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V DE VINGANÇA, UMA ANÁLISE FILOSÓFICA
Jeferson WRUCK1, Cezar Roberto VERSA2
Escrito para apresentação na VII JORNADA CIENTÍFICA DA UNIVEL 21 a 23 de outubro de 2009 – Univel – CPE – Cascavel-PR
RESUMO: Escrever é retratar a vida. Comunicar em símbolos gráficos e imagens as
incógnitas e anseios que residem em cada um, bem como em todos nós, como humanos. Se a
arte retrata a vida, logo ela guarda alguma coisa de filosofia. Partindo dessa premissa este
artigo busca analisar os aspectos filosóficos, evidentes ou subjacentes, na graphic novel V de
Vingança, do renomado autor inglês Alan Moore. V de Vingança trata de um mundo
devastado por guerras nucleares e assolado por governos totalitários e violentos. Uma distopia
que se abre para uma multiplicidade de discussões sobre a sociedade, a alienação e a liberdade
de pensamento. Nossa análise se propõe refletir sobre um rico material para o pensamento,
que não poupa a mídia, a religião e muito menos o governo.
PALAVRAS-CHAVE: V de Vingança, Graphic Novel, Dialogismo.
1 INTRODUÇÃO
Toda obra de arte é uma representação da vida. Por mais fictícia que se apresente, nada
pode ocultar os cordões resistentes que a mantém ligada à realidade objetiva. Para Hume
(2007, p. 30), ainda que nosso pensamento possa transcender o mundo real e físico e
arquitetar coisas aparentemente nunca vistas, ele é restrito e condicionado. A verdade é que o
pensamento “está verdadeiramente preso a limites muito reduzidos e que todo poder criador
da mente não ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir os
materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela experiência” (HUME, 2007, p.30 –
31). Levada ao encontro da arte, particularmente à literatura, a constatação do filósofo
1Jeferson WRUCK, Acadêmico do Curso de Comunicação Social - Jornalismo da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel. 2 ORIENTADOR: Professor Mestre Cesar Roberto VERSA do Curso de Comunicação Social - Jornalismo da Univel – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel.
permanece autêntica. Mesmo que as histórias comportem dezenas de quimeras e
monstruosidades, universos fantásticos e mágicos, o cerne da narrativa continua a orbitar ao
redor das paixões, medos e desejos, enfim, dramas essencialmente humanos.
A produção de um romance revela, por vezes, muito mais do autor do que ele próprio
imagina. A elaboração da sequência dos fatos na narrativa literária nunca está tão
desvencilhada das experiências reais como pode imaginar. O processo de criação da trama
demanda o envolvimento psicológico do autor. Perpassa sua bagagem cultural e ideológica e
brota de sua historicidade. Nas linhas de Dom Quixote, encontramos um Cervantes, em
Fausto há um Goethe, e em Dom Casmurro nos acena um Machado de Assis. A ficção, desse
modo, constitui-se num tributo à realidade, pois, enquanto signo, “reflete e refrata a realidade”
(BAKHTIN, 2006, p. 40).
Como simulacro da vida, a ficção representa nossos anseios e inquietações. E estes
aparecem ainda numa coloração mais intensa pela liberdade em que estão inseridos, a
liberdade da palavra. Para Bakhtin (2006, p. 40), “as palavras são tecidas a partir de uma
multidão de fios ideológicos”, e, como “indicadores sensíveis”, “acham-se muito estreitamente
vinculadas às condições de uma situação social dada e reagem de maneira muito sensível a todas as
flutuações da atmosfera social” (BAKHTIN 2006, p.41).
Destarte, para Bakhtin (2006, p. 43) a linguagem é o produto da reciprocidade dialética entre o
“ser e o signo”. Ora, se as obras são produções sígnicas, logo são conseqüências também elas de um
processo dialético. Este processo é um entre o autor e o seu trabalho, e outro entre a obra acabada e os
leitores, pois todo signo tem duas faces (BAKHTIN, 2006, p. 46), e sua interpretação sempre estará
intimamente ligada ao universo de saberes e experiências individuais de cada um que tem contato com
a obra.
Assim, se toda obra de linguagem é um signo, e todo signo é dialético, podemos
chegar, com alguma segurança, à conclusão que toda obra que seja produzida por meios de
signos linguísticos também são dialéticas. E é aqui que o raciocínio se torna particularmente
interessante, pois, evidentemente, a dialética é mãe de toda boa filosofia, e nosso intento neste
artigo é justamente apontar numa obra seus caracteres filosóficos. Evidentes ou implícitos.
O objetivo desse artigo é destacar os preceitos filosóficos contidos na graphic novel V
de Vingança, de Allan Moore. Uma obra carregada de ironia e provocação. A atmosfera densa
da graphic nos apresenta um mundo caótico onde as liberdades humanas são cerceadas por
um regime totalitário que garante seu através da violência e alienação os cidadãos. Um
homem decide ser o redentor do povo. Mas esse herói é paradoxal, pois mata e aterroriza,
mesclando esclarecimento e vingança. Anarquia, alienação, vontade de potência nietzschiana
e a eterna luta entre o “Bem e o Mal” se unem nessa distopia, onde o povo é controlado como
um rebanho que ruma para o matadouro.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 Surgimento e evolução da arte quadrinística
Representar eventos através de uma sequência cronológica de imagens remonta a
momentos da história da humanidade que antecedem a escrita mais rudimentar. Após os sons
e os gestos, a imagem é o signo mais antigo na comunicação humana. A pintura conquista seu
lugar proeminente entre as vertentes da arte, mas a ilustração também permanece muito
presente na literatura medieval e renascentista, sobretudo no didatismo religioso do medievo.
Entretanto, a origem das histórias em quadrinhos modernas se dá efetivamente no
século XIX, com as obras dos franceses Jean Charles Péllerin e Georges Colomb, e do alemão
Wilhelm Busch. A literatura produzida por estes autores intercalava narrativa com ilustração,
relação que aprimorou a impressão de continuidade no texto ilustrado.
O desenvolvimento da técnica ilustrativa despertou interesses do outro lado do
Atlântico. No limiar da virada do sec. XIX para o XX, os periódicos americanos amargavam a
derrocada de suas tiragens. O público leitor andava enfadado do padrão monótono do
jornalismo impresso. O resultado era que a cada edição as tiragens ficavam mais reduzidas.
Nesse contexto foi que os quadrinhos encontraram sua porta de entrada no mercado. Junto
com a euforia sensacionalista que orientava as matérias, os jornais passaram a publicar
cadernos especiais nos domingos com tiras ou histórias em quadrinhos, que sempre
continuavam na próxima edição. O chute foi certeiro e rendeu bons lucros. A própria
designação do jornalismo americano da época – jornalismo amarelo – deve sua inspiração ao
emblemático personagem Yellow kid, criado por Richard Outcalt, e este é, para muitos, o pai
dos quadrinhos modernos.
Daí em diante os cadernos de histórias em quadrinhos ganhavam cada vez mais páginas
e adeptos. Finalmente, em 1933, é lançada a Revista Walt Disney, para delírio das crianças. O
público jovem e adulto estava com um olho naquela nova arte, é os criadores dos quadrinhos
logo perceberam que podiam explorar diversos nichos de mercado. Os heróis apareceram e
sua chegada foi estrondosa. Eles eram violentos, super-poderosos, bem-sucedidos, ícones da
virilidade e tinham uma vida sexual muito ativa, e ainda eram considerados politicamente
corretos. Cada história desses paladinos da modernidade exortava o nacionalismo, num
momento em que as relações internacionais oscilavam numa perspectiva incerta.
A presença dos quadrinhos no mercado de produtos culturais americanos e europeus
(principalmente ingleses) ficou mais sólida e lucrativa no pós-guerra, anos que marcam o
inicio da pós-modernidade. Os enredos passam a refletir o sentimento da sociedade global na
segunda metade do século passado. O vilão deformado e monstruoso perde um pouco de seu
espaço para o novo ideal de antagonista: o ditador comunista. Em plena Guerra Fria, os
quadrinhos serviram como forte instrumento ideológico do ocidente capitalista,
estigmatizando a imagem dos líderes além da Cortina de Ferro como déspotas violentos e
desumanos. Os cenários aparecem cada vez mais industrializados. A manipulação genética, a
robótica, viagens espaciais, armas hi-tech, enfim, a tecnologia é cada vez mais recorrente no
contexto das HQs. As massas viviam uma verdadeira euforia diante do avanço exponencial
das ciências, sobretudo a da informação.
Nesse espírito, as histórias em quadrinhos entram nos anos 1970 e 1980. Nessas
décadas, especialmente, as HQs atingem um nível de técnica, enredo e reconhecimento do
público qual nunca antes haviam experimentado, e até o presente não foi superada. O que hoje
se reverencia dos quadrinhos, certamente, se não teve sua origem nas décadas de 1970 e 1980,
passou por alguma releitura nas mãos de algum dos autores da época. Esse período foi o
“Olimpo” das HQs. Alan Moore (Wachtmen), Frank Miller (Batman: O Cavaleiro das
Trevas), Jim Starlin, Neil Gaiman e Stan Lee (O Quarteto Fantástico), são alguns dos
“olímpicos” responsáveis pela significativa renovação estilística das histórias em quadrinhos.
Demolidor, X-men, Wachtmen, A Liga Extraordinária, Batman, Homem Aranha, O Surfista
Prateado, V de Vingança, HellBlazer (Constantine nos cinemas), títulos que ainda arrecadam
milhões nos cinemas e seriados televisivos nasceram ou foram reformuladas nesse período.
É no final dos anos 1970 que se populariza a graphic novel. A autoria do termo é
atribuída a Richard Kyle, usado pela primeira vez anos antes de ser difundido por Will Eisner,
em 1978, com sua obra Um Contrato com Deus. Reconhecem-se como graphic as produções
quadrinhísticas que surgem adotando o novo estilo dos anos 1980. Histórias com contextos
mais aprofundados, tramas mais trabalhadas e o rompimento com os estereótipos de vilão e
mocinho. São HQs que buscam a profundidade literária, e trazem uma linguagem mais
aprimorada. O herói já não é incapaz de fazer o mal, e nada impede que o inimigo saia
vencedor no final. Fato é que caiu no gosto do público.
2.2 Alan Moore e a graphic novel V de Vingança.
Alan Moore nasceu em 18 de Novembro de 1953, na cidade inglesa Northampton. Sua
infância e juventude não foram as mais cômodas. Seus pais eram operários e ele não se dava
bem na escola. Ainda adolescente foi procurar refúgio psicológico nas drogas. Seu
comportamento intempestivo e anti-social costumava lhe render suspensões, até que acaba
expulso do colégio. Aos 18 anos, quem olhasse para o jovem não veria nele nada de muito
promissor.
Moore, entretanto, possuía dessas genialidades que não se podem medir no estreito
arranjo de métodos pedagógicos ineficazes e pragmáticos. Começou a criar histórias em
quadrinhos para revistas locais e, aos poucos, foi explorando seu potencial artístico criativo.
Começou publicando nas revistas Embryo e Sounds, mas sempre que a oportunidade surgia
espalhava seus trabalhos por jornais e outras revistas. A qualidade de suas histórias ganhava
reconhecimento, e passou a colaborar com a revista Warrior. Neste periódico Alan Moore
encontrou uma liberdade de criação que lhe possibilitou elaborar, em parceria com David
Lloyd, uma obra marcante em sua carreira: V de Vingança.
Em 1983, Moore consegue se inserir no mercado americano de quadrinhos e, na DC
comics, realiza o que muitos consideram seu maior triunfo profissional: Wachtmen.
Para este artigo tomamos como base sua obra V de Vingança, concebida durante o
decorrer dos anos 1980. As histórias de Alan Moore carregam traços muito característicos do
autor. A distopia, visão pessimista do futuro da humanidade, está sempre presente no contexto
de suas melhores graphics. A história de V de Vingança é um fruto de seu tempo e lugar: a
Inglaterra da penúltima década do século XX. Quando foi escrita, quem ocupava o cargo de
Primeiro-Ministro da Inglaterra era ninguém menos que Margareth Tachter, a Dama de Ferro.
A personalidade de Tachter, sua conduta política e o clima de insegurança social deixado pela
Guerra Fria, sugeriam fortes suspeitas sobre um governo totalitário no país. O meio bélico-
científico continuava empolgado com o poderio das novas ogivas, e Moore transferiu isso
para a graphic, situando a história num momento após uma guerra nuclear, onde o país foi
reduzido a servidão perante um regime fascista. O tempo de V de Vingança são os últimos
anos de 1990. Para nós um passado cada vez mais distante, mas quando da publicação da
obra, um futuro coberto de incertezas.
V de Vingança é mais um amálgama de seu tempo. Na graphic, identificamos o herói
quadrinhesco que luta contra as forças do mal; o papel central das tecnologias de informação
como dispositivos ideológicos; mazelas sociais de operários e dramas familiares; a moral
degenerada de uma sociedade pós-industrial; subúrbios fervilhando de conspirações e
promiscuidades; e a luta do homem em busca de encontrar um sentido para a “liberdade”.
Numa Inglaterra fascista, governantes controlam o povo, cerceiam as liberdades e se
apoderam de seus medos. Milhares de estrangeiros, homossexuais e opositores do regime são
jogados em campos de concentração, para servir de cobaias humanas, ou simplesmente serem
dizimados. Entretanto, é justamente de um desses campos de horror que sai o futuro herói.
Usado como experimento, ele desenvolve capacidades físicas e intelectuais extraordinárias,
acaba explodindo seu cárcere e desaparece. Anos depois ele dá novamente as caras, para
cobrar vingança sobre seus antigos algozes e decidido a destruir o governo que foi
responsável pelos seus sofrimentos. Jamais revela seu nome e seu rosto. Dele conhecemos
somente suas vestes pretas, seus movimentos rápidos, sua inteligência sobre-humana, a
máscara de Guy Fawkes, e seu codinome, uma simples, mas sugestiva, letra V.
2.3 A filosofia espia por trás da máscara
O primeiro ponto a examinarmos na graphic deve ser, obviamente, o protagonista, o
próprio V. Um herói paradoxal, que rasga policiais com suas adagas e explode edifícios
inteiros com a mesma postura impassível com a qual liberta uma nação.
“O homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre
um abismo” (NIETZSCHE, 1999, p. 211). O além-do-homem (ou super-homem) nietzschiano
é o sujeito afirmativo, imbuído de vontade de poder e realização. O além-do-homem é o
homem livre das imposições de religiões e convenções sociais fúteis. Nietzsche prega o
surgimento de seres humanos que se desvencilham do controle ideológico exercido por
sacerdotes e pregadores, que lutam contra a superstição e ignorância e banem de uma vez por
todas o sentimento de culpa pecaminosa. Sentimento esse, afirma o filósofo, inculcado no
povo para “tornar a humanidade dependente” (NIETZSCHE, 2007, p. 49). Há algo
nietzschiano no personagem V. O herói-terrorista não reconhece limites na execução de suas
vinganças. E estas não se limitam ao grupo de envolvidos nas torturas que sofreu no campo de
concentração, ele estende essa vingança contra o sistema fascista.
O além-do-homem prescinde de Deus e qualquer postulação moral. Ele é imoral, mas
não selvagem. Apenas entende a moral como um código convencionado historicamente para
atender aos interesses de uma minoria ávida de poder. Um dispositivo de controle. Na
graphic, o fascismo impõe sua a eugenia racial e moral. Assim como orientais e negros,
homossexuais, muçulmanos e socialistas eram apreendidos e enviados aos campos de
concentração. O homem superior nietzschiano nega e combate a moral e a religião, porque as
entende como correligionárias da autoridade vigente. São relativas e mutáveis no tempo e
espaço. V então, a semelhança do além-do-homem, precisa lutar contra conceitos
desvirtuados de bem e mal, de progresso e retrocesso. Ele é pintado como lobo diante de
ovelhas que são pastoreadas por dragões.
O além-do-homem é mais que um homem do presente, é um visionário. Ele é aquele
que “justifica os futuros e redime os passados: pois ele quer ir a fundo pelos presentes”
(NIETZSCHE, 1999, p. 212). O senso de responsabilidade pelas gerações futuras move o
super-homem nietzschiano. Ele não deve se contentar em simplesmente se tornar um homem
superior, deve também incumbir-se de passar a posteridade essa determinação de superação.
Isso se encaixa perfeitamente em V. Seu objetivo, paralelamente às vinganças pessoais, é
desatar as vendas intelectuais do povo, para que percebam como sua ignorância é o alimento
do governo opressor. V busca, por meio das explosões, destruir os símbolos do poder fascista.
Os edifícios do Estado possuem uma utilidade mais extensa que simplesmente abrigar a
estrutura física e administrativa do governo. Eles são signos da autoridade. Isso é verdade em
toda a história e em ambos os hemisférios. Os prédios dos governos são a materialidade de
seu espírito de dominação. Destruindo o significante, V intenta fazer o mesmo com seu
significado. O povo deve perceber que a autoridade do regime é tão vulnerável quanto seus
prédios. Ao fim, deixando mais forte a imagem do além-do-homem em V, ele sacrifica a si
próprio pelo ideal anarquista, e seu corpo explode junto com o Parlamento.
Amo aqueles que não procuram atrás das estrelas uma razão para sucumbir e
serem sacrificados: mas que se sacrificam à terra, para que a terra um dia se torne
do além do homem (NIETZSCHE, 1999, p. 211).
“Força através da pureza, pureza através da fé”. Não é difícil encontrar um cartaz com
esses dizeres em meio aos cenários da graphic. O lema do governo convocando o povo em
sua crença religiosa. A religião, de fato, quase sempre desempenhou o papel de braço direito
do Estado. Para Rosseau, desde a “origem das nações”, tratando-se de política e religião, “
uma serve de instrumento à outra” (ROSSEAU, 2007, p. 55). O mesmo autor ainda assegura,
que somente a coerção pela força dificilmente sustenta a legitimidade das leis perante o povo.
Em virtude disso, os primeiros legisladores passaram a colocar a voz da autoridade na “boca
dos imortais” (ROSSEAU, 2007, p. 55). Deus está onde estão os nossos medos, e por onde
repousa uma penumbra de ignorância. Para Assis Utsch, “a indigência mental reforça a
religiosidade” (UTSCH, 2008, p. 68). È justamente ao estado de ostracismo intelectual que os
cidadãos ingleses são reduzidos na sociedade representada em V de Vingança. O acesso aos
livros e a arte é rigorosamente vigiado. A programação televisiva é banal e repetitiva. O vazio
cultural aumenta nos povos suas angústias ontológicas e, na graphic, o único referencial de
verdade está no culto controlado pelo fascismo.
Figura 1: Bispo Liliman finalizando seu sermão
A religião em V de Vingança assume um caráter utilitarista. Mantêm o povo
esperançoso, psicologicamente anestesiado e mentalmente ocupado. Reconhecendo na
instituição do governo os desígnios de uma inteligência transcendental, eles “obedecem com
liberdade e levam docilmente o jugo da felicidade pública” (ROSSEAU, 2007, p. 55). A
religião se configura, desse modo, como Nietzsche (1999, p. 396) aponta, “uma regressão
fisiológica”, uma supressão das vontades, uma morte do espírito.
Qualquer homem pode gravar tábuas de pedra ou comprar um oráculo ou simular
um comércio secreto com alguma divindade ou adestrar um pássaro para que lhe
fale ao ouvido ou encontrar outros meios grosseiros para se impor ao povo
(ROSSEAU, 2007, p. 55).
Para ressaltar a artificialidade da fé nas autoridades eclesiásticas na graphic, Moore
retratou o bispo Liliman como um degenerado, envolvido nos genocídios dos campos de
concentração e pedófilo.
Figura 2: O Bispo Liliman contratava serviços sexuais de adolescentes
Agora, com relação à cultura e a falta dela, imagine nossa condição da seguinte
maneira. Pense em homens encerrados numa caverna, dotada de uma abertura que
permite a entrada de luz em toda a extensão da parede maior. Encerrados nela
desde a infância, acorrentados por grilhões nas pernas e no pescoço que os
obrigam a ficar imóveis, podem olhar para frente, porquanto as correntes no
pescoço os impedem de virar a cabeça. Atrás e por sobre eles brilha a certa
distância uma chama... (PLATÃO, 2007, p. 225).
Basta dominar alguns rudimentos de filosofia para reconhecer nestas linhas um
coringa da filosofia ocidental: a alegoria da caverna. Muitas são as interpretações criadas
sobre a célebre passagem de A República de Platão. Usaremos dela aqui sob o aspecto da
alienação, num paralelo com o encarceramento da personagem Evey Hammond por V.
No décimo capítulo de V de Vingança, o herói, disfarçado de policial, rapta Evey
quando esta apontava uma arma às costas do assassino de seu amante. Evey é levada para a
Galeria das Sombras, casa e espécie de quartel general de V, e é aprisionada numa cela dentro
de um ambiente que simula Larkhill, campo de concentração onde V esteve. A jovem é
torturada dia após dia, pressionada a confessar sua cumplicidade nos atos terroristas e
assassinatos perpetrados pelo herói-terrorista. Sem saber que o próprio V criara toda a
situação. Ao cabo de alguns dias, sempre negando colaborar com os supostos inimigos, ela
houve sua sentença de morte. Percebendo a resolução da garota, V decide que o “teste” estava
terminado e revela à Evey toda a simulação. É a partir deste ponto que a analogia entre a
graphic e a parábola platônica é pertinente.
O ato de sair da caverna, para o encarcerado, era doloroso. Desde a infância vivendo ali,
havia tomado por realidade as sombras projetadas através da abertura. A luz oscilante, as
sombras passageiras e as vozes sem rosto que as acompanhavam, resumia toda a sua cultura.
A principio ele se opõe à sair da caverna. Encara a luz, os objetos, sente o ar fresco, e tudo lhe
parece fenômenos assustadores. Tenta voltar atrás, os raios do sol ardem em sua retina. Luta
contra quem o impele a sair do covil escuro, acredita que estão o separando da verdade.
Evey é o encarcerado saindo da caverna. Mas a caverna aqui não deve ser entendida
como a cela onde V a colocou, mas sua vida até aquele momento. Evey não compreendia a
realidade da sociedade sob o fascismo como V compreendia. Ainda que seu pai tivesse sido
executado pelo mesmo governo, quando ela ainda era uma criança, o tempo e a doutrinação
controlaram suas mágoas, e ela foi inserida como mais uma “engrenagem” do sistema. Nas
palavras de V: “Eu não pus você numa prisão, Evey. Apenas mostrei as grades”. Em Platão,
são correntes, em V de Vingança, são grades. Muda-se o símbolo, mas permanece o
significado: a ignorância.
O processo de transição das “sombras para a luz” também é desconfortável para Evey.
Ela se enfurece: “Eu estava amando! Era feliz! Se era uma prisão, não me importa!” Como o
encarcerado platônico, ela não consegue aceitar a nova verdade, e quer voltar ao estado de
ignorância confortável.
Platão relata que após os primeiros momentos de estranheza, o prisioneiro,
gradativamente, começa a “habituar-se a contemplar essas realidades superiores” (PLATÃO,
2007, p. 227). Processo semelhante ocorre com Evey. Passados os primeiros momentos de
indignação, a jovem, entre soluços de choro, acalma-se. V a leva até o terraço e, numa das
cenas mais marcantes da graphic, Evey expõe seu corpo debilitado e nu sob a chuva, e se abre
para uma nova perspectiva de sua vida e da realidade.
Figura 3 – Codinome V leva Evey até o terraço da Galeria das Sombras após libertá-la da prisão
3. CONCLUSÕES
A graphic novel V de Vingança, de Alan Moore é, certamente, um baú repleto de
caracteres filosóficos. Desde a disposição das cores, sempre contrastantes e intensas, até os
modos do herói, as ideias de Moore saltam à mente. A anarquia, a vontade de potência de um
indivíduo contra toda uma sociedade, a opressão ideológica da mídia e das instituições
eclesiásticas, a alienação e as realidades vedadas por trás de nossa bagagem cultural incutida
no processo educacional doutrinário; muitos outros aspectos se prestam à análise em V de
Vingança. E estes sempre estão presentes em tudo que leve o toque humano. Quando a
filosofia for resgatada de seu exílio acadêmico, os indivíduos perceberão que o filosófico é
indissociável à vida. Assim como o exercício físico e a alimentação, filosofar é um ato de
condicionamento, um exercício das faculdades cognitivas. É a negligência das massas em
cultivar suas capacidades intelectuais e filosóficas que estimula a Indústria Cultural a
continuar comercializando produtos culturais de nível extremamente baixo, para satisfazer,
momentaneamente, o apetite vil das classes alienadas.
Se, como Glauco, estranhamos essas histórias de tristes homens aprisionadas em
cavernas obscuras, distraídos toda vida por meros vultos, lembremo-nos da resposta de
Sócrates: “Malgrado isso, são semelhantes a nós. Pense bem!” (PLATÃO, 2007, p. 225).
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12º Edição. São Paulo: Hucitec,
2006.
HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. Coleção grandes obras do pensamento universal, 25. São Paulo: Escala, 2007.
NIETZSCHE, Friedirch W. Crepúsculo dos Ídolos. Coleção grandes obras do pensamento universal, São Paulo: Escala, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich W. Obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
PLATÃO. A república. Coleção grandes obras do pensamento universal, 05. São Paulo: Escala, 2007.
ROSSEAU, Jean Jacques. O contrato social. Coleção grandes obras do pensamento universal São Paulo: Escala, 2007.
UTSCH, Assis. As raízes de Deus. Curitiba: Chain, 2008.
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