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  • O Kitsch est Cult

    de Christina Maria Pedrazza Sga 53

    REVISTA SIGNOS DO CONSUMO V.2, N.1, 2010. P. 53-66.

    O KITSCH EST CULT1

    The kitsch is cult

    Christina Maria Pedrazza Sga2

    Resumo

    Com mais de um sculo de existncia, a palavra kitsch ainda confundida com brega.

    O conceito de kitsch ganhou uma dimenso que foi alm do conceito de arte. Ele

    infiltrou-se em diversos segmentos de manifestaes artsticas e estticas apoiadas

    pela indstria cultural e pelos meios de comunicao de massa. Com isso, o kitsch

    passou a ditar a moda e padres de comportamento voltados para a cultura urbana,

    presenciada e vivida no cotidiano de todos ns. Ele se consolidou na cultura de massa

    das grandes cidades e conquistou os caminhos da globalizao.

    Palavras-chave: arte, cultura, kitsch, mdia, consumo.

    Abstract

    The word kitsch has been still confused with the word cheesy, in spite of it having more

    than one century of existence. The concept of kitsch has gotten a dimension that goes

    farther than the concept of art. It has infiltrated in different artistic expressions that are

    supported by cultural industry and mass media. Therewith, the kitsch has begun

    imposing fashion and behavior patterns that are directed to the urban culture and to our

    day by day. It has consolidated in mass culture of big cities and conquered the paths of

    globalization.

    Keywords: art, culture, kitsch, mass media, consumption.

    Resumen

    La palabra kitsch aun es confundida com cursi , mismo com ms de um siglo de

    existencia. El concepto de kitsch ha ganado uma dimensin que super el propio

    concepto del arte. El kitsch se infiltr en muchos seguimientos de manifestaciones

    1 Texto apresentado no IV ENECULT -Salvador (2008) e no INTERCOM -Natal (2008).

    2 Docente da Faculdade de Comunicao na Universidade de Braslia (UnB). Ps-doutora em Fsica

    Aplicada s Cincias Sociais transdisciplinaridade. Doutora em Cincias da Comunicao pela Universidade Nova de Lisboa-PT. Tem artigos publicados no pas e no exterior. Autora do livro O

    Kitsch e suas Dimenses. Taguatinga DF: Casa das Musas, 2008. Contato: [email protected]

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    artsticas y estticas apoyadas por la industria cultural y por los medios masivos de

    comunicacin. Con esto el kitsch pas a influenciar la moda y patrones de

    comportamiento, direccionados hacia la cultura urbana, presenciada e vivida en nuestro

    cotidiano. El se consolid en la cultura masiva de las gran ciudades y conquist los

    camios de la globalizacin.

    Palabras-clave: arte, cultura, kitsch, medios de comunicacin, consumo.

    1. INTRODUO

    Aps severas contestaes recebidas dos crticos de arte nos anos 60 e 70, o

    kitsch conquistou seu espao no mercado de consumo da cultura de massa. Muito

    antes, a esttica tinha como referncia do mundo artstico as diretrizes da beleza e do

    equilbrio. Com isso era possvel conceituar o que deveria ser considerado arte em

    oposio ao que se poderia chamar de antiarte e nesta ltima classificao encontrava-

    se o kitsch. Hoje, a esttica kitsch est presente na vida social das pessoas, na moda,

    no trabalho, na escola, entre jovens, adultos e crianas.

    Oriundo do verbo alemo kitschen/verkitschen (trapacear, vender alguma coisa

    em lugar de outra), o termo kitsch adquiriu o significado de "falsificao" a partir de

    1860. Porm, a palavra kitsch foi usada pela primeira vez na metade do sculo XX, na

    obra do socilogo francs Edgar Morin (1987, p. 17) intitulada Esprit du temps.

    Guimaraens & Cavalcanti (1979, p. 9) encontraram outra possvel origem para

    o kitsch, alm de considerarem a etimologia alem. Para esses autores h uma verso

    na lngua inglesa, provinda da palavra sketch, significando esboo. Na segunda metade

    do sculo XIX, quando os turistas americanos queriam comprar uma obra de arte, a

    preo barato, eles pediam um sketch.

    Apesar de mais de ter um sculo de existncia, a palavra kitsch ainda apresenta

    alguma confuso em seu significado, sendo muitas vezes interpretada como sinnimo

    de brega. Entende-se que uma coisa brega quando est relacionada ao mau gosto.

    Este conceito no se estende necessariamente ao kitsch. Mesmo que muitos atribuam

    ao kitsch o conceito de mau gosto, nem sempre esse mau gosto evidente aos olhos do

    consumidor ou do indivduo que faz uso do kitsch, principalmente se o objeto for uma

    rplica do original. Um tpico exemplo uma reproduo de um pintor famoso

    vendida na loja de um museu ou mesmo em frente a ele. De certa forma, pode-se

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    considerar um objeto kitsch se ele apresentar uma ou mais das seguintes

    caractersticas: 1) imitao (de uma obra de arte ou de um outro objeto); 2) exagero na

    linguagem visual ou na linguagem verbal); 3) ocupao do espao errado (um carrinho

    de pedreiro usado como jardineira em um canteiro de jardim); 4) perda da funo

    original (uma garrafa de vinho usada como castial). Estas caractersticas foram

    elencadas pela autora deste texto em seu livro O kitsch e suas dimenses.

    2. DO HORIZONTE DA ARTE

    O conceito de kitsch ganhou uma dimenso que extrapolou o prprio conceito

    de arte, fazendo outros percursos e se infiltrando em diversos segmentos de

    manifestaes artsticas. A grande responsvel por sua propagao foi a indstria

    cultural, que reproduzia em srie as obras de arte para agradar o gosto da classe mdia

    burguesa, perdendo com isso o grau de autenticidade dessas obras.

    Ultrajando os horizontes da arte, o kitsch veio percorrendo as artes plsticas, a

    arquitetura, decorao de ambientes, literatura, msica, vesturio, publicidade,

    culinria e outros campos. Exemplos disso foram as obras do expoente artista dadasta

    Marcel Duchamp, com sua obra A Fonte, de 1917, e, bem depois, j na dcada de 60,

    Andy Wahrol, com as obras Marilyn Monroe, de 1967, e Campbell Soup, de 1968, que

    hoje tm valores inestimveis, a ponto de estarem includas entre as obras

    contemporneas de auras, diga-se de passagem.

    Apoiado pelos meios de comunicao de massa, o kitsch atingiu a sociedade de

    consumo ou sociedade de massa qual se destinam os produtos integrantes da cultura

    de massa. Ele tentou se encontrar na contracultura, mas se perdeu; passou a ser

    confundido com vanguarda, mas na verdade seu substrato. Foi alvo de veementes

    crticas, principalmente pelos frankfurtianos, como Theodor Adorno, Max

    Horkheimer, Herbert Marcuse e Walter Benjamin, que contestavam a apropriao que

    certas tendncias artsticas faziam da verdadeira arte esttica, nica e autntica.Walter

    Benjamin (1980) um dos integrantes da Escola de Frankfurt, alegava que, na sua

    reproduo, a obra de arte perde a aura, isto , perde sua prpria autenticidade, com

    exceo da reproduo na fotografia e no cinema em que a reprodutibilidade , desde o

    incio, inerente a esses tipos de produo artstica. Benjamin criou um antagonismo

    entre arte de aura e arte de massa, permitindo ao segundo tipo de arte, uma posio

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    progressista, justificando que a arte de aura tinha sido relegada ao abandono. Esse seu

    posicionamento fez com que recebesse severas crticas de seus colegas frankfurtianos,

    Adorno e Horkheimer.

    Ao lado da indstria cultural, o kitsch se alicera na mdia, compondo nosso

    cotidiano por meio das novelas televisivas, da msica e da publicidade. Alm disso,

    utilizado pela globalizao como forma de democratizar a economia e a cultura. As

    regravaes dos grandes sucessos de uma poca, com novas interpretaes ou ritmos

    musicais so considerados kitsch, assim como fuses de estilos, pocas e ritmos que,

    ao perderem suas caractersticas originais mediante as fuses, contriburam para

    constituir o kitsch. No percurso cclico e recursivo da moda e das tendncias,

    particularmente do vesturio, a moda busca inspirao no passado para ditar as

    tendncias futuras, chamando de novidades aquilo que fez parte de uma poca. A

    cultura de massa, calcada na indstria cultural, consegue transformar arqutipos em

    esteretipos, estandartizando padres da moda por meio da repetio desses modelos

    at serem consumidos massivamente pela sociedade.

    O kitsch se define como panaceia psicossocial ao substituir a natureza autntica

    do objeto em questo, na tentativa de solucionar uma frustrao scio-psicolgica do

    seu usurio. Quem no gostaria de ter uma rplica da Mona Lisa em sua casa? At

    mesmo uma estampa dessa obra pode surtir o mesmo efeito. O fato que continua

    sendo apenas uma tentativa e nunca uma soluo, propriamente dita, para resolver um

    problema psicossocial. Parece que isso no o que realmente importa para quem faz

    uso do kitsch. O importante aparentar e encontrar uma resposta vivel para aquele

    problema, mesmo que superficial, usada como disfarce para encobrir tal frustrao.

    Porm, o kitsch tambm tem seu lado positivo na sociedade. Ele pode ser a

    soluo ideal para um problema social. Os pneus velhos usados para fazer balanos em

    playgrounds de escolas pblicas so timas alternativas para baratear custos, alm de

    evitar maiores complicaes no caso de o balano se chocar contra uma criana, desde

    que no acumulem gua a ponto de contrarem a temvel doena tropical conhecida

    por dengue.

    Argumenta Moles (1975, pp. 28-29) que o kitsch mais uma direo do que

    um objetivo e acrescenta que h algo de kitsch no fundo de cada um de ns .

    3. RESISTINDO S CRTICAS

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    O kitsch se imps glorioso na sociedade de consumo alicerada pela indstria

    cultural que, por sua vez, obtm resultado com seus produtos por meio de formas

    estereotipadas mas expostas ao consumo como se fossem novas. Compreender o kitsch

    antes de tudo entender o trip que o sustenta: indstria cultural, meios de

    comunicao de massa e cultura de massa, termos que sero elucidados no interior

    deste texto. A relao estabelecida entre esses trs elementos fortalece a sociedade de

    massa ou de consumo que tem como grande produto dessa relao, o kitsch. Teixeira

    Coelho (1981) analisa a indstria cultural tendo como respaldo a sociedade de

    consumo ou de massa. O referido autor relata em seu livro que h uma certa polmica

    entre os estudiosos da cultura em relao data do surgimento da indstria cultural.

    Uns dizem que foi com a inveno da imprensa. Outros consideram que isso ocorreu

    na segunda metade do sculo XIX, na Europa, com o teatro de revista, a opereta e o

    cartaz. Mas o mais adequado entend-la como consequncia da Revoluo

    Industrial, no final do sculo XVIII e tudo o que sucedeu, paulatinamente, esse

    episdio histrico. Teixeira Coelho caracteriza a indstria cultural como resultado de

    quatro fatores scio-econmicos, melhor dizendo: revoluo industrial, capitalismo

    liberal, economia de mercado e sociedade de consumo. Tudo isso acabou por criar a

    cultura de massa que, para Teixeira Coelho (1981, p. 28), melhor seria se fosse

    chamada por cultura industrial ou cultura industrializada, j que muito difcil

    conceituar o significado de massa.

    Quando processada pela indstria cultural, a arte resulta num produto de

    cultura de massa, consumido pela ento j instituda sociedade de massa. Muitas vezes

    esse tipo de produto de consumo, tpico da cultura de massa, nasce na prpria massa,

    sendo por ela consumido. So exemplos disso alguns grupos musicais que surgiram

    fazendo um sucesso fulminante e desapareceram do mesmo modo que vieram, como

    foi o caso do grupo o Tchan. Ainda na categoria de cultura de massa encontram-se

    as literaturas de bolso, distribudas nas bancas de revistas e jornais com forte presena

    do kitsch mediante a identificao, aproximao e interao social no cotidiano das

    pessoas.

    O carter simblico do kitsch est presente tanto em formas concretas como em

    formas abstratas. O que dizer de uma situao em que o interlocutor A, ao receber a

    visita do interlocutor B em sua casa, recebe-o dizendo:

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    A Ol , quanto tempo!

    B Estive viajando.

    A Por onde? Por mares nunca dantes navegados?

    Porm, o interlocutor A poderia no ter certeza sobre a origem dessa frase, nem

    do seu autor e to pouco preocupar-se com sua natureza, vulgarizando uma passagem

    memorvel de Cames.

    Tratando-se de imitao, o kitsch serve tanto arte como aos objetos no

    artsticos. A satisfao em ter aquele objeto, mesmo sabendo muitas vezes que se trata

    de uma imitao, torna-se imensa por ele estar prximo ao objeto real. Com a aquisio

    desse objeto, o indivduo percebe que estabeleceu uma relao de aproximao e de

    interao entre ele e a sociedade de consumo ou sociedade de massa. A relao de

    aproximao acaba adquirindo uma caracterstica real para o seu usurio ao notar que

    estabeleceu uma aproximao consigo mesmo, satisfez seu ego e elevou sua auto-

    estima, diminuindo sua insatisfao e at mesmo suas neuroses, lembrando aqui o

    pensamento de Morin (1987) sobre a sociedade de consumo. Por fim, tal aproximao

    integra o usurio sociedade de consumo, tambm conhecida como sociedade de

    massa.

    Quando Moles (1975, p. 44) menciona o ideal da felicidade e a ausncia de

    alienao que os objetos oferecem ao indivduo, isso equivale a entender a ideologia

    presente no cotidiano do burgus e, portanto, do indivduo kitsch na sociedade de

    consumo. Moles (1975, p. 44) considera que ao se fazer uso de objetos ou atitudes

    kitsch certos valores so revelados no indivduo inserido nessa sociedade de massa ou

    de consumo, tais como: 1) segurana; 2) afirmao de si prprio; 3) sistema possessivo;

    4) gemtlichkeit conforto em sentir-se vontade; 5) ritual de um estilo de vida.

    Contudo, esses valores esto ligados ao que considerado como ideologia do indivduo

    na sociedade de massa, ou seja, sua viso e aspirao de mundo ideal.

    4. QUE CULTURA ESSA?

    Os meios de comunicao de massa encarregam-se de passar a ideologia j

    filtrada pela indstria cultural para os seus receptores. Apesar de os meios de

    comunicao de massa terem seu surgimento com a inveno da imprensa, foi, contudo,

    com o advento da televiso que eles passaram a ser usados pela Indstria Cultural,

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    responsvel pela homogeneizao da cultura e do conhecimento, bem ao gosto da

    sociedade de massa que se tornou fiel consumidora desse tipo de cultura, conhecida

    como cultura de massa.

    A mdia se incumbe ora de elitizar, ora de popularizar um produto mediante os

    cenrios televisivos e a linguagem publicitria. Especificamente sobre a Publicidade

    que o estudo do kitsch merece uma ateno especial, visto que os consumidores so

    tentados, muitas vezes, a comprar gato por lebre. Os apelos visuais e verbais embalam

    os sonhos do consumidor. Para entender melhor o gosto popular pelo kitsch,

    necessrio levar mais longe a indagao sobre as razes psicossociais do kitsch (...),

    penetrar mais fundo na geologia moral do homem massa e de seu antepassado cultural

    imediato o burgus, observa Jos Merquior (1974, p. 13). Porm, antes de se falar

    sobre o processo e o lugar do kitsch na cultura e na sociedade, oportuno neste

    momento conceituar cultura e suas subdivises justamente para compreender por que o

    kitsch tornou-se cult.

    Caldas (1986, p. 11) admite que o termo cultura bastante abrangente, indo

    desde o significado de cultivo at conhecimento cientfico, passando por conceitos

    de cultura erudita, cultura de massa e cultura popular. Herdamos do latim colere o

    significado de cultivo, aponta Caldas, sendo que com os romanos, na Antiguidade, a

    palavra cultura foi usada pela primeira vez no sentido de destacar a educao

    aprimorada de uma pessoa, seu interesse pelas artes, pela cincia, filosofia, enfim, por

    tudo aquilo que homem vem produzindo ao longo da sua histria (Caldas, 1986, p. 11).

    Em grego, a cultura no sentido agrcola era conhecida como "georgia" e no sentido de

    educao como "paideia".

    Aps a Revoluo Industrial houve uma crescente expanso social que

    proliferou a burguesia e, consequentemente, a paideia estava voltada para a

    formao da educao na opinio de Werner Jaeger, citado por Hannah Arendt (1972,

    p. 265). A paideia foi assimilada pelos romanos como sendo agricultura e culto

    religioso. Da, ento, os romanos escolheram a expresso colere para significar todo

    esse conjunto de sentidos. Arendt acredita que Ccero tenha sido o primeiro a usar a

    palavra cultura (colere) para designar coisas do esprito e da alma. Porm, os gregos

    j faziam distino quanto aos objetivos de cultura.

    Merquior adverte que:

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    a paideia no vive s em conexo ntima com a personalidade: vive tambm num estado superlativo de intencionalidade. De intencionalidade no sentido

    fenomenolgico: uma cultura viva sempre transitiva, est sempre orientada para

    objetos autmatos e durveis, que so os valores culturais. A intentio da cultura faz com ela gravite em torno dos valores, atrada e norteada por eles.( Merquior

    1974:17).

    De outro modo, Merquior supe que Ccero pode ter sido a primeira pessoa a

    empregar a palavra cultura com o significado de intencionalidade. De uma forma

    geral, e particularmente no campo da lingustica, compreende-se intencionalidade

    como direcionalidade, distino feita pelo linguista John Searle (1995). Para Abraham

    Moles (1975, p. 46) h uma intencionalidade e uma relatividade no kitsch.

    A palavra cultura plena de armadilhas por ter muitos significados. Ela

    comea com um sentido geral, percorre os campos antropolgico, psicolgico e

    etnogrfico e vai at os campos da esttica e da tica, admite Morin (1977). S no

    campo da antropologia ele detectou duas possibilidades significativas: a) cultura como

    organizao, estruturao e programao social; b) cultura como linguagem, por

    traduzir todo aspecto semntico e intelectual de um povo. No campo da etnografia a

    cultura se contrape ao tecnolgico e mantm os ritos, mitos e crenas, valores e normas

    de comportamento. No campo da sociologia a cultura tem sentido residual sobrando

    tudo que no se encaixa em outras reas. No campo literrio-artstico a cultura ope o

    culto ao inculto. Morin (1977, p. 83) compreende, ento, a cultura como um sistema

    que faz comunicar em forma dialtica uma experincia existencial e um saber

    constitudo. Argumenta ainda que as diferenas dos conceitos de cultura esto na

    amplitude do sistema cultural, ou seja, dependendo do sistema a cultura pode ir desde a

    experincia vivida em sociedade at cultura ilustrada do saber e do conhecimento

    esttico, filosfico e cientfico, passando por esses cdigos.

    A cultura tambm compreendida como um conjunto de caracteres sociais,

    polticos, tnicos, artsticos e religiosos, formas simblicas de representar valores e

    crenas de um povo e de uma sociedade. Os padres culturais dependem do tipo de

    organizao existente nas sociedades. Sem os padres culturais, nenhuma sociedade,

    seja ela primitiva ou civilizada, teria chances de funcionar ou sobreviver (...). Sem

    cultura no haveria sistemas sociais da espcie humana e, consequentemente, o homem

    estaria impossibilitado de criar sua sociedade (Caldas, 1986, p. 15).

    Quando um sistema social estratificado em diferentes classes econmicas h,

    dessa forma, diferentes culturas dentro desse mesmo sistema social. No caso de algumas

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    sociedades, como o caso da sociedade brasileira, alm da estratificao econmica, h

    a diversidade tnica com seus credos e costumes responsveis pela constituio do povo

    brasileiro. Isso faz com que exista pluralidade cultural no Brasil.

    Por meio de um certo consenso estabelecido pelos socilogos e estudiosos das

    sociedades e suas culturas, foi possvel classificar, para uma melhor compreenso, a

    seguinte diferenciao de culturas: cultura erudita, cultura de massa e cultura popular. A

    cultura erudita aquela que herdamos desde a Antiguidade at aquela que no foi

    processada pela Indstria Cultural e, nem consequentemente, divulgada pelos meios de

    comunicao de massa. Essa cultura inclui tanto os conceitos filosficos como os

    artsticos. A noo de arte e de esttica de que temos referncia remonta aos padres

    gregos e romanos da Idade Antiga e que depois foram recuperados durante o perodo do

    Renascimento. Os saberes matemtico, artstico e filosfico encontraram na Idade

    Moderna as renovaes cientficas necessrias para o aprimoramento do conhecimento

    humano, enfim da alta cultura (high culture). Assegura Morin (1977, p. 83) que no

    ncleo da cultura ilustrada h a inteligncia que reivindica a propriedade cultural porque

    ela assegura sua criatividade. No processo de democratizao ou popularizao ocorre

    o que Dwight MacDonald (1962) denomina de midcult e, inversamente, no de elitizao

    ocorre a masscult, embora alguns utilizem estes dois termos como sinnimos. Em

    Apocalpticos e integrados, Eco (1987, p. 76) se refere obra de MacDonald

    reafirmando que na masscult erguem-se as manifestaes de uma cultura de massa e a

    midcult a corrupo da alta cultura.

    O kitsch ora tende para o midcult ora para o masscult. O duet musical

    apresentado no Brasil entre Roberto Carlos e Pavarotti, na ltima dcada do sculo XX,

    seria um exemplo tpico de midcult, sendo o cantor brasileiro um dolo da mdia

    burguesia e Pavarotti, considerado elitista pelo prprio gnero musical, a pera. No caso

    do masscult, pode-se citar o surgimento do estilo new sertanejo. Este no tem as

    mesmas razes que o tradicional sertanejo, pois no traz os sonhos e os dissabores do

    agreste brasileiro, peculiares da cultura de razes populares. Cultura de massa no a

    mesma coisa que cultura popular e ambas se diferenciam substancialmente da cultura

    erudita.

    A expresso cultura popular define um tipo de cultura produzida e consumida

    pelo prprio povo, de forma espontnea e distante das escolas e universidade. Est livre

    de influncias massificantes como a cultura de massa, prprias da indstria cultural.

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    Nesse tipo de cultura pode-se observar nitidamente as diferenas sociais, conforme

    aponta Waldenyr Caldas (1986), fato que j no acontece na cultura de massa. Afirma

    Caldas que a cultura popular pode ser um dos pontos de apoio das transformaes

    sociais.

    Cultura de massa o resultado da produo de ideias e produtos filtrados pela

    indstria cultural, divulgados e distribudos em massa para a sociedade de consumo. So

    includos nesse universo cultural a moda, os dolos da msica, a arte representada pela

    msica, literatura e artes plsticas, esporte e lazer. Todos apoiados fortemente pela

    mdia, ou seja, pelos meios de comunicao de massa, cujos maiores detentores de

    opinio pblica so a televiso, a imprensa e o rdio. Eles so capazes de ascender ou

    destituir com a mesma facilidade e rapidez, um dolo da poltica, da msica, das

    telenovelas e do esporte, enfim, um dolo do pblico.

    A indstria cultural, apoiada pela mdia, propaga a cultura de massa e transforma

    arqutipos em esteretipos, estandartizando padres da moda por meio da repetio

    desses modelos at serem consumidos massivamente pela sociedade. Para o desgosto

    dos crticos da indstria cultural, seguir essas tendncias um sintoma de alienao.

    Para outros segmentos da sociedade, no segui-las tambm se torna alienante por se

    considerarem fora do contexto social no qual esto inseridos e alienados s mudanas. A

    cultura de massa um elemento facilitador no momento em que coopera para a

    integrao do indivduo sociedade de massa. Em geral, a principal preocupao dos

    tericos est no fato de a cultura de massa homogeneizar os valores culturais e estticos,

    tornandos-os impessoais.

    5. CRIATIVO E PRAGMTICO

    O kitsch pode ser criativo por vrias razes. Por ser alternativo, econmico,

    sugestivo, oportuno, funcional, alm de possuir uma gama de adjetivos que poderamos

    atribuir-lhe. Ele complementa uma ideia, d o toque desejado a um ambiente, porm

    nunca original na sua criatividade, nem na sua essncia. O seu aspecto alternativo

    acaba por resultar em uma soluo adequada a uma situao ou a um problema em

    questo. Por mais exigentes e por mais conhecedores de esttica da arte que formos,

    quase impossvel no sermos e no termos um pouco de kitsch em cada um de ns.

    Ainda mais quando este a soluo perfeita para um problema imediato, alm de

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    econmico e prtico, apresentando um resultado ou um efeito to bom ou at melhor

    que o prprio original. Os especialistas dos cenrios das telenovelas, do teatro, do

    cinema e at mesmo dos desfiles de carnaval bem sabem disso. O efeito do kitsch

    surpreendente. O papel alumnio que imita prata, as plantas de plstico que imitam as

    naturais, as frutas artificiais na fruteira da cozinha e assim por diante.

    Por meio de fatos ou acontecimentos notamos que a moda kitsch quando ela

    tenta resgatar uma poca ou um modismo que fez sucesso em determinado ano ou

    dcada. Os remakes cinematogrficos, de telenovelas e as regravaes musicais so

    exemplos tpicos do kitsch. Muitos jingles para campanhas polticas se apropriam de

    msicas de sucesso, com modificao da letra, adequando-as proposta do candidato

    em questo. A moda e os modismos urbanos veiculados pela mdia impulsionam os

    jovens, os adultos e as crianas para o consumo do kitsch.

    Mesmo no sendo original, por no partir de uma nica origem e no ter uma

    referncia nica, o kitsch pode ser criativo. Certa vez, um garoto de 12 anos enviou sua

    ilustrao para o caderno infantil de um peridico local. Era um desenho de um

    homenzinho mirrado, com bigodes estilizados de Salvador Dal, lembrando a logomarca

    da Nike. De forma inconsciente, esses foram os efeitos subliminares da publicidade,

    apoiados pela mdia, pois a referida marca est fortemente implantada no imaginrio da

    sociedade de consumo de maneira globalizada, fazendo com que seus usurios tenham

    enorme devoo marca Nike, quer por fidelidade, quer por ideologia do status que o

    produto oferece a eles. O kitsch ali criado (houve deslocamento da logomarca da Nike

    para compor os bigodes do pintor surrealista) valeu como uma aluso sociedade de

    massa ou mesmo uma crtica debochada ao consumo exacerbado de marcas que

    denotam status, mesmo que essa manifestao do garoto tenha sido inconsciente ou sob

    efeitos subliminares da mdia.

    Para Moles, uma coisa pode ser kitsch num lugar e funcional no outro. Ele cita o

    exemplo em que um conjunto de candelabros pode ser kitsch em Paris e no ser na

    Itlia, j que este pas teve srios problemas de eletricidade em determinada poca. Na

    verdade, o kitsch kitsch em qualquer lugar, no importa a problemtica de cada local.

    no aspecto funcionalidade que este texto discorda de muitos crticos que analisaram

    o kitsch at ento. A maioria diz que o kitsch no funcional; mas ele sim. Sua

    caracterstica universal de funcionalidade inerente a ele, j associada ao seu valor de

    uso. O que ocorre que ele muda da funo original para uma segunda funo

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    totalmente diferente da primeira e seu uso vai depender do grau de utilidade que ele

    possa ter em determinada situao. Por exemplo, se estivermos numa fazenda, noite, e

    precisarmos de iluminao (caso falte eletricidade), poderemos nos servir de umas

    garrafas vazias como castiais para as velas. Numa sociedade como a de hoje, sujeita a

    alteraes econmicas, que se refletem na bolsa de valores e nas moedas cambiais, o

    funcional dever desempenhar, no mnimo, duas funes. Um exemplo disso, citado por

    Abraham Moles (1975, pp. 205-216) em seu livro O Kitsch, uma pea que

    desempenha trs funes: saca-rolha, abridor de latas e de garrafa em um nico objeto.

    O kitsch no antifuncional. Ao contrrio, ele acaba adotando uma caracterstica

    pragmtica e utilitria. A universalidade se mantm pelo carter bifuncional ou at

    mesmo plurifuncional. Vejamos, por exemplo, os gadgets (objeto engenhoso),

    miniaturizados, com o intuito de realar sua praticidade funcional. Um chaveiro-relgio,

    minidespertador, com funo de porta-retratos e chaveiro ao mesmo tempo, uma caneta

    termmetro em miniatura.

    O kitsch, ento, surgiu como reao a normas rgidas que tiveram origem no

    funcionalismo, consideram Guimaraens e Cavalcanti (1979, p. 27). Pode-se ainda

    acrescentar as imitaes como funcionais para determinada situao em que o objeto

    original no vivel. Por exemplo, rplica de objetos raros em alguma exposio por

    medida de segurana contra possvel furto ou violao de tal relquia. Outro tipo de

    situao a dos cenrios para apresentao de peas teatrais, filmes ou algum tipo de

    encenao pblica, como os desfiles de Carnaval, ou mesmo o uso de plantas artificiais

    na decorao de ambientes de telenovelas e na ornamentao de aqurios, devido fcil

    manuteno desses espaos.

    6. SCULO XXI: O KITSCH NAS CULTURAS URBANAS

    GLOBALIZADAS

    Mas cabe aqui uma pergunta: o que dizer dos valores culturais hoje em dia?

    sabido que estamos vivendo, em pleno sculo XXI, uma cultura efmera,

    transitria, mas que no perde seu carter de intencionalidade, que se orienta para

    objetos e pessoas inseridas numa cultura de massa renovvel a todo momento. Toda

    intencionalidade possui uma direcionalidade, lembrando aqui o ponto de vista de

    Searle (1995). E o kitsch segue uma intencionalidade, uma direcionalidade voltada

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    para a ideologia da sociedade de massa ou de consumo. Que ideologia essa, seno a da

    globalizao e a do multiculturalismo?

    Diante de propostas unificadoras vindas do mercado econmico mundial, a

    sociedade de consumo busca enquadrar-se nessas tendncias mundiais, globalizando a

    economia, a cultura, as tendncias e o gosto em geral. Uma grande massificao cultural

    e esttica est presente na sociedade tecnolgica e globalizada (Sga, 2006). Isso

    evidencia que o kitsch tambm pode ser encontrado fora do mbito da arte. A moda e a

    culinria so exemplos tpicos de uma economia globalizada. H, dessa forma, um

    deslocamento geogrfico e cultural prprio da globalizao. Ocorre a presena do kitsch

    porque, para atender ao mercado consumidor, o produto exportado precisa se adequar

    cultura local do mercado consumidor, perdendo assim, na maioria das vezes, suas

    caractersticas originais, quer na aparncia, quer na maneira de utilizao.

    Alm da perda da identidade nacional dos produtos exportados, resultado de um

    consenso comum de cada bloco econmico, os pases importadores acabam por perder

    suas caractersticas particulares ao adotarem determinados produtos. Dessa maneira, o

    kitsch pode ser considerado uma interferncia cultural com finalidades comerciais.

    7. CONCLUSO

    O kitsch hasteou bandeiras contrrias elite dirigente. Excluiu a aura do

    iluminismo esttico, ganhando espao ureo na cultura de massa. Nela consolidou-se,

    proliferou-se, globalizou-se. Pleno de liberdade, o kitsch transitou pela contracultura,

    mas nela no se encontrou. Recebeu vrios nomes: midcult, ready-made, gadget,

    etc. Despiu-se de toda pureza e originalidade e tornou-se objeto de desejo de vrios

    consumidores. Mas h quem escolha o kitsch por razes contestatrias ou mesmo por

    simples deboche.

    O lado cult do kitsch foi mencionado por Santos (2004) ao analisar as artes

    plsticas e a literatura no Brasil e na Amrica Latina. No Brasil, o Tropicalismo de

    Gilberto Gil e Caetano Veloso marcou o kitsch musical. O kitsch veio para ficar por

    tempo indeterminado. Passou a ser considerado cult e chic, ao mesmo tempo em que

    uma panaceia para os problemas sociais, econmicos e culturais da sociedade de

    consumo.

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    REVISTA SIGNOS DO CONSUMO V.2, N.1, 2010. P. 53-66.

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    Artigo recebido em 17/2/2010.

    Aprovado em 7/4/2010.