artigo_resenha

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Artigo Pastor Augustus Nicodemos

Citation preview

  • FIDES REFORMATA 2/2 (1997)

    Em Busca do Jesus Histrico... mais uma vez

    David van Biema, "The Gospel Truth?," Time 15/147 (8 abril 1996) 52-59.Kenneth Woodward, "Rethinking the Resurrection," Newsweek 15/127 (8 abril1996) 60-70.

    Jeffrey Sheller, "In Search of Jesus," U.S. News & World Report 14/120 (8 abril1996) 46-53.

    Durante a Pscoa de 1996, trs das principais revistas norte-americanas publicarammatrias de capa (vide referncias acima) sobre os mais recentes desdobramentos daltima e mais nova fase das pesquisas acadmicas sobre o "verdadeiro" Jesus,empreendimento levado a efeito especialmente por estudiosos de linha liberal. Nessapoca, Jesus tambm andou sendo capa de revista aqui no Brasil, em artigos queseguiam a mesma linha, em termos gerais.

    Num certo sentido, o empreendimento no original. Num livro publicado em 1906, quemarcou poca nos meios acadmicos do estudo dos Evangelhos, Albert Schweitzerdescreveu e analisou o que ele batizou de "a busca do Jesus histrico." Nesse livro (TheQuest for the Historical Jesus), Schweitzer analisa os esforos de reconstruir a vida deJesus feitos pelos pesquisadores crticos a comear do sculo XVII.

    Os estudiosos crticos justificam a sua busca do "Jesus histrico" afirmando que a IgrejaCrist, pelos seus dogmas e decretos acerca da divindade de Jesus, obscureceu a suafigura humana, e tornou impossvel, durante muito tempo, uma reconstruo histrica dasua vida. Essa impossibilidade tornou-se ainda mais severa aps a Reforma, quando aexegese dos Evangelhos e do Novo Testamento em geral passou a ser controlada pelasconfisses de f e pela teologia sistemtica. Argumentam que, para que se possa fazeruma reconstruo do Jesus histrico , portanto, necessrio deixar para trs os dogmas ea teologia sistemtica, e tentar entender e reconstruir o Jesus da histria. O principalcritrio a ser empregado seria a razo, que os racionalistas entendem como medidasuprema da verdade. As ferramentas a serem usadas so aquelas produzidas pela crticabblica, como a crtica da forma e a crtica literria, entre outras.

    Por dois sculos, estudiosos de dois continentes tentaram reconstruir o Jesus da histria,porm, sem muitos resultados positivos. O Jesus reconstrudo pelos liberais parecia maiso fruto da obstinao dos mesmos do que de uma sria pesquisa cientfica. O trabalho deR. Bultmann e K. Barth ps um fim honroso "busca" agonizante e declarou-a umaempreitada intil. Bultmann convenceu toda uma gerao de estudiosos de que o Jesushistrico estava to soterrado debaixo dos mitos criados pela igreja nascente que ostelogos deveriam abandonar as esperanas de ach-lo e dedicar-se ao Cristo da f.

    Alguns discpulos de Bultmann, como E. Ksemann, tentaram reabrir a questo, mas oprojeto estava novamente fadado ao fracasso. A falta de consenso entre os estudiosos, anatureza altamente especulativa da crtica da forma (a principal ferramenta empregada),e a impossibilidade de provar as hipteses levantadas para explicar o surgimento dorelato dos Evangelhos, acabaram por encerrar mais essa fase.

    Mas, a idia no morreu. Estamos testemunhando em nossos dias mais uma tentativa por

  • parte dos que no acreditam na historicidade dos Evangelhos, de achar a "verdade" pordetrs desses relatos. Um grupo de 75 estudiosos de diversas orientaes religiosasreuniram-se nos Estados Unidos h poucos anos atrs e fundaram o "Simpsio de Jesus"(The Jesus Seminar), que se rene regularmente para levar adiante a "busca doverdadeiro Jesus." Seus pressupostos so basicamente os mesmos dos queempreenderam a "busca" antes deles, ou seja, que o retrato de Jesus que temos nosEvangelhos uma caricatura produzida em grande parte pelo que D. F. Strauss chamouno sculo passado de "mito." Para Strauss, mito era uma idia religiosa apresentadacomo se fosse histria. O mito recebia forma histrica atravs do poder do inconscientehumano de criar lendas em torno de personalidades histricas. No caso dos escritores dosEvangelhos, eles estavam influenciados pela sua reflexo sobre o Antigo Testamento eassim muitos dos mitos sobre Jesus refletem os "mitos" vetero-testamentrios.

    Em outras palavras, o que temos nos Evangelhos no um retrato do Jesus querealmente existiu, mas do que foi criado pela f e pela teologia da Igreja(Gemeindetheologie). Para se chegar ao verdadeiro Jesus, necessrio "limpar" osrelatos dos Evangelhos dos acrscimos incorporados pela f da Igreja nascente. este otrabalho aos qual se dedicam os 75 membros do "Simpsio de Jesus."

    E foi exatamente a publicao dos resultados do "Simpsio" que ganhou a ateno damdia secular no ano passado, nos Estados Unidos e na Europa. A revista Timeapresentou a concluso do grupo de que a vasta maioria das palavras e atos de Jesusregistrados nos Evangelhos so puro mito. A controvrsia no nova. Em fins do sculoXIX, Strauss e Weisse j haviam incendiado os crculos acadmicos da Europa com essaidia, contribuindo para a diviso entre liberais e fundamentalistas nos Estados Unidosdurante a dcada de 1920. dessa poca o clssico Christianity and Liberalism, de J.Gresham Machen, uma resposta dos conservadores ao ataque feito pelos liberais contra aconfiabilidade dos registros dos Evangelhos. Machen procurou demonstrar que ocristianismo resultante dessa reconstruo liberal do Jesus da histria era simplesmente ovelho humanismo disfarado com fachada de piedade. A disputa havia permanecidorestrita aos crculos acadmicos, mas o "Simpsio de Jesus," conforme a reportagem daTime, veio dar popularidade disputa. Como resultado, um nmero crescente de livrossobre o assunto vm sendo publicados nos Estados Unidos e traduzidos inclusive para oportugus, alguns dando total apoio ao trabalho do "Simpsio de Jesus," outros trazendoa resposta dos estudiosos conservadores. Qualquer pesquisa feita na Internet sobre aoassunto revelar uma enorme quantidade de artigos sobre o tema.

    A reportagem da Time afirma que por sculos a maioria dos cristos teria consideradoimpensvel uma distino entre o Jesus da histria e o Cristo da f. Foi somente aps ainfluncia do racionalismo e do ceticismo cientfico nos estudos neotestamentrios daEuropa que o quadro comeou a mudar. Utilizando-se das ferramentas crticas da anlisehistrica e literria (crtica literria das fontes, da forma, da redao, etc.), os estudiososcrticos do Novo Testamento chegaram concluso de que existe pouca coisa histricanos Evangelhos de que podemos ter certeza. Em 1926, R. Bultmann, eminente telogoalemo, aps concluir que apenas 40 dos ditos de Jesus eram realmente dele, encorajouos demais estudiosos a se concentrarem apenas no Jesus da f.

    Time concluiu que o "Simpsio de Jesus" no est fazendo nada de novo. Mas paraRobert Funk, fundador e lder do movimento, o que novo a disposio do grupo emtornar pblicas as suas concluses. Em 1993 o grupo publicou um livro com os seusresultados, intitulado "Os Cinco Evangelhos" (The Five Gospels), onde se afirma quesomente 19% das palavras atribudas a Jesus so realmente dele. Essas concluses e

  • outras tm sido difundidas atravs de relatrios peridicos publicados pelo "Simpsio" emjornais de grande circulao. Ou seja, o que o "Simpsio de Jesus" est fazendo de novoem relao s outras "buscas" trazer a discusso ao conhecimento do povo. Antes, eraalgo restrito aos meios acadmicos.

    No poucos estudiosos conservadores tm questionado os resultados do grupo. SegundoTime, Luke Johnson, um oponente declarado do "Simpsio," afirma categoricamente queos cristos americanos tm to pouco conhecimento da Bblia, e to pouca mentalidadecrtica com relao mdia, que no so capazes de avaliar e criticar as opinies dosmembros do "Simpsio," veiculadas de forma sensacionalista pelos meios de comunicaocomo se as mesmas fossem cientficas e racionais. Johnson, um ex-padre catlico, atacaa falta de seriedade da erudio liberal, corretamente aponta que os resultados do"Simpsio" no representam o consenso dos estudiosos modernos do Novo Testamento, eaconselha os crentes a simplesmente ignorarem o projeto do "Simpsio."

    A revista Newsweek, por sua vez, publicou uma matria sobre o tema onde concentra-seem explorar e contrastar os resultados de duas pesquisas de opinio feita entre cristosdos Estados Unidos acerca da ressurreio de Cristo. O articulista corretamente afirmaque o conceito de ressurreio central para a f crist, mas a explica que "cadagerao reinterpreta para si mesma o sentido de Jesus." Ele ainda percebe corretamenteque a controvrsia surgiu porque alguns liberais esto tentando substituir o Jesus"cltico," adorado pelos cristos, por um Jesus "real" revelado pela pesquisa histricacrtica. Esses estudiosos liberais argumentam que a doutrina de uma ressurreio fsicaimpede o povo de ver a importncia de Jesus como reformador social.

    Uma pesquisa feita pela empresa Harris em 1994 revelou que 87% dos americanos achaque Jesus ressuscitou literalmente dentre os mortos. Outra, feita pela Barna em 1996descobriu que 30% dos americanos que se consideram cristos nascidos de novo noaceitavam a afirmao de que Jesus reviveu fisicamente aps a crucificao. Ao queparece, um nmero crescente de evanglicos americanos est aceitando a idia de que asaparies de Jesus aps a sua ressurreio foram um tipo de experincia psquica quetransformou os discpulos. A Newsweek erroneamente generaliza ao afirmar: "Osestudiosos certamente concordam que a ressurreio no significa a revivificao de umcadver. As boas novas do Cristo ressurrecto no foi que o seu corpo reviveu, mas queDeus revelou-se de uma forma nova e inesperada." Esse conceito do articulista deNewsweek corresponde ao conceito liberal apenas h muitos outros estudiosos quecontinuam a afirmar a ressurreio fsica, literal e corprea de Jesus.

    J o semanrio americano U.S. News & World Report publicou matria na mesma pocaargumentando que o aspecto mais intrigante acerca desta mais recente fase da "busca" como as crenas pessoais e as pressuposies dos proponentes influenciam as suasconcluses. As pressuposies do pesquisador acabaro por determinar qual Jesus eleest buscando e definiro que tipo de Jesus plausvel. O autor da matria revela falta demaior conhecimento sobre o assunto, pois, na verdade, este aspecto no exclusivo dosnovos pesquisadores do Jesus histrico, mas marcou todas as pesquisas anteriores. Oideal de se fazer uma pesquisa histrica totalmente objetiva, sem a influncia dasconvices pessoais, inatingvel. Por exemplo, o grande pressuposto que controlou athoje a busca do "verdadeiro" Jesus foi a convico pessoal da grande maioria dospesquisadores de que milagres realmente no acontecem (alguns, como Strauss, eramcticos at mesmo quanto existncia de Deus). Logo, o ponto de partida de suaspesquisas que os relatos dos Evangelhos so historicamente inexatos e no confiveis.

  • O que nos impressiona que alguns dos modernos pesquisadores do "Simpsio" tiveramum passado "evanglico" ou mesmo conservador, antes da "virada." Robert Funk, porexemplo, um dos fundadores do "Simpsio" e lder do grupo, havia sido um jovempregador avivalista no Texas. O Jesus que ele agora prega "est liberado dos acrscimosartificiais de sculos de tradio eclesistica," conforme confessa. O Jesus de Funk umaespcie de Scrates judaico, uma combinao de sbio secular, crtico social, e cmico,que nunca teve a inteno de fundar uma religio. J Marcus Borg foi pastor luteranodurante muitos anos. Hoje ele admite que havia se tornado ateu e agnstico j duranteaquele perodo. Aps um tempo de afastamento da f crist tradicional, Borg voltou igreja, embora com uma viso de Jesus completamente diferente da anterior. O Jesus emque ele hoje acredita foi, na verdade, um crtico cultural radical, transformado pelosdiscpulos depois da "ressurreio" em uma pessoa-esprito mstica. John Meier continuasendo sacerdote catlico ao mesmo tempo em que ensina teologia numa universidadecatlica. Meier afirma ainda continuar crendo em doutrinas como o nascimento virginal deJesus, mas acrescenta que ela e outras no podem ser provadas pelo mtodo histrico-crtico. E diz que procura manter separados a sua f e o seu trabalho acadmico. Ou seja,a sua f no depende de que o Jesus em que ele acredita tenha realmente existido ouno. Outro catlico participante do Simpsio" John Dominic Crossant, vice-presidentedo grupo. Ele deixou a batina e a Igreja Catlica em 1969, embora ainda se considerecatlico. Na sua opinio, os Evangelhos so inexatos historicamente na maior parte doque dizem sobre Jesus. Ser cristo ser poderosamente influenciado pela vida de Jesus.A pergunta fica, entretanto, qual vida de Jesus?

    Uma falha imperdovel dessas reportagens compreensvel por terem sido escritas porjornalistas, e no por peritos em crtica histrica do Novo Testamento que noconsultaram a opinio de outros pesquisadores bblicos de convices conservadoras,como Moiss Silva, D. Carson, Douglas Moo, James D. G. Dunn e outros, to eruditos eto competentes quanto os integrantes do "Simpsio," mas que continuam crendo emmilagres e num Deus presente. So reportagens unilaterais e preconceituosas, num certosentido.

    Algumas crticas podem ser feitas ao projeto da busca do Jesus histrico, da forma comotem sido levada a efeito pelos novos pesquisadores, os membros do "Simpsio de Jesus."Em primeiro lugar, o pressuposto controlador da busca o racionalismo, exatamentecomo nas fases anteriores. A razo usada como o critrio mximo para determinar ahistoricidade ou no dos relatos dos Evangelhos. Assim, a abordagem deles como se aBblia fosse um livro religioso igual aos das outras religies, contendo elementosmitolgicos e lendas. Em segundo lugar, vemos a natureza altamente especulativa dasferramentas crticas utilizadas, como, por exemplo, a crtica da forma, uma anlise dotexto bblico que procura explicar o surgimento de determinadas narrativas como sendoproduo da comunidade da f. Em terceiro lugar, no h consenso entre ospesquisadores liberais quanto ao Jesus que procuram reconstruir. Exatamente por causado alto nvel de especulao, o Jesus reconstrudo pelos pesquisadores continua sendomenos que convincente. Gabam-se de terem liberado o Cristo da f, mas no apresentamnenhum Jesus da histria que seja realmente plausvel e que explique o surgimento daIgreja Crist.

    Finalmente, verdade que a nossa f no depende dos resultados das pesquisashistricas. Nossa f depende, na verdade, da realidade histrica dos fatos acerca deJesus. Tanto a historicidade dos seus milagres quanto da sua ressurreio so colocadoscomo fundamento da f crist. Os escritores do Novo Testamento, embora obviamenteno tivessem uma percepo moderna de histria, estavam plenamente conscientes do

  • carter histrico da f crist.

    Com o raiar da ps-modernidade, onde o critrio da razo tornou-se obsoleto, muitosprofetizaram o fim do antigo liberalismo, que se apoiava principalmente no racionalismo.Puro engano. Ele continua vivo e ativo no planeta terra.

    O que esta discusso tem a ver com a realidade evanglica brasileira? Muito,especialmente em certos seminrios de algumas denominaes histricas, onde asmesmas ferramentas utilizadas pelos pesquisadores antigos e atuais so recebidas eempregadas sem crtica. Ainda recentemente li a tese de mestrado de um professor deum desses seminrios, que utilizou-se da crtica da forma para provar que o discurso dePedro no dia de Pentecostes foi na realidade uma elaborao da comunidade lucana,colocada na boca de Pedro com o objetivo de autorizar o discurso da comunidade.

    O ressurgimento do antigo liberalismo nos seminrios acabar por produzir no Brasil umagerao de pastores e estudiosos que, semelhana dos integrantes do "Simpsio deJesus," viro a perder a f no Jesus histrico. A diferena que nos Estados Unidos essesestudiosos so geralmente profissionais que se dedicam exclusivamente a esse tipo depesquisa, e os seus resultados costumam permanecer apenas nos meios acadmicosonde circulam. Mas no Brasil, devido situao financeira, a grande maioria dosprofessores de seminrio so tambm pastores de igrejas locais. E a distncia entre ogabinete de estudos e o plpito muito pequena.

    A "busca do Jesus histrico" empreendida pela erudio liberal continuar. Noprecisamos ser profetas para predizer que no o acharo. Ele j est diante dos seusolhos, nas pginas dos Evangelhos, mas os seus pressupostos liberais impedem-nos dev-lo.

    Augustus Nicodemus Lopes