relativas, pois é

38

certo que ele não estava analisando objetos empíricos reais movendo-se no

espaço. Quanto ao trabalho do famoso cosmologista contemporâneo Stephen

Hawking, nosso analista conceitual poderia facilmente perceber que esse

cientista não estava envolvido em nenhuma divisão dos buracos negros em

si mesmos, mas em importantes análises astrofísicas do que precisa ser

entendido pelo conceito de buraco negro, se desejamos obter uma

compreensão coerente do fenômeno. O conceito de evolução natural, como

logo perceberia o nosso analista conceitual perfeitamente conseqüente, foi

primeiramente assim denominado e analisado de forma correta por Charles

Darwin (e Wallace), como um resultado de reflexões baseadas em

observações zoológicas e botânicas. G. J. Mendel analisou o conceito de

gene, por ele chamado de fator, Watson e Cricke o conceito de DNA. O

psicólogo Carl Jung vislumbrou o conceito de inconsciente coletivo, o

sociólogo T. B. Veblen o de classe ociosa... Estavam todas essas pessoas

fazendo filosofia? Aceitando, como o faz nosso analista conceitual

inteiramente conseqüente, que nosso mundo conceitual é o objeto da

filosofia, ele não poderá evitar uma resposta afirmativa. De fato, todo o

trabalho teorético do pensamento parece tornar-se, de um modo ou de outro,

um trabalho de análise conceitual e portanto filosófico.

Contudo, a situação oposta também pode ser imaginada: suponha que

tenhamos junto a nós um empirista de cabeça dura, que decide começar com

a premissa de que o conhecimento científico empírico não é essencialmente

conceitual, mesmo que ele só seja acessível conceitualmente, posto que seus

conceitos aplicam-se somente a fatos empíricos, mesmo que muito

abrangentes. Como iria ele considerar a maioria das questões apresentadas

pela filosofia? Como a teoria dos atos de fala é sobre ações comunicativas

humanas em contextos reais, como a análise verificacionista dos sentidos

39

factuais ou cognitivos de nossos enunciados diz respeito aos modos como as

mentes podem adquirir conhecimento acerca do mundo, como o realismo

sobre leis científicas é uma tese acerca da constituição possível da realidade,

ele será levado a conceber muito da filosofia como tratando de fenômenos

empíricos a serem abordados pela ciência empírica, mesmo no caso deles

serem pervasivos e multiabrangentes.

O caso do analista conceitual inteiramente conseqüente mostra que uma

investigação que não é sobre conceitos, como a da ciência empírica, pode ser

sempre interpretada de uma maneira que a torne concernente a conteúdos

conceituais. Já o caso do empirista de cabeça dura mostra que uma

investigação usualmente concebida como sendo sobre conceitos, como a

praticada por filósofos ditos analíticos, pode na maioria das vezes ser

interpretada de um modo que a torne uma indagação que vá além dos

conceitos e caia no domínio da ciência empírica.

Que conclusões podem ser tiradas disso? A primeira é que os objetos da

filosofia não precisam diferir essencialmente daqueles da filosofia

especulativa tradicional, nem daqueles da ciência, posto que a filosofia

analítica não pode pretender divergir desses empreendimentos só porque

trabalha com as nossas estruturas conceituais. Sendo assim, os nossos dois

casos mostram que a pretensão de que o objeto de investigação próprio da

filosofia deva ser a estrutura de nossos conceitos, se tomado seriamente,

termina por obstruir qualquer distinção objetual entre filosofia analítica e

outros empreendimentos teoréticos. Uma conclusão subseqüente é a de que

mesmo o método de análise conceitual não pode ser visto como o método

próprio da filosofia. Pois se o filósofo analítico trabalha com conceitos da

maneira liberal acima descrita, é certo que ao cientista também é permitido

proceder da mesma forma, caso considere apropriado.

40

4. CONCLUSÃO: UM PARALELO COM O

ORGANON ARISTOTÉLICO

Qual é então a diferença real entre, de um lado, a filosofia como análise

conceitual e, de outro, a filosofia especulativa e ciência, se essa não é uma

diferença no objeto de investigação? A resposta parece ser a de que há aqui

uma diferença metodológica contingente, uma diferença nos modos como o

objeto de investigação é questionado. Filósofos analíticos submetem o seu

questionamento a um controle metodológico muito mais rigoroso ao

apresentar as suas concepções em uma metalinguagem semântica, ao

escrutiná-las através de um novo instrumental lógico e lingüístico, e ainda, o

que tem se tornado sempre mais importante, ao opô-las sempre ao pano de

fundo de nossa visão de mundo contemporânea, cientificamente informada.

Sendo assim, somos levados a concluir que filosofia analítica é somente o

nome que damos a uma mais maneira mais refinada de fazer filosofia

desenvolvida durante o século XX, a qual requer a ênfase do meio

lingüístico-conceitual, principalmente por razões de rigor metodológico.

Como a filosofia é uma espécie de jogo heurístico com lances

argumentativos realizados com um material de símbolos lingüísticos, é fácil

entender por que o uso de instrumentos analíticos tornou-se uma

característica distintiva da filosofia atual, ao menos em suas áreas mais

centrais como a epistemologia, a metafísica, a filosofia da linguagem etc.

41

Um paralelo revelador pode ser traçado entre a assimilação histórica das

doutrinas propedêuticas do Organon aristotélico e a assimilação de

procedimentos analíticos por domínios centrais da filosofia contemporânea.

Aristóteles considerou as novas doutrinas lógicas e metodológicas

contidas em seu Organon um instrumento necessário para um adequado

exercício do raciocínio filosófico e científico. O Organon continha uma

teoria da proposição e de seus constituintes, uma teoria do raciocínio

dedutivo (a silogística), observações sobre a natureza das definições, o

esboço de uma teoria do raciocínio científico e da explicação científica, uma

classificação das falácias e suas soluções... Com efeito, a assimilação das

doutrinas contidas no Organon mudou lenta mas definitivamente nossos

modos de fazer filosofia em seus domínios centrais. Os instrumentos

aristotélicos de investigação foram assimilados e aperfeiçoados durante a

Idade Média, geralmente sob o nome de dialética, estabelecendo novos e

irreversíveis padrões argumentativos em filosofia, que uma vez adotados

nunca mais puderam ser ignorados.

Ora, a assim chamada filosofia analítica pode ser explicada como a

conseqüência de uma revolução metodológica similar. Desde o final do

século XIX, desenvolvimentos extremamente importantes em domínios

similares aos cobertos pelo Organon aristotélicos surgiram. Alguns diziam

respeito à estrutura das proposições (como no caso da semântica fregeana),

outros concerniam à lógica dedutiva (a lógica predicativa de primeira e

segunda ordem, a lógica modal, a lógica epistêmica...), ao raciocínio

indutivo (teorias da probabilidade, da decisão...), à pragmática (teorias da

verificação, concepções contextualistas do significado como função do uso,

a teoria dos atos de fala...) e ao domínio da filosofia da ciência (teorias da

explicação, da confirmação...). Seria deveras surpreendente se a filosofia, ao

42

menos em muitos de seus domínios, não acabasse sendo definitivamente

alterada por tais desenvolvimentos, capazes de estabelecer padrões

superiores de claridade e rigor e aumentando de modo impressivo o seu

potencial heurístico. A assimilação de todos esses novos procedimentos em

uma investigação que além disso não deixa de levar em conta os resultados

da ciência tem permitido e irá permitir que vejamos mais coisas de modos

mais claros e distintos, em uma revolução comparável àquela que a

descoberta do telescópio representou para a astronomia.

Recapitulando os principais resultados: a razão profunda pela qual a

filosofia analítica parece ter somente a linguagem como objeto é a sua

preocupação propedêutica geral com o elemento lingüístico-conceitual,

tornada perceptível principalmente através do que Quine chamou de acento

semântico. Esse fato confundiu filósofos analíticos, levando-os a tomar

novos instrumentos e procedimentos de abordagem – que também podem ser

usados em outro lugar – pelo método peculiar da filosofia, levando-os ao

erro subseqüente de confundir o objeto de aplicação desses instrumentos

com o objeto peculiar da filosofia. O fato de em filosofia nós geralmente

apelarmos a uma metalinguagem semântica a sublinhar a linguagem, a qual

nos compele a um tratamento mais rigoroso das estruturas lingüístico-

conceituais sem ignorar seus sentidos ou mesmo as suas referências

(concebidas através de seus sentidos), portanto, sem fechar o caminho para o

mundo, é um elemento constitutivo essencial do que, de um modo um tanto

enganoso, tem sido chamado de filosofia analítica. De fato, se “análise

conceitual” é o nome de algo, então, é o nome dos modos filosóficos de

indagação que incorporam em si mesmos uma certa ênfase conceitual, junto

com os procedimentos heurísticos que se foram tornando comuns a domínios

centrais da filosofia no decorrer do século XX. Em suma: “análise

43

conceitual” é o nome dado aos mais salientes traços procedimentais de um

estado da arte historicamente contingente – de um estilo, mais do que de

uma coisa. Mais tarde (capítulo VII, 3) veremos que a emergência da

filosofia analítica pode ser muito melhor compreendida como um evento

histórico contingente, gerado pelo desenvolvimento do que poderia ser

chamado de “ciências semióticas”, nada tendo a ver com a descoberta do

verdadeiro objeto da filosofia ou de seu próprio e inalienável método.

44

III

FILOSOFIA COMO ANTECIPAÇÃO CONJECTURAL DA CIÊNCIA

Onde a filosofia esteve, lá deverá estar a ciência. Robert Nozick

’Filosofia’ poderia ser também chamado o que é possível antes de todas as novas descobertas e invenções. Wittgenstein

Neste capítulo começo a busca descritivista pelos critérios usados para

identificar o discurso e pensamento filosóficos. Minha sugestão inicial é que,

mesmo que não possamos encontrar um objeto próprio da investigação

filosófica, ou nada de metodologicamente relevante que lhe seja exclusivo,

ainda assim seremos capazes de encontrar algo muito peculiar à filosofia se

prestarmos atenção a sua forma.

1. O CARÁTER INEVITAVELMENTE CONJECTURAL DA INDAGAÇÃO FILOSÓFICA

45

Mesmo que o metafilósofo descritivista não encontre um traço

identificador da filosofia nos aspectos materiais da investigação, ele poderá

sempre encontrar um traço formal muito peculiar e comum a toda indagação

filosófica, qual seja, o seu caráter conjectural. Filosofia é essencialmente um

empreendimento conjectural ou especulativo, no sentido de que filósofos

não são capazes de produzir acordo consensual suficiente no que concerne

a suas idéias, doutrinas e mesmo aos seus valores e concepções mais

fundamentais. Não há filosofia cujos resultados possam ser tomados por

certos ou indiscutíveis. A razão dessa dificuldade não é difícil de ser

encontrada. Para alcançarmos acordo consensual sobre os resultados de

nossos questionamentos intelectuais, precisamos compartilhar de alguns

pressupostos fundamentadores. Mas a filosofia carece de um mínimo de

compartilhamento de pressupostos em quase todos os passos de sua

indagação. Particularmente importante nesse aspecto é a ausência de

pressupostos compartilhados capazes de produzir acordo consensual sobre

(A) o que são as verdadeiras questões, os problemas, como devem ser as

suas formulações, quais são as assunções gerais que formam o pano

de fundo do campo de investigação em questão. (Filósofos nunca

concordam sobre quais são as questões e preocupações relevantes, ou

sobre se elas realmente fazem sentido, se não são pseudo-problemas.)

E também sobre

(B) o que deve contar como procedimento de avaliação da verdade, ou

seja, como procedimento verificacional e/ou falsificacional de

argumentação, capaz de confirmar ou desconfirmar as soluções

46

aventadas, sejam elas empíricas ou conceituais. (Filósofos nunca

concordam quanto ao peso dos seus argumentos; argumentos

convincentes para uns podem parecer falaciosos ou irrelevantes para

outros.)

Sem o compartilhamento de semelhantes assunções (que não existe na

filosofia, embora exista na ciência) parece impossível esperar qualquer coisa

como um acordo sobre resultados.

Para exemplificar, consideremos uma vez mais a doutrina platônica das

idéias. Essa doutrina foi sugerida como uma solução para o problema da

generalidade ou predicação e construída sob o pressuposto de que para algo

ser um objeto de conhecimento, esse algo deve ser imutável. Ora, como o

mundo visível é sempre passível de mudança, o único objeto próprio do

conhecimento deve ser aquilo que Platão chamou de idéias ou formas,

objetos existindo fora do tempo em um mundo puramente inteligível. Como

conseqüência podemos, por exemplo, generalizar, dizendo que muitas coisas

são belas e predicar beleza de uma grande diversidade de coisas visíveis, na

medida em que elas exemplificam a idéia abstrata do belo. Contudo, a

doutrina também conduz a dificuldades. Uma delas é a seguinte: como pode

a idéia preservar a sua unidade quando compartilhada pelos muitos

indivíduos aos quais se aplica? Para resolver esse problema, Platão apela

para os conceitos de participação e de cópia, por ele usados de uma maneira

metafísica e, aparentemente, inconsistente. Assim, ele é forçado a defender

que muitas coisas podem participar de uma mesma idéia, mas sem a dividir

em partes, o que parece ser inconsistente com o conceito de participação. E

ele é também forçado a pensar que uma coisa deve ser similar à idéia da qual

47

é cópia, mas que a idéia não pode ser similar à coisa, o que é inconsistente

com o caráter simétrico da relação de similaridade.

O que têm os críticos da doutrina platônica a dizer acerca disso?

Primeiro, eles estão livres para rejeitar o pressuposto platônico de que o

conhecimento deve ter por objeto algo imutável, e a questionar a

necessidade de se recorrer a objetos não-empíricos do conhecimento não-

analítico. Ademais, eles podem se sentir tentados a considerar o conceito

platônico de idéia em última análise incoerente, posto que a tentativa de

explicá-lo é feita através de metáforas irresgatáveis. São essas objeções

justificadas? Sim, talvez. Mas para ser mais justo, não sabemos ao certo. A

incerteza é de fato esperada, visto que a filosofia consiste na criação de

teorias sempre dubiosas, fundadas sobre bases incertas. Essa é uma

conclusão falibilista um tanto deprimente, que filósofos tradicionais

tentaram negar, mas que filósofos contemporâneos já há algum tempo

aprenderam a admitir como inevitável. De fato, não há exceção. Mesmo a

filosofia terapêutica tentada pelo último Wittgenstein, que pretendia ser

puramente descritiva, acabou por mostrar-se incapaz de produzir acordo

consensual: onde Wittgenstein viu um remédio, outros viam um placebo ou

mesmo um veneno.

Essa impossibilidade de acordo consensual também provê o mais saliente

termo de contraste entre filosofia e ciência: diversamente da filosofia, em

todas as ciências, tanto empíricas quanto formais, encontramos sempre um

suficiente acordo prévio acerca de assunções gerais (que tornam possível a

existência de problemas comuns), bem como suficiente acordo prévio acerca

de procedimentos de avaliação da verdade (que possibilitam que se chegue a

soluções comuns). Tais acordos prévios possibilitam o acordo ulterior acerca

dos resultados, tanto no que diz respeito à verificação/refutação em ciências

48

empíricas, quanto no que concerne às provas de teoremas em ciências

formais. É porque cientistas, diversamente de filósofos, foram capazes de

estabelecer tais pressupostos comuns, que eles conseguem alcançar acordos

acerca dos resultados de suas investigações e ter a esperança de chegar a um

desenvolvimento progressivo.

Prestar atenção à natureza conjectural do esforço filosófico ajuda-nos a

explicar duas outras características formais suas, que são o caráter

tipicamente argumentativo e aporético de seu discurso, com poucas (e

questionáveis) exceções. Filósofos estão sempre postulando ou sugerindo

certos princípios incertos e tentando validá-los ao mostrar o quanto deles se

segue. Tal procedimento é dependente do caráter conjectural da indagação

filosófica, posto que pelo próprio fato de trabalharem com conjecturas,

filósofos procedem a uma constante comparação crítica entre as

conseqüências argumentativas das assunções que eles crêem ser corretas,

adicionada a uma comparação crítica entre as qualidades dos argumentos

usados para se chegar a essas conseqüências, em uma tarefa aparentemente

sem fim. O caráter conjectural da filosofia gera a sua praxis

caracteristicamente argumentativa, dialógica e aporética.

Poderia a filosofia ser definida apenas em termos de seu caráter

conjectural e especulativo? Não sem qualificações, posto que nem todas as

conjecturas são filosóficas. Podemos, por exemplo, fazer conjecturas sobre

as condições climáticas da Terra nos próximos cinqüenta anos, mas isso não

chega a constituir uma investigação filosófica. Uma razão pela qual essa

conjectura não é filosófica pode ser a falta de um ponto teorético: ela não

passa de uma projeção plausível de eventos empíricos. Por outro lado, a

conjectura teórica de Noam Chomsky sobre a existência de uma gramática

universal inata a todos os homens não pode ser facilmente provada, sendo

49

em uma certa medida filosófica. Mas ela só é filosófica em um sentido muito

enfraquecido, posto que esse é um problema bastante específico, cujos

caminhos de verificação experimental seriam facilmente reconhecíveis

quando encontrados. Do mesmo modo, teorias especulativas comuns à física

contemporânea, como a teoria das cordas, não são atualmente testáveis. Elas

possuem, diríamos, algo de filosófico, mas são consideradas científicas na

medida em que os físicos não as considerarem tão especulativas a ponto de

parecer absurda a idéia de se encontrar um meio de fazê-las passar pelo

tribunal da experiência. Vemos, pois, que a diferença entre especulação

científica e filosófica não é tão abrupta, dependendo também do grau de

impossibilidade de comprovação consensual. Poderíamos então qualificar

como filosóficos todos os esforços argumentativos e definitivamente

conjecturais, geralmente com um ponto teorético e uma preocupação ampla?

Isso parece correto, embora ainda breve e pouco informativo.

2. A IDÉIA DA FILOSOFIA COMO UMA PROTOCIÊNCIA

Uma resposta mais profunda à questão “Por que a filosofia é uma forma

conjectural de investigação?” poderia ser dada no caso de admitirmos a tese

de que ela é uma protociência, ou seja, um empreendimento conjectural

antecipador da ciência, e que a duradoura atualidade das teorias filosóficas

têm a sua origem nas verdades científicas que nelas vêm antecipadas.

Que ao menos parte da filosofia é (ou foi) uma antecipação da ciência não

é nenhuma tese especulativa, mas um enunciado de fato. Entre os gregos,

quando todas as ciências empíricas fundamentais ainda estavam para ser

formadas, a palavra “filosofia” era indistintamente aplicada ao completo

50

domínio da investigação humana. Somente muito mais tarde, com a

emergência daquelas ciências, a aplicação da palavra “filosofia” tornou-se

gradualmente mais e mais restrita. Ao ceder partes de seus domínios à

ciência a filosofia tem se revelado, como Antony Kenny escreveu, o útero

do qual as ciências particulares nasceram(27). Essa constatação do papel da

filosofia como protociência foi sintetizada de maneira impressiva em uma

bem conhecida metáfora de J. L. Austin:

A filosofia é o sol inicial central, seminal e tumultuoso, que de tempos

em tempos perde uma porção de si mesmo que se torna ciência, um

planeta, frio e bem regulado, progredindo constantemente em direção a

um estado final distante. Isso aconteceu há longo tempo atrás, com o

nascimento da matemática, e outra vez com o nascimento da física;

somente no último século nós testemunhamos o mesmo processo outra

vez, lento e naquele tempo quase imperceptível, no nascimento da ciência

da lógica matemática, através do trabalho conjunto de filósofos e

matemáticos.(28)

Na medida em que a filosofia é concebida como uma indagação

especulativa trabalhada em um material de pensamento que ao menos

potencialmente é capaz de receber um lugar na ciência, nós temos uma razão

mais profunda para explicar a sua natureza conjectural, argumentativa e

aporética. Essa razão é que se a filosofia é o que pode ser feito antes da

investigação científica se tornar possível, então torna-se mais compreensível

que as mais diversas hipóteses possam ser sugeridas, que as mais diversas

linhas de pensamento possam ser desenvolvidas na tentativa de justificá-las,

e que a disputa sobre a hipótese certa e o melhor argumento perdure

51

indefinidamente. Esse estado de coisas somente termina quando o caminho

da inquirição científica é definitivamente encontrado, ou seja, quando os

investigadores finalmente alcançam suficiente acordo sobre os pressupostos

fundamentadores subjacentes a um certo campo de investigação, o que

estabelece uma clara delimitação para as questões a serem admitidas e para

os procedimentos pelos quais as suas respostas podem ser avaliadas. Quando

esse acordo prévio é suficientemente amplo para permitir a produção de

resultados consensuais, os investigadores não continuam a chamar o seu

objeto de pesquisa de “filosófico”: eles simplesmente o redefinem como

objeto da ciência. Por isso é que se diz que a tragédia do filósofo é que

sempre que ele alcança uma verdade definitiva, ele a perde para o cientista.

3. ORIGENS E DIVISÕES DA CIÊNCIA

Antes de discutirmos em maiores detalhes as possibilidades de derivação

da ciência a partir da filosofia é aconselhável dizer alguma coisa sobre a

classificação e emergência das ciências mais fundamentais.

Ciências são obviamente de dois tipos: formal e empírico. Estes dois

tipos de ciência sempre foram em certa medida interdependentes em seus

desenvolvimentos. As ciências formais fundamentais foram a lógica e a

matemática. A matemática teve a sua origem na Antiguidade. A aritmética

elementar separou-se da filosofia já entre os gregos, quando o seu objeto, o

elemento numérico, foi pela primeira vez considerado em separação dos

problemas práticos que a aritmética deveria resolver. Uma parte muito

limitada da lógica, ao menos, começou muito cedo, já com a silogística

aristotélica.

52

Poderíamos falar de protomatemática e protológica filosóficas? Por que

não? O poema de Parmênides, por exemplo, contém uma sugestão

metafisicamente formulada da lei lógica da não-contradição, ao afirmar que

o Ser é e que o não-Ser não pode ser, enquanto Platão dispunha de uma

teoria rudimentar da predicação. Além disso, os filósofos pitagóricos,

impressionados com as realizações da matemática abstrata, acreditavam que

os números fossem o princípio sustentador de toda a realidade, confundindo

à sua maneira o formal com o empírico. Contudo, a verdadeira questão sobre

a natureza dos números ainda estava por esse tempo oculta na mais completa

escuridão.

Voltando-nos para as ciências empíricas, adotarei aqui uma versão

corrigida e atualizada da velha classificação das ciências empíricas

fundamentais proposta por Auguste Comte, posto que ela ainda parece

bastante razoável, além do fato de ser capaz de prover-nos de um rationale

para a compreensão da ordem do aparecimento dessas ciências. O seu

princípio de classificação mantém que as ciências fundamentais estão

relacionadas umas às outras em uma ordem que vai (a) da maior para a

menor generalidade no escopo, correspondendo isso a uma ordem inversa,

que vai (b) da menor para a maior complexidade dos fenômenos por elas

investigados. Modificando um pouco a classificação original de modo a

atualizá-la podemos, aplicando esse princípio, distinguir cinco ciências

fundamentais: física, química, biologia, psicologia e sociologia(29). O

seguinte esquema sumariza essa classificação:

53

PARTICULARIDADE COMPLEXIDADE

5. sociologia ciências 4. psicologia humanas (a) (b) 3. biologia ciências 2. química naturais 1. física

GENERALIDADE SIMPLICIDADE

A física é a primeira ciência fundamental, abrangendo em seu escopo

toda a realidade empíricas, sem exceção. A química tem um escopo mais

restrito, aplicando-se à realidade empírica formada pela combinação de

elementos atômicos. A biologia se aplica somente a compostos químicos que

constituem organismos vivos. A psicologia se aplica somente a organismos

que possuem consciência. E a ciência social restringe o seu escopo a

organismos conscientes, na medida em que eles se estruturam socialmente.

À progressiva perda de generalidade dos fenômenos investigados

corresponde um ganho em complexidade, o que se dá pelo fato da

complexidade ser inconcebível no domínio do mais geral.

As relações de generalidade e complexidade também nos ajudam a

explicar a ordem de nossa apreensão cognitiva das ciências fundamentais e,

relacionada a isso, também a própria ordem de seu desenvolvimento

histórico. De fato, para aprender física nós não precisamos geralmente

54

aprender qualquer coisa de química, mas a química pressupõe algum

entendimento de física em seus fundamentos. Também o aprendizado e a

aceitação da psicologia pressupõe algum entendimento de biologia, mas não

o contrário etc. O desenvolvimento das ciências fundamentais mais

específicas e complexas depende de um ou de outro modo do

desenvolvimento das ciências mais gerais e mais simples. Essa dependência

também envolve os desenvolvimentos das aplicações das ciências mais

gerais: como poderia, por exemplo, a biologia se desenvolver sem o

microscópio, cuja construção depende de desenvolvimentos prévios no

âmbito da física? Isso nos faz entender por que, com o Renascimento, a

primeira ciência a emergir foi a física. Embora houvesse rudimentos de

física mesmo na antiguidade (ex.: a descoberta da densidade específica por

Arquimedes), somente após Galileu a física experimental foi capaz de

emergir como um corpus unificado de idéias científicas. Depois da física, as

outras ciências fundamentais, a química, a biologia, a psicologia, a ciência

social, separaram-se subseqüentemente da filosofia – as últimas duas parece

que até hoje só parcialmente, em um processo escalonado, gradual e

convulsionado.

Mais além, essas dependências nos ajudam a explicar por que o processo

de afirmação da psicologia e da sociologia como ciências tem sido muito

mais lento, laborioso e escalonado. Nós encontramos uma ruptura

epistemológica(30) clara no nascimento da física como um corpo de

conhecimento científico com Galileu e Newton nos séculos XVII e XVIII,

no nascimento da química com Lavoisier, Cavendish e outros no final do

século XVIII, e mesmo na mais escalonada organização da biologia como

um corpo de conhecimento científico durante todo o século XIX, por

cientistas como Pasteur, Claude Bernard, Mendel e Darwin. Rupturas

55

ocorreram nessas ciências quando, além do acúmulo do conhecimento,

apropriados métodos de investigação foram encontrados, os quais proveram

a possibilidade de acordo consensual sobre o poder preditivo e explicativo

de suas teorias dentro de um corpus unificado. Não obstante, não

encontramos ruptura abrupta nos domínios mais complexos da psicologia e

da ciência social. Uma razão para isso pode ser o irredutível elemento de

evidência interna, introspectiva, que sempre desempenha um papel nas

ciências humanas e sociais. Esse elemento de evidência interna não é aberto

à observação interpessoal e por essa razão não pode ser tão facilmente

considerado objetivamente – embora ele não seja de modo algum

desesperadamente subjetivo, como alguns ainda pretendem(31). Mas uma

outra razão para a constituição mais gradual das ciências humanas pode estar

no fato de que em domínios de maior complexidade e diversidade dos

fenômenos estudados os procedimentos avaliativos requerem um

considerável conhecimento de fundo, o qual é provido pelas ciências mais

fundamentais. Para sintetizar: de um modo ou de outro as ciências humanas

requerem, para o seu desenvolvimento, a maturidade das ciências mais

fundamentais e, em adição a isso, o desenvolvimento de suas possibilidades

de aplicação técnica. (Podemos nos perguntar, por exemplo, o quão mais

científica a psicologia poderá apresentar-se no futuro, após uma explicação

adequada das bases neurofisiológicas dos fenômenos mentais por uma

neurociência suficientemente desenvolvida).

Há uma razão pela qual as ciências que estivemos considerando merecem

ser chamadas de “fundamentais”. As outras ciências empíricas disponíveis

são, ou subdivisões particularizadas dessas ciências fundamentais (como a

lingüística e a economia como partes da ciência social) ou combinações dos

resultados das ciências fundamentais, os quais são aplicados localmente a

56

certos tipos específicos de objetos ou regiões do espaço e do tempo.

Exemplos do último tipo são a história, que aplica (entre outras coisas)

insights psicológicos e sociológicos ao entendimento das mudanças no

mundo humano; a etnologia, que aplica a psicologia e a sociologia ao estudo

de grupos étnicos culturalmente distintos; a geologia, que aplica física e

química ao estudo da Terra; a neurofisiologia, que aplica a bioquímica e

biofísica à investigação do funcionamento do cérebro... (Pode haver,

obviamente, combinações dessas aplicações e assim por diante.)

Finalmente, devemos notar que a emergência de ciências fundamentais

sempre substituiu a especulação metafísica. A emergência da física como

ciência experimental pôs um fim ao reino da física aristotélica especulativa

(na medida em que esta não se mesclava confusamente à metafísica), um

destino similar tendo a doutrina dos quatro elementos após o

desenvolvimento da química e também o vitalismo (a doutrina segundo a

qual os fenômenos vitais seriam controlados por impulsos imateriais

diferentes das forças físicas) após o desenvolvimento da biologia.

Neste e nos próximos capítulos irei assumir essa classificação comtiana

modificada das ciências fundamentais, posto que ela permanence a mais

intuitiva e indisputável, ao menos enquanto não a subordinarmos a questões

subseqüentes sobre redução teórica ou a um problema metafísico acerca da

unidade das ciências.

4. ALGUNS EXEMPLOS DE INSIGHTSFILOSÓFICOS PROTOCIENTÍFICOS

Nesta seção considerarei alguns exemplos de idéias filosóficas

antecipando idéias científicas respectivamente nos campos da física, da

57

química, da biologia e da psicologia. Esses exemplos podem confundir-nos,

como veremos mais adiante, pois eles dizem respeito somente a antecipações

de ciências bem conhecidas, e não às desconhecidas, certamente bastante

diversas, sugerindo enganosamente que as nossas indagações filosóficas

atuais deveriam ser relacionadas a ciências futuras exatamente do mesmo

modo que a filosofia do passado tem sido relacionada a nossas ciências

empíricas mais fundamentais. Se mantivermos isso em mente, não deixa de

ser instrutivo considerá-los.

O primeiro exemplo é a idéia defendida por Anaximandro (647-610 a.C.),

de que a Terra não é sustentada por nada, encontrando-se estacionariamente

suspensa, já que igualmente distante de todas as coisas, sendo impossível

para ela mover-se simultaneamente em direções opostas(32). Karl Popper

mantém com suficiente verdade que essa foi uma das idéias mais ousadas de

toda a história do pensamento humano, tornando possível as teorias de

Aristarco, de Copérnico e mesmo de outros, porque

...conceber a terra como livremente disposta no meio do espaço, e dizer

“que ela permanece sem movimento por causa da eqüidistância e do

equilíbrio” é antecipar em alguma extensão mesmo a idéia de Newton de

forças gravitacionais imateriais e invisíveis.(33)

Embora antecipadora da ciência, a hipótese de Anaximandro não poderia de

modo algum ser vista como científica, posto que no tempo em que ela foi

formulada não era concebível nenhum procedimento de avaliação da

verdade que pudesse conduzir a um acordo consensual. Por contraste, as

idéias de Copérnico e Newton foram capazes de ser avaliadas e de obter

acordo consensual acerca de sua verdade ou falsidade, posto que uma tal

58

condição de cientificidade já havia se tornado alcançável pela época de sua

formulação.

Um exemplo por demais conhecido de antecipação é também a teoria

atomista de Demócrito e Leucipo (século V a.C.), segundo a qual pedaços

visíveis de matéria são agregados de átomos invisíveis e fisicamente

indivisíveis, os quais possuem inúmeras formas distintivas. Essa teoria é

uma antecipação especulativa da forma de uma teoria atômica da matéria,

ainda que não de seu conteúdo. E a teoria dos quatro elementos, terra, água,

ar e fogo, mantida por filósofos como Empédocles, antecipa em termos de

forma ou similaridade de concepção a tabela periódica de Mendeleev, com a

sua seqüência de elementos químicos fundamentais.

O terceiro exemplo é o da primeira hipótese na direção de um

evolucionismo biológico, também sugerida por Anaximandro. Ele afirmava

que a vida começa na água, que criaturas vivas podem ser espontaneamente

geradas da umidade e que seres humanos evolveram de espécies inferiores

(talvez peixes), posto que nos primeiros anos eles teriam morrido se fossem

tão indefesos como são hoje após o nascimento.(34) É verdade que as idéias

de Anaximandro, quando tomadas em um sentido estrito, estavam erradas,

pois ele acreditava em geração espontânea e que os homens tivessem sido

inicialmente gestados no interior de peixes, emergindo completamente

formados de dentro deles, ao invés de se desenvolverem gradualmente(35).

Contudo, é certo que já existe nessas idéias um quê de evolucionismo,

apontando para caminhos de pensamento que só puderam ser

adequadamente trilhados dentro de um quadro categorial científico mais de

dois mil anos depois, quando a existência de um adequado pano de fundo de

desenvolvimentos tornou possível a busca de respostas precisas, detalhadas e

não-especulativas para indagações acerca da origem das espécies.

59

Alguém poderia aqui objetar que sentenças com “A terra está suspensa no

espaço vazio” e “O homem desenvolveu-se a partir de formas inferiores de

vida”, que podem ser abstraidas da obra de filósofos pré-socráticos são de

fato verdade verdades científicas. Será então que elas foram filosóficas e

hoje se tornaram científicas? Em certo sentido, a resposta é afirmativa. As

idéias por elas expressas passaram a ser consideradas científicas para nós.

Não obstante, isso não significa que elas não fossem filosóficas para outros

homens em outros tempos, pois elas só se completam quando vinculadas ao

contexto de sua enunciação. Ora, precisamente porque estamos examinando

idéias de pensadores do passado, tais idéias precisam ser consideradas nos

contextos onde nasceram, nos quais elas só poderiam ser endereçadas

especulativamente. Ou seja: o predicado ‘...é filosófico’ somente faz sentido

pleno quando relacionado ao contexto histórico no qual as idéias são

consideradas. Como nós situamos as sentenças acima no contexto da obra de

filósofos pré-socráticos, nós as consideramos filosóficas, mas do contrário

nós as consideraríamos científicas.

O último exemplo, relacionado à psicologia – um campo de investigação

que ainda não foi completamente desenvolvido como ciência –, diz respeito

à doutrina platônica da tripartição da alma (Republica, IV, 446 A ss.). De

acordo com essa doutrina, a mais primitiva parte da alma é formada de seus

apetites corporais, desejos e necessidades. A segunda parte é a do elemento

animoso, formado por impulsos emocionais tais como coragem, raiva,

ambição, orgulho, amizade, honra, lealdade etc. A terceira parte da alma é

formada pela razão atuando como um princípio inibitório que comanda os

outros. No diálogo Phaedrus (246 ss.) Platão comparou a razão com o

condutor de um carro de guerra ao qual está atrelado um par de cavalos

alados, um deles bom, que representa o elemento animado e que se esforça

60

para se alçar ao reino das idéias, e outro mau, representando os maus

apetites, esforçando-se para trazer a todos de volta para o reino terreno e

dando muito trabalho ao condutor.

Ora, a doutrina platônica da tripartição da alma pode ser vista como um

antecessor da teoria estrutural da mente proposta por Sigmund Freud(36).

Segundo essa última, a mente também se divide em três instâncias: o id (Es),

que é inconsciente e representa nossos instintos; o superego (über-Ich), em

geral inconsciente, que representa a figura introjetada do pai, fazendo

restrições morais e exigindo a realização de ideais; e o ego (Ich), geralmente

consciente, o qual está imediatamente vinculado à vontade consciente, à

percepção e ao controle motor. Mais além, a relação dinâmica entre as

instâncias se deve, para Freud, ao fato de que o ego tem a função de mediar

entre as necessidades do id e as restrições e exigências do superego.

Como parece claro, as duas teorias se correspondem em certa medida: o

id freudiano corresponde aos apetites corporais, mas inclui também

elementos volitivos atribuídos por Platão ao elemento animoso da alma,

como a raiva; o superego corresponde em alguma medida ao elemento

animoso, ao bom cavalo da analogia platônica; e o ego parece corresponder

ao elemento racional, ao condutor, tentando satisfazer as demandas opostas

do id e do superego.

O presente exemplo é um pouco diverso dos anteriores. Quando

confrontamos essas duas teorias, deparamos com uma dificuldade similar

àquela que encontramos quando tentamos comparar duas teorias filosóficas.

De fato, a psicanálise não satisfaz as condições da investigação científica, se

estas exigirem que os especialistas sejam capazes de chegar a um acordo

consensual sobre os seus resultados, pois os seus praticantes nunca

conseguiram chegar a tal acordo, por mais preparados que fossem, o que

61

levou a psicanálise a fragmentar-se em uma variedade de escolas

competidoras, cada qual dirigida por seus próprios “líderes intelectuais”.

Não obstante, enquanto a sugestão de Platão era baseada somente em sua

experiência introspectiva e em suas observações circunstanciais do

comportamento humano em geral, a teoria freudiana tira as suas conclusões

de um método de associações livres, comparativamente aplicado a inúmeros

pacientes, além de introduzir um novo elemento teórico, o inconsciente, e de

ser desenvolvida de maneira menos metafórica e mais detalhadamente

articulada. A teoria estrutural da mente pretende dizer-nos mais e parece

realmente fazê-lo. Mesmo incerta, ela sugere um quadro conceitual mais

apto a ser avaliado dentro dos quadros categoriais inerentes à psicologia

científica contemporânea.

Quero concluir esta seção com uma observação terminológica acerca do

conceito de antecipação da ciência. Precisamos distinguir entre boas e más

antecipações. Os exemplos considerados podem ser considerados boas

antecipações: as idéias de Anaximandro sobre a forma e localização da

Terra, ou sobre a evolução biológica, mostram de um modo obviamente

muito grosseiro a direção a ser seguida pela ciência, e a teoria platônica da

tripartição da alma antecipa a forma da teoria freudiana posterior, a qual

tentativamente acerca-se da ciência. Contudo, muitos empreendimentos

filosóficos podem ser vistos como más antecipações no sentido de que eles

apontaram para a direção errada. Um caso famoso foi, no século XVIII, a

hipótese do flogisto, sugerindo a existência de um elemento liberado pelo

fogo e responsável por ele, o que era completamente errado e retardou o

desenvolvimento da química por quase um século. O exemplo ainda mais

notório de má antecipação foi o da física aristotélica apriorista, a qual, aceita

pela Igreja como matéria de dogma, retardou o desenvolvimento da física

62

experimental durante toda a Idade Média, até que os experimentos de

Galileu a tornaram insustentável. Finalmente, os conceitos de boa e má

antecipação são relativos à extensão do desvio da verdade que estamos

dispostos a tolerar, o que pode variar de acordo com o contexto: o

evolucionismo de Anaximandro, por exemplo, seria visto como uma má

antecipação em um contexto mais estrito, no qual desejamos excluir

explicações não-darwinianas da evolução como fundamentalmente errôneas.

5. FISSÃO

Antony Kenny, considerando o modo pelo qual o pensamento filosófico

dá lugar à ciência, notou que isso ocorre por um processo de parturição que

ele chama de fissão(37). Ele tornou esse processo claro com um exemplo

relativo a um dos problemas centrais da filosofia do século XVII: a questão

das idéias inatas. Inicialmente o problema era o seguinte: quais de nossas

idéias são inatas e quais são adquiridas? Após Kant essa questão confusa

dividiu-se em duas outras: por um lado, a questão dos papéis da herança e do

meio ambiente na constituição de nossas idéias, por outro, a questão de

quanto de nosso conhecimento é a priori. A primeira questão, diz Kenny,

era anterior e foi passada adiante para a psicologia, enquanto a segunda,

relativa à justificação de nosso conhecimento, permaneceu filosófica. Algum

tempo depois a questão remanescente sobre o a priori dividiu-se outra vez

em questões filosóficas e não-filosóficas, ramificando-se em um número de

questões, uma delas sendo: quais proposições são analíticas e quais são

sintéticas? Para Kenny, a noção de analiticidade encontrou formulação

precisa nos trabalhos de Frege e Russell, em termos de lógica matemática, e

a questão “É a aritmética analítica?” encontrou uma resposta matemática

63

precisa no teorema da incompletude de Kurt Gödel; todavia, problemas

residuais relativos à natureza e justificação da verdade matemática foram

deixados para trás, permanecendo questões de disputa filosófica. O seguinte

esquema resume essa versão do processo:

problema filosófico das idéias inatas

fissão

questão psicológica sobre o problema filosófico de se saber o papel da hereditariedade e quanto de nosso conhecimento édo meio ambiente na consti- a priorituição de nossas idéias

fissão

questões lógico-matemá- questões filosóficas rema- ticas sobre a definição e nescentes sobre a natureza extensão da aprioridade e extensão do conhecimen- em matemática to a priori em geral

O modelo de desenvolvimento aqui sugerido é aquele em que os amplos

e confusos problemas filosóficos dividem-se em partes; umas delas

condensam-se em questões científicas, capazes de alcançar respostas

consensuais, enquanto outras permanecem filosóficas. E o mesmo processo

tende a repetir-se outras vezes com as questões filosóficas remanescentes,

talvez até o seu desaparecimento final.

Quando consideramos esse processo, o ponto mais importante a ser

ressaltado é que a perda de parte da filosofia para a ciência produz mudanças

que podem afetar toda a organização do campo remanescente da indagação

64

filosófica. Como o exemplo mostra, após a fissão a parte do problema que

permanece filosófica precisa ser reformulada, gerando novas respostas. Mas

as mudanças não permanecem a ela circunscritas. Todos os problemas

relacionados, que pertencem ao mesmo domínio de investigação filosófica,

podem precisar ser acomodados ao novo estado de coisas, junto com as suas

respostas especulativas. Isso é feito por meio de uma reformulação mais ou

menos extensa dos problemas e de suas respostas, assim como por uma

relocação de suas posições, ou seja, de suas relações relativamente aos

outros problemas e respostas. Para dar um exemplo: a reformulação kantiana

do problema filosófico remanescente das idéias inatas em termos de sua

doutrina sobre um conhecimento e conceitos a priori levou a reformulações

subseqüentes de questões acerca dos conceitos de mundo, alma e Deus. Kant

deixou de conceber esses conceitos como realmente designando seus

objetos, passando a vê-los como idéias da razão: conceitos a priori do tipo

“como se” (als ob), gerados pela natureza da razão, cuja função não é a de

designar seus objetos, mas somente a de orientar nossos processos de

inferência como se tais objetos pudessem ser designados. Assim, devemos

proceder intelectualmente como se existisse um mundo externo que fosse

uma totalidade causal fechada, de maneira a continuar perseguindo nosso

conhecimento das cadeias causais; devemos proceder como se houvesse um

objeto permanente simples (a alma), de maneira a poder perseguir um

entendimento unificado de nossos fenômenos psíquicos; e devemos proceder

como se existisse um criador inteligente (Deus) de toda a natureza – externa

e interna –, como um sistema inteligível, de maneira a poder aprofundar

nosso conhecimento da natureza como um todo. Como conseqüência dessa

reformulação dos conceitos de natureza, alma e Deus como conceitos a

priori diretivos, segue-se uma relocação de seus lugares dentro do sistema

65

conceitual da filosofia teórica; nesse contexto, ao menos o conceito de Deus,

por exemplo, não precisa nem pode mais ser visto como sendo o de uma

entidade existente, a realizar as mesmas funções que, digamos, o todo-

poderoso Deus veraz ainda mantido na filosofia “pré-crítica” de Descartes.

6. O NÚCLEO RESISTENTE DE PROBLEMAS FILOSÓFICOSRESIDUAIS: DUAS HIPÓTESES

Como um resultado dos processos descritos, a filosofia tem se contraído

em um conjunto resistente de questionamentos. Esses questionamentos

certamente incluem os das filosofias das ciências fundamentais, os quais

tomam as já existentes ciências particulares como seus objetos. Como essas

filosofias são dependentes do desenvolvimento dessas ciências, elas devem

se desenvolver mais tarde. Conseqüentemente, não é desarrazoado esperar

que essas filosofias um dia venham a alcançar acordo consensual como

metaciências (ciências de ciências).

Contudo, o núcleo mais resistente do presente conjunto de

questionamentos filosóficos consiste essencialmente das disciplinas

tradicionais mais centrais e difíceis da filosofia, como a epistemologia, a

metafísica, a filosofia do conteúdo, a ética. Esses domínios centrais têm até

agora resistido a qualquer conversão em ciência, sendo importante perceber

a sua peculiaridade. Eles não estão no mesmo nível das ciências

fundamentais ou mesmo das filosofias das ciências. De fato, o que chama

atenção em disciplinas como a metafísica e a epistemologia é a sua

extraordinária abrangência. No caso da metafísica são tratados problemas

últimos como o dos universais, da substância, da natureza da causalidade, do

espaço e do tempo, da identidade... que dizem respeito ao mundo de modo

66

mais geral, envolvendo objetos da experiência, tanto externos quanto

internos, atravessando, pois, os objetos de investigação de todas as ciências

fundamentais, visto que tanto os da física quanto os da biologia, da

psicologia... também possuem propriedades, estão no espaço e no tempo,

seguem leis causais etc. No caso da epistemologia, as questões não são

menos abrangentes, posto que elas não dizem respeito a esta ou aquela forma

de conhecimento, mas ao conhecimento em geral, sendo comuns a todas as

inquirições da mente. Considerando a dificuldade e relevância desses

domínios de investigação, nossa questão sobre qual é a natureza da filosofia

poderia ser nesse ponto substituída por outra não menos importante: qual é a

natureza própria das disciplinas centrais da filosofia?

A mais séria questão relativa à idéia de filosofia como antecipação da

ciência não é sobre o fato indiscutível da ciência ter se estabelecido a partir

da filosofia, mas sobre a extensão dessa derivação. Pode ser que o conjunto

remanescente de questionamentos filosóficos, ou ao menos parte dele,

pertença essencialmente à filosofia de um modo que o torne resistente à

transformação em ciência. Ou será que tudo o que é filosófico pode, em

princípio, tornar-se ciência?

Filósofos dividem-se acerca disso. Alguns, como Keith Lehrer, sugeriram

a hipótese progressista de que a filosofia é “apenas o nome coletivo do pote

de problemas ainda intocado pela ciência”(38). Para ele o fato de que

algumas questões filosóficas há mais de dois mil anos esperam por uma

resposta consensual não significa que essa resposta jamais será encontrada.

A maioria dos filósofos, porém, mantém-se mais reservada. Antony Kenny,

por exemplo, sustenta em seu livro sobre a filosofia da mente em Tomás de

Aquino a hipótese, que chamarei de conservadora, segundo a qual, mesmo

que a filosofia tenha em seu passado entregue à ciência partes de si mesma,

67

essas partes não eram genuinamente filosóficas. Só os problemas filosóficos

remanescentes e centrais são os genuinamente filosóficos. Eles

compreendem para Kenny a epistemologia, a metafísica, a ética e a teoria do

significado. Esses problemas permanecerão para sempre filosóficos(39).

Tentando justificar essa afirmação, Kenny, influenciado pela idéia

wittgensteiniana de representação sinóptica (ver nota 19), sugeriu que a

filosofia, diversamente das ciências particulares, trata de nosso

conhecimento como um todo, objetivando organizar o que já sabemos de

maneira a nos prover de uma sinopse, ou seja, de uma visão geral de nosso

próprio conhecimento, mais do que da aquisição de novas verdades. Essa

finalidade dá à filosofia uma espécie de abrangência que não pode ser

encontrada em nenhuma ciência particular. Essa abrangência, argumenta

Kenny, é a razão pela qual a filosofia da mente em Aquino permanence de

muitos modos relevante:

A filosofia é tão omniabrangente em seu objeto de investigação, tão

ampla em seu campo de operação, que a conquista de uma sinopse

filosófica sistemática do conhecimento humano é algo tão difícil que só

um gênio pode fazê-la. Tão vasta é a filosofia que somente uma mente

completamente excepcional pode ver as conseqüências mesmo dos mais

simples argumentos e conclusões filosóficas.(40)

No que se segue irei argumentar a favor da primeira e mais progressista

hipótese, embora não da maneira que o leitor possa estar supondo.

7. NOSSA IDÉIA GERAL DE CIÊNCIA

68

Meu argumento, sugerindo que todas as questões filosóficas no final

deverão ser absorvidas pela ciência, não é de um tipo construtivo; não

tentarei demonstrar esse ponto, nem creio que tal demonstração seja

possível. Mas pretendo mostrar que a tese progressista, de que as questões

filosóficas podem ser todas absorvidas pela ciência, pode ser tornada

plausível, na medida em que as razões que o filósofo tem para rejeitá-la

podem ser removidas.

Parece haver duas razões profundas com base nas quais muitos filósofos

vieram a rejeitar a idéia de que a totalidade da filosofia é antecipadora da

ciência(41). A primeira é que quando eles pensam em ciência eles têm em

mente as já bem estabelecidas ciências experimentais da natureza.

Considerando não somente a limitação de escopo da maioria dessas ciências,

mas também o seu caráter empírico mais direto, aceitar a tese progressista

sobre a natureza da filosofia parece comprometer-nos com uma concepção

empobrecedora e redutiva do núcleo de problemas filosóficos

remanescentes, uma concepção que parece roubar da filosofia toda a sua

abrangência e relevância ao colocar os seus problemas no mesmo nível das

ciências naturais. Concordar com a hipótese progressista parece então

deixar-nos sem nada, exceto algum tipo de cientismo pedestre,

intrinsecamente estreito e inimigo da abrangência e abstração às quais mais

pertence o genuíno filosofar.

A outra razão para desconsiderar a hipótese progressista é a adoção

implícita de concepções da natureza da ciência mais influentes do século

XX, como a do positivismo lógico e as subseqüentes reações à sua

influência. Filósofos da ciência só foram capazes de construir teorias

interessantes e detalhadas na medida em que tomavam as ciências mais

desenvolvidas como modelos. Mas como nem todos os domínios científicos

69

são muito desenvolvidos, havendo certamente outros que sequer emergiram,

os filósofos da ciência geralmente tomaram as ciências naturais – a física em

particular – como os modelos exemplares, posto que elas são as mais

avançadas formas avaliáveis de seu objeto. Esse procedimento pode produzir

resultados frutíferos no que concerne à filosofia dessas bem estabelecidas

ciências quando consideradas em si mesmas. Não obstante, quando os

resultados são interpretados como caracterizadores da ciência em geral, ou

como produtores de um critério geral para a demarcação do que pertence à

ciência, válido para todos os futuros candidatos, a conseqüência é uma

concepção estreita e obstrutiva dos limites da ciência. Isso é verdade, mesmo

para domínios de uma ciência natural fundamental, como a biologia, como o

evidencia o critério popperiano de cientificidade como falseabilidade de

nossas teorias através de experimentos decisivos. Seu critério pode se aplicar

de forma razoável à sua ciência modelo, a física, como no caso da teoria da

relatividade, que Popper gosta de usar como exemplo. Mas o mesmo critério

conduz à rejeição do caráter científico de muitas teorias psicológicas e sócio-

históricas, incluindo até mesmo a teoria da evolução – uma teoria biológica

cuja cientificidade ninguém ousaria negar. Que tipo de experimento poderia

capacitar-nos a falsificar uma teoria que explica uma infinidade de processos

que se estendem por um período de muitos milhões de anos no passado? E

mesmo que a teoria possa ser testada de algum modo indireto, falhar em

passar em tal teste não seria visto como um falseamento decisivo(42). Por

razões como essa eu penso que Popper estava certo quando pretendeu que a

sua metodologia não era descritiva do que pessoas (incluindo os cientistas)

pensam como pertencente à ciência, mas antes uma proposta: uma sugestão

racionalmente argumentada, embora, ao que tudo indica, estreita e artificial,

sobre o tipo de investigação que merece ser chamado de ciência(43). O

70

resultado da adoção de semelhante modelo de cientificidade pelo filósofo é

que ele não tem mais como permitir a admissão de que a filosofia seja

antecipação da ciência, pois é claro que segundo ele as áreas centrais da

investigação filosófica contemporânea, por sua própria natureza, nunca se

tornarão capazes de acomodar semelhantes exigências.

Contudo, penso que as duas razões recém-mencionadas para desmentir a

hipótese progressista não são adequadas ao nosso caso. Pois quando

mantemos que a filosofia tem uma função antecipadora da ciência, não

precisamos limitar a aplicação da palavra “ciência” a algo similar às já

existentes ciências particulares; e também não somos de modo algum

forçados a aceitar o que filósofos da ciência do século XX nos contaram

sobre como a ciência deve ser. De fato, o que mais naturalmente vem à

mente quando contrastamos filosofia com ciência é a oposição entre o

pensamento conjectural (o da filosofia), no qual não há possibilidade de

acordo sobre os resultados, e um empreendimento não-conjectural (o da

ciência), no qual o acordo sobre a verdade ou falsidade dos resultados pode

ser efetivamente alcançado, juntamente com o progresso resultante dele.

Mais além, parece que a idéia de ciência como um empreendimento não-

conjectural e produtor da verdade concorda muito bem com o que nós –

cientistas e pessoas cultas, com exceção eventual de algum filósofo da

ciência de herança positivista – naturalmente queremos dizer com a palavra

‘ciência’. De fato, para julgar se uma teoria pertence à ciência, não

perguntamos em primeiro lugar se ela pode ser submetida à confirmação ou

desconfirmação empírica (embora isso também tenha, como veremos, o seu

ponto!). O que primeiramente perguntamos é se a comunidade científica

pode alcançar um acordo interpessoal sobre a sua verdade ou falsidade,

mesmo que tal acordo geralmente resulte de alguma forma de verificação

71

(ou resistência à falsificação) empírica nas ciências não-formais. A

possibilidade de resultados consensuais entre os cientistas parece ser um

requerimento mais geral e decisivo, diversamente dos variados modos

através dos quais tais acordos podem ser alcançados.

Como a idéia de que o empreendimento científico coneça a ser definido a

partir de sua possibilidade de consenso me pareceu óbvia demais para ser

passada despercebida, consultando a literatura em filosofia da ciência

encontrei defesas de pontos de vista similares da parte de sócio-

epistemólogos da ciência, particularmente John Ziman. Já na década de

1960, esse autor chamou a atenção para essa idéia ao consistentemente

manter que o princípio unificador da ciência, em todos os seus aspectos,

repousa “no reconhecimento de que o conhecimento científico deve ser

público e consensualizável”(44). Ora, parece que a admissão de uma

concepção tão liberal da natureza da ciência, liberta-nos de um compromisso

estrito com esse ou aquele modelo de cientificidade diretamente derivado de

alguma ciência particular e mesmo de qualquer ciência já existente. Adotar

uma tal conceito aberto da natureza da ciência como contraponto para a

conjectura filosófica deixaria, pois, de envolver o risco de passarmos a

pensar esta última sob a perspectiva de algum cientismo positivista.

No que se segue irei aprofundar a concepção geral da ciência vagamente

esboçada por Ziman. Ao contrário de Popper, não farei uma proposta: toda a

minha abordagem será descritivista. O que quero fazer é resgatar, em seus

traços gerais, o sentido técnico ou acadêmico ou próprio da palavra

“ciência” ao tornar explícitos os principais critérios através dos quais

pessoas cientificamente educadas identificam a ciência. Esse será, aliás, um

procedimento paralelo ao procedimento descritivista em metafilosofia. De

fato, se o procedimento descritivista nos leva à idéia de que a filosofia é uma

72

protociência no sentido de não ser capaz de obter consenso, parece que por

razões de paridade a “ciência” da qual a filosofia é “proto” deve ser tratada

dentro de uma abordagem igualmente descritivista, coincidente com a

premissa de que a ciência é, por oposição, uma investigação capaz de

alcançar consenso verdadeiro. Sendo assim, uma explicação descritivista da

ciência parece ser o modo verdadeiramente coerente de imaginar o contraste

entre filosofia e ciência sob uma abordagem metafilosófica ela própria

descritivista. Somente após termos explorado essa maneira de conceber a

ciência em maiores detalhes é que seremos capazes de julgar se o conceito

de filosofia como antecipação da ciência é realmente restritivo.

8. RUMO A UMA CONCEPÇÃO NÃO-RESTRITIVADE CIÊNCIA

Meu objetivo aqui não será o de desenvolver uma completa

caracterização descritivista da ciência, baseada na análise dos critérios de

demarcação realmente usados pelos cientistas, mas o de tornar disponíveis

os seus fundamentos. A intenção é tornar suficientemente explícita – para o

propósito único de contrastar ciência e filosofia – uma concepção da

natureza da ciência que podemos chamar de consensualista-objetivista, na

falta de um nome melhor. Segundo essa concepção, o princípio unificador de

toda a ciência é que ela consiste em uma investigação avaliadora de

verdades objetivas, possibilitando o progresso através da obtenção de

acordos consensuais entre os membros da comunidade científica sobre os

resultados dessas avaliações. Para alcançarmos uma compreensão detalhada

dessa idéia e de suas ramificações, podemos identificar três condições de

cientificidade, que são as de progressividade, consensualidade e

73

objetividade. Essas condições são tão abrangentes que podem ser entendidas

como aplicáveis a todas as ciências, tanto empíricas quanto formais.

A primeira condição é a de que em seu período de desenvolvimento uma

ciência deva se comportar como um empreendimento progressivo no sentido

de que as suas teorias, uma vez sugeridas, devam ser capazes de ser

refinadas ou substituídas por outras possuidoras de maior poder explicativo.

Mais além, essa condição nos diz que no processo de sua constituição uma

ciência deve ser acumuladora de conhecimento no sentido de que permite à

comunidade de idéias reconhecer a verdade de um número crescente de

proposições. Essa condição de progressividade pode ser enunciada como

C1: A ciência é um empreendimento epistêmico capaz de se revelar potencialmente progressivo e acumulador de conhecimento

A condição C1 se aplica primariamente à totalidade da ciência, entendida

como constituida por um conjunto de ciências particulares, empíricas ou

formais, as quais são formadas por áreas e feixes de teorias mais ou menos

inter-relacionados. Tal princípio também se aplica, contudo, derivadamente,

às ciências particulares e à aceitação de suas teorias.

A satisfação da condição C1 pressupõe a satisfação da condição C2. A

condição C2 é prevalecente, aplicável primariamente a teorias (hipóteses e

sistemas de hipóteses) que aspiram à cientificidade, sendo só derivadamente

aplicável ao corpus do conhecimento científico. Essa é a condição central de

consensualidade, que pode ser enunciada como

C2: A ciência é um empreendimento epistêmico através do qual é possível se chegar a um acordo consensual sobre a verdade ou falsidade de suas teorias, um acordo a ser racionalmente alcançado pela comunidade crítica de idéias que as propõe.

74

Necessária a um adequado entendimento da condição S2 é uma

apropriada análise do conceito de comunidade crítica de idéias, que nos

permite estabelecer quem está intitulado a avaliar as idéias supostamente

científicas e como. Há razões para a introdução desse conceito. Se há

pessoas que não acreditam que a teoria da evolução natural tem recebido

suficiente confirmação, não iremos concluir que isso falseia a nossa crença

de que pode haver um acordo científico sobre a verdade dessa teoria, dado

que esse acordo efetivamente existe. Se um governo totalitário decide

chamar alguma ideologia espúria de ciência, impondo um acordo na

comunidade científica (como ocorreu na União Soviética com a genética de

Lysenko e na Alemanha nazista com a ciência “ariana”), não concluiremos

que essa ideologia é de fato uma ciência. E também não pensamos que uma

comunidade de idéias que baseia a sua verdade na autoridade das escrituras

sagradas ou nas visões de adivinhos está atuando como uma comunidade

científica.

Para eliminar tais interpretações inadequadas, que tornam a

caracterização consensualista da natureza da ciência inevitavelmente falha,

faremos uso aqui de uma idéia inspirada na sugestão de Jürgen Habermas

em sua teoria consensual da verdade. Segundo essa idéia, a decisão sobre o

que conta como verdade deve repousar em uma discussão (Diskurs) ocorrida

sob o pressuposto de uma situação ideal de fala (ideale Sprachsituation),

sendo tal situação aquela na qual há uma possibilidade simétrica de todos os

participantes do discurso de realizarem os diversos tipos de ação

comunicativa, o que impede a existência de coerção que não seja a do

melhor argumento. Pelo recurso à situação ideal de fala temos uma garantia

de chegar a decisões sobre a verdade pertencentes a um consenso legítimo,

75

as quais precisam ser distinguidas de decisões tomadas fora dessa situação e

que podem peretencer a um consenso falso ou ilegítimo(45).

Sem dúvida, parece claro que uma comunidade de idéias, para ser capaz

de avaliar hipóteses científicas, deve fazê-lo sob certos pressupostos, como o

da racionalidade e da liberdade de quem as avalia – pressupostos que

dependem de algo que funcione como uma situação ideal de fala. Isso

significa que uma comunidade crítica de idéias pode ser caracterizada como

aquela que, tanto quanto possível, satisfaz um conjunto de critérios de

legitimidade consensual. Sem querer ser sistemático nem exaustivo, eis uma

lista de critérios particularmente importantes:

(a) Uma comunidade crítica de idéias deve ser composta por membros igualmente bem treinados e informados sobre as matérias que devem avaliar (os cientistas).

(b)Os membros da comunidade crítica de idéias devem estar engajados em buscar a verdade e em submeter as suas idéias a um escrutínio crítico racional.

(c) Os membros de uma comunidade crítica de idéias devem ter completo acesso à informação, iguais chances de avaliar idéias e direitos similares de intercâmbio intelectual.

(d)Os membros de uma comunidade crítica de idéias não podem ser sujeitos a nenhuma coerção em seus procedimentos de avaliação e conclusões, a não ser a coerção imposta pela melhor justificação.

Aqui os dois primeiros critérios se referem a características dos membros

individuais de uma comunidade crítica de idéias, enquanto os dois últimos se

referem a características da própria comunidade de idéias com relação aos

seus membros.

É importante perceber que tais critérios formam uma constelação ideal

que nunca chega a ser completamente satisfeita por nenhuma comunidade

científica. Contudo, eles devem ser preenchidos ao menos em uma medida

76

suficiente, posto que nenhuma comunidade científica poderia alcançar

confiabilidade sem que eles fossem minimamente satisfeitos. Com efeito,

quando aceitamos uma descoberta científica que se pretende verdadeira (por

exemplo, um avanço na medicina), todos nós precisamos pressupor que tais

critérios estão sendo suficientemente preenchidos (que os cientistas estão

sendo suficientemente honestos, que não estão sendo pressionados a

manipular dados etc.). Além disso, o cientista trabalhando em pesquisa deve

realizar o seu trabalho sob a constante assunção de uma eventual avaliação

de seus resultados por uma comunidade de idéias que satisfaça critérios que

garantem a legitimidade consensual, usando essa assunção como guia para

uma avaliação pessoal do que está fazendo, mesmo nos casos em que tal

avaliação não ocorra e talvez nunca venha a ocorrer. Assim entendida, a

condição C2 torna-se a exigência central para podermos aceitar teorias como

pertencendo à ciência.

O acordo sobre a verdade ou falsidade das teorias dentro de uma

comunidade crítica de idéias requer ainda uma terceira condição de

cientificidade. Como já notamos, o acordo consensual sobre a verdade entre

os membros de uma comunidade de idéias só é possível se houver um

acordo prévio acerca de assunções concernentes a critérios e métodos de

avaliação da verdade. Assim, a possibilidade de satisfação da condição C2

pressupõe a satisfação de C3, uma condição material que a comunidade

crítica deve satisfazer para ser considerada científica. Essa é a condição de

objetividade, que pode ser enunciada da seguinte maneira:

C3: A comunidade crítica de idéias responsável pela investigação científica deve ter encontrado um acordo consensual prévio sobre o que conta como pressupostos fundamentadores para a avaliação das teorias

77

que neloa são pressupostas. Esses pressupostos são o que confere objetividade ao discurso científico.

O acordo sobre a verdade ou falsidade de teorias requer, pois, um acordo

consensual prévio, relativo à satisfação de vários pressupostos

fundamentadores que conferem objetividade ao discurso científico. Sem

ambicionar um esclarecimento sistemático e entendendo por domínio

epistêmico o conjunto daquilo que pode ser dado como objeto em uma área

do conhecimento, quero listar os seguintes pressupostos:

(i) Pressupostos sobre o que pode ser contado como dados elementares (empíricos ou formais), constitutivos do domínio epistêmico ao qual a teoria pertence;

(ii) Pressupostos sobre o que pode ser aceito como questões adequadamente formuladas a serem levantadas nesse domínio (a teoria deve responder a questões significativas, relevantes etc.);

(iii) Pressupostos sobre o que pode ser aceito como uma teoria adequadamente construída no domínio epistêmico (em sua consistência interna tanto quanto em sua coerência com o sistema de crenças constitutivo do domínio epistêmico);

(iv) Pressupostos sobre o que conta como procedimento de avaliação da verdade de uma teoria em seu domínio epistêmico (o que envolve a avaliação de algum tipo de corrrepondência com os fatos que a teoria tenta explicar).

Note-se que esses pressupostos fundamentadores cobrem um terreno

muito amplo: os elementos e fatos em questão, por exemplo, podem ser

desde entidades empíricas quaisquer a abstrações numéricas. A admissão de

pressupostos de objetividade nos permite estabelecer conexão entre a

concepção de ciência como saber consensualizável, obtido por uma

comunidade crítica de idéias, e a concepção tradicional do método científico

em ciências empíricas como sendo indutivo-dedutivo e/ou hipotético-

dedutivo. É que as condições da aplicação desses métodos científicos

78

acabam coincidindo com condições da aplicação dos pressupostos de

objetividade em ciências empíricas. Vejamos como: o pressuposto (i) está

associado à questão da generalidade, ao poder explicativo das teorias

científicas; o pressuposto (ii) está associado a questões de simplicidade; o

pressuposto (iii) está associado a questões como a de coerência,

entrincheiramento, cooperação explicativa; e o pressuposto (iv) está

associado a questões de predição, explicação e testabilidade.

São tais associações inevitáveis? Não seria possível um acordo

consensual sem que as condições de objetividade estejam sendo satisfeitas,

digamos, pela comunidade crítica dos videntes de bolas de cristal? Penso

que não. Parece ser indispensável que os pressupostos fundamentadores

constitutivos da condição de objetividade estejam sendo satisfeitos para que

um acordo consensual legítimo se torne possível. Mas, dirá o cético, o que

garante que tenha de ser assim? A resposta é que essa questão apenas parece

ser problemática, na medida em que o cético espera dela uma solução a

priori que de fato não existe. Na verdade, a resposta só pode ser empírica.

Ou seja: a necessidade de se admitir condições de objetividade é uma

verdade experiencial incontornável que a comunidade crítica de idéias tem

sido forçada a aprender desde o início de seu funcionamento. Ela

simplesmente verificou, por certo a contragosto, que o consenso legítimo só

pode ser atingido quando tais condições são satisfeitas. O fato da aceitação

das condições de objetividade não ser a priori explica a tentação que

sentimos de prescindir do esforço que ela implica. E a sua admissão

responde à eventual objeção de que uma definição consensualista do

empreendimento científico não reconhece tal objetividade, descambando

para um relativismo sociologizador da ciência.

79

Assim entendidas, as condições de progressividade, de consensualidade e

de objetividade parecem constituir um critério descritivista suficientemente

confiável, ainda que reconhecidamente vago e esquemático, para a

demarcação entre ciência (formal ou empírica) e não-ciência. Vejamos agora

o que acontece quando o aplicamos à filosofia.

9. POR QUE CONCEBER A FILOSOFIA COMO UMEMPREENDIMENTO PROTOCIENTÍFICO?

O ponto a ser sublinhado é que a nossa concepção consensualista de

ciência coloca esta última em contraste direto com a filosofia. Em filosofia,

como em ciência, uma comunidade crítica de idéias deve ser pressuposta,

mesmo que por vezes de modo contrafactual. Com efeito, é esperado que

filósofos tenham competência em suas atividades, que eles busquem a

verdade e se disponham (mesmo que aos resmungos) a submeter as suas

teorias filosóficas ao livre escrutínio por parte de outros pensadores

igualmente competentes, que eles tenham igual informação e possibilidades

de interação (uma queixa contra a filosofia dogmática é que ela falha em

satisfazer essa exigência), e que suas idéias não sejam submetidas a

nenhuma coação ideológica (de fato, a principal queixa contra a filosofia

medieval é a de que nela essa condição nunca pôde ser suficientemente

satisfeita).

Mesmo constituindo uma comunidade crítica de idéias que satisfaça a

idéia da ciência, da qual a filosofia sempre esteve imbuida, as reflexões dos

filósofos não são capazes de satisfazer nenhuma das três condições de

cientificidade por nós consideradas. Isso nos possibilita caracterizar a

filosofia de modo puramente negativo, como um empreendimento heurístico

80

em uma comunidade crítica de idéias na qual tais condições não são

satisfeitas. As condições negativas são, primeiro

NC1: A filosofia falha em satisfazer a condição de progressividade, pois ela não é um empreendimento progressivo e acumulador de conhecimento.

A filosofia é de fato acumuladora, mas somente no sentido de acumular

um conteúdo hipotético, isto é, no sentido de que nossas concepções

filosóficas podem ser tornadas mais complexas e aumentar em número. Ela

acumula um número sempre maior de possíveis verdades, as quais tendem a

tornar as malhas da rede de possibilidades especulativas em seus diferentes

domínios sempre mais estreitas. O caráter acumulador de hipóteses mas não-

acumulador de conhecimento da filosofia pode ser facilmente percebido

quando comparamos diferentes teorias filosóficas sobre uma mesma coisa.

Considere, por exemplo, as doutrinas dos tipos de conhecimento em Locke e

Spinoza. O primeiro é um filósofo empirista, preocupado em distinguir o

conhecimento formal do saber empírico, o segundo é um metafísico

racionalista tentando especular acerca de uma fonte única de todo o

conhecimento. Cada teoria parece iluminar diferentes aspectos do problema,

cada uma parece deter alguma verdade, e ambas juntas parecem ter mais

verdade do que cada uma delas em separado. O problema é que nós não

estamos em posição de dizer com suficiente certeza onde as verdades se

encontram, ou mesmo de excluir qualquer dúvida cética sobre a sua

existência.

A condição C1 não é satisfeita pela filosofia porque esta última não

satisfaz a sua precondição, que é a de consensualidade. Daí que para ela vale

81

NC2: A filosofia falha em satisfazer a condição de consensualidade, Uma vez que nenhum acordo sobre a verdade ou falsidade de suas idéias pode ser alcançado em sua comunidade crítica de idéias. E isso ocorre porque de um modo ou de outro a condição de objetividade

não chega a ser satisfeita:

NC3 A filosofia falha em satisfazer as condições de objetividade S3, posto que o filósofo não é capaz de, diante da comunidade crí- tica de idéias, satisfazer pressupostos fundamentadores.

Com efeito, o filósofo não é capaz de

(i) alcançar aceitação geral acerca do que pode ser contado como dados elementares nos domínios epistêmicos da filosofia;

(ii) assegurar a outros filósofos que as suas questões não são basicamente enganosas (pseudoproblemas);

(iii) conseguir aceitação geral da adequação de suas teorias (coerência interna e externa);

(iv) desenvolver procedimentos de avaliação da verdade (argumentos) que sejam geralmente aceitos por seus vizinhos filósofos (mostrando que a sua teoria concorda com os fatos que tenta explicar, seja qual for a natureza dos últimos).

Como C1 depende de C2, C2 de C3 e C3 dos pressupostos

fundamentadores, fica claro que, ultimadamente, a filosofia não é ciência

porque é incapaz de satisfazer tais condições de objetividade. Em casos

como os das ciências naturais, isso significa que a filosofia não é capaz de

satisfazer as condições impostas pelos métodos da ciência, para o prazer dos

filósofos da ciência com herança positivista. Contudo, trata-se agora de um

prazer restrito aos seus merecidos limites, posto que as condições de

progressividade, consensualidade e objetividade ampliam o horizonte da

82

ciência para muito além do que é sugerido pela simples investigação da

aplicação do método científico nas ciências naturais.

Vimos, pois, que as condições de progressividade, consensualidade e

objetividade correspondem otimamente aos critérios que intuitivamente

usamos quando somos chamados a distinguir o que pertence à ciência do que

pertence somente à filosofia.

10. CONSEQÜÊNCIAS DA TESE PROPOSTA

Quando consideramos a totalidade da filosofia como um empreendimento

antecipador da ciência, a adoção da concepção de ciência recém exposta

conduz-nos a algumas conseqüências interessantes.

Primeiro, considerando que nossos critérios para o que pode contar como

ciência deixam em aberto os modos concretos pelos quais a investigação

pode vir a ser considerada científica, a identidade própria da investigação

que há de surgir permanece em aberto. Em outras palavras, os critérios

sugeridos não antecipam o caráter próprio de nenhum campo científico ainda

por surgir; em especial, eles não antecipam que as ciências eventualmente

destinadas a tomar o lugar dos presentes domínios da indagação filosófica

devam ter qualquer similaridade com as ciências experimentais já

conhecidas por nós. Dada a concepção proposta da natureza da ciência,

mesmo teorias especulativas de amplo escopo, como a metapsicanálise

freudiana, ou a lei comtiana dos três estágios, poderiam tornar-se científicas,

bastando para isso que fossem construídas sobre um pano de fundo de

informações que as tornasse capazes de alcançar acordo consensual em uma

comunidade crítica de idéias. Mais além, quaisquer doutrinas filosóficas

especulativas, como a doutrina fichteana do Eu puro, a escatologia scotista, a

83

doutrina do Uno em Plotino, poderiam, em princípio, ainda que muito

improvavelmente, tornar-se científicas na medida em que pudessem ser

reconstruídas de modo o tornar um acordo consensual legítimo sobre a sua

verdade realizável.

Mesmo uma concepção da natureza da filosofia como a que estamos

sugerindo aqui poderia deixar de ser filosófica para se tornar científica

quando, aplicada a ela mesma, se revelasse objeto de consenso em sua

verdade. Suponha-se, por exemplo, que a concepção de filosofia como uma

protociência similar à concepção consensualista-objetivista seja mais

adequadamente e mais completamente desenvolvida, e que essa concepção

receba no futuro mais e mais confirmação pela emergência de novos campos

científicos que substituam aos poucos as nossas atuais discussões filosóficas.

Uma conseqüência será que uma comunidade crítica de idéias no futuro

acabará por aceitar a verdade da idéia de que a filosofia é uma protociência

em termos de acordo consensual autêntico, vindo a admitir isso como uma

verdade científica inobjetável. A idéia de que a filosofia é uma protociência

teria então auto-satisfeito a condição de cientificidade por ela mesma

construida.

Uma segunda conseqüência interessante de nossa concepção de ciência

em relação à filosofia é que nós não precisamos necessariamente eliminar a

abrangência de nossas visões filosóficas por admiti-las como substituiveis

pela ciência. De fato, há razões para esperar algo diverso. Falando sobre a

interdependência dos problemas filosóficos pertencentes ao núcleo residual

– como os da metafísica e epistemologia –, filósofos como Wittgenstein já

notaram, com certo exagero, que tais problemas são tão profundamente

interligados uns aos outros que cada um deles só poderá ser resolvido

quando todos os outros já tiverem sido resolvidos. Essa observação mostra

84

uma maneira como os nossos problemas filosóficos centrais podem dar lugar

à ciência: não tanto por meio da construção de teorias diretamente

demonstráveis como correspondendo ou não aos fatos que elas devem

explicar, mas por meio do suporte heurístico que teorias são capazes de

oferecer umas às outras, pela sua cooperação explicativa, pelo

entrincheiramente das crenças delas derivadas. Um certo grau de suporte

interteórico, ou seja, de cooperação explicativa entre teorias, pode ser

facilmente encontrado, mesmo nas ciências naturais: a teoria evolucionária

de Darwin, por exemplo, chegou a ser abandonada pelo autor quando este

não soube responder à objeção de que os novos caracteres deveriam se diluir

com o cruzamento dos indivíduos que os portassem com a multidão dos

membros menos dotados da espécie. Problemas como esse, contudo, foram

resolvidos a favor da teoria da evolução por seleção natural quando, muitos

anos mais tarde, ela recebeu o suporte heurístico da descoberta, dentro da

comunidade científica, dos artigos de Gregor Mendel, fundando a ciência da

genética (embora, como é sabido, esses tivessem sido publicados no tempo

de Darwin sem que fossem lidos). Algo similar pode ocorrer com os

problemas inter-relacionados da filosofia: o acordo consensual poderá surgir

nesses domínios, não tanto como resultado do que conta como confirmação

experiencial objetiva, embora algum tipo de confirmação objetiva deva ser

necessário, mas através do suporte interteórico que a solução de um

problema pode dar à solução de outros e vice-versa.

Há, finalmente, algumas conclusões a serem tiradas da constatação de que

em muito da indagação filosófica o suporte interteórico deve prevalecer

como meio de avaliação da verdade.

A primeira é que há menos razões para suspender a crença otimista de

que mesmo nos mais resistentes domínios da filosofia seremos capazes de,

85

em um algum momento futuro, encontrar o caminho de um acordo

consensual (a existência de apenas cinco ciências fundamentais parece falar

a favor disso).

A segunda é que também temos razões para esperar que o objeto de

investigação após tais acordos não venha a ser compreendido por um grande

número de teorias de pequeno escopo e independentes umas das outras, mas,

ao invés, por abrangentes constelações de teorias científicas mais ou menos

interligadas; nesse caso somente a forma conjectural de nossos problemas

será necessariamente perdida – não a sua abrangência.

Uma terceira conclusão, pelo menos indicada pela interdependência

heurística das teorias, é que não podemos desqualificar tentativas filosóficas

em áreas como epistemologia, metafísica e ética, pela simples comparação

com o que aconteceu com conjecturas filosóficas antecipadoras de ciências

como a física, a química ou a biologia, as quais mostraram-se simplesmente

demasiado errôneas ou grosseiras para continuarem preservando mais do que

uma importância meramente histórica. De fato, no caso das ciências naturais,

há profundas rupturas epistemológicas distinguindo a ciência da indagação

filosófica pré-científica (ou não consensualizável). Contudo, em níveis

posteriores de conhecimento, em que o entrincheiramento e suporte

interteórico podem ser marcas prevalecentes da verdade, parece que a

transição da filosofia para a ciência tende a ser mais gradual, posto que

envolve correções de teorias inter-relacionadas, correções talvez profundas,

embora muitas vezes sem o salto para o totalmente novo. Isso significa que a

especulação filosófica em seus domínios centrais pode ser heuristicamente

mais relevante, uma vez que ela deve acumular verdades (embora não

saibamos onde elas estão) antes que acordos consensuais se tornem fortes o

suficiente para produzir, de maneira mais urbana e discreta, uma mudança

86

qualitativa mais significante. A atenção a isso pode resgatar muito da

importância das disciplinas filosóficas fundamentais do descaso positivista e

cientificista.

IV

RELIGIÃO E OS REMANESCENTES MÍSTICOS DA FILOSOFIA

Em todo lugar buscamos o incondicionado, e o que encontramos são apenas coisas. Novalis

Podemos entender por que a filosofia é uma forma conjectural de

investigação ao concebê-la como uma antecipação da ciência. Mas nem

todos os traços característicos da indagação filosófica podem ser explicados

dessa maneira. Os traços indicados nas definições históricas de filosofia

como a busca da sabedoria, o espanto, o apelo freqüente a princípios

transcendentais de explicação, o impulso que objetiva integrar nossas

experiências em uma visão abrangente, capaz de nos fazer compreender o

mundo como um todo e o nosso lugar nele, a produção de sistemas

filosóficos tentando desenvolver e justificar tais visões do mundo – todos

esses aspectos dificilmente podem ser entendidos se persistirmos em pensar

a filosofia como limitando-se apenas a um empreendimento cognitivo

antecipatório, direcionado à ciência. Neste capítulo tentarei mostrar que uma

resposta a essas questões pode ser encontrada quando, ao invés de

investigarmos o modo como a filosofia dá lugar à ciência, perquirirmos o

87

modo como a filosofia se originou. Essa abordagem leva-nos a comparar a

filosofia com outra de suas relações próximas, qual seja, a religião.

1. FILOSOFIA E RELIGIÃO: A ABORDAGEM GENÉTICA

Há duas características particularmente importantes que a filosofia

compartilha com o pensamento religioso, as quais podem ser chamadas de

abrangência e transcendência. Religiões monoteístas, como a judaico-cristã,

chegam à característica de transcendência por apelo a um Deus que se

encontra além do mundo da experiência, mas que é misteriosamente

concebido como um ser pessoal que é a causa eficiente e sustentadora desse

mundo. Por essa via as religiões também alcançam abrangência: o conceito

de Deus está no centro de uma doutrina que objetiva integrar nossos modos

de ver em uma explicação do mundo onde vivemos e do lugar que o homem

nele ocupa, daí se deixando derivar um conjunto de diretivas para a conduta

e vida humana. Muito da filosofia tem preservado aspirações similares de

transcendência e abrangência, embora realizando-as sem o apelo a um Deus

pessoal.

Filósofos tradicionais foram movidos pela busca de abrangência, a qual

conduziu os seus maiores expoentes à construção de sistemas filosóficos

abarcantes, buscando explicar a realidade como um todo e freqüentemente

derivando dessa explicação diretivas gerais para a conduta humana. Embora

as aspirações da filosofia contemporânea não sejam tão elevadas, a

amplitude de propósito ainda permanece um elemento importante na

avaliação da pertinência e importância da investigação filosófica.

88

Quanto à transcendência, embora a filosofia não apele ao sobrenatural da

mesma maneira que a religião, ela apela a princípios metafísicos de

explicação que permanecem além das possibilidades reais de experiência e

entendimento. Embora esses princípios não sejam seres espirituais, como os

deuses das religiões, eles podem não se deixar distinguir completamente

deles. Pois como os deuses, é comum que não possam ser adequadamente

alcançados através do entendimento humano, que possuam algum atributo

mental, que se relacionem ao mundo experienciavel um modo obscuro e

misterioso. Para entendermos a imensa importância de tais princípios

metafísicos, precisamos apenas considerar o lugar central que eles sempre

ocuparam na história da filosofia. Aqui vai uma lista, de Tales a

Wittgenstein:

- água (Tales); ilimitado (Anaximandro); ar (Anaxímenes); terra (Xenófanes); fogo (Heráclito); Ser (Parmênides); os átomos (Demócrito); o número (Pitágoras).

- as idéias, especialmente a idéia do bem (Platão); o ser enquanto ser ou substância ou Deus (Aristóteles); o Uno (Plotino); a natureza (John Scotus); o Omni-Deus (Tomás de Aquino e muitos outros);

- a substância pensante finita ou infinita (Descartes); a substância-natureza-Deus (Spinoza); as mônadas (Leibniz); mentes (Berkeley); o oceano noumênico com a sua coisa em si e o seu Eu transcendental (Kant); o eu puro (Fichte); o espírito absoluto (Hegel); a vontade (Schopenhauer); a vontade para poder (Nietzsche); a seridade do ser (Heidegger); o indizível (Wittgenstein).

O relacionamento entre filosofia e religião pode ser historica e

geneticamente abordado por meio da consideração de princípios ou

entidades-princípio, dado que são entidades que atuam como princípios

capazes de produzir ou determinar ou sustentar alguma coisa. É bem

conhecido o fato histórico de que a filosofia ocidental nasceu do solo da

89

mitologia grega e da religião. Em algum ponto os pensadores gregos se

tornaram insatisfeitos com as explicações dos eventos da natureza e da vida

humana fornecidas pela mitologia e começaram a substituí-las por

explicações filosóficas. Historiadores da filosofia já sugeriram que o contato

com outras culturas, com seus diferentes deuses e valores, poderia ter

contribuído para enfraquecer a crença dos gregos em suas explicações

mitológicas(46). Mas esse fato nunca poderia em si mesmo ter sido

suficiente para dar início à especulação filosófica, posto que muitas outras

culturas foram similarmente expostas, a outras sem que desenvolvessem

qualquer tipo de filosofia argumentativa (algumas, ainda, reagiram a tal

exposição pela revigoração reativa de suas próprias crenças, considere, por

exemplo, a sobrevivência do judaismo na Europa). Uma explicação mais

plausível e por muitos aceita para o nascimento da filosofia ocidental é a

exposta por W. K. C. Guthrie, de que a descoberta da ciência abstrata entre

os gregos sugeriu à mente humana o uso da generalização(47). Contudo, só

isso não seria suficiente para produzir a emergência do pensamento

filosófico, posto que generalizações de senso comum sobre fenômenos

ordinários sempre existiram: que o Sol nasce a cada dia ou que dois e dois

são quatro eram generalizações já sabidas antes do surgimento de qualquer

ciência.

Em meu juízo, a razão mais completa para o nascimento da especulação

filosófica ocidental, que incorpora a aceita por Guthrie, seria a seguinte. Os

gregos, muito em conseqüência de sua exposição a outras culturas,

produziram desenvolvimentos científicos em aritmética, geometria, física e

astronomia. Mas enquanto outros povos viam os resultados da ciência

apenas como um instrumento para a realização de fins práticos, os gregos

pela primeira vez os consideraram em abstração dessas finalidades práticas,

90

ou seja, como generalizações científicas. Essa abstração capacitou-os a se

tornarem conscientes das características intrínsecas desse tipo de

generalização. Eles puderam ver que as generalizações científicas têm um

poder explicativo, que lhes faculta, não apenas a explicar o que é

abertamente avaliável, como é o caso das generalizações de senso comum,

mas também a “natureza oculta das coisas”. Nesse contexto teriam também

percebido que a forma científica de explicação é baseada na assunção da

existência de regularidades, tanto na natureza empírica quanto nas

matemáticas, regularidades não só capazes de ser refletidas nas

generalizações, mas também, quando empíricas, de possibilitar explicações

dos fatos e previsões (como o haviam demonstrado as predições

astronômicas) e, quando matemáticas, possibilitar justificações e inferências

(como nas provas dos teoremas) em um procedimento em certa medida

análogo. Com efeito, assumindo a possibilidade geral de tais generalizações

abstratas apoiadas na inferência a partir de regularidades dadas, seguida de

explicação e previsão, os Gregos teriam alcançado o que poderíamos chamar

de uma idéia de ciência, tanto empírica quanto formal, ou seja, dos

procedimentos de (a) generalização de regras ou leis, e (b) de inferência ou

explicação. Essa idéia equivalia a um novo tipo de explicação dos fatos,

muito diferente daquela provida pelo antropomorfismo religioso. De fato,

parece que foi a descoberta da possibilidade de substituir explicações

religiosas por explicações por meio de regras, princípios ou leis, aplicáveis

mesmo ao que era inobservável ou oculto na natureza, a fagulha que acendeu

o fogo da especulação filosófica nas mentes dos pensadores gregos pré-

socráticos. A idéia subjacente que veio à mente desses primeiros filósofos

deve ter sido simplesmente a de que o mundo inteiro poderia ser explicado,

não por apelo à vontade dos deuses, mas a regularidades semelhantes

91

àquelas descobertas pela ciência. Claro que a maior parte das questões não

era passível de ser realmente abordada em termos científicos. Mas ainda

assim poderiam ser abordadas especulativamente, conjecturalmente,

respaldadas pela idéia de ciência e por resultados que, mesmo não sendo

consensuais, permaneceriam intelectualmente estimulantes. A prática disso é

o que veio a ser chamado de filosofia.

Devido a essa influência do modelo científico, seja ele empírico ou

formal, no surgimento da filosofia grega, não é surpreendente que o primeiro

filósofo da tradição ocidental – Tales de Mileto – fosse também um

astrônomo e um competente matemático, que uma vez predisse um eclipse

solar. Sua hipótese de que a água poderia ser o princípio (arché), ou seja, a

causa eficiente e sustentadora de todas as coisas, foi a primeira tentativa de

substituir a explicação pelo apelo a deuses por algo mais próximo da

explicação não-antropomórfica provida pela ciência. Certamente, uma tal

explicação não poderia ser adequadamente construída em termos científicos,

pois não haveria como possibilitar a ela o tipo de acordo consensual que

vimos ser distintivo da ciência. Nem Tales nem os seus sucessores poderiam

alcançar um entendimento científico de uma questão tão ampla como a dos

constituintes últimos da natureza, posto que acordos consensuais acerca

disso dependem da realização de sofisticadas observações científicas, o que

somente hoje é possível. Contudo, os pensadores pré-socráticos eram pelo

menos capazes de filosofar sobre um tal assunto, ou seja, eles já eram

capazes de ter vislumbres conjecturais sobre a natureza das coisas. Ou seja:

sugestões necessariamente vagas, incompletas, inevitavelmente falhas, mas

mesmo assim capazes de ordenar, dirigir e mesmo aprofundar o nosso

entendimento da realidade. O que filósofos como Tales e, com maior

refinamento, Heráclito e Parmênides, estavam produzindo, eram idéias

92

esquemáticas, esboços explicativos, concepções vagas e sugestivas, ou seja,

formas de teorias funcionando como realizações protocientíficas da

imaginação especulativa. Entre os pré-socráticos as entidades-princípio

tomaram muitas vezes a forma de causas eficientes e sustentadoras do

mundo experienciado por nós, sendo inicialmente coisas sensíveis, como

água e terra, mas rapidamente se tornando coisas mais evanescentes, como o

ar invisível, sendo ao final mais consistentemente substituídas por entidades

não-experienciáveis empiricamente, como o ilimitado de Anaximandro, o

Ser de Parmênides e o número de Pitágoras, as quais foram substituidas

inevitavelmente por muitas outras em toda a história da filosofia. Irei

aprofundar a análise desses princípios, mas devo primeiro considerar

algumas idéias de Auguste Comte, capazes de nos oferecerem uma

orientação importante.

2. A LEI COMTIANA DOS TRÊS ESTÁGIOS

A consideração histórica do fato de que a filosofia nasceu como um

substituto para as explicações da mitologia e da religião traz à memória a

assim chamada “lei dos três estágios”, desenvolvida por Comte como uma

ordenação da longa jornada da mente, começando da superstição até chegar

à ciência(48). Irei fazer algum uso dessa lei na seção 4. Mas agora, como

creio que a lei de Comte é de grande importância e que ela tem sido mal-

entendida e injustamente depreciada, irei reconstruí-la em alguns detalhes,

respondendo na próxima seção às objeções mais influentes contra ela

levantadas(49).

A lei dos três estágios pode ser entendida em três níveis: (a) no nível do

desenvolvimento dos produtos da cultura humana em suas distintas

93

ramificações; (b) no nível do desenvolvimento da mente individual; e (c) no

nível do desenvolvimento da sociedade humana.

É no nível (a), como uma lei geral governando o desenvolvimento da

cultura humana, que a lei dos três estágios é particularmente importante.

Para Comte, associado à emergência de cada ciência fundamental (capítulo

III, 4), há um processo evolucionário em que a cultura humana passa através

de três estágios sucessivos: o religioso ou fictivo, o metafísico ou abstrato, e

o científico ou positivo (ver esquema). Eis um esquema orientador:

Subestágios:

Estágios: (i) animista

(1) religioso ou fictivo (ii) politeista

Níveis: (iii) monoteista

a) cultural (2) metafísico ou absoluto

(3) científico ou positivo

Lei dos

três b) individual (1), (2) e (3)

estágios

c) social (1), (2) e (3)

O estágio religioso ou fictivo é o necessário ponto de partida de nossa

evolução cultural. Esse estágio é dominado pelo antropomorfismo: a mente

humana tenta explicar as anomalias da natureza projetando as suas próprias

características no mundo externo. Os fenômenos naturais, particularmente os

desviantes, são explicados como causados pela vontade de seres humanos

com poderes sobrenaturais: os deuses ou o Deus. O conhecimento acerca

dessas entidades sobrenaturais, suposto como adquirido nesse estágio, é

94

considerado absoluto. Contudo, esse suposto conhecimento é meramente

ilusório, sendo produto, não da razão, mas tão-somente da imaginação.

O estágio religioso assume subseqüentemente três formas, cada uma

passando para um nível de abstração mais alto. Na primeira, o subestágio

animista, objetos físicos como árvores, animais e corpos celestes são

vagamente concebidos como possuindo vida, paixões e vontade. No segundo

subestágio, chamado de politeísta, tais objetos são substituídos por deuses,

seres vivos de natureza sobrenatural, normalmente invisíveis, intervindo

arbitrariamente no curso da natureza. Finalmente no subestágio monoteísta,

as divindades do politeísmo são condensadas de maneira a formar um único

Omni-Deus, típico da religião judaico-cristã. Comte vê esse movimento

como um progresso cultural da mente dentro da ordem teológica, tendendo a

uma abstração unificadora das causas explicativas dos fenômenos. Nele a

mente começa o processo de substituição da imaginação pela razão.

O segundo estágio, o estágio metafísico (filosófico), é para Comte apenas

transicional. Ele representa um progresso notável, pois os princípios de

explicação deixam de ser buscados em divindades sobrenaturais e passam a

ser buscados na própria natureza. Mas embora esses princípios possam

pertencer à natureza, eles estão lá de maneira oculta. Eles são chamados de

“poderes naturais”, “propriedades essenciais”, ou “entidades abstratas”.

Exemplos de tais princípios são para Comte o flogisto, antecedendo a

química moderna e o éter, nos estágios iniciais da física. Tais princípios,

afirma ele, são fundamentalmente equívocos em seu caráter. Eles deveriam

fornecer uma explicação natural dos fenômenos como princípios científicos,

ou seja, como regularidades mantidas entre fenômenos, mas eles falham em

realizar essa função; por outro lado, eles não podem ser concebidos como

agentes pessoais sem o regresso a um estágio teológico. Eles são o que

95

Comte sugestivamente chamou de “abstrações personificadas”, apontando

assim para a sua inconsistência interna. Mais tarde testaremos essa idéia,

aplicando-as às entidades-princípios referidas pelos filósofos.

Comte tem uma concepção completamente negativa do valor intrínseco

dos primeiros dois estágios. Para ele, eles são basicamente dependentes da

imaginação, e nem as explicações nem as previsões feitas através das

construções conceituais dela originadas são genuínas. A utilidade dessas

explicações e previsões repousa basicamente em seus efeitos

sociopsicológicos, como o de estruturação do poder ou a diminuição da

ansiedade humana diante daquilo que está além do seu controle. Além disso,

há uma conseqüência prática a longo prazo: somente por meio dessas

construções conceituais ilusórias o caminho para o estágio científico é

preparado. A mente humana, diz Comte, não pode investigar sem ser guiada

por algum tipo de teoria. Os estágios metafísico e teológico produzem

teorias com base nas quais a mente humana pode perseguir a investigação e,

motivada por uma ilusão de conhecimento, perseverar na observação

cumulativa dos fatos que ao final acaba por conduzir à ciência. Um bom

exemplo desse processo é dado pela transição da astrologia à astronomia: a

contínua observação de corpos celestes, objetivando predizer o destino

humano, conduziu ao desenvolvimento de mensurações matemáticas, que

criaram condições para a emergência da astronomia como ciência.

Para Comte o estágio metafísico é intermediário e provisório, não

passando de uma longa e laboriosa preparação para a emergência do estágio

positivo. Somente neste último a ciência se estabelece como a única forma

adequada de investigação, sendo as velhas questões teológicas e metafísicas

abandonadas e anatematizadas como irrespondíveis e estéreis. No estágio

positivo ou científico o que é buscado deixa de ser um tipo de conhecimento

96

absoluto para se tornar um tipo relativo, passando a ser tal devido à

falseabilidade intrínseca a toda a investigação humana (com efeito, de que

maneira poderíamos reconhecer o conhecimento absoluto, caso o

encontrássemos?). A intenção de explicar o mundo como um todo é também

reconhecida como uma ilusão: não podemos fazer mais do que explicar os

seus constituintes, o que é realizado pelas ciências particulares (com efeito,

como poderiam conceitos que objetivam classificar os constituintes do

mundo serem aplicados ao mundo como um todo?). Mais além, nesse

estágio os fenômenos cessam de ser explicados pela imaginação e vêm a ser

explicados exclusivamente pela razão, a qual não busca mais as causas

essenciais ocultas, mas apenas a descoberta de leis, ou seja, de regularidades

verificáveis que os fenômenos mantêm entre si. O conhecimento dessas

regularidades permite-nos explicar realisticamente as associações

encontradas entre fenômenos e inferir a ocorrência de outros, possibilitando

dessa maneira a realização de predições. E esse poder de fazer predições

conduz-nos a um domínio real – e não somente imaginário – sobre a

natureza.

Para Comte, a lei dos três estágios também se manifesta no

desenvolvimento da mente individual, o que evidencia a sua raiz biológica.

Como ele notou, todos nós somos teólogos quando crianças, posto que em

parte vivemos em um mundo imaginário de seres míticos como fadas e

bruxas... Nós somos metafísicos na adolescência quando, ainda destituídos

de conhecimento dos fatos, tornamo-nos capazes de aplicar a razão,

construindo explicações infundadas. Por fim, quando nos tornamos adultos

(na medida em que realmente chegamos a isso), nos tornamos “físicos”,

admitindo somente o conhecimento positivo, firmado e confirmado por

meios científicos.

97

Finalmente, a lei dos três estágios também se manifesta a si mesma ao

nível da organização social e de suas práticas. Mas essa manifestação é

dependente da concretização efetiva dos estágios no domínio da cultura.

Ora, considerando que as ciências fundamentais necessariamente foram

formadas em tempos diferentes (posto que o desenvolvimento de uma

ciência fundamental pressupõe o desenvolvimento de outra) e também que o

desenvolvimento da técnica só se dá como resultado do desenvolvimento

teórico da ciência, é de se esperar que o efeito social da formação das

ciências fundamentais na “positivação” da organização econômica e social

seja antes um fenômeno tardio. A sugestão de Comte é que no nível da

organização social o estágio teológico durou até o fim da Idade Média,

sendo essa organização sendo caracterizada por uma sociedade autoritária e

militarista, dominada por ministros religiosos e monarcas. Após a Reforma

Protestante, as idéias metafísicas começaram a dirigir a sociedade,

estabelecendo um império da lei e dos direitos abstratos. Somente após a

Revolução Francesa e com a instauração da Revolução Industrial, em um

período no qual todas as ciências fundamentais alcançaram a sua

“positivação” ou já estavam no processo de alcançá-la, tornou-se possível a

afirmação do estágio positivo ou científico no nível da organização social.

Este último período é caracterizado pela emergência de uma sociedade

pacífica, na qual a vida econômica dos homens torna-se o centro da atenção.

Nessa sociedade a ciência é destinada a um papel determinador, o que deve

conduzir a uma sociedade organizada e regulada por um grupo elitista de

cientistas.

3. UMA BREVE AVALIAÇÃO DA LEI DE COMTE

98

A lei de Comte sempre foi objeto de crítica. Algumas, como a acusação

de rigidez e dogmatismo, além de um excessivo descrédito às formas não-

positivas de pensamento, sem falar em distorções reducionistas e no

excessivo otimismo positivista, são a meu ver plenamente justificadas. Mas

as objeções centrais parecem-me injustas e pretendo respondê-las.

A primeira objeção, levantada por Habermas, é a de que a lei dos três

estágios é ela mesma metafísica, posto que é alcançada a priori, sem recurso

aos fatos observacionais(50). Isso é certamente falso. Comte diz

explicitamente e mostra através de seus escritos que a sua lei é originada de

um exame atento dos fatos concernentes à evolução de nossa cultura e à

emergência das ciências fundamentais, junto a refletidas considerações

acerca da natureza humana. Contra uma objeção subseqüente, de que a

própria lei não pode ser adequadamente inferida, posto que há só uma única

instância histórica, ela mesma inacabada, que é a da nossa civilização, é

possível sugerir que a lei dos três estágios poderia ser melhor justificada

como resultado de uma inferência pela melhor explicação, a única capaz de

colocar sob um único chapéu uma míríade de fatos sócioculturais em sua

progressão histórica. Com efeito, é porque a explicação provida por essa lei

dá certa coerência à progressão histórica da cultura humana, e porque tal

coerência é confirmada por nossa compreensão dessa cultura, que a lei tende

a imprimir-se em nossas mentes como uma explicação razoável e natural.

Além disso, porque a lei pode ser gradualmente confirmada ou refutada por

uma cuidadosa investigação dos fatos histórico-culturais passados e também

futuros, ela tende a se tornar no final não muito menos confirmável ou

refutável do que, por exemplo, a teoria da evolução biológica.

A segunda objeção é a de que, quando aplicada à explicação dos três

estágios em um nível social, a lei de Comte não pode dar conta da ordem de

99

emergência das ciências: a matemática, por exemplo, já havia emergido

entre os gregos no estágio teológico, e a astronomia e a física já tinham

emergido quando a sociedade ainda estava em seu estágio metafísico. Como

a primeira objeção, essa também foi explicitamente respondida por Comte.

Para ele, cada ciência fundamental só pode nascer após os estágios

metafísico e teológico terem ocorrido em seus próprios domínios; mas, dado

que há uma ordem de pressuposição entre essas ciências, elas não podem

alcançar as suas positivações simultaneamente. Assim, ao nível da sociedade

os estágios acabam sendo firmados por último, como efeito da soma das

mudanças parciais nos vários domínios. De um modo similar, uma criança

pode antecipar alguns traços da mente do adulto e o adulto também pode

preservar alguns traços de adolescente e mesmo de criança, o que não nos

faz confundi-los. (Certamente, Comte foi exageradamente otimista quanto

ao tempo da evolução: os estágios se sobrepõem uns aos outros, e o estágio

científico da sociedade encontra-se ainda hoje em processo de formação.)

Uma terceira e mais séria objeção é a de que o uso feito por Comte da

palavra ‘lei’ é abusivo e enganoso: a unicidade dos eventos considerados, a

vaguidade e incerteza do processo considerado, não nos dão nenhum direito

de usar essa venerável palavra; como notou Karl Popper, o melhor que

podemos fazer é talvez falar de uma tendência (trend) sócio-cultural(51).

Uma resposta a essa objeção consiste simplesmente em aceitá-la.

Certamente, o que Comte descobriu foram somente tendências, válidas em

termos vagos e probabilísticos; conseqüentemente, a sua descoberta não foi

de uma lei no sentido em que estamos acostumados a usar a palavra.

Contudo, há uma outra resposta possível, que prefiro. Ela consiste

simplesmente na admissão de que a forma própria de uma lei sócio-

histórico-cultural seja a de uma tendência genérica. Nós não podemos

100

esperar que uma lei dessa ordem mantenha a mesma precisão e falta de

exceção de leis da física ou da química. Uma lei social funciona de modo

semelhante a uma lei estatística. Por isso seria irrazoável esperar de seu

enunciado mais do que uma probabilização de certos resultados, posto que a

multiplicidade de variáveis que podem intervir no processo é praticamente

ilimitada. Contudo, é falso pensar que a vaguidade e incerteza de uma lei

comprometa o seu status, exceto quando confusamente assimilamos o

conceito próprio de lei ao de leis físicas fundamentais, como filósofos das

ciências naturais (entre eles Popper) nos convidam a fazer. O que mais

distintivamente caracteriza o enunciado de uma lei não é a universalidade e

precisão (pois nesse caso nenhuma lei estatística satisfaria tal

caracterização), mas nossa assunção de que a generalização feita em seu

enunciado é de um tipo não-acidental. De fato, o suposto caráter não-

acidental da regularidade asserida pela generalização pode ser admitido

como a única característica que deve ser comum a todos os tipos de lei. O

fato é que a ciência precisa de um termo para cobrir todos os tipos de

generalização que supomos serem não-acidentais, e a palavra “lei” parece

ser a mais adequada para realizar esse trabalho. Se esse ponto de vista for

correto, então a lei dos três estágios pode preencher a condição de lei

científica. Parece razoável, por exemplo, predizer que em um outro mundo

possível, onde existisse uma sociedade constituída por seres humanos

biologicamente idênticos a nós e sob circunstâncias similares, ela, no

processo de se tornar uma sociedade científica, iria provavelmente seguir

uma ordem similar de estágios no desenvolvimento de seus ramos de

conhecimento ao invés de, por exemplo, saltar diretamente para o estágio

científico; por conseguinte, parece que devemos aceitar a idéia de que a

101

seqüência de estágios é do tipo não-acidental, ou seja, de que se trata de uma

lei no sentido liberal de uma tendência sócio-cultural necessária.

Concluímos que, sob uma interpretação suficientemente tolerante e

flexível, a idéia de que o progresso da cultura humana tende a seguir os três

estágios descritos é defensável. Nosso próximo passo será considerar a

filosofia tradicional munidos das idéias recém adquiridas e ver o quão longe

isso pode nos levar.

4. FILOSOFIA COMO UMA INDAGAÇÃO TRANSITÓRIAENTRE RELIGIÃO E CIÊNCIA

Podemos sumarizar a visão comtiana do lugar da filosofia entre religião e

ciência por meio do seguinte esquema:

RELIGIÃO FILOSOFIA CIÊNCIA (explicação (explicação (explicação por deuses) por princípios) por leis)

A despeito do óbvio apelo metafilosófico dessa idéia, Comte não a

aplicou suficientemente aos domínios centrais da filosofia, presumivelmente

devido à mera ausência de uma maior familiaridade com a sua história; em

geral os seus exemplos são de princípios metafísicos pertencentes à pré-

história das ciências positivas, tais como o flogisto antes da química e o éter

na infância da física.

Para colocar a perspectiva evolucionária sugerida pela lei dos três

estágios a serviço de uma análise dos princípios metafísicos, a primeira coisa

a fazer é tornarmos explícitas as mais distintivas propriedades das entidades

mentais que a religião reivindica como sobrenaturais ou divinas. Essas

propriedades, que chamo de teomórficas, serão aqui reduzidas a quatro:

102

(i) Transcendência física: Entidades mentais são feitas de um material essencialmente diverso daquele de que são feitos os corpos físicos, além de serem superiores (o Deus cartesiano, por exemplo, é uma substância pensante infinita);

(ii) Hipermentalidade: Os poderes mentais das entidades mentais são alterados e estendidos, talvez infinitamente (elas podem predizer o futuro, algumas são oniscientes etc.);

(iii) Hiperfisicalidade: Os poderes físicos das entidades mentais encontram-se alterados e podem ser estendidos, talvez infinitamente (elas podem mudar o destino humano, contradizer leis físicas etc.);

(iv) Idiossincrasia mental-corporal: As entidades mentais ou não se associam aos corpos físicos ou, quando eventualmente associadas a eles, não o são necessariamente, nem o são dos modos usualmente conhecidos por nós (elas podem não ter nenhum corpo físico, podem habitar seres não-vivos, mudar livremente o corpo no qual escolhem habitar, habitar muitos deles simultaneamente etc.).

Essas propriedades podem ser vistas como supostos critérios de

identificação, os quais nos possibilitariam descrever e eventualmente

reconhecer o sobrenatural e o divino. Nem todas elas precisam estar

presentes: no materialismo epicurista, por exemplo, os próprios deuses

devem ser físicos, suas mentes sendo feitas de átomos materiais

extraordinariamente sutis, falhando, pois, em satisfazer adequadamente o

critério (i). Típico das propriedades teomórficas é que elas não são objetos

de nossa experiência ordinária, seja ela do mental ou do físico; mesmo

assim, parece que podemos concebê-las secundariamente, ao menos até certo

ponto, por alteração e estensão do que já sabemos com base em nossa

experiência ordinária.

Se, seguindo Comte, desejamos considerar as entidades-princípio

metafísicas como algo que paira entre a divindade sobrenatural e a

103

regularidade da lei científica, então, devemos entendê-las como consistindo

de algo que se encontra entre

A. o que é teomórfico, ou seja, o que possui uma ou mais proprieda-

des teomórficas recém designadas e

B. o que é natural, ou seja, o que possui somente as propriedades físi-

cas ou psicológicas, ou mesmo propriedades formais (como as dos

objetos matemáticos), ordinariamente reconhecidas pelo senso co-

mum e possivelmente também pela ciência, posto que a ciência

pode ser facilmente entendida como uma extensão crítica do senso

comum.

Feita essa admissão nós nos encontramos preparados para distinguir alguns

tipos básicos de entidades-princípio metafísicas. O primeiro é

(a) +A+B: entidade-princípio metafísica híbrida (ou inflacionada). A constituição de um conceito metafísico que pretende designar um princípio desse tipo é semanticamente dependente (mesmo que de maneira elusiva) de ambas as propriedades, teomórficas e naturais; por um lado, de propriedades teomórficas (que são constitutivas do sobrenatural) e, por outro, de propriedades normais, físicas, mentais ou formais, acessíveis à nossa experiência ordinária de senso comum e de ciência (a qual poderia dar-nos acesso a leis científicas).

O Deus sive Natura de Spinoza poderia servir como um exemplo de

entidade-princípio metafísica híbrida. Para esse filósofo o que existe é Deus

ou substância, que é também natureza. Como natureza ele é acessível a nós

sob os seus atributos essenciais de extensão (ou experiência do físico) e

pensamento (ou experiência do mental), possuindo como tal um status de

104

entidade-princípio natural (+B). No entanto, esse modo de ver não chega a

ser tão absolutamente natural e livre de antropomorfismo como parece:

como cada modo finito de extensão precisa ser acompanhado por um

correspondente modo mental, ele implica que todas as coisas físicas, como

essa mesa e aquela cadeira, são também mentais, possuindo algum tipo de

sensiência. Isso revela, porém, que a natureza spinoziana abriga uma

idiossincrasia mente-corpo (+A). Mais além, a natureza como “Deus” é

hipostasiada como possuindo a capacidade de amar-se a si mesma com amor

infinito (Ética, livro V, prop. 35), o que significa que o Deus de Spinoza

também possui algum tipo de propriedade teomórfica de hipermentalidade

(+A).

Talvez o melhor exemplo de um primeiro princípio híbrido rico e

multicor seja a natureza em John Scotus Eriúgena. Para esse filósofo a

natureza passa por quatro divisões. A primeira é a natureza que cria e não é

criada. Ela é Deus, como o ser perfeitíssimo e incognoscível que tudo causa.

A segunda é a natureza criada que cria, ou seja, os arquétipos (formas) da

sabedoria divina, que são as causas eficientes de todas as coisas. A terceira é

a natureza como o mundo que é criado e não cria, ou seja, tudo o que é

gerado no espaço e tempo, que embora não crie é manifestação de Deus

(theophania). Finalmente, há a natureza que não é criada e não cria, ou seja,

Deus como o termo final da criação, quando a natureza será a ele novamente

assimilada.

Considerando o conceito de natureza em Scotus, vemos que de um lado

ela deve ser o Deus pessoal cristão (como natureza criadora e incriada e a

natureza que não é criada e não cria), possuindo propriedades teomórficas

como a consciência, a intencionalidade, a liberdade da vontade etc. (++A).

Contudo, de outro lado a natureza é também aquela constitutiva do próprio

105

mundo espaço-temporal que nos circunda (a natureza criada e não-criadora),

envolvendo uma inevitabilidade nomológica que o impele inexoravelmente

em direção ao seu destino último (++B). Se admitirmos uma unidade no

conceito de natureza, o hibridismo rico de Scotus se torna tão flagrante que

parece preso a uma inconsistência insuperável, que sempre impressionou os

críticos.

Outra entidade-princípio mista, que de algum modo nos recorda a

natureza de Scotus, é o conceito de espírito (Geist) em Hegel, que é

hipermental (posto que é origem de toda a realidade) (+A), possuindo

idiossincrasia mente-corpo (posto que toda a realidade pertence a ele) (+A),

mas que em contrapartida deve desdobrar-se a si mesmo em um processo

que adiciona teses, antíteses e sínteses segundo leis dialéticas impessoais

(+B).

Ainda um exemplo de entidades-princípio híbridas são as mônadas de

Leibniz. Para esse filósofo, o mundo real é constituído de um número

infinito de pontos mentais chamados mônadas. De um lado, uma mônada

tem as suas próprias leis impessoais, relacionando-se a todas as outras

mônadas através de aparências de natureza espaciotemporal (+B). De outro

lado, cada mônada é também uma força viva, possuindo algum grau de

percepção e consciência, que se estende em maior ou menor medida a todo o

universo das mônadas! Conseqüentemente, mônadas também têm

características teomórficas, como idiossincrasia físico-mental (porque coisas

materiais são aparências fenomenais de agregados de mônadas) e

hipermentalidade (porque mônadas são sempre oniscientes, mesmo quando

em um grau ínfimo) (+A).

Finalmente, é preciso notar que B não precisa pertencer ao mundo físico

ou mental, podendo ser também de natureza formal (embora pessoalmente,

106

como bom empirista, eu acredite que o elemento formal seja também em

algum sentido redutível ao empírico). Esse é o caso do número como

entidade-princípio inflacionada em Pitágoras. Para esse filósofo, como para

nós, o número é uma entidade natural, cujas propriedades são

ordinariamente acessíveis (+B). Ao mesmo tempo, contudo, o número deve

ser imaterial e possuidor de poderes hiperfísicos, dele derivando o bem e o

mal, o masculino e o feminino etc. (+A)

Certamente, a quantidade relativa de +A e +B pode variar: o Deus sive

Natura spinoziano é quase naturalista (poderíamos designá-lo como +A+

+B), enquanto as mônadas distinguem-se através de suas propriedades

teomórficas (poderíamos designá-las como ++A+B). A natureza enriquecida

de Scotus é para ser situada aproximadamente no meio (++A++B). A

maioria dos princípios-entidades da metafísica especulativa são de um tipo

inflacionado, aludindo a ambos os tipos de propriedade, teomórficas e

naturalistas, de maneira a se tornarem cognitivamente acessíveis.

O próximo tipo de princípio metafísico tem a forma

(b) –A–B: entidades-princípio elusivas (ou deflacionadas). A

constituição de um conceito metafísico objetivando designar um princípio desse tipo é explicitamente concebida como carente de qualquer dependência semântica de propriedades teomórficas ou das propriedades físicas ou mentais ou formais usuais, tal como elas são ordinariamente experienciadas e conhecidas pelo senso comum e pela ciência.

A conseqüência dessa estratégia explicativa é que o princípio-entidade

torna-se em si mesmo incognoscível. De fato, ou a palavra-conceito usada

para designar tal princípio metafísico é completamente destituida de sentido,

ou (como geralmente é o caso) algum sentido advém externamente do

107

contexto ou equivocamente de uma eliminação inconsistente das referências

originárias.

Historicamente, o primeiro exemplo de uma entidade-princípio metafísica

elusiva parece ter sido o Uno de Plotino, que era concebido como totalmente

inalcançável para os nossos poderes cognitivos (o Uno pode ser aproximado

somente pelo que ele não é, posto que ele não é nada que possa ser

conhecido). Todavia, o mais notório exemplo de entidade-princípio elusiva é

o mundo noumênico de Kant, que sustenta o mundo das aparências

fenomenais e que inclui, entre os seus mais nobres habitantes, a coisa em si e

o Eu transcendental. Contemporaneamente, exemplos de princípios elusivos

são o conceito wittgensteiniano de indizível (Unausprechlich), apontando

para o que não pode ser dito, mas apenas mostrado (o místico), e o conceito

heideggeriano de Ser, entendido como a seridade do ser, a qual poderia ser

aproximada, ao menos, através dos meios metafóricos da linguagem

literária. O tipo deflacionário de princípio metafísico tem a vantagem de não

correr o risco de ser demonstrado internamente inconsistente; mas o preço

dessa vantagem é o de simplesmente não ser um conceito. E essa vacuidade

semântica é eventualmente capaz de contaminar o restante do discurso

filosófico com vacuidade retórica, como o desenvolvimento da obra de

Heidegger muito claramente demonstra.

Há modos pelos quais estratégias inflacionárias e deflacionárias podem

ser combinadas no processo de constituição de conceitos metafísicos.

Considere o caso do conceito de vontade em Schopenhauer. Em princípio

ele é o mesmo que o da coisa em si, que Kant estabeleceu como sendo um x

incognoscível que sustenta o mundo das aparências sensíveis. Nesse caso, o

suposto designatum de seu conceito só pode ter a forma –A–B. Mas só isso

não satisfaria as intenções do filósofo. Segundo Schopenhauer, pela

108

experiência do corpo notamos que por detrás das aparências sensíveis o que

realmente existe é a vontade, a qual é uma pulsão cega que se manifesta a si

mesma como força, sendo mais diretamente objetivada em nossa experiência

interna da vontade de viver, por ele entendida como sendo capaz de mostrar

a sua presença na totalidade do mundo, orgânico e inorgânico.

Essa estratégia torna possível que a inicialmente inofensiva coisa em si

termine por se manifestar como uma perversa vontade cósmica, que pervade

toda a natureza e que é a verdadeira fonte do interminável sofrimento da

humanidade. Notamos, pois, que aquilo que a princípio era para ser

concebido como da forma –A–B, recebe propriedades que o transformam em

um princípio que tomado como uma força natural cega passa a possuir algo

do caráter de uma lei natural universal (+B), embora simultaneamente

envolvendo, em suas manifestações como uma vontade de viver universal,

traços teomórficos, ou seja, idiossincrasia mente-corpo e algum tipo de

hipermentalidade (+A). Isso é assim, mesmo que Schopenhauer aplique aqui

o velho truque filosófico de negar o que fez depois de já tê-lo feito. Por isso,

o seu conceito de vontade pode ser entendido como resultante de uma

composição conceitual da forma +A(–A–B)+B (os parênteses servem aqui

para cercar o que estava na origem do processo de constituição conceitual).

Buscando alternativas entre +A+B e –A–B, entre os princípios híbridos e

elusivos, ainda encontramos mais duas possibilidades básicas:

(c) +A–B: entidade-princípio teológica. A constituição de um conceito objetivando designar um princípio desse tipo é semanticamente dependente de propriedades teomórficas não acompanhadas de propriedades naturais.

Essa combinação é obviamente imprópria ao que chamamos de

indagação filosófica, posto que ela nos traz de volta à religião: entidades que

109

são fisicamente transcendentes e/ou hipermentais e/ou mente-corpo-

idiossincráticas sem qualquer apelo a explicações naturalistas são

precisamente entidades espirituais como deuses, totens etc. Mas há ainda

uma última alternativa, que consiste simplesmente na recusa do elemento

teomórfico:

(d) –A+B: entidade-princípio naturalista. A constituição de um conceito filosófico objetivando designar um princípio desse tipo é semanticamente dependente de propriedades naturais admitidas pelo senso comum e eventualmente pela ciência, sejam elas físicas, mentais ou formais.

A diferença enunciada entre um princípio naturalista e uma lei científica

repousa em seu caráter filosófico-especulativo. Ela repousa na ausência de

um possível acordo consensual sobre os valores-de-verdade dos enunciados

freqüentemente demasiado vagos e impalpáveis dos princípios filosóficos

naturais.

A especulação pré-socrática é rica em exemplos desse tipo, como a tese

de Anaximandro de que a Terra é suspensa no vazio e de que os seres

humanos evoluíram dos animais, já discutidas no capítulo III (seção 4). Mas

o exemplo padrão de princípio natural é talvez a teoria atomista de filósofos

materialistas como Leucipo e Demócrito, afirmando que coisas concretas

são constituidas de porções de matéria eternas e invisíveis. Para Demócrito,

os átomos podem ter formas diferentes, responsáveis por diferentes

propriedades da matéria; eles podem juntar-se uns aos outros de modo a

formar pedaços de matéria etc. Embora os átomos possam ser

“teoricamente” divisíveis, posto que eles têm formas e tamanhos e pesos,

eles permanecem sendo fisicamente indivisíveis(52). Certamente, dado que a

hipótese dos atomistas resulta de reflexão baseada em nossa experiência

110

ordinária das coisas físicas e carece de qualquer apelo a elementos

teomórficos, o conceito filosófico de átomo, tal como o conceito científico,

tem a forma –A+B.

Princípios naturalistas são aqueles que mais facilmente demonstram o seu

caráter protocientífico porque eles ocorrem mais freqüentemente em

antecipações mais antigas das bem desenvolvidas ciências naturais

contemporâneas. Com relação ao atomismo, o modelo de seu

desenvolvimento é o mesmo discutido nos exemplos no capítulo III: o

atomista antigo não poderia identificar as propriedades de seus átomos,

mensurá-las, ou observar os seus traços, obtendo consenso acerca dos

resultados, como fazem os físicos de hoje com as partículas elementares;

mas eles podiam especular sobre a sua existência, assumindo as suas teorias

uma forma que é comum a todas as teorias atômicas, posto que a idéia de

que a matéria não é divisível de modo contínuo, mas em componentes

discretos, é comum tanto à teoria atômica dos antigos quanto às teorias

contemporâneas. (Pode ser que quanto mais remotamente distante de sua

realização científica está a idéia que o filósofo busca alcançar, mais

teomórfica a explicação tende a ser, mas nesse caso os atomistas gregos

demonstraram que há exceções.)

Outro exemplo de princípio naturalista é o Ser de Parmênides, posto que

ele é destituido de características teomórficas. Para Parmênides, o “caminho

da verdade” é daquilo que é. Substantivando aquilo que é como o Ser (to

on), ele atribui ao Ser os predicados de unidade, unicidade, eternidade,

imutabilidade, indivisibilidade, homogeneidade e limitação, tratando assim o

Ser como se ele fosse uma coisa, embora algo somente alcançável pelo

pensamento, não pelos sentidos. Mais além, como pensar o que não é é

completamente impossível, o Ser é o único objeto do pensamento e “a

111

mesma coisa é que é para ser pensada e para ser” (to gar auto noein estin te

kai einai).

A estratégia de Parmênides exemplifica a sugestividade semântica não-

determinadora (capítulo V, seção 1), que nos parece inevitável ao discurso

filosófico: a vaguidade e incompletude do argumento, junto com a

suspeitada inconsistência entre as diferentes propriedades atribuídas ao Ser,

sugerem um indefinido número de chaves interpretativas, nenhuma delas

inteiramente satisfatória. Meu próprio palpite é que o Ser parmenídico seria

melhor entendido se fosse identificado ao que hoje poderíamos chamar de a

totalidade dos conteúdos proposicionais concebíveis, verdadeiros e falsos.

Essa interpretação, que logo explicarei, satisfaz um princípio de caridade,

salvando a maioria das afirmações de Parmênides sobre o Ser. Considere,

primeiro, a totalidade de proposições concebíveis (verdadeiras e falsas).

Embora formais, elas pertencem a um mundo natural, no sentido de não

serem teomórficas (+B) (suspeito que elas possam ser reduzidas a alguma

coisa mental e em última análise física, como conjuntos de conteúdos

proposicionais pensados e similares). Essa totalidade de proposições é,

certamente, tudo o que pode ser pensado (i. é, “o que é para ser pensado”).

Esse conjunto de proposições é também eterno (ou atemporal), imutável,

imperceptível pelos sentidos e em sentido indivisível e homogêneo, em

contraste com o mundo perceptível pelos sentidos. Mais além, a serem

excluídas da totalidade das proposições concebíveis estão aquelas

inconcebíveis (como “Sábado está na cama”), particularmente as

contradições (como “Certos solteiros são casados”). Isso nos permite

justificar o famoso dictum de Parmênides de que não se pode pensar o que

não é. Finalmente, de acordo com essa interpretação, o “caminho da

verdade” admite o pensamento de proposições falsas, o que faz com que o

112

Ser parmenídico se torne imune à objeção platônica de que é impossível para

Parmênides dizer o que é falso(53).

Se essa paráfrase é correta, o ser de Parmênides pode ser concebido como

uma antecipação do que Platão tentou alcançar com a sua hipótese de um

mundo de idéias, os estóicos com a sua doutrina do lekton (como a matéria

incorpórea do que é veiculado por signos lingüísticos), Peirce com a sua

categoria de terceiridade, Frege com o seu reino de pensamentos atemporais

e imutáveis (os sentidos das frases assertivas), Popper com o seu mundo 3

(das criações culturais resultantes da interação entre o mundo físico e o

mental)... Se for assim, então temos um impressivo exemplo de antecipação

especulativa de algo que filósofos posteriores lograram compreender de

maneiras mais avançadas, embora sempre com uma margem de sucesso

muito limitada. Mesmo que todas essas doutrinas difiram profundamente,

não estamos autorizados a afastar a hipótese de que há algo relevante para

ser encontrado no final da investigação, algo que em princípio poderia

tornar-se questão de acordo científico-consensual.

Exemplos da forma –A+B são interessantes porque eles podem, em

certos casos, ser evidenciados como especulações antecipadoras da ciência

que não ocultam uma intenção antropomorfizadora deceptiva – eles são

construídos somente para satisfazer nossa curiosidade especulativa sobre

questões que se encontram além de nossas presentes possibilidades de

avaliação consensual. Esses casos demonstram que a posição depreciativa de

Comte, sustentando ser a indagação metafísica mero produto da imaginação

sem a menor conseqüência, exceto a de preservar, através de esperança e

ilusão, a disposição para a investigação, era demasiado pessimista.

Finalmente, é para ser notado que a estratégia naturalista também pode

ser combinada com outras durante o processo argumentativo de

113

estabelecimento do princípio filosófico e da sua correspondente constituição

conceitual. Isso parece ser o caso do conceito platônico de idéia ou forma.

Para fazer esse conceito concebível, Platão precisou apelar para analogias

tomadas da experiência ordinária, começando com os significados

psicológicos da palavra “idéia” e o significado especial da palavra “forma”,

o que significa a adição de +B. Conjuntamente, a idéia para Platão deveria

ser concebida como uma entidade não-teomórfica (–A) tendo, pois, a forma

–A+B. Contudo, como Platão sustenta que as idéias pertencem a um mundo

de coisas puramente inteligíveis, superior e mais real do que o mundo

sensível, o conceito de idéia deveria também adquirir a forma –B. Como

conseqüência, parece que a idéia platônica poderia ser referida como

resultante de uma composição conceitual da forma “(–A+B)–B”.

5. CONCLUSÕES

A primeira conclusão de nossa análise dos princípios metafísicos sob a

perspectiva sugerida pela lei dos três estágios é que ela mostra uma certa

limitação na concepção comtiana. Ao menos quando consideramos os casos

–A–B e –A+B, vemos que a sua tese de que os princípios metafísicos são

abstrações personificadas inconsistentes é demasiado restrita. Mais além, o

caso –A+B mostra que especulações filosóficas também são capazes de

constituir um empreendimento puramente heurístico, motivado pela simples

curiosidade especulativa, sem uma orientação para explicações teomórficas.

Essas especulações não possuem a motivação prática de conhecimento e

domínio efetivo da realidade que é própria da ciência. Tal motivação me

parece derivada do mesmo domínio que em seu contexto próprio conduziu

às explicações imaginárias da realidade que encontramos nas religiões. Não

114

obstante isso, especulações do tipo –A+B aparecem como esboços

explicativos conjecturais, constituindo, não um estágio provisório de idéias

inerentemente equívocas, mas os inícios especulativos da ciência, os quais

são eventualmente capazes, ao menos em seus contornos, de ser mais tarde

admitidos como parte óbvia das conquistas da ciência.

O reconhecimento de tais possibilidades também mostra, particularmente

no caso examinado do Ser de Parmênides, que vaguidade e obscuridade

podem justificar-se em filosofia no caso demasiado freqüente em que um

filósofo está tentando (como Parmênides, Heráclito, Kant, Hegel,

Wittgenstein e muitos outros) dizer algo que se encontra além dos recursos

conceituais a seu dispor. Como H. H. Price uma vez apontou, em uma

passagem bastante sugestiva:

podem muito bem existir algumas coisas que na terminologia avaliável

em certo tempo só possam ser ditas obscuramente; ou em uma metáfora

ou (o que é ainda mais perturbador) em um oxímoro ou em um paradoxo,

isto é, em uma sentença que rompe com as regras terminológicas

existentes e que é em seu sentido literal absurda. O homem que as diz

pode, é claro, estar confundido. Mas é possível que ele esteja dizendo

alguma coisa importante. Nesse caso seus sucessores podem ser capazes

de adivinhar o que ele está tentando sugerir. As regras terminológicas

podem ao final mudar. E a metáfora selvagem ou o paradoxo ultrajante

de hoje podem tornar-se a platitude de depois de amanhã.(54)

Embora eu não creia que filósofos possam pensar alguma coisa precisa

ou adequada que eles não possam também dizer em uma linguagem

suficientemente precisa e adequada (a linguagem é sempre plástica o

115

bastante), parece claro para mim que filósofos freqüentemente têm intuições

importantes, mas imprecisas e inadequadas, as quais eles só conseguem

exprimir em termos que são correspondentemente falhos. A moral dessas

considerações parece ser a de que, não importando o quão inerentemente

contraditórias ou malconcebidas sejam as estratégias levadas a termo por

intermédio de princípios-entidade inflacionários e deflacionários, elas

podem estar sempre apontando para algo importante escondido por trás das

cortinas.

Finalmente, uma última palavra sobre a questão da abrangência. Vimos

que a abrangência encontrada na filosofia é proveniente de um desejo

aparentado ao desejo existente na religião de se encontrar uma explicação

integrada de todo o mundo e do lugar e perspectivas que o homem nele pode

encontrar. Contudo, isso não é necessariamente a herança infeliz de uma

busca impossível. Quando consideramos que as questões centrais da

filosofia contemporânea estão sempre em alguma medida relacionadas umas

com as outras, parece que a abrangência, quando preservada dentro dos

limites razoáveis, pode ser uma aspiração bem justificada da filosofia,

mesmo enquanto esta última é considerada em termos de um esforço

antecipador da ciência. Se isso é verdade, então mesmo a busca religiosa da

abrangência, não era tão fora de propósito quanto se possa pensar.

116

V

A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E ARTE

Parece-me que a filosofia é um verdadeiro canto que não é o da voz, e que ela tem o mesmo sentido de movimento que a mú- sica. Gilles Deleuze

Nós comparamos a filosofia com duas outras atividades culturais

fundamentais, a ciência e a religião, mostrando que a filosofia se situa de

certo modo entre as duas. A filosofia não é somente um esforço antecipador

da ciência, posto que ela retém alguns traços do pensamento religioso, não

somente na amplitude especulativa de seus objetivos teóricos e práticos, mas

também pelo seu freqüente apelo a princípios explicativos que, como o Deus

ou os Deuses, permanecem de algum modo além de nossa compreensão.

Agora é tempo de comparar a filosofia com uma terceira atividade cultural

fundamental: a arte.

117

Baseados no fato de que há uma certa similaridade entre filosofia e arte,

alguns filósofos perfilharam a tese de que a filosofia é essencialmente uma

forma de arte. Como sugeriu J. H. Gill, um advogado dessa idéia, a filosofia

não é como uma lente, através da qual nós penetramos e escrutinamos a

realidade, nem como uma lâmpada, com a qual exploramos dimensões e

horizontes da existência humana até agora desconhecidos, mas como um

prisma com o qual são criados fascinantes e provocativos modelos

conceituais e esculturas de pensamento.(55)

No que se segue considerarei a interface entre filosofia e arte de maneira a

mostar que os aspectos mais propriamente artísticos da filosofia, longe de

constituírem uma condição suficiente para a sua existência, não chegam a

serem sequer necessários. Não obstante, como quero sugerir no final, ainda

assim a filosofia pode ser vista como uma atividade derivada da atividade

artística, ou aparentada com esta, por fazer com um material cognitivo o

mesmo que a arte faz com um material intuitivo-emocional. Para tornar a

primeira tese plausível, precisamos começar distinguindo dois tipos de

similaridade entre filosofia e arte: (a) similaridades externas, ou seja,

aquelas que são devidas à utilização de recursos artísticos em filosofia, os

quais não precisam estar sempre e necessariamente presentes, e (b)

similaridades internas, ou seja, similaridades de natureza entre as duas

práticas culturais, as quais estão sempre e necessariamente presentes.

Começaremos com as primeiras.

1. O SABOR ESTÉTICO DE ALGUNS ESCRITOSFILOSÓFICOS: SIMILARIDADES EXTERNAS

118

Similaridades entre filosofia e arte são externas quando o filósofo se

utiliza de meios literários. Há várias razões para uma abordagem literária das

questões em filosofia. Uma delas é que um discurso com maior poder

sugestivo permite comunicar idéias de uma maneira mais efetiva e

impressiva. A mais séria razão, contudo, é que filósofos freqüentemente não

encontram alternativa, precisando escolher entre seguir adiante de maneira

linear, mas com argumentos falhos, ou se exprimir por caminhos mais

alusivos, que se encontram abertos a interpretações diversas e que são menos

incorretos, mas também menos informativos. É uma razão legítima produzir

o que pode ser chamado de um discurso metafórico, ou, como prefiro

chamar, um discurso semanticamente sugestivo em filosofia, no qual as

palavras e suas combinações evocam coisas que não são as literalmente

significadas por elas. Considere-se o recurso a símiles e a mitos em Platão, o

recurso à poesia, à imaginação poética e à alegoria por Nietzsche, o recurso

a aforismos por Wittgenstein, e perceberemos o quão importante e poderoso

pode ser o uso da linguagem figurativa em filosofia.

Esses recursos estéticos múltiplos são arte: eles são arte na filosofia, que

é seu veículo. Mas nem por isso eles precisam ser confundidos com a

filosofia em si mesma. O uso de recursos literários na filosofia parece

externo ao empreendimento filosófico em si mesmo. Para entendermos por

que o uso de recursos artísticos externos não faz da filosofia uma forma de

arte, precisamos apenas considerar, por comparação, o caso da religião. Essa

última sempre fez uso externo de recursos artísticos de maneira a realizar as

suas funções pedagógicas e exortativas. Não são apenas histórias

mitológicas, como a Teogonia de Hesíodo, mas também a Bíblia ou os

Upanishads, que são também obras literárias de maior ou menor qualidade.

119

No entanto, ninguém concluiria disso que a Teogonia ou a Bíblia devem ser

pensados como trabalhos de ficção, ou que a religião pode ser reduzida a

uma forma de arte. Se é assim com a religião, se ela pode concebivelmente

existir sem ser adornada por meios artísticos, por que haveria de ser

diferente com a filosofia?

2. SIMILARIDADES INTERNAS ENTRE FILOSOFIA E ARTE

Há também similaridades internas, isto é, similaridades de natureza entre

filosofia e arte. Se a filosofia fosse para ser considerada uma forma de arte,

isso seria devido a essas similaridades internas. No entanto, veremos que as

propriedades que são similares, embora possam ser necessárias tanto à

filosofia quanto à arte, não são suficientes para qualificar nenhuma das duas,

o que nos leva a rejeitar uma identidade essencial entre ambas.

Uma primeira similaridade interna entre filosofia e arte é que a primeira é

uma atividade cultural sem finalidades ulteriores: como a arte, a filosofia é

um fim em si mesmo. Em certa medida, ao menos, isso é verdade: a filosofia

justifica-se como algo prazeroso em si mesmo, muito mais que por alguma

vantagem externa que ela possa trazer. Contudo, a importância dessa

similaridade não pode ser exagerada, pois no caso da filosofia podemos

encontrar uma associação mais direta com finalidades externas: as

concepções filosóficas que adotamos têm uma influência indireta nos modos

como julgamos e agimos. Contudo, não podemos adotar as concepções

expressas pelas obras de arte, posto que tais opiniões não existem (a arte

pode assumir um papel pedagógico, mas ao fazê-lo deixa de ser arte). O

melhor que se pode fazer é adotar algumas concepções alcançadas sob a

influência de alguma experiência estética.

120

Um segundo elemento em comum diz respeito ao que podemos chamar

de função integradora da arte. A arte visa a integração de nossa vida

sensível e emocional, possibilitando-nos harmonizar os sentimentos, além de

produzir um alargamento e enriquecimento de nossa experiência emocional.

Algo análogo pode ser dito da filosofia. Ela também possui uma função

integradora, não tanto de nossa vida sensível e emocional, mas do que já foi

chamado de vida do entendimento e da razão. Parece que a filosofia faz com

o material abstrato dos conceitos o que a arte faz com o material sensível da

intuição. Na produção e apreciação da arte, a imaginação sensível está em

serviço, enquanto no caso da filosofia é a “imaginação intelectual” que

trabalha. Desse modo a filosofia poderia ser chamada de uma “arte da

razão’, em contraste com a costumeira “arte das emoções”. Contudo, que a

palavra ‘arte’ é usada aqui em um sentido meramente analógico é revelado

pelo fato de que algo similar pode ser dito acerca da religião. A religião

também tem uma função integradora, relativa à nossa visão do mundo e ao

nosso lugar nele. É a religião então algo como a “arte da espiritualidade”? E

o que dizer da ciência? Acaso ela não possui também uma função

integradora com respeito ao nosso conhecimento do mundo e mesmo de nós

mesmos? Com base nisso deveríamos então concluir que a religião e a

ciência também são formas de arte? A resposta negativa que damos a essa

questão estende-se inevitavelmente à filosofia.

Outra similaridade entre filosofia e arte diz respeito à criação. Como a

arte, a filosofia é em certa extensão um trabalho da imaginação. A criação

em arte não é dirigida somente para a produção da costumeira beleza e

harmonia, mas também de um inesperado contraste – o que Walter

Benjamin chamava de schock – capaz de sugerir a cada um de nós uma

reorganização dos valores emocionais que associamos às coisas. A criação

121

filosófica, por sua parte, também produz tais contrastes com o material

cognitivo de conceitos abstratos. Esse é um aspecto da filosofia que é

notadamente similar ao de certas obras de arte, qual seja, a sua capacidade

de produzir um inesperado contraste na forma de tauma, a palavra grega

para surpresa, espanto, que os antigos também aplicavam à filosofia. Aqui

mais uma vez vemos a filosofia funcionando como a “arte da razão”,

esforçando-se para mostrar as mais inesperadas possibilidades de

reorganização de nosso universo intelectual. Isso pode ser notado em

sistemas metafísicos transcendentais, como a construção teológica do mundo

em Plotino e o idealismo subjetivo de Fichte. Tais sistemas não mostram

como o mundo efetivamente é (a despeito da intenção implícita desses

filósofos), mas como o mundo poderia ser ou possivelmente (mas muito

improvavelmente) é. Esse é um ponto interessante, mas outra vez não mostra

que a filosofia é arte. Ele mostra que a filosofia é uma atividade criativa,

mais que a ciência e menos que a arte.

A tese de que a filosofia é uma forma de arte é mais decisivamente

desqualificada quando consideramos que há também diferenças essenciais

entre as duas práticas. Diversamente da arte, a filosofia tem propósitos

heurísticos imediatos: ela busca descobrir a verdade. Mesmo filósofos da

variedade cética usualmente objetivam estabelecer a verdade de suas

negativas. Embora não se possa negar que a boa arte também tenha a

verdade como fim, ela a tem de modo indireto: ela nos torna mais abertos

para entendermos a nós mesmos e ao mundo ao nosso redor. A filosofia,

contudo, busca a verdade de modo mais direto: ela pretende, senão dizer o

que é ou não é verdadeiro, ao menos indicá-lo. Embora essa busca da

verdade não resulte em um efeito progressivo e acumulador de

conhecimento no mesmo sentido da ciência, ela é, como já notamos (III, 8),

122

acumuladora de conteúdo, preenchendo mais e mais um spectrum de

possibilidades de verdade. Com efeito, como sugerimos, se a filosofia ocupa

os lugares epistêmicos de domínios científicos desconhecidos, então

podemos esperar que as ramificações das alternativas especulativas em um

dado domínio da filosofia tenham um limite em número, enquanto isso pode

não ser o caso com a arte.

Não obstante, a filosofia, como a religião, permanece mais próxima da

arte do que da ciência. Como isso pode ser explicado? Penso que a teoria

psicanalítica pode ser-nos de algum auxílio aqui. Segundo essa teoria,

filosofia e arte têm em comum o fato de que ambas são em alguma medida

um resultado do que Freud chamava de processo primário (primäre

Vorgang) de pensamento, uma forma de pensamento baseada no princípio

do prazer, mais que no princípio da realidade(56). Para Freud essa forma de

pensamento ocorre nos sonhos, no trabalho da imaginação neurótica e

psicótica, na criação e apreciação de obras de arte, e também no raciocínio

religioso e filosófico. No processo primário, as emoções ou cargas

(Besetzungen) não se encontram mais firmemente ligadas a suas

correspondentes representações. Assim, as cargas das representações

inconscientes e pré-conscientes se tornam capazes de ser cedidas a outras

representações de um ou de outro modo associadas às originais, tornando-se

as últimas conscientes, o que produz prazer pela diminuição dos níveis de

tensão endopsíquica. É importante notar que os mecanismos pelos quais as

cargas de representações não-conscientes são cedidas à representações

capazes de se tornarem conscientes são essencialmente dois: o deslocamento

(Verchiebung), pelo qual a carga de uma representação R é cedida a uma

representação R1, a qual por força disso se torna consciente, e a

condensação (Kondensation), pela qual cargas de múltiplas representações

123

R, R1, R2… são cedidas a uma representação R, que por isso se torna

consciente. Uma conseqüência desse processo é que representações são

combinadas na consciência de modos muito mais flexíveis do que os

encontrados no processo secundário (sekundäre Vorgang), o qual é mais

característico de nosso raciocínio prático e científico, baseado no princípio

da realidade. O que chamei de sugestividade semântica é algo obviamente

dependente do processo primário, posto que envolve condensação e/ou

deslocamento.

Agora, o fato de que do ponto de vista psicanalítico o pensamento

filosófico pode ser compreendido como sendo em certa medida um efeito do

processo primário parece corroborar a idéia de que a filosofia não pode ser

considerada uma forma de arte. Pois se o processo primário fosse suficiente

para caracterizar a arte, então precisaríamos assimilar outros produtos dele à

arte, como, por exemplo, os sonhos e os sintomas neuróticos. Sem comentar

o caso dos sintomas neuróticos. É claro que não estamos dispostos a admitir

que sonhos sejam manifestações artísticas apenas pelo fato de que os seus

conteúdos manifestos estão relacionados a seus conteúdos latentes por meio

de deslocamento e condensação. Tais considerações não provam, mas

reforçam a nossa opinião de que nem as similaridades internas nem as

externas são suficientes para caracterizar a filosofia como algo equivalente a

uma forma de arte, mesmo que a filosofia, tal como a religião, possa ser

grandemente enriquecida por meios estéticos.

Contudo, essa conclusão não invalida a segunda tese inicialmente

considerada, segundo a qual a filosofia seria um produto aparentado à

atividade cultural artística e a ela relacionado por derivações históricas. Pois

a filosofia é tão pouco uma forma de arte como é uma forma de ciência ou

de religião. Mas nós já vimos que existem fortes traços de parentesco entre a

124

filosofia e a ciência ou a religião, sem que, obviamente, a filosofia seja

ciência ou religião. Do mesmo modo, como em suas similaridades internas a

filosofia possui necessariamente sugestividade semântica, função

integradora etc., ela se constitui de uma atividade até certo ponto

assemelhada à atividade artística, embora transladada para o nível do

entendimento e da razão. As entidades-princípio, por exemplo, nos fazem

considerar assim: elas devem ser semanticamente sugestivas, mesmo quando

concebidas em termos naturais. Assim, como produto derivativo da

atividade artística a filosofia pode continuar sendo considerada a “arte da

razão”.

125

VI

PARA UMA TEORIA GLOBAL: BUSCANDO INTEGRAR AS CONFIGURAÇÕES CRITERIAIS

Neste capítulo reuniremos os resultados alcançados em uma tentativa de

encontrar uma explicação descritivista integrada da natureza da filosofia.

Essa explicação conduz a uma exposição mais perspícua das principais

configurações criteriais esperadas na identificação do discurso e do

pensamento filosóficos.

1. FILOSOFIA COMO UMA ATIVIDADE CULTURAL DERIVADA

Entendo por prática cultural um conjunto recorrente de atividades sociais

em níveis predominantemente afetivo-cognitivos, as quais não são

imediatamente relacionadas à satisfação das necessidades práticas da vida,

sendo sustentadas diante de um pano de fundo de interesses humanos

126

coletivos. Podemos ver que a filosofia é capaz de partilhar similaridades

com as três práticas culturais fundamentais. Elas são:

a) CIÊNCIA, b) RELIGIÃO, c) ARTE.

Chamo essas três práticas culturais de “fundamentais” por causa de sua

importância e originariedade relativamente à vida humana em sociedade. Se

há outras práticas culturais (atividades comunitárias, jogos sociais etc.), elas

são geralmente derivadas daquelas, combinando-as umas com as outras ou

com atividades que não são propriamente culturais, como o trabalho e o

entretenimento.

Admitindo o caráter fundamental dessas três práticas culturais, a seguinte

questão emerge: é a filosofia uma quarta atividade cultural fundamental, no

mesmo nível da ciência, da religião e da arte, apenas diferente delas?

Filósofos do passado tentaram conferir à filosofia um status próprio,

independente dessas atividades, talvez superior ao delas, embora essas

tentativas nunca chegassem a ser convincentes. Nossos comentários prévios

sobre o caráter protocientífico da filosofia, sobre a herança religiosa de seus

interesses e sobre os aspectos artísticos de seu discurso, conduziram-nos à

conclusão de que deveríamos ser mais modestos. Deveríamos reconhecer a

existência de apenas três espécies mais fundamentais de atividade cultural,

sendo a filosofia em última análise uma espécie derivada, tanto em suas

motivações como no material por ela usado e em seus procedimentos

metodológicos. O lugar da filosofia com relação às práticas culturais mais

fundamentais pode ser grosseiramente comparado ao da ópera entre as

formas mais fundamentais de arte. A ópera é uma combinação de música,

127

drama e poesia. Similarmente, a filosofia pode ser vista como um composto

resultante da combinação de elementos que querem ser aproximados da

ciência, da religião e da arte. E do mesmo modo que a poesia não é um

elemento estritamente necessário à ópera (diversamente da música e da ação

dramática), o elemento artístico externo parece não ser estritamente

indispensável à filosofia.

A analogia com a ópera, como qualquer outra, tem seus limites. Embora

combinadas de maneira a produzirem juntas um resultado mais impressivo,

música, enredo e poesia podem ser facilmente separadas no caso da ópera:

podemos ouvir a melodia isoladamente, quando uma ária é parafraseada ao

piano, nós podemos ler as suas estrofes poéticas sem pensar na música, ou

ler o resumo do enredo. O mesmo não pode ser dito tão facilmente da

filosofia. Pois a última não é apenas uma colagem de elementos originados

da ciência, senso comum, conhecimento e religião, talvez harmonizados com

auxílio de meios estéticos. E ela também não é uma combinação perfeita

desses elementos na constituição de um produto completamente original,

como um novo composto químico, que é formado a partir de outros. A

metáfora de uma amálgama parece aproximar-nos melhor do caso em

questão. Em uma amálgama, diferentes elementos químicos não são apenas

misturados ao acaso, nem combinados para formar um composto químico

completamente novo, mas adicionados uns aos outros de um modo tal que as

propriedades macrofísicas do todo são alteradas. Algo similar pode ser

sugerido com respeito às indagações filosóficas: elas costumam juntar

elementos diversos de maneira a prover-nos de algo que é em seu todo

aparente algo novo, mas que ainda assim permanece uma prática cultural

derivada, posto que de tal unificação de elementos não se deriva algo

intrinsecamente original.

128

2. UMA EXPLICAÇÃO INTEGRADA DAATIVIDADE FILOSÓFICA

Tentando substituir as analogias antecedentes por algo mais literal, sugiro

que a filosofia seja uma espécie derivada de atividade cultural em suas

motivações, material semântico e procedimentos.

No que concerne às motivações, parece que a filosofia faz com que elas

derivem: (a) da curiosidade inquisitiva associada às formas científicas de

investigação, ou seja, associada ao desejo de adquirir um conhecimento

consensual que seja confirmado por seu efetivo poder de explicação,

previsão e manipulação da realidade; (b) de motivações originalmente

religiosas, as quais incluem o impulso que objetiva integrar nossas

experiências e prover uma visão imaginativa abrangente do mundo e da

condição humana, freqüentemente através do apelo a uma realidade

transcendente, que se encontra além daquilo que a experiência ordinária

pode nos oferecer, de modo a ser capaz de organizar e guiar nosso acesso ao

mundo; e (c) da arte, em sua busca de “efeitos catárticos”.

Com respeito ao material semântico ou conceitual – os data primários a

serem considerados – também ele não pertence propriamente à filosofia,

pois: (a) Parte desse material é o mesmo que os data de nosso mundo

natural, físico, mental ou formal, acessível em nossa experiência ordinária

ou inerentes à informação científica. Como vimos no capítulo IV, no caso

129

dos conceitos naturalistas de entidades-princípio (–A+B), esses podem ser

simplesmente todos os data a serem considerados. (b) Também vimos que

no caso de conceitos metafísicos híbridos (+A+B), a filosofia pode recorrer a

propriedades teomórficas (de transcendência, hipermentalidade etc.), as

quais estavam originariamente presentes na constituição dos seres espirituais

que são objeto da veneração religiosa, tratando essas propriedades como se

fossem data elementares ou indicativos deles. O material semântico

teomórfico nada mais é, sob o nosso ponto de vista, do que uma modificação

do material tomado de nossa experiência ordinária de senso comum ou até

mesmo científica, do físico, mental e formal, que entra na constituição

semântica de conceitos metafísicos híbridos, ainda que esse movimento

costume ser negado. (c) O material semântico carregado de sugestividade

emocional, que usualmente toma parte na invenção estética.

Os procedimentos heurísticos também não são originariamente

filosóficos, pois... (a) procedimentos metodológicos da filosofia não são

essencialmente diferentes dos procedimentos ordinários irrefletidos, ou dos

procedimentos das ciências formais ou empíricas. O método geométrico dos

filósofos racionalistas (tais como Descartes e Spinoza) refletiu o modo

apriorista como eles fundamentavam os seus argumentos, em uma mímica

dos procedimentos axiomáticos das matemáticas; o método histórico dos

filósofos empiristas (tais como Locke e Hume), baseado na introspecção e

informação empírica sobre o mundo e o comportamento humano, tem as

mesmas origens que os procedimentos de observação próprios das ciências

naturais e humanas, embora os últimos sejam mais acurados e melhor

controlados (sequer os instrumentos analíticos contemporâneos são

propriedade exclusiva da filosofia). (b) Como vimos (capítulo IV, seção 4),

o raciocínio filosófico comumente repousa na assunção de princípios

130

metafísicos, os quais podem ser representados pelo conceito metafísico

incoerente (ou seja, “+A+B”), carente de sentido (ou seja, “–A–B”), ou

meramente vago (ou seja, “–A+B”) (os primeiros dois tipos, ao menos,

retendo algo, mesmo que por negação, dos freqüentemente incoerentes e

incognoscíveis seres sobrenaturais da religião). Enquanto conceitos da forma

“+A+B” e “–A–B” ocorrem no mais das vezes em metafísica transcendente

e racionalismo, conceitos da forma “–A+B” são mais apropriados ao

naturalismo e ao empirismo. (c) Os trabalhos da imaginação no uso de

instrumentos retóricos, a construção de símiles etc., são todos recursos

sugestivos capazes de produzir efeitos estéticos.

As colunas do seguinte diagrama sumarizam as principais propriedades

que podem pertencer ao discurso e pensamento filosóficos:

FILO- MOTIVAÇÃO MATERIAL SEMÂNTICO PROCEDIMENTOS SOFIA (DATA)

(A) da Curiosidade cien- Obtido dos data da ex- Uso de hipóteses CIÊN- tífica visando um periência comum ou e do raciocínioCIA conhecimento científica, formal ou argumentativo real do mundo empírica

(B) da Desejo de uma Traços teomórficos, Recurso a intui- RELI- concepção trans- hipermentalidade, ções de princí- GIÃO cendente ordena- hiperfisicalidade e pios transcen- dora do mundo idiossincrasia mente- dentes, à expe- e da vida corpo, admitidos co- riência mística, mo data à exortação

(C) Da Desejo de expe- data simbólico-senso- Aplicação de re-ARTE riência catártica riais, carregados de cursos literários

131

harmonizadora sugestividade semân- para a produção do mundo sensó- tica de sugestividade rio-emocional semântica

O diagrama sugere fortemente que, longe de ser uma atividade cultural

autocontida, a filosofia apenas combina o que apropria de outros domínios

da cultura humana. Interpretamos os três níveis horizontais do diagrama

como representando as três possíveis dimensões da indagação filosófica: (A)

Uma dimensão heuristicamente orientada, constituida de conjecturas

antecipadoras da ciência; (B) Uma dimensão misticamente orientada,

contendo especulações e princípios metafísicos não-fundados,

cognitivamente problemáticos e geralmente admitidos como matéria de

crença; (C) Uma dimensão esteticamente orientada, manipulando o medium

do discurso filosófico de maneira a sugerir possibilidades e multiplicar a sua

eficácia.(57). A consideração dessas dimensões torna explícitos os novelos

conceituais envolvidos na identificação do discurso e pensamento filosófico

a partir de nossa perspectiva metafilosófica descritivista. Revendo os três

níveis uma última vez, em maiores detalhes:

A) A dimensão heuristicamente orientada. Essa primeira dimensão é

motivada pela curiosidade científica, que é racional e realista,

potencialmente operativa, apta a ambicionar resultados efetivos. Ela é

constitutivamente direcionada à ciência, posto que essencialmente cognitiva

e heurística. Essa dimensão é baseada principalmente em generalizações

hipotéticas(58), seguidas de argumentos objetivando mostrar o que pode

delas resultar, e tentando reforçar a sua plausibilidade pela sua consistência

com os resultados obtidos – uma tarefa sempre realizada sob o pressuposto

(real ou imaginário) de uma comunidade crítica de idéias com função

132

mediadora. É como efeito das deficiências inerentes à dimensão

heuristicamente orientada que a filosofia se distingue da ciência

negativamente, por não satisfazer as condições de compartilhamento de

assunções básicas, do acordo consensual na avaliação da verdade, e do

progresso como uma acumulação de crenças admitidas como verdadeiras

pela comunidade crítica de idéias (capítulo III, seção 8).

Essa primeira dimensão é caracteristicamente argumentativa e buscadora

da verdade, repousando em enunciados constatativos. Mas as duas

dimensões seguintes não são mais essencialmente cognitivas, dependendo

mais de proferimentos performativos: B é uma dimensão primariamente

exortativa, repousando mais na ênfase normativa do que na verossimilitude,

enquanto C é primariamente expressiva.

B) A dimensão misticamente orientada. A curiosidade especulativa e o

impulso em direção a maior abrangência (o que Wittgenstein chamou de

“craving for generality”), geralmente unidos a um desejo de transcendência,

constituem o elemento motivacional dessa dimensão da indagação filosófica.

Essa dimensão contém essencialmente elementos que são em última análise

não-racionais e não-cognitivos, os quais em geral afetam a especulação

filosófica, particularmente aquela que apela a entidades-princípio

metafísicas do tipo híbrido ou elusivo, mas em menor grau também as

investigações naturalistas. (Usando a metáfora wittgensteiniana, a dimensão

mística não é do que pode ser dito, mas do que pode ser apenas mostrado;

sendo cognitivamente elusivos, os princípios metafísicos acabam podendo

ser apenas mostrados, embora com auxílio do que pode ser dito.)

133

C) A dimensão esteticamente orientada. Essa dimensão contém os

elementos artísticos próprios, atuando expressivamente e sugerindo

possibilidades cognitivas.

Meu argumento a favor de uma configuração criterial constituindo a

dimensão heuristicamente orientada foi apresentado no capítulo III, e os

argumentos a favor de configurações criteriais constituindo as duas outras

dimensões foram apresentados nos capítulos IV e V. A questão agora é:

como podemos organizar essas configurações criteriais de um modo que nos

ajude a identificar o que conta como filosofia no sentido acadêmico ou

técnico da palavra?

Não estou nem um pouco seguro quanto a resposta. Mas como acho que

ela deve ser tentada, hei-la:

A presença de configurações criteriais constituindo a dimensão

heuristicamente orientada pode ser considerada o critério primário, qual

seja, uma condição necessária para que algo possa ser chamado de

‘filosofia’ no sentido acadêmico ou técnico mais amplo da palavra.

Mas é a presença dessa configuração criterial em si mesma suficiente?

Em um sentido estrito, ao menos, me parece que não. Eis a razão: a

curiosidade científica não parece ser a mesma que a curiosidade

especulativa, ainda que possa não haver um limite distinto entre as duas;

assim, parece que somente a primeira não conduziria ao tipo de

empreendimento conjectural geralmente abrangente e despreocupado de

resultados consensuais que usualmente esperamos da filosofia. Se isso é

correto, então parece que é parte do mesmo impulso que em tempos

ancestrais conduziu à formação de explicações religiosas e míticas, aquele

que ainda agora nos conduz à especulação filosófica! Mas se isso é

134

verdadeiro, então os elementos criteriais constitutivos da dimensão

misticamente orientada são também necessários a uma forma apropriada de

indagação filosófica, e mesmo uma filosofia naturalista (do tipo –A+B) é

tributária de impulsos especulativos pertinentes ao âmbito místico-religioso

ou dele derivados.

Sobre a dimensão esteticamente orientada, nossas considerações sobre o

papel da arte em filosofia conduzem-nos à sugestão de que o elemento

artístico constitutivo do que chamei de similaridades internas, devidamente

deslocado para o domínio da razão e do entendimento, também constitui um

elemento ultimadamente imprescindível. As idéias filosóficas, as entidades-

princípios, só podem ser formas de teorias e nos dizer alguma coisa se

possuirem sugestividade semântica, se forem polissêmicas, se forem

susceptíveis de uma variedade indeterminada de interpretações. Sem dúvida,

mesmo filósofos cujo texto pouco ou nada tem de artístico e que são

voltados para a ciência, possuem conceitos-chave dotados de sugestividade

semântica. Tome como exemplo a noção de Deus em Aristóteles, a de

substância em Locke, a de sentido em Frege... Admitir isso, contudo, não

nos impede de considerar que a ênfase excessiva no elemento artístico-

retórico, acompanhada de uma mímica descompromissada das outras

dimensões, tenha em alguns casos sido capaz de produzir filosofia como

uma espécie de patologia cultural.

As variações na importância de cada dimensão podem ser ilustradas se

desenharmos um triângulo com as atividades culturais fundamentais situadas

para além de cada vértice e a filosofia no seu interior:

RELIGIÃO CIÊNCIA FILOSOFIA

135

(ARTE)

À filosofia pertence tudo que está dentro do triângulo. As setas mostram

que as relações entre as dimensões são historicamente dinâmicas. Através do

tempo as explicações religiosas gradualmente deram lugar a explicações

filosóficas. E os remanescentes religiosos da filosofia foram sendo

gradualmente substituídos por formas de indagação cada vez mais próximas

do modelo da ciência. Como mostra a figura, a atividade e o discurso

filosófico estão muitas vezes profundamente associados à expressão estética,

o que explica por que a filosofia, particularmente em suas origens,

permanece freqüentemente ligada à arte. Contudo, quando a indagação

filosófica aproxima-se do discurso consensual da ciência, a expressão

artística tende a desvanescer-se, sendo substituída por formas mais diretas e

precisas de apresentação. Essas são tendências muito genéricas e inevitáveis,

ainda que retrocessos parciais possam ser sempre notados. (Será a filosofia

completamente substituída pela ciência? A resposta a isso depende da

resposta a outras questões, como a da finitude do conhecimento possível.)

136

VII

COROLÁRIOS E PERSPECTIVAS O futuro elude a imaginação. D. M. Jesseph

Neste capítulo sugerimos algumas aplicações da explicação proposta para

a natureza da filosofia. Elas consistem em uma diferenciação mais inteligível

entre diferentes formas de filosofia e em uma nova explicação da sucessão

dos diversos modos de se fazer filosofia, incluindo o modo lingüístico-

analítico.

1. FORMAS DE FILOSOFIA

137

Movidos somente por uma intenção cartográfica prática, podemos

classificar filosofias de acordo com o lugar ocupado por elas no interior do

triângulo apresentado no final do último capítulo. De fato, investigações

filosóficas podem ser comparativamente situadas naquele espaço, em

concordância com o peso relativo de suas dimensões de orientação

científica, mística e estética. Considere o caso do Tractatus Logico-

Philosophicus de Wittgenstein: por sua tentativa (protocientífica) de

construir uma teoria pictorial da representação, por sua doutrina mística do

indizível e por seus recursos estéticos, tanto estruturais quanto retóricos, essa

obra pode ser situada próxima ao centro do triângulo. Contudo, o exemplo

mais impressivo de uma obra filosófica situada no centro do triângulo seriam

os diálogos platônicos. A filosofia de Platão possui uma dimensão

protocientífica, cognitiva ou teórica própria, a ser encontrada na natureza

essencialmente argumentativa de seus escritos, em cujo centro – a doutrina

das idéias –, verdades ontológicas são buscadas e justificads em conexão

com uma teoria sobre nossas capacidades cognitivas e com preocupações

morais e sociais. Mas a filosofia de Platão também possui uma dimensão

mística, reconhecível em sua tentativa de criar uma visão especulativa do

mundo e, mais especificamente, em seu apelo aos mitos órficos, em sua

doutrina da alma do mundo e em sua quase religiosa veneração à forma do

bem. Por fim há o elemento estético, que transforma os seus diálogos em

trabalhos literários de grande beleza e permanente apelo. Com efeito,

alcançando um balanço ideal entre as três dimensões consideradas, a obra

platônica permanece o exemplo paradigmático de um esforço filosófico

clássico à beira da perfeição (Platão é o Mozart da ópera filosófica). Outras

filosofias clássicas, como a de Descartes, Kant e Hegel, também se

138

aproximam, umas mais, outras menos, desse ideal de integração de

influências.

Contudo, o papel dessas diferentes dimensões raramente é distribuído de

forma tão equitativa. Há filosofias limítrofes, a serem situadas próximas a

borda ou a algum vértice do triângulo. Assim a filosofia de Aristóteles, por

suas motivações e realizações, está mais próxima do vértice científico do

triângulo do que a de Platão, e muitos influentes filósofos especializados de

nosso tempo – penso em Frege, Carnap e Quine, para não mencionar Russell

e a tradição empirista – fazem uma espécie de trabalho que poderia ser

situado mais próximo do vértice científico do triângulo (o que já vimos ser

esperado, posto que a filosofia parece aproximar-se gradualmente da

ciência). Por outro lado, filosofias como a de Plotino e John Scotus,

principalmente por suas motivações, devem ser localizadas no vértice

místico/religioso do triângulo. Um filósofo pré-socrático como Heráclito, ou

grandes escritores como Marco Aurélio, Sêneca, Montaigne e Nietzsche

podem ser classificados como “artistas filósofos”, cuja obra poderia ser

localizada mais ou menos próxima do vértice artístico do triângulo. E as

filosofias de Kierkegaard, Agostinho e mesmo Hegel, poderiam ser

consideradas mais próximas do lado estético/místico do triângulo. Há

também casos que são realmente limítrofes: Novalis e Cioran foram tanto

artistas quanto filósofos. E a obra de Jacques Derrida parece-me melhor

avaliada se admitida como pertencendo ao domínio da arte. Esses casos

limítrofes devem ser distinguidos daqueles casos de artistas trabalhando já

fora das fronteiras filosóficas, embora em suas proximidades, como

Hölderlin e Goethe. Casos limítrofes, situados no vértice do triângulo onde

começa o pensamento religioso são, por exemplo, as doutrinas místicas de

Jakob Böhme ou de Meister Eckhart (os sermões religiosos de Eckhart estão

139

embebidos de profundos insights antropológicos). E há, por certo, casos

limítrofes situados entre filosofia e ciência. Considere, por exemplo, a

psicanálise: apesar de ainda dependente de interpretações subjetivas não-

consensuais, deve ser reconhecido que as técnicas psicanalíticas possibilitam

insights novos e inalcançáveis pela psicologia introspeccionista que a

antecedeu. Um outro exemplo de trabalho nesse domínio limítrofe seria dado

pelos imaginativos escritos antropológicos de Claude Lévi-Strauss: eles

satisfazem uma ambição filosófica, estética e ainda (modestamente)

científica.

Pode-se classificar a totalidade dos movimentos filosóficos e mesmo

tradições de acordo com os seus lugares relativos no triângulo. A filosofia

norte-americana contemporânea (de Peirce a Quine) é tipicamente

influenciada pela ciência; ela é freqüentemente um empreendimento

naturalista, buscando esforçadamente, mesmo que deceptivamente,

reproduzir os standards de claridade, rigor e objetividade exibidos pela

ciência. Essa é a razão de seu sucesso em um mundo cada vez mais

dominado pela ciência, mas também de suas limitações: o cientismo, a

fixação em standards científicos como padrões de valoração, conduz à

fragmentação positivista do pensamento, à perda da visão sinóptica, ou seja,

à perda da visão do todo característica da grande filosofia.

A filosofia alemã (de Eckhart a Hegel) encontra-se, em seu modo de

operação, inclinada em direção ao vértice místico-religioso do triângulo.

Historicamente ela possui um pesado acento místico subjacente ao seu

discurso elusivo e à suposta profundidade de suas obscuridades metafísicas.

Por isso ela ainda retém uma abrangência sistematizadora, por exemplo, em

Jürgen Habermas.

140

Já a filosofia francesa (de Sartre a Deleuze) tem sido mais e mais

influenciada por um ideal de expressão artística, sendo centrada na dimensão

estética e naquilo que chamei de similaridades externas entre filosofia e arte.

Mas não se trata de um puro centramento na dimensão estética, como

acontece, por exemplo, em Cioran, mas de um centramento na dimensão

estética aliado a uma imitação insincera e meramente retórica das outras

dimensões, daí resultando um jogo retórico-literário sem compromisso

heurístico, no qual argumentos são no melhor dos casos vagamente

sugeridos. Da insistência nesse modo de proceder resulta uma persiflagem

literária do trabalho real da filosofia. Como uma criança divertindo-se com

um brinquedo como se fosse a coisa real, os filósofos franceses fazem de

conta que estão fazendo filosofia. Por isso se faria mais justiça a alguns de

seus textos (penso em Jacques Derrida) se eles fossem avaliados como obras

de arte que se utilizam de um material filosófico. Mas então seriam más

obras de arte, posto que estão a serviço da corrupção da consciência mais do

que de sua regeneração.

Tão teoreticamente trivial como o presente exercício cartográfico possa

parecer, ele parece impor alguma ordem ao entulho das formas filosóficas.

Além do mais, torna mais clara a aplicabilidade universal da explicação

integrada por nós proposta, mesmo que esta última esteja à espera de um

mais detalhado desenvolvimento.

2. TRÊS FASES HISTÓRICAS NA EVOLUÇÃO DA FILOSOFIA

Como seria de se esperar, as relações entre os elementos pós-religiosos e

protocientíficos mudam com a emergência das ciências. A conseqüência

141

disso é que todo o desenvolvimento histórico da filosofia pode ser concebido

sob a perspectiva das mudanças no relacionamento dinâmico entre filosofia

e ciência. Essa constatação nos convida a dividir a história da filosofia em

três maiores períodos, de acordo com a relação entre filosofia e ciência.

No começo havia somente a religião, a arte, nenhuma idéia da ciência e,

conseqüentemente, pouco ou nenhum espaço para a filosofia. O primeiro

período do desenvolvimento da filosofia ocidental começou com os filósofos

gregos. Podemos chamá-lo de pré-formacional, posto que precede à

formação das ciências fundamentais como corpos sistemáticos de

conhecimento. Como já notamos (capítulo IV, seção 1), a emergência da

filosofia grega tornou-se possível, não tanto por causa da percepção do

caráter insatisfatório das explicações mitológicas, mas essencialmente como

uma conseqüência da emergência de uma idéia de ciência.(59) O nascimento

fragmentário das primeiras teorizações científicas (em aritmética, geometria,

física, astronomia) estava fundamentado em uma idéia da ciência (formal e

empírica), segundo a qual, com base em certos dados, seria possível obter

generalizações (teoremas, leis) feitas sob a abstração de suas aplicações

práticas e capazes de predizer e explicar outros dados, trazendo à superfície

o que a natureza ocultara. Parece ter sido esse novo modelo de pensamento

fornecido pela ciência a fagulha que acendeu a chama da especulação

filosófica na Grécia antiga, pois ela deve ter sugerido à mente humana a

explêndida idéia de que possivelmente o mundo inteiro, cuja natureza oculta

era previamente explicada pela religião, poderia ser explicado através de

generalizações abstratas. Embora esse empreendimento fosse completamente

impossível como matéria de fato, ele sempre foi possível como matéria de

conjectura ou especulação, sendo isso precisamente o que os primeiros

filósofos, que eram também cientistas, ou ao menos pessoas cientificamente

142

informadas, tentaram fazer. Ao fazerem isso, eles costumavam, em maior ou

menor medida, misturar as suas especulações com as velhas explicações

antropomórficas. Contudo, vimos que mesmo isso não precisava ser nem foi

realmente um elemento indispensável ao empreendimento filosófico.

Esse primeiro período de indagação filosófica durou até o renascimento.

Durante toda a Idade Média, embora desenvolvendo novos procedimentos

dialéticos e sendo sempre guiada pela idéia, originalmente sugerida pela

ciência, de explicar a natureza oculta das coisas por meio de generalizações

conceituais, a filosofia não necessitava afirmar-se em um diálogo com a

ciência, posto que a última ainda permanecia demasiado rudimentar e

fragmentária para ser capaz de desafiar as concepções ordinárias do mundo,

que forneciam o material para as primeiras reflexões filosóficas.

A segunda fase da filosofia, que denominamos paraformacional, foi

marcada pela emergência de ciências empíricas fundamentais – a física,

seguida da química, da biologia, da psicologia e da ciência social – na forma

de corpos sistemáticos de conhecimento, conjuntamente com

desenvolvimentos paralelos nas ciências formais (ver capítulo III, seção 3).

Essa fase iniciou-se com Descartes e floresceu ao menos até Hegel. Com

Descartes e após ele a filosofia teórica desenvolveu-se em considerável

medida como uma reação ao crescimento da ciência. Por exemplo: o

representacionalismo cartesiano e lockeano, bem como o idealismo

transcendental de Kant, foram, em parte, acomodações conjecturais de nossa

visão filosófica do mundo à força da forma científica do argumento da

ilusão, segundo o qual a mente não pode ter experiência direta do mundo

externo, mas apenas de seus efeitos físico-químicos.

Assim, a tarefa da filosofia moderna não foi tanto a de preparar o

aparecimento de novos campos científicos, mas principalmente a de produzir

143

uma reformulação e relocação do material de idéias pertencente aos campos

remanescentes da filosofia em conformidade com novas idéias científicas,

tanto formais quanto empíricas. Tomando a metafísica de Descartes como

exemplo, é difícil ver como ele poderia acreditar no caráter frutífero do

método geométrico em filosofia sem que tivesse sido testemunha de seu

poder heurístico na ciência, e é difícil ver como ele poderia sentir a

necessidade de responder ao cético se ele não estivesse ciente, por exemplo,

do argumento da ilusão em sua forma científica, ou de que o coração não é a

sede da alma.

Finalmente chegamos ao que pode ser chamado de fase pós-formacional

do desenvolvimento da filosofia, que surge após a emergência das ciências

fundamentais. Como vimos, essas ciências requerem certa ordem de

desenvolvimento, que vai da física à ciência social, posto que é difícil

imaginar uma ciência fundamental mais complexa e particular

desenvolvendo-se antes de uma mais simples e mais geral. Nos dias de hoje

muitos desenvolvimentos científicos localizados estão a emergir, o que

requer a existência prévia das ciências fundamentais, já que eles as aplicam.

A filosofia contemporânea é, mais do que nunca, de um lado a participação

na emergência desses desenvolvimentos e de outro uma resposta a eles,

nascida da necessidade de ajustamos nossas concepções filosóficas

remanescentes de maneira a se tornarem mais coerentes com as perspectivas

por eles criadas.

3. A FILOSOFIA LINGÜÍSTICO-ANALÍTICANAS RODAS DA HISTÓRIA

144

A consideração da última fase do desenvolvimento da filosofia sob a

perspectiva aqui proposta ajuda a entender por que no século XX ela foi

enganosamente considerada como essencialmente definível em termos de

uma atividade de análise conceitual. Uma razão para isso parece ser que,

tendo as ciências empíricas fundamentais tomado o lugar uma vez ocupado

pela filosofia como uma especulação empírica antecipadora da ciência, esta

última foi em grande parte reduzida a uma indagação de segunda ordem,

mais reflexiva e distanciada das preocupações empíricas. Contudo, a razão

central para a consolidação da filosofia dita lingüístico-analítica foi ainda o

desenvolvimento de novos mecanismos de controle de procedimentos

argumentativos, requerendo uma organização mais explícita dos

componentes lógico-conceituais do discurso, o que costuma demandar

acento semântico, ou seja, um tratamento metalingüístico dos elementos

lingüístico-conceituais. Sob tais circunstâncias, tornou-se fácil confundir a

filosofia, em sua natureza própria, com um simples esforço de

esclarecimento lingüístico-conceitual. No entanto, o distanciamento da

especulação filosófica de preocupações com questões de ordem

propriamente empírica, assim como a ênfase lingüístico-conceitual, são

apenas momentos de uma evolução histórica, sendo como tal contingentes.

Dizer que a filosofia do século XX foi em boa parte uma indagação

lingüístico-conceitual é apenas descrever a forma que a filosofia tomou em

um certo período histórico e não diagnosticar a sua natureza própria.

Adotando essa perspectiva encontramo-nos melhor situados para chegar a

um entendimento dos desenvolvimentos internos da filosofia lingüístico-

analítica no século XX. Minha sugestão é que podemos entender as

principais conquistas da filosofia lingüístico-analítica como intrinsecamente

ligadas ao desenvolvimento de uma constelação de teorias científicas que

145

pertencem ao âmbito do que pode ser chamado – no sentido mais amplo

possível – de semiótica. A filosofia lingüístico-analítica é ligada à semiótica,

de um lado pelo modo conjectural próprio pelo qual esse campo de estudos

tem sido gradualmente explorado, de outro pela definitiva necessidade de

relocação e reformulação acomodativa de nossas idéias de problemas

filosóficos tradicionais, resultante dos desenvolvimentos nos domínios da

semiótica.

Para poder argumentar a favor dessa sugestão preciso primeiro explicar

brevemente o que quero dizer com a palavra “semiótica”. Chamando de

“signos” a todas as coisas que são usadas para representar outras, semiótica é

o nome que podemos dar para a idéia vaga e extraordinariamente abrangente

de uma ciência geral dos signos. O projetado campo científico da semiótica

é usualmente dividido em três grandes domínios(60): sintática, semântica e

pragmática. O primeiro, a sintática, consiste na investigação das regras

combinando signos com signos, o que pode ser entendido de modo a incluir

a sintaxe lógica. O segundo domínio da semiótica é o da semântica,

entendido como a investigação das regras relacionando os signos (e suas

combinações) com os seus designata. O terceiro domínio é o da pragmática,

entendido como a investigação das regras relacionando os signos (e suas

combinações, junto com as relações que eles têm com os seus designata) aos

falantes e às circunstâncias de seu uso concreto na linguagem. É fácil ver

que há uma certa ordem de pressuposições entre os domínios: de um modo

geral, a semântica pressupõe a sintática, e a pragmática pressupõe ambas, a

sintática e a semântica. Isso se torna claro quando consideramos que se pode

aprender a sintaxe de uma linguagem não interpretada, ou seja, em abstração

do que os signos significam, de sua semântica e de sua pragmática. Contudo,

dificilmente se pode aprender as relações referenciais de uma linguagem,

146

seja das combinações de signos, seja dos próprios signos isolados, quando

eles são polissêmicos, sem se ser capaz de identificar as suas unidades

sintaticamente estruturadas. Também podemos avançar muito no

aprendizado da sintaxe e da semântica em abstração do contexto, ou seja,

sem considerar o uso da linguagem nas circunstâncias concretas da

comunicação humana, ou seja, a pragmática. Todavia, não podemos

aprender a aplicar as regras pragmáticas, ou seja, avançar no aprendizado do

uso dos signos em proferimentos concretos, quando não sabemos identificar

as suas possíveis articulações sintáticas e as suas referências (capítulo II,

seção 2). A conseqüência disso é que é natural esperar que o

desenvolvimento histórico do conhecimento semiótico siga a mesma ordem

dessas pressuposições, começando com a sintática, prosseguindo com a

semântica e terminando com a pragmática.

Essas considerações ajudam-nos a entender os desenvolvimentos

históricos da filosofia analítica no século XX. Com efeito, a filosofia

analítica apareceu em três ondas sucessivas de investigação. No final do

século XIX, Gottlob Frege desenvolveu pela primeira vez uma completa

formulação simbólica do cálculo dos predicados. Isso foi uma contribuição

essencialmente sintática (embora também contendo uma forma

esquematizada de semântica) de importância sem precedentes para o

desenvolvimento da lógica, tanto que não seria grande exagero dizer que a

lógica como ciência realmente começou com Frege. Podemos considerar o

atomismo lógico de Bertrand Russell e do primeiro Wittgenstein no

Tractatus como as mais importantes respostas filosóficas tentando acomodar

nossas concepções filosóficas remanescentes em filosofia do conteúdo e

teoria do conhecimento a esse desenvolvimento sem precedentes da ciência

lógica. Embora já existissem desenvolvimentos semânticos – como a

147

distinção fregeana entre sentido e referência, a elusiva teoria do significado

do Tractatus, e as especulações de Russell sobre os designata dos nomes

logicamente próprios em sua teoria das descrições – eles desempenhavam

um papel complementar e em sua maioria ainda esquemático.

A segunda onda foi principalmente semântica: Wittgenstein, na fase

intermediária de seu desenvolvimento filosófico, seguido por positivistas

lógicos como Moritz Schlick e Rudolf Carnap, sugeriu uma semântica full-

blooded, principalmente na forma do princípio da verificabilidade, segundo

o qual o sentido da proposição é o modo de sua verificação, sendo

geralmente dado a cada enunciado um feixe de modos de verificação. As

conseqüências desse princípio em uma tentativa de reformulação de nossa

visão filosófica remanescente de mundo foram paradigmaticamente

desenvolvidas no livro de A. J. Ayer, intitulado Linguagem, Verdade e

Lógica, que hoje ainda reverberam na obra de filósofos como Kai Nielsen

Michael Martin.

A terceira onda trouxe em sua crista os esforços dirigidos à criação de

uma ciência da pragmática e à acomodação de problemas filosóficos a ela

relacionados e aos seus resultados. Ela começou com as reflexões dispersas

do último Wittgenstein sobre as múltiplas funções da linguagem e sua

identificação do significado das expressões com o seu uso no contexto de

jogos de linguagem. Mas a emergência da pragmática como uma reflexão

sistemática sobre as ações comunicativas deveu-se principalmente aos

esforços de J. L. Austin, que mais tarde foram levados adiante por J. R.

Searle em sua teoria dos atos de fala, além de contribuições independentes,

como a teoria das implicaturas conversacionais de Paul Grice. Investigações

da pragmática também conduziram a tentativas de acomodar velhos

problemas filosóficos aos novos resultados. Um exemplo inicial disso foi a

148

reestruturação e relocação do problema mente-corpo – mesmo que em uma

forma ultimadamente desencaminhada – como um resultado de reflexões

pragmáticas sobre um necessário momento interpessoal no aprendizado da

linguagem. Parte dessa tentativa pode ser observada na análise de conceitos

mentais feita por (proto)behavioristas como Gilbert Ryle em O Conceito de

Mente e também no trabalho do (também protobehaviorista) último

Wittgenstein, por exemplo, em seu argumento contra a possibilidade de uma

linguagem privada e em sua tentativa de escapar de sua conseqüência

paradoxal – a rejeição de nossa linguagem mentalista – através de uma

equívoca doutrina da expressão criterial. Outro esforço reformulador de

problemas filosóficos emergindo como uma aplicação de desenvolvimentos

pragmáticos (especialmente, embora não inteiramente, da teoria dos atos de

fala) é encontrado na tentativa de Jürgen Habermas, em sua pragmática

universal, de ler estruturas sociais e suas possíveis distorções nos modos de

funcionamento de nossas ações comunicativas. Uma vez mais vemos o papel

da ênfase lingüístico-conceitual como uma característica relevante, que não

obstante é historicamente contingente e não-essencial à filosofia enquanto

tal.

4. O FUTURO DA FILOSOFIA

O que pode ser esperado para o futuro? Certamente, nós podemos esperar

que algum dia as atuais filosofias da ciência venham a se transformar em

metaciências na medida em que alcançam um consenso adequado sobre a

verdade de suas explicações da natureza dos componentes científicos mais

básicos. Mas nossas maiores expectativas são dirigidas ao núcleo central de

problemas filosóficos, os quais parecem permanecer tão distantes quanto

149

sempre de um acordo científico. Os domínios de especulação mais difíceis e

complexos da metafísica e da epistemologia são multiabrangentes: a

epistemologia, por aplicar-se a todos os atos cognitivos e ao nosso acesso à

realidade; a metafísica porque ela precisa explicar, independentemente das

ciências que a pressupõem, as categorias últimas da realidade (como

propriedade, substância, espaço, tempo, causalidade, identidade...), as quais

são constitutivas dos mais variados objetos do conhecimento, atravessando

não só as muitas formas de conhecimento científico como também todo o

saber comum. Embora não tão abrangente, a ética parece encontrar-se

integrada de forma complexa no centro da atividade social humana,

conseqüentemente também requerendo o mesmo tipo de abordagem

argumentativo-conjectural.

A explicação global da natureza da filosofia esboçada nesse livro oferece-

nos alguns indícios para pensar – muito cautelosamente – o futuro da

filosofia. Se a filosofia é uma atividade cultural intermediária ou derivada, a

estabilidade não pode ser esperada. Isso se deixa sugerir quando

consideramos novamente a analogia com a ópera. Essa última cresceu

paralelamente ao desenvolvimento da música polifônica após o

Renascimento, chegando ao ápice de seu desenvolvimento nos séculos

XVIII e XIX, somente para perder quase completamente a sua importância

no século XX, mesmo que ainda tenha sobrevivido em formas menores,

como as da opereta e do musical. Provavelmente algo similar pode ser dito

da filosofia, ao menos no sentido clássico e predominante da palavra: os

melhores tempos já se foram. Eles pertenceram originalmente aos grandes

sistemas de Platão e Aristóteles, e, na modernidade, ao período de

configuração das ciências fundamentais, quando a filosofia, em um

desenvolvimento que começou com Descartes e culminou com a obra de

150

Kant, era em grande medida uma acomodação das concepções filosóficas

remanescentes às transformações geradas pela emergência dessas ciências.

Hoje a indagação filosófica, em sua maioria restrita a inúmeras subquestões

que emergem nos núcleos de questionamento remanescentes, as quais por

suas naturezas permanecem altamente dependentes de argumento, parece

progredir em suas formas menores. Contudo, é bom recordar que esse

diagnóstico não é necessariamente um julgamento de valor, pois a filosofia

contemporânea pode ser importante e por vezes fascinante (a Ópera dos Três

Vinténs é, como ópera, uma forma menor, mas não menos importante do que

O Crepúsculo dos Deuses, ao menos para aqueles que se recusam a se deixar

impressionar pelo pathos wagneriano).

De fato, em nossos tempos, a ciência tem crescido tanto que tem tomado

o lugar de muito do que antes era filosofia, embora, vale lembrar, muito

pouco de seus domínios mais importantes. Contudo, se adotarmos a

concepção tolerante da ciência como conhecimento público

consensualizável, parece não haver razões para negar que em princípio, em

algum tempo no futuro, a ciência possa absorver todo o campo da filosofia.

Isso não ocorrerá se não houver limite para a criação de novas questões

filosóficas, se o objeto do conhecimento for ilimitado, se os problemas

filosóficos forem automultiplicativos, se houver limites intransponíveis para

a possibilidade de consenso... Se for assim, então a especulação filosófica

será sempre possível e sempre poderá existir. Contudo, como o que

experienciamos até agora tem sido apenas uma seqüência de subdivisões e

combinações aplicadas das ciências fundamentais, há razões para esperar

que haja um limite para a aquisição de novo conhecimento científico

essencial. Nesse caso pode ser que um dia os filósofos e até mesmo os

cientistas venham a encontrar-se desempregados, sentando-se lado a lado em

151

um mundo intelectualmente saciado, onde todas as coisas que vale a pena

conhecer já terão sido investigadas e que nenhuma descoberta importante

reste a ser feita. Nesse tempo não haverá mais lugar para a acomodação do

restante de nossa visão filosófica à ciência, posto que não haverá mais

nenhum “resto” filosófico de nossa visão do mundo: a soma do nosso

conhecimento científico será a nossa visão do mundo, nada mais sendo

admitido, posto que a busca pela totalidade para além desse conhecimento

passará a ser reconhecida como um empreendimento conceitualmente

desnecessário e sem sentido.

De fato, se as avaliações feitas neste livro forem corretas e se a

emergência de novos campos científicos não for uma possibilidade

indefinidamente auto-multiplicativa, não é difícil prever que, quando a

poeira de confusão conceitual que tem sido levantada e que continua a ser

levantada pela formação de todas as novas ramificações da ciência baixar,

virá o dia em que a filosofia, mesmo em suas formas menores, chegará a um

fim. Contudo, como também vimos, isso não precisa significar que as

conjecturas centrais da filosofia virão a ser substituídas por uma

multiplicidade de teorias científicas estreitamente focalizadas, não inter-

relacionadas, pouco excitantes – como a fragmentação positivista-

cientificista do campo da experiência sugere –, uma vez que a liberalidade

de nosso conceito de ciência e a inter-relação entre as questões filosóficas

centrais sugerem que realizações científicas abrangentes tomem o lugar das

últimas, preservando dessa maneira o suspeitado valor das questões que as

geraram.

152

NOTAS:

1 R. Carnap, “On the Character of Philosophical Problems” in, R. Rorty (ed.) The Linguistic Turn, p. 54.

2 Cf. M. Inwood, A Heidegger Dictionary, p. 164.3 L. Wittgenstein, Philosophical Investigations, sec. 109.4 C. D. Broad, Scientific Thought, p. 20; ver também B. Blanchard, On

Philosophical Style, p. 6.5 G. E. Moore, “What is Philosophy?”, p. 23.6 E. Tugendhat, “Die Philosophie unter sprachanalytischen Sicht”, em

Philosophische Aufsätze.7 W. V. O. Quine, Word and Object, p. 270 ss.8 W. V. O. Quine, “A Letter to Mr. Ostermann”. 9 Ver, por exemplo, G. Ryle, “Systematic Misleading Expressions”.10 A clássica crítica da linguagem ordinária ao argumento da ilusão é

encontrada no livro Sense and Sensibilia, de J. L. Austin. Uma crítica muito aguda, embora esquemática, ao argumento da ilusão, pode ser encontrada no livro de J. R. Searle, Language, Mind and Society: Philosophy in the Real World, cap. I, p. 28 ss.

11 L. Wittgenstein, Philosophical Investigations, sec. 109, 118, 119... Ver também A. Kenny (ed.), The Wittgenstein Reader, pp. 263-285.

12 Prefiro pensar que Wittgenstein estava falando de seu modo pessoal e minimalista de fazer filosofia, mais do que propondo o método

153

próprio de filosofar. Que ele também manteve idéias diferentes e talvez incompatíveis foi apontado por seus melhores intérpretes (ver A. Kenny, “Wittgenstein and the Nature of Philosophy”; ver também meu livro A Linguagem Factual, cap. II).

13 L. Wittgenstein, The Blue Book, pp. 17-18. 14 Assim escreve A. J. Ayer sobre o método terapêutico de Wittgenstein,

“Sua repetida preferência por descrição no lugar da explicação e a abstenção de teoria que ele afirmava praticar e se regozijava diante dos seus leitores não são características de seu procedimento real em nenhum estágio de seu desenvolvimento, incluindo o das Investigações Filosóficas. Que suas explicações são rúnicas não as reduz a descrições: suas teorias não cessam de ser tais ao serem encobertamente assentadas.” (A. J. Ayer, Ludwig Wittgenstein, p. 137.)

15 L. Wittgenstein, Investigações Filosóficas, sec. 79.16 J. R. Searle, “Proper Names”. Resultados similares aos que

encontramos tão claramente expostos no artigo de Searle podem ser também inferidos de uma cuidadosa leitura do texto de Wittgenstein.

17 R. Carnap, Logische Syntax der Sprache, parte I.18 J. R. Searle, Mind, Language and Society: Philosophy in the Real

World, p. 138.19 Assim escreveu Ludwig Wittgenstein: “uma fonte principal de nosso

fracasso em entender é que nós não dominamos uma clara concepção do uso de nossas palavras. – Nossa gramática é carente dessa espécie de sinopticidade. Uma representação sinóptica produz precisamente aquele entendimento que consiste em ‘ver conexões’. Daí a importância de descobrir e inventar casos intermediários” (Investigações Filosóficas, sec. 122). Sobre o conceito de representação sinóptica (übersichtliche Darstellung), ver os interessantes comentários de G. P. Baker & P. M. S. Haker, em Wittgenstein: Understanding and Meaning, p. 489.

20 Ver E. Tugendhat, “Die Philosophie unter den Sprachanalytischen Sicht“, em seu Philosophische Aufsätze.

21 W. V. O. Quine: World and Object, p. 270 f.22 W. V. O. Quine, Word and Object, pp. 271-272. Quine viu

corretamente que o modo formal de falar não pode ser usado para identificar a filosofia, posto que ele pode ser universalmente aplicado. Por essa razão, ele rejeitou a tese de Carnap de que a possibilidade de tradução em um modo formal de falar pode ser usada como modo de

154

distinguir as questões pertencentes à filosofia, escolhendo a expressão “acento semântico” para marcar a sua própria perspectiva naturalista.

23 Kai Nielsen sublinha o fato óbvio mas notável que quando filósofos descrevem os usos de nossas expressões “eles estão fazendo observações empíricas sobre como a linguagem funciona.” (“What is Philosophy?”, em History of Philosophy Quarterly, 10, 1993, pp. 389-390).

24 Ver, por exemplo, D. M. Armstrong: The Mind-Body Problem: an Opinionated Introduction, cap. 10

25 A. J. Ayer, em entrevista com B. Magee (B. Magee, Men of Ideas, p. 127). A objeção de Magee a essa observação de Ayer e a observações similares feitas na entrevista com J. R. Searle – uma objeção a qual respondo aqui de modo mais detalhado – é que a indagação analítica, como qualquer indagação metalingüística, inevitavelmente deixa o mundo real de fora (Ver B. Magee in Confessions of a Philosopher, pp. 74-76).

26 Um espécime disso é o livro de B. Latour & S. Woolgar, Laboratory Life: The Construction of Scientific Facts.

27 A. Kenny, Aquinas on Mind, cap. 1, p. 4.28 J. L. Austin, Philosophical Papers, p. 232.29 Ver A. Comte, Cours de Philosophie Positive, Oevres, vol. I. Não

sigo a sua classificação em detalhe, posto que ele comete ao menos dois erros óbvios: a inclusão da astronomia (uma ciência aplicada) entre as ciências fundamentais e a exclusão da psicologia, que ainda era inexistente como ciência em seu tempo. Os princípios de classificação, porém, permanecem válidos.

30 Alguém poderia objetar que a idéia de uma ruptura epistemológica distinguindo ciência de pré-ciência é enganosa, posto que os critérios usuais de cientificidade realmente não nos permitem identificar tais rupturas. Eu concordo com isso. Mas eu também defendo que não encontramos qualquer dificuldade em identificar essas ruptures intuitivamente e que o critério de cientificidade sugerido na seção 8 do presente capítulo é capaz de resgatar essa intuição, possibilitando uma mais clara identificação das rupturas epistemológicas. De fato, a ruptura epistemologica ocorre quando a verdade em todo um domínio da investigação se torna consensualmente alcançável.

31 Como J. R. Searle notou, é um erro acreditar que porque objetos da experiência interna têm um modo de existência ontologicamente subjetivo, eles também devem ser epistemologicamente subjetivos,

155

impossibilitando o seu acesso pela ciência (ver seu Mind, Language and Society: Philosophy in the Real World, pp. 43-45).

32 G. S. Kirk, J. E. Raven & M. Schofield (eds.), The Presocratic Philosophers, pp. 133-134.

33 K. Popper, “Back to the Pre-Socratics” em suas Conjectures and Refutations, p. 138.

34 G. S. Kirk, J. E. Raven & M. Schonfield (eds.), The Presocratic Philosophers, pp. 140-142.

35 Ver discussão em W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy, vol. I, p. 103.

36 S. Freud, The Ego and the Id.37 Aquinas on Mind, pp. 4-5.38 K. Lehrer, Theory of Knowledge, p. 7. Ver também W. James, Some

Problems of Philosophy, p. 23.39 Aquinas on Mind, p. 5. 40 Aquinas on Mind, p. 9. Concordo com a motivação de Kenny, mas

não com a sua conclusão. Meu objetivo é mostrar que acreditar que a tese progressista põe em perigo a abrangência da filosofia é confundir a natureza das respostas científicas (i.é, respostas consensualmente alcançáveis) eventualmente destinadas a substituir os problemas centrais da filosofia, que são questões cuja natureza desconhecemos, com os empreendimentos das ciências particulares existentes, cuja natureza já conhecemos.

41 See J. Passmore, “Philosophy”, in P. Edwards, The Encyclopedia of Philosophy, vol. VI, pp. 219-20.

42 See K. R. Popper, Conjectures and Refutations, pp. 339-340. O exemplo standard de falsificação decisiva usado por Popper é a deflexão da luz das estrelas observada no eclipse de 1919. Ironicamente, precisamente esse tipo de teste seria mais tarde considerado demasiado inconfiável para ser significativo quando tomado em isolamento (Cf. Martin Gardner: Relativity Simply Explained, New York 1962, pp. 96-7)

43 See K. R. Popper, The Logic of Scientific Inquiry, cap. II44 “What is Science?”, p. 42. A ciência, como um corpus de

conhecimento, como o que os cientistas fazem e como uma instituição, escreve J. Ziman, “não pode ser tratada separadamente, mais que um sólido pode ser reconstruído de sua projeção sobre diferentes planos cartesianos” (ibid. p. 42). Ver também o novo livro de Ziman, Real Science.

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45 Ver J. Habermas, “Wahrheitstheorien”. Por adotar essa idéia e por chamar minha caracterização da ciência de “consensualista”, eu não estou de modo algum sugerindo que a ciência seja matéria de alguma espécie de decisão consensual arbitrária. Nossa experiência coletiva tem mostrado que é somente porque fatos que concebemos como independentes de nós mesmos podem ser correspondidos por nossas proposições, que somos capazes de alcançar acordo interpessoal sobre o valor-de-verdade dessas proposições no interior de uma comunidade crítica de idéias.

46 Cf. G. Reale, A History of Ancient Philosophy, vol. I, p. 14.47 Guthrie, W. K. C., A History of Greek Philosophy, vol. I, p. 36 f.48 A lei foi primeiramente sugerida por A. Turgot em suas Réflexions sur

la Formation et la Distribuition des Richesses (1750), tendo sido também sugerida por outros. Mas mas somente Comte a desenvolveu em todas as suas implicações. De Auguste Comte, ver Cours de Philosophie Positive, Oevres, Paris 1968 (1830-1842), vol. I; ver também, Discours sur L’esprit Positif, Oevres, Paris 1968 (1844), vol. XI, p. 2 f.

49 O desenvolvimento da assim chamada lei dos três estágios por Comte tem sido freqüentemente mal-entendido, penso que sob influência de preconceito. A sua plausibilidade é defendida por W. Schmaus em, “A Reappraisal of Comte’s Three-State Law”. Ver também C. F. Costa, “Filosofia, Ciência e História”.

50 J. Habermas, Erkenntnis und Interesse, p. 92.51 See K. R. Popper, The Poverty of Historicism, cap. IV. 52 Embora Demócrito nunca tenha dito isso, a conclusão é difícil de ser

evitada, dadas as propriedades especiais internas que ele atribui aos átomos (para uma discussão, ver W. K. C. Gutthrie, A History of Greek Philosophy, vol. II, p. 396).

53 Uma objeção cabível seria a de que conteúdos proposicionais não seriam naturais, pois não são nem físicos nem psicológicos. Essa objeção seria justificada em uma interpretação realista da natureza desses conteúdos, como a de Frege. Mas ela não vale para uma interpretação nominalista. Se o conteúdo proposicional for analisado, digamos, como o conjunto de representações mentais, atuais ou possíveis, de estados de coisas, então ele pode ser entendido em termos naturalistas como uma entidade psicológica e em última análise física.

54 “Clarity is not Enough” in, H. D. Lewis (ed.), Clarity is not Enough, p. 40.

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55 “Philosophy as Art”, Metaphilosophy 14, n. 2, 1983, p. 141. Ver também J. Deleuze e F. Guattari em Qu’est-ce que la Philosophie? J. H. Gill tenta confirmar a sua proposta historicamente, mostrando o papel central das metáforas estéticas nos grandes sistemas filosóficos, mas o magro resultado sugere mais a conclusão oposta (ver J. H. Gill, Metaphilosophy, cap. 6).

56 Ver S. Freud, Traumdeutung, chap. VII.57 C. F. Costa, “A Conjectura Filosófica”, p. 29 ss.58 Pode-se perguntar aqui como seria o caso das filosofias orientais. Tal

caso mereceria um estudo à parte. Certamente, esses povos estavam inicialmente menos próximos de uma idéia da ciência do que os gregos. Mas é sintomático o fato da filosofia indiana nunca ter se distinguido suficientemente da religião. Ou o fato da filosofia chinesa ser centrada em questões humanas, como a da política. Ou ainda o fato de Hegel ter pensado que elas não seriam propriamente filosofias, mas sabedorias, posto que insuficientemente argumentativas.

59 Quando digo “generalização hipotética”, não estou negando que o filósofo usualmente chegue a tal generalização a posteriori, apoiando-se em argumentos e exemplos prévios. Meu ponto é o de que há sempre um “salto” para a generalização, o qual demanda confirmação ou desconfirmação ulterior de um modo essencialmente análogo ao procedimento hipotético-dedutivo nas ciências empíricas.

60 Ver (por exemplo) C. W. Morris, Foundations of a Theory of Signs.

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