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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE, AMBIENTE E TRABALHO O corpo obeso e o trabalho das baianas de acarajé: um estudo de caso na cidade do Salvador Amanda Ornelas Trindade Mello Dissertação de Mestrado Salvador (Bahia) 2010

As Baianas do Acarajé!

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE, AMBIENTE E TRABALHO

    O corpo obeso e o trabalho das baianas de acaraj: um

    estudo de caso na cidade do Salvador

    Amanda Ornelas Trindade Mello

    Dissertao de Mestrado

    Salvador (Bahia) 2010

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    Mello, Amanda Ornelas Trindade Xxxxx O corpo obeso e o trabalho das baianas de acaraj: um estudo de caso na cidade do Salvador-Bahia / Amanda Ornelas Trindade Mello Salvador, 2010. Vi, xx f. Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Ribeiro Jacobina Dissertao (Mestrado) Universidade Federal da Bahia Programa de Ps-Graduao em Sade, Ambiente e Trabalho da Faculdade de Medicina da Bahia.

    1. Baianas de acaraj; 2. Obesidade; 3. Alimentao e cultura; 4. Sade do trabalhador; 5. Trabalhador artesanal.

    CDU

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE, AMBIENTE E TRABALHO

    O corpo obeso e o trabalho das baianas de

    acaraj: um estudo de caso na cidade do Salvador

    Amanda Ornelas Trindade Mello

    Orientador: Ronaldo Ribeiro Jacobina

    Dissertao apresentada ao Colegiado do Curso de Ps-graduao em Sade, Ambiente e Trabalho da Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia, como pr-requisito obrigatrio para a aprovao na atividade obrigatria Defesa de Dissertao do Curso de Mestrado. Salvador (Bahia), 2010

    III

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    Comisso examinadora Membros Titulares Vilson Caetano Souza Junior Professor adjunto da Universidade Federal da Bahia na Escola de Nutrio. Membro Permanente da Comisso de Avaliao e

    Acompanhamento da Lei 10.639, participa do Sistema Nacional de Avaliao da

    Educao Superior. Membro do Conselho de Cultura do Estado da Bahia. Doutor em Cincias Sociais pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (2001). ps

    doutor pela Universidade Julio Mesquita - UNESP. Lgia Amparo da Silva Santos Professora Adjunta da Escola de Nutrio da Universidade Federal da Bahia; coordenadora do Ncleo de Estudos e

    Pesquisas em Alimentao e Cultura (NEPAC-UFBA); Doutora pela Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP).

    Maria do Carmo Soares Freitas (co-orientadora) Professora Associada II da Escola Nutrio da Universidade Federal da Bahia. Doutora em Sade Coletiva

    pelo Instituto de Sade Coletiva da Bahia (ISC-UFBA). Ps doutora pela ENSP

    FIOCRUZ - RJ

    Ronaldo Ribeiro Jacobina Professor Associado II da Faculdade de Medicina da Bahia (FAMEB-UFBA) do Departamento de Medicina Preventiva e

    Social; Doutor em Sade Pblica pela Escola nacional de Sade Pblica

    (ENSP)-FIOCRUZ-RJ.

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    ... Dez horas da noite, Na rua deserta A preta mercando Parece um lamento...

    (I abar)

    Na sua gamela Tem molho cheiroso Pimenta da costa, Tem acaraj (, acaraj eco olala - Vem benz--em, t quentinho) Todo mundo gosta de acaraj Todo mundo gosta de acaraj O trabalho que d pra fazer que (bis) Todo mundo gosta de acaraj Todo mundo gosta de abar Todo mundo gosta de abar Ningum quer saber o trabalho que d Todo mundo gosta de abar Todo mundo gosta de acaraj Dez horas da noite, Na rua deserta Quanto mais distante Mais triste o lamento Dorival Caymmi, A preta do acaraj (grifos nossos).

    (Disco: Caymmi Indito, 1996)

    V

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    A toda as baianas de acaraj.

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    Equipe:

    Aisi Anne Carvalho Santana estudante do curso de Nutrio da Universidade Federal da Bahia.

    Instituies participantes

    Ncleo de Estudos sobre Alimentao e Cultura NEPAC. Fonte de financiamento:

    1. Projeto CNPq: Edital MCT/CNPq/SPM-PR/MDA N 57/2008

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    Agradecimentos

    Agradeo a professora Maria do Carmo Soares Freitas, um exemplo de mulher, estudiosa, pesquisadora e minha mestra de todas as horas pelo

    ensino constante e por acreditar em mim muito mais do que eu mesma.

    A Aisi Anne Carvalho Santana pelo estmulo de sempre. Aos meus alunos em especial a Tanie Barbosa Oliveira pelo apoio

    imensurvel e pela disposio ao aprendizado.

    A companheira Sara Emanuela Mota de Carvalho pela luz dada ao final do curso e pela amizade de sempre, mesmo que em alguns momentos

    estivesse longe fisicamente.

    Aos Espritos controles do Instituto de Cultura Esprita Carlos Bernardo Loureiro e a companheira de ideal Cristiane Amaral de Jesus,

    pelo estimulo ao estudo e ao raciocnio. Aos amigos e companheiros Alberto Carvalho e Patrcia Dias Carvalho pela presena de sempre.

    Aos meus familiares, minha me Margarida, meu pai Augusto, meus irmos Daniela, Rachel e Joo, aos meus sobrinhos Mateus, Marcos, Letcia

    e o pequeno Rafael pelo apoio e por entender, muitas vezes, a minha ausncia.

    Ao meu companheiro Alexandre, o seu carinho, a sua pacincia foram imprescindvel para a finalizao deste trabalho.

    Aos meus colegas do MSAT, em especial a Nara, Rafaela, Gizane, Mirella e Lindinalva por esses dois anos de sorrisos, estresses e

    companheirismo.

    A Solange, pelas broncas e conversas, um exemplo de competncia. Ao professor Fernando Carvalho pela presena, pelos desentendimentos. Ns crescemos muito no confronto.

    Ao meu orientador Ronaldo Ribeiro Jacobina pelo apoio, pela fluidez nas orientaes, principalmente ao final do trabalho.

    Ao Ncleo de Estudos sobre Alimentao e Cultura - NEPAC, principalmente a Professora Lgia Amparo por mostrar possibilidade de

    trabalhar com as baianas de acaraj. Ao grupo de estudos, pelo debate e

    discusso de textos.

    VIII

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    A Associao de Baianas do Acaraj, Mingau, Receptivo e Similares do Estado da Bahia - ABAM pela colaborao, apoio e pacincia por

    possibilitar a realizao desse trabalho.

    A todas as baianas de acaraj que so exemplos de mulheres

    batalhadoras e resistentes.

    Agradeo tambm a todos aqueles que ajudaram direta e indiretamente.

    Aos que nada fizeram, pois no ajudaram, mais tambm no atrapalharam.

    Aos que tentaram impedir, pois acredito que o ser cresce principalmente na

    diversidade.

    IX

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    SUMRIO

    Lista de Siglas.............................................................................................. p. 12

    Lista de Figuras ........................................................................................... p. 13

    1. Resumo.............................................................................................. p. 14

    2. Apresentao..................................................................................... p. 15

    3. Objetivos ........................................................................................... p. 16

    IV. Introduo............................................................................................... p. 17

    V. Reviso da literatura................................................................................ p. 19

    V.1. As ganhadeiras: o surgimento das baianas de acaraj na Bahia...... p. 19

    V.2. As baianas de acaraj: patrimnio e tradio.................................... p. 21

    V.3. Ofcio da baiana de acaraj: o corpo obeso e a sade..................... p. 28

    VI. Artigo I. A obesidade e o trabalho das baianas de acaraj na cidade do

    Salvador-Bahia.

    VI.1. Resumo e Abstract........................................................................ p. 34

    VI.2. Introduo...................................................................................... p. 35

    VI.3. Aspectos metodolgicos................................................................ p. 37

    VI.4. Caracterizao das baianas de acaraj do estudo ....................... p. 38

    VI.5. O Trabalho da baiana de acaraj na cidade de Salvador-Bahia.. p. 39

    I - um trabalho muito duro: o trabalho e a sade da baiana de

    acaraj.......................................................................................................... p. 39

    II Sinto muitas dores nos braos e na coluna: o sofrimento gerado pelo

    processo de trabalho da baiana................................................................... p. 40

    III Aparentemente no fumaa: o cheiro do dend............................. p. 43

    IV Gordura sadia x gordura doentia: o corpo das baianas e o

    trabalho......................................................................................................... p. 46

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    V Todo mundo acha que baiana gorda porque come acaraj o tempo

    todo: as prticas alimentares no tabuleiro................................................... p. 50

    VI.5. Concluso........................................................................................ p. 52

    VI.6. Referncias Bibliogrficas............................................................... p. 54

    VIII. Consideraes finais............................................................................. p. 58

    O que que a Baiana tem, Dorival Caymmi.................................................p. 59

    XIX. Referncias Bibliogrficas da dissertao............................................ p. 60

    XX. Apndices

    A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)

    B - Roteiro de entrevista semi-estruturado

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    Lista de siglas ABAM Associao das Baianas de Acaraj, Mingaus, Receptivos e Similares do Estado da Bahia.

    ABEPRO - Associao Brasileira de Engenharia de Produo. ASGOBS - Associao dos Gordos e Obesos de Salvador.

    CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais

    CLT Consolidao das Leis Trabalhistas

    CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico

    ENEGEP - Encontros Nacionais de Engenharia de Produo

    HPA Hidrocarboneto Policclico Aromatizado

    IPHAN. MINC Instituto Patrimonial Humano Nacional

    LER/DORT - Leses por Esforo Repetitivo / Distrbios Osteo-musculares

    Relacionados ao Trabalho

    MinC Ministrio da Cultura

    MSAT Mestrado em Sade Ambiente e Trabalho

    NEPAC - Ncleo de Pesquisas sobre Alimentao e Cultura

    SEBRAE Servio Brasileiro de Apoio a Micro e Pequena Empresa

    SENAC Servio Nacional de Aprendizagem Comercial

    SENAI Servio Nacional de Indstria

    SESI Servio Social de Indstria

    SUS Sistema nico de Sade

    UFBA Universidade Federal da Bahia

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    Lista de Figuras

    Figura 1: Ganho de comida. Sculo XIX. Foto: Cristhiano Junior.

    Figura 2: Baianas de acaraj comercializando em seus pontos de venda

    Terreiro de Jesus, Pelourinho. Salvador (BA), 2001. Foto: Elizabete de Castro.

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    RESUMO A baiana de acaraj parte integrante do cenrio turstico, social, econmico e

    cultural do estado da Bahia, principalmente na cidade do Salvador. Trata-se de

    um estudo de abordagem etnogrfica, realizado no perodo de setembro a

    dezembro de 2009. O objetivo deste estudo analisar as acepes sobre o

    fenmeno do corpo obeso das baianas de acaraj e suas condies de

    trabalho considerando o livre curso de suas narrativas a respeito de sua

    alimentao, seu corpo, suas condies de vida, sade e meio ambiente no

    trabalho. O trabalho da baiana desgastante e requer muita dedicao. Ao

    mesmo tempo em que a forma de subsistncia destas trabalhadoras, este

    tipo de atividade pode trazer prejuzos sade destas mulheres. O fogo e a

    fumaa e os movimentos repetitivos so apontados como possveis riscos para

    a aquisio de enfermidades. Foi identificado que as baianas elegem um duplo

    corpo em relao ao modo de viver no mundo: obeso para o seu trabalho de

    baiana e magro para sua vida cotidiana. Neste sentido percebe-se tambm que

    a falta de tempo para a vida social possibilita a baiana a no cuidar do seu

    corpo e da sua alimentao.

    Palavras Chaves: Obesidade; alimentao e cultura; sade do trabalhador; trabalhador artesanal

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    Apresentao Este trabalho sobre baianas de acaraj o produto final do curso de mestrado que teve a durao de 24 meses. A idia desse projeto nasceu

    quando fui convidada pela Profa Lgia Amparo Silva Santos do Departamento

    de Nutrio desta Universidade Federal da Bahia, para participar das reunies

    do Ncleo de Pesquisas sobre Alimentao e Cultura - NEPAC. H dois anos,

    o Ncleo estava trabalhando com aspectos scio-antropolgicos do acaraj e

    outros quitutes, no que tange a tradio e a modernidade.

    Na primeira reunio que participei, foi colocado por Prof Lgia que era

    preciso ter uma maior ateno nas condies de trabalho das baianas de

    acaraj e que o MSAT (Mestrado de Sade, Ambiente e Trabalho) poderia

    ajudar muito com a minha entrada no grupo. Foi exatamente neste momento

    que encontrei o objeto deste estudo. Coloquei esta possibilidade ao meu

    orientador e co-orientadora que aprovaram a mudana. Iria trabalhar com

    mulheres, negras, em sua maioria de baixa renda, na perspectiva do corpo

    obeso. Fiquei satisfeita por ser soteropolitana e viver na cidade do Salvador.

    Isso possibilita um convvio constante com estas trabalhadoras - baianas de

    acaraj, pois elas fazem parte do cenrio da cidade e, inevitavelmente, de

    minha vida.

    Vale ressaltar que os termos baiana de acaraj, baianas de acaraj ou

    simplesmente baiana ser utilizado em itlico com o intuito de diferenciar dos

    indivduos do sexo feminino que nasceram na Bahia.

    Foi aberto um edital no CNPq - Edital MCT/CNPq/SPM-PR/MDA N

    57/2008 que apresentava o seguinte objetivo: Apoiar projetos de pesquisa

    cientfica nas reas de relaes de gnero, mulheres e feminismos.

    Concorremos e fomos contemplados.

    Assim, esta dissertao est sendo apresentada em forma de artigo,

    como produto final para publicao, esperando que a banca de defesa, caso o

    estudo seja aprovado, faa as devidas correes.

  • 16

    II. Objetivos 1 - Geral:

    Analisar as acepes sobre o fenmeno do corpo obeso das baianas de

    acaraj e suas condies de trabalho considerando o livre curso de suas

    narrativas a respeito de sua alimentao, seu corpo, suas condies de vida,

    sade e meio ambiente no trabalho.

    2 - Especficos

    Analisar a percepo do corpo obeso para as baianas de acaraj; Observar e descrever as condies de trabalho, principalmente os riscos

    (no espao de trabalho) das personagens envolvidas no que tange a sua

    sade;

    Analisar as prticas alimentares das baianas de acaraj no ambiente de trabalho.

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    I. Introduo A baiana de acaraj considerada um carto postal da cidade do

    Salvador. Mas comercializao do acaraj antiga, tendo o seu incio no

    perodo da escravido, com as escravas de ganho que saiam pelas ruas

    vendendo os quitutes do tabuleiro. Este bolinho de feijo, frito no azeite de

    dend quente comercializado h, aproximadamente, 300 anos.

    Primeiramente, o acaraj era vendido ou oferecido nas festas de terreiro

    de Candombl como cumprimento dos deveres religiosos que necessitavam

    ser renovados com freqncia. Posteriormente o acaraj deixa de ser apenas

    oferenda, passando a ser vendido como uma mercadoria nos terreiros, onde

    foram adicionados outros produtos como: abar, vatap, caruru, salada de

    tomate verde, passarinha, bolinho de estudante, cocadas, peixe frito etc. Esta

    venda possibilitava a mulher o seu sustento e de sua famlia, alm da permitir a

    compra da alforria dos maridos.

    Desde as primeiras incurses em campo, para o exerccio etnogrfico

    justificou-se a escolha de gnero neste estudo, que elegeu a mulher

    trabalhadora como a protagonista de maior risco de obesidade do que os

    homens. Associado a isso, estas mulheres esto em um lugar mais vulnervel,

    uma vez que alm de trabalhadora, apresentam mltiplas jornadas de trabalho

    que proporcionam as mesmas maiores dificuldades no enfrentamento da vida

    diria.

    A escolha pela categoria das baianas de acaraj se deu pelo sentido

    destas trabalhadoras, como diria Luiz Fernando de Almeida, presidente do

    IPHAN, serem monumentos vivos da cidade do Salvador e se apresentar como

    parte inerente desta. Estas mulheres esto espalhadas por muitas partes da

    cidade. Nesta cena de comrcio e religiosidade, estas trabalhadoras com suas

    roupas e indumentrias de rendas e contas coloridas, chamam ateno seu

    corpo gordo e volumoso. Os valores que cercam o tema da obesidade ainda no so conhecidos,

    principalmente em comunidades originalmente tradicionais como as baianas de

    acaraj. Nesse aspecto, pergunta-se: Como percebem a obesidade e o

    trabalho? Que analogias fazem sobre estas situaes entre o corpo e o

    ambiente de trabalho? Como dialogam a sua profisso e as suas prticas

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    alimentares no trabalho? Ser o trabalho da baiana determinante da

    obesidade?

  • 19

    III. Reviso da Literatura 1 - As ganhadeiras: o surgimento das baianas de acaraj na Bahia

    No sculo XIX, as relaes escravistas na cidade do Salvador eram

    caracterizadas pelo sistema de ganho. As escravas ganhadeiras eram

    mulheres, negras, que ocuparam, naquela poca, lugar destacado no mercado

    de trabalho urbano. Poderiam ser encontradas escravas, colocadas nas ruas

    pelos seus proprietrios ou mulheres libertas que lutavam para garantir o

    sustento de sua famlia (IPHAN. MINC. MINC, 2004).

    As ganhadeiras escravas eram obrigadas a dar aos seus senhores uma

    quantia previamente estabelecida, a depender de um contrato acertado entre

    as partes. Caso houvesse excedente, esta trabalhadora poderia junt-lo para

    pagar a alforria dela e do marido ou gast-lo no seu dia-a-dia. Porm, muitas

    vezes, os lucros da venda que lhe sobravam eram poucos, trazendo maiores

    dificuldades para guardar o dinheiro. Apesar disso, o ganho era uma das

    principais portas para a alforria (SOARES, 1996).

    Tal prtica de comrcio ambulante de alimentos j era realizada na costa

    Ocidental da frica como forma de autonomia das mulheres em relao aos

    homens, o que, com freqncia, lhes conferia o papel de provedoras de suas

    famlias.

    Os principais itens vendidos pelas ganhadeiras eram os gneros de

    primeira necessidade, em sua maioria, alimentcios, como hortalias, verduras,

    peixes, frutas, comidas pronta (caruru, vatap, mingau, acaraj, bob); em

    segundo plano, tecidos e miudezas.

    Os tabuleiros poderiam ser fixos em pontos estratgicos das ruas (reas

    mais movimentadas como a praa do Comrcio e o Cais Dourado, em

    Salvador), mas, em sua maioria, eram carregados na cabea (HASBURGO,

    1982). Este ato de equilibrar o tabuleiro na cabea ajudava a tornar o corpo

    ereto, deixando as mos livres para o trabalho (Wetherell apud SOARES,

    1996).

  • 20

    O mesmo autor afirma que as ganhadeiras se vestiam dos mesmos

    trajes, de variadas cores, colorindo o cenrio urbano. Algumas levavam seus

    filhos junto a elas, indicando que estas mulheres trabalhavam sozinhas pela

    sobrevivncia.

    Atualmente, a ida das crianas ao local do trabalho pode evidenciar a

    manuteno da tradio ao propiciar as mesmas um momento para o

    aprendizado do ofcio, mesmo que nas tarefas menos especializadas.

    Estas mulheres equilibravam em suas cabeas tabuleiros, gamelas e

    cestas, ocupando ruas e esquinas das cidades dedicadas ao mercado pblico

    e feiras livres, onde vendiam quase tudo (SOARES, 1996). Porm era noite,

    a partir das 19 horas, que as famlias esperavam as ganhadeiras passarem,

    numa espcie de cerimnia, em que sua voz era aguda e alta anunciando a

    sua chegada: I acaraj, i abar ou ainda acar, acar aj, acaraj

    (IPHAN. MINC, 2004)

    Segundo Mott (1976), o comrcio permaneceu por muito tempo a nica

    atividade aberta s mulheres livres na sociedade escravista. Porm, devido a

    presena expressiva, o Estado passou a estipular critrios que limitavam a

    liberdade de movimento das negras vendedeiras, como pagamento de licena

    ao Estado, fiscalizao da qualidade dos alimentos, entre outros. No entanto,

    Figura1: Ganho de comida. Sculo XIX Fonte: IPHAN, 2004

  • 21

    mais tarde, aps muita luta e resistncia, estas mulheres puderam voltar a

    comercializar seus produtos sem maiores dificuldades (SOARES, 2007).

    Mesmo depois do perodo escravocrata e at os dias atuais, com

    finalidade religiosa ou comercial, a venda de acaraj permite que as mulheres

    aprendam uma profisso que ainda sustenta grande parcela da populao

    soteropolitana, e que assumam mltiplas jornadas como chefe de famlia, me

    e devota religiosa (CANTARINO, 2005).

    Segundo Ferreira Filho (2003), Salvador era uma cidade de mulheres

    guerreiras e resistentes apesar destas no o reconhecerem e, constantemente,

    esperarem um salvador.

    2 - As baianas de acaraj: patrimnio e tradio

    Herdeiras dos ganhos, as baianas de tabuleiro, baianas de rua, baianas

    de acaraj ou simplesmente baianas, preservam receiturios ancestrais

    africanos, sobretudo da Costa Ocidental, com destaque para os dos Iorub.

    Estas mulheres, negras e vendedoras, resistiram ao longo dos tempos

    discriminao, devido a sua origem, sua cor e sua condio social, porm

    conseguiram ocupar um lugar no espao cultural brasileiro, principalmente na

    Bahia, na cidade do Salvador.

    Pertencentes a um universo cercado pela ancestralidade, pela tradio,

    pela cultura culinria, a baiana de acaraj, parte integrante do cenrio da

    cidade do Salvador. Elas so monumentos vivos da cidade e dos terreiros de

    candombl, fazendo parte da histria da sociedade, e da cultura do povo

    baiano (IPHAN. MinC, 2004).

    Os alimentos, principalmente as comidas prontas, que eram vendidos

    nos seus tabuleiros, apresentavam caractersticas oriundas da nao africana,

    de cultura marcante. A religio, a culinria, a dana formam uma teia de

    significados trazidos por estes escravos que tiveram que adapt-los como

    forma de sobrevivncia e manuteno das suas razes.

    Cascudo (1983), afirma que os pratos baianos ditos de origem africana

    so uma reinveno da culinria africana uma vez que outros estados

    brasileiros como Minas Gerais, e pases como Cuba, tiveram a presena da

  • 22

    mesma nao de escravos, e hoje no apresentam caractersticas na sua

    culinria como a da Bahia. Na verdade, aqui no Brasil, muitos pratos de azeite

    de dend so reconhecidos como africanos, porm na frica os mesmos pratos

    so caracterizados como brasileiros ou identificados com outros nomes. A

    cozinha baiana a mais famosa cozinha do Brasil, a de maior carter

    (BRANDO, 1948).

    A cozinha baiana, como formao tnica do Brasil, tambm representa a

    sntese do portugus, do indgena e do africano, porm foi este ltimo que

    introduziu o azeite cheiro (azeite de dend), a pimenta malagueta, o camaro

    seco, o leite de coco e de outros elementos, no preparo das variadas refeies

    da Bahia (QUERINO, 2006). Como eram as mulheres negras que dominavam a

    cozinha africana no demorou para que as receitas fossem introduzidas

    mesa brasileira (CASCUDO, 1983).

    Nos terreiros de Candombl, a comida ocupa um lugar fundamental. Ela

    significa fora vital, energia, princpio criativo e doador de algo. Atravs da

    comida oferecida aos Orixs, se estabelecem relaes entre o devoto, a

    comunidade e o Orix. Sendo assim, cada Orix apresenta um tipo de comida

    que lhe oferecido (Eb) pelo seu filho, como forma de manuteno deste elo

    (SOUZA JUNIOR, 1999), como por exemplo, o akaraj tipo de comida de santo

    oferecido a Xang e a Oy, mais conhecida como Ians, que, segundo a

    tradio do Candombl, foi o ttulo dado por Xang (BASTIDE, 2001).

    Com o objetivo angariar recursos para fazer o santo, ou seja, cobrir os

    gastos necessrios s obrigaes de iniciao, era realizado, pelas mulheres, a

    obrigao do acaraj. Isto significava uma autorizao para produo e venda

    pblica por mulheres, escolhidas por Oy, iniciadas nos padres dos rituais

    tradicionais do candombl. Segundo esse preceito religioso, tradicionalmente o

    acaraj era vendido em gamelas de madeira redondas, semelhantes s usadas

    nos terreiros de candombl para oferecer aos orixs e adeptos o mesmo

    alimento sagrado (LODY, 1987).

    Dentre os quitutes, trazidos pelas escravas, um dos mais conhecidos e

    apreciados o acaraj. Esta palavra originada do Iorub e significa comer

    bola de fogo (akar bola de fogo; j comer). Nos terreiro de candombl, o

    verbo j acompanhado de preceitos, frmulas, palavras, cantigas e histrias

    que ilustram seu profundo significado (SOUZA JUNIOR, 2003).

  • 23

    A origem deste bolinho explicada por um mito sobre a relao de

    Xang com suas esposas Oxum e Ians. O bolinho se tornou um alimento

    sagrado, uma oferenda a esses orixs (VERGER, 1981), principalmente a Oy

    (Ians), a deusa africana que controla os ventos, as tempestades e os

    relmpagos e tem poder sobre o fogo (BARBARA, 2002).

    Neste sentido, quase imperceptvel, foi originada a designao da

    profisso destas mulheres e a partir de ento, chamadas baianas de acaraj.

    No h na literatura uma explicao do termo baiana. Deixaram de ser

    nomeadas como ganhadeiras ou mulheres do ganho para serem baianas com

    seus tabuleiros e quitutes e dend.

    A resposta mais bvia a de que prevaleceu a naturalidade dessas

    mulheres, sendo que a expresso de acaraj, explicada acima, estabelecia a

    especificidade de seu trabalho.

    No final da dcada de 40, as baianas comearam ento a arriar seus

    tabuleiros da cabea para um ponto fixo no cho, diminuindo o peso do

    deslocamento, mas aumentando a quantidade de instrumentos, como:

    fogareiro, tachos, cestas de comida, panelas, banco e o tabuleiro de madeira.

    Sentadas durante anos no mesmo lugar, adquiriram freguesias e no mais

    necessitaram ir em busca do cliente. Este sai em busca do acaraj num

    processo cuja digesto se inicia antes mesmo de ver o bolinho de feijo e

    dend. O lugar do acaraj fica como uma referncia para quem passa e para

    quem vem de longe degustar. Tudo depende da fama da baiana. No h como

    separar o acaraj da sua sacralidade, ainda que muitos fregueses no sejam

    adeptos do Candombl, mas este alimento nunca ser comparado a um lanche

    qualquer da cidade do Salvador (RIAL, 2007).

    Figura 2: Baianas de acaraj comercializando em seus pontos de venda Terreiro de Jesus,

    Pelourinho. Salvador (BA), 2001.

    Fonte: IPHAN, 2004

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    Espalhadas por toda cidade do Salvador, as baianas apresentam um

    ofcio que requer fora fsica e ateno a todo o processo de produo do

    acaraj. Para a jornalista Agnes Miranda, em entrevista (OLIVEIRA, 2009), o

    ofcio de baiana de acaraj: um trabalho difcil e significa assumir o

    compromisso de ser incansvel e ter coragem o tempo todo, assim como

    Ians, a dona do acaraj.

    Como artes, a baiana domina todo o processo de trabalho, e vive desse

    produto. A diviso das etapas do trabalho rudimentar e a regulao do tempo

    distinta de outros servios. A baiana chega ao ponto comercial no momento

    em que os fregueses procuram o produto. Em geral, nas ruas da cidade se

    come o acaraj a partir do meio dia. Na praia pode ser mais cedo.

    O trabalho da baiana de acaraj tradicionalmente artesanal derivado

    de uma forma individual, em que a trabalhadora, em geral, a proprietria do

    seu material (instrumentos de trabalho), e vende o seu produto final (PENA,

    2005). Embora seja artes, j se identifica um processo de assalariamento em

    algumas atividades, mas isso persiste na esfera do trabalho informal, pois no

    h contratao por meio de carteira assinada, conforme os ditames da

    Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT). H uma transio incipiente do

    arteso tpico para a micro-empresa. Porm, atualmente, percebe-se uma

    modernizao e ampliao do processo de trabalho possibilitando a criao de

    pequenas empresas do acaraj.

    Estas micro-empresas esto relacionadas ao processo de modernizao

    que vem se apresentando na forma de fazer-acaraj. As inovaes e os

    arranjos que so feitos servem para agilizar a produo dos produtos, como a

    adaptao do motor ao moinho de moer o feijo ou at mesmo a aquisio da

    massa pronta e congelada. Porm, segundo Xavier (2007), esta modernizao

    no pode acontecer de forma que descaracterize a histria da baiana, baseada

    em uma estrutura familiar permeada pela ancestralidade.

    O ofcio destas baianas fundamentado em uma organizao familiar,

    onde o aprendizado comea ainda na infncia, em casa, com as atividades

    mais fceis, como catar o camaro. Os filhos, sobrinhas, agregados, cunhadas,

    vizinhos formam um contingente de possibilidades para assumir o cargo de

    ajudantes ou auxiliares dessas baianas. Por muitas vezes no ter onde deixar

    as crianas, as baianas as levam ao ponto do acaraj e, neste espao,

    possibilita o aprendizado do ofcio pelas mesmas, permitindo a manuteno da

  • 25

    tradio (MARTINI, 2007). Este fato demonstra a ascenso da mulher no

    mercado informal adicionada a condio de mes-solteiras e a

    responsabilidade da casa uma vez que, segundo informao obtida

    diretamente na Associao de Baianas de Acarajs, Mingau, Receptivo e

    Similares do Estado da Bahia (ABAM), setenta por cento (70%) das associadas

    so chefes de famlia.

    Dentre as atividades realizadas pelas baianas de acaraj esto: lavar,

    tirar a casca e moer o feijo fradinho para a preparao da massa do acaraj e

    abar; preparar o vatap, caruru; catar camaro; cortar quiabo; cortar tomate,

    preparar o bolinho de estudante, as cocadas, o molho de pimenta. Alm disso,

    estas trabalhadoras so donas de casa, mes e esposas, caracterizando

    mltiplas jornadas de trabalho.

    O ato de moer o feijo tradicionalmente realizado na pedra de ralar,

    como descreve Manoel Querino (1851-1923), numa obra original e saborosa

    sobre a culinria baiana (QUERINO, 2006), idealizada desde sua adolescncia,

    concluda em 1916, mas publicada postumamente em 1928 (MIRANDA, 1998;

    NORONHA, 2004). Segundo depoimento de Vivaldo da Costa citado por

    Miranda (998), este ensaio foi a primeira descrio etnogrfica dos modos de

    fazer acaraj. Querino, provavelmente o primeiro negro a publicar livros sobre a

    histria e a cultura afrobrasileira, baseou sua pesquisa em depoimentos de

    informantes conhecedoras da cozinha africana, parentes (tias) consangneas

    ou por considerao religiosa, pertencentes aos terreiros nags mais

    tradicionais da Bahia. O autor cita o acaraj no tpico sobre os alimentos

    puramente africanos e descreve sobre a produo do acaraj, que o feijo

    fradinho ralado na pedra, frito no azeite de cheiro (de dend) e servido sem

    os acrscimos atuais, tais como vatap, caruru e salada. O acaraj era

    consumido puro, protegido por parte de uma folha de bananeira, levando, no

    mximo, quando era pedido, um pouco de molho preparado com pimenta

    malagueta, seca, cebola e camares, modo na pedra e frigido em azeite de

    cheiro (QUERINO, 2006).

    Em geral, esta atividade de ralar no mais comumente vista entre as

    baianas devido ao aumento do trabalho gerado e falta de tempo. No entanto,

    h algumas baianas que, pela tradio, ainda preferem a pedra de ralar s

    mquinas de moer cereais.

  • 26

    Mesmo com a introduo de algumas dessas inovaes, o processo de

    trabalho destas baianas continua rduo. Requer dedicao, pois devido alta

    demanda de atividades, esta emerge em um universo em que o tempo

    dedicado quase que exclusivamente, para o processo de elaborao do

    acaraj.

    A principal atividade da baiana preparar e vender os quitutes (caruru,

    bolinho de estudante, vatap, abar, passarinha, peixe frito etc.), que podem

    ser chamados de comida de tabuleiro, comida de baiana (comida baiana) ou

    comida de azeite (OLIVEIRA, 2009).

    Desde 1998, h uma norma municipal Decreto municipal 12.175/1998

    (SALVADOR, 1998) e outras portarias que regulamentam a profisso de baiana

    de acaraj. A documentao regulariza a indumentria, padroniza o tabuleiro e

    estipula regras de higiene e manuseio. De fato, as baianas so caracterizadas

    por seus trajes (anguas, saias, batas, toro) e indumentrias, com colares e

    pulseiras de contas, a simpatia e o sorriso constante.

    Hoje o acaraj largamente comercializado pelas ruas de Salvador por

    baianas originadas do candombl ou de outras religies, como a evanglica e

    as pentecostais. Apesar disso, algumas baianas referem que este alimento

    sagrado no pode ser dissociado do candombl (CANTARINO, 2005). Neste

    sentido h um aumento de baianas nas ruas de Salvador, no s pelas

    mulheres oriundas de outra religio, mas como a presena de homens e

    tambm de mulheres que encontraram no acaraj uma forma de manuteno

    da sua renda.

    Segundo Martini (2007), a entrada do homem neste ramo se deu pela

    falta de herdeiras da tradio em uma empresa familiar de Salvador. Assim, as

    baianas autorizaram o primeiro representante masculino na atividade, no intuito

    de inseri-lo no mercado de trabalho. Isto s ocorria em casos de morte de

    parentes mulheres na famlia. Para o candombl, uma transgresso, uma vez

    que suas regras diferenciam os ofcios masculinos dos femininos.

    Devido ao aumento da comercializao do acaraj nas ruas de

    Salvador, o Estado passou a se preocupar com a qualidade deste produto,

    principalmente, no incio do novo milnio, aps a publicao de pesquisas

    divulgando a falta de higiene no preparo do acaraj e sua divulgao na mdia.

    Uma dessas pesquisas, publicada em 2000, avaliou a qualidade higinico-

    sanitria de 23 amostras de acaraj e de seus complementos, comercializados

  • 27

    por Baianas em diferentes pontos tursticos de Salvador e seguindo padres

    microbiolgicos especficos para cada um dos alimentos, segundo a Portaria

    451/1997 do Ministrio da Sade, seguindo-se a metodologia da American

    Public Health Association APHA obteve os seguintes resultados: 39,13% dos

    acarajs; 82,6% das saladas; 95,65% dos vataps; e 100% dos camares-

    secos encontraram-se em condies imprprias para consumo, por

    apresentarem contaminaes acima dos padres legais vigentes, para

    Coliformes fecais, Bacillus cereus, Staphylococcus aureus, Clostrdius sulfito

    redutores e Salmonella. (LEITE et al., 2000) O Estado, a partir de ento, investiu na profissionalizao com

    fiscalizao, concesso de emprstimos e implementao de cursos de

    capacitao, como o Acaraj 10, que inicialmente era desenvolvido pelo

    Programa de Alimentos Seguros (PAS), coordenado pelo Servio Nacional de

    Aprendizagem Comercial (SENAC) e outras instituies mantenedoras como o

    Servio Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), Servio Social do

    Comrcio (SESC), Servio Brasileiro de Apoio a Micro e Pequena Empresa

    (SEBRAE) e Servio Social da Indstria (SESI), e hoje com apoio da prefeitura,

    est sendo ampliado para o programa Mo na massa (ANVISA, 2004).

    Carvalho Filho, Guimares & Sobral (2005), avaliaram o Programa

    Acaraj 10 atravs de questionrios que identificavam os conhecimentos e as

    prticas de manipulao e higiene dos alimentos antes e depois do programa e

    identificaram a sua eficcia.

    A partir deste perodo, o oficio da baiana de acaraj foi reconhecido

    como patrimnio cultural de Salvador, pelos vereadores, em 2004 ocorreu o

    tombamento histrico das baianas de acaraj como patrimnio imaterial

    nacional, pelo Programa Nacional do Patrimnio Imaterial - PNPI, institudo

    pelo Decreto n 3.551, de 4 de agosto de 2000. O registro do Ofcio da Baiana

    do Acaraj (inscrito no Livro de Registros e Saberes, das Celebraes, das

    Formas de Expresso e dos Lugares) no reconhece apenas o acaraj, como

    uma representao da culinria histrica, mas tambm outros saberes e

    fazeres tradicionais aplicados na produo e na comercializao das chamadas

    comidas da Bahia, feitas com dend (IPHAN. MINC, 2004).

    Vale ressaltar, porm, que apesar deste reconhecimento para a

    profisso de baianas, continuam precrias suas condies de trabalho. Na

    grande maioria, so mulheres negras, visivelmente com sobrepeso ou obesas,

  • 28

    trabalham nas ruas, sentadas em pontos apropriados. No h condies

    sanitrias para atender as demandas pessoais da baiana e nem higienizao

    do ambiente ou do ponto do trabalho.

    3 - O corpo obeso e o universo do trabalho feminino

    A obesidade uma enfermidade que aparece na histria h mais de

    vinte mil anos em obras nas quais mulheres obesas eram pintadas e

    esculpidas. Provavelmente a enfermidade metablica mais antiga que se

    conhece (REPETTO, 1998).

    uma doena integrante do grupo de Doenas Crnicas No-

    Transmissveis (DCNT), sendo o acmulo excessivo de gordura corporal em

    extenso tal, que acarreta prejuzos sade dos indivduos. A etiologia da

    obesidade um processo multifatorial que envolve aspectos ambientais e

    genticos (PINHEIRO, 2004). Esta enfermidade representa o problema

    nutricional de maior ascenso entre a populao, sendo considerada uma

    epidemia mundial, presente nos pases desenvolvidos e os de economia

    perifrica como o Brasil (MARIATH, 2007).

    A projeo dos resultados de estudos efetuados nas ltimas quatro

    dcadas indicativa de um comportamento claramente epidmico do problema

    alimentar em que se observa uma mudana de hbitos e a ocorrncia de

    efeitos danosos sade, como o aumento ao sedentarismo, maior produo de

    alimentos industrializados e a globalizao. Estabelece-se, dessa forma, um

    antagonismo de tendncias temporais entre desnutrio e obesidade, definindo

    uma das caractersticas marcantes do processo de transio nutricional do pas

    (BATISTA FILHO, 2003).

    Em Salvador foi observado que 26,9% dos adultos soteropolitanos so

    portadores de sobrepeso e 13,6% deles de obesidade. (ASSIS, et al., 2002),

    mostrando um percentual relevante desta enfermidade na cidade.

    O termo obesidade para Medicina uma doena multifatorial

    caracterizada pelo ganho de peso excessivo com o ndice de Massa Corprea

    (IMC) acima de 35 Kg/m2, sendo caracterizado hoje como um dos maiores

    problemas de sade pblica. Porm as caractersticas do corpo com a

  • 29

    enfermidade pode no representar para algumas classes, principalmente as

    populares, uma doena e sim uma escolha de ser.

    Neste sentido, o estudo sobre o corpo, e neste caso sobre corpo obeso,

    vem crescendo pelos profissionais de sade trazendo uma abordagem mais

    voltada para as cincias humanas.

    No livro Sade e Doena: um olhar antropolgico, Ferreira (1994)

    apresenta algumas discusses sobre o significado de corpo. Para o autor o

    corpo se reveste de interpretaes e significados. Ao corpo se aplicam

    sentimentos, discursos e prticas que esto na base de nossa vida social.

    Segundo Fischler (1995), atravs do corpo que os indivduos se manifestam

    no mundo e revelam sua posio na sociedade. Dentro dessa perspectiva, o

    corpo se sobrepe aos limites do biolgico, s condies materiais de vida, e

    assume tambm dimenses socioculturais fundamentais.

    Em diferentes contextos histricos, valores socioculturais relacionados

    obesidade podem, por conseguinte, variar de uma sociedade para outra. Nesse

    sentido, a corpulncia que, no passado, esteve associada idia de sade no

    imaginrio coletivo hoje tem seu significado transformado (FOUCAULT, 1997).

    Corpos obesos, que um dia inspiraram obras de arte, so hoje condenados

    pelo contexto scio-cultural e pela biomedicina (MEURER & GESSER, 2008).

    O corpo magro combina-se com a juventude, a leveza, ao gosto light,

    produzindo um conjunto de novos prazeres, sensaes e sensibilidades

    corporais (SANTOS, 2008). Para Dejours (1991), esta idia de leveza pode e

    deve estar atribuda a agilidade no trabalho.

    O corpo tambm pode ser percebido pelos seus cuidados em diferentes

    classes sociais. Segundo Boltanski (1979), a preocupao que os indivduos

    tm pelo corpo cresce com a ascenso social. Nas classes sociais privilegiadas

    maior o cuidado esttico com o corpo e a preocupao com hbitos de vida

    mais saudveis. Estas aes podem ser explicadas em funo do melhor nvel

    educacional e intelectual presente neste segmento. Contrariamente, nas

    classes populares a preocupao com o corpo menos freqente em relao

    sade oficial e a esttica da elite dominante. Porm, esta viso de cuidado com

    o corpo em diferentes classes sociais est ultrapassada, pois percebe-se que

    as mulheres pertencentes a classe populares se apropriam do seu corpo de

    forma diferente.

  • 30

    A idia de corpo pesado ou leve tambm pode estar relacionada ao

    local em que este corpo est alocado. Neste sentido ser gordo em Salvador

    no necessariamente seria o mesmo em outras localidades (SANTOS, 2008).

    Como na Bahia, nas cidades que esto localizadas no interior do Estado, o

    corpo gordo pode ser considerado forte, porm na capital, ele pode ser visto

    como obeso, doente.

    Os meios de comunicao tm sido instrumentos disseminadores do

    movimento da globalizao corporal. Estes divulgam indiscriminavelmente o

    padro de beleza ideal para mulheres proporcionando um culto ao corpo na

    tentativa de alcanar um modelo esttico homogneo.

    Segundo S (2002) no h mais espao para tantos excessos ou tanta

    gordura. Os obesos experimentam alm da excluso social e da falta de poder,

    uma baixa auto-estima que potencializa ainda mais compulsividade,

    ansiedade, s insatisfaes sexuais e ao medo de se expor, to presentes

    nesse processo de "engordamento".

    Fischler (1995), estudando a obesidade na Frana, identificou que as

    pessoas percebem esta enfermidade de forma ambivalente. Neste estudo o

    autor encontrou um duplo esteretipo do gordo: um um homem rolio,

    extrovertido, brincalho, bem relacionado, que sofre pela sua obesidade, mas

    no deixa transparecer. O outro um doente depressivo, egosta sem controle

    de si mesmo. O primeiro seria um obeso benigno e o segundo um obeso

    maligno. Acrescenta o autor que atravs da nossa corpulncia so passados

    significados sociais muito profundos. Devido a tal fato o individuo obeso deve

    desempenhar papis sociais para que eles sejam aceitos pela sociedade, caso

    no consigam emagrecer.

    Em estudos com mulheres das classes populares, com obesidade, foi

    identificado que as mesmas no se percebiam obesas. Neste caso, para essas

    mulheres, o corpo visto de forma utilitria para o trabalho e representa a

    necessidade de fora fsica para as funes que desempenham

    (FERREIRA, 2005). Tais representaes revelam as noes de corpo, pessoa

    e trabalho, cujas analogias enfatizam a idia do corpo utilitrio, apto

    execuo das atividades rotineiras e do trabalho informal (FERREIRA, 2006).

    A relao entre o trabalho, o individuo e o seu corpo tem significados

    diferentes na medida em que o mesmo se torna consciente desta relao.

    Devido a sua condio econmica, o corpo usado intensamente e, portanto a

  • 31

    ateno dada a ele restringida e conseqentemente h uma reduo da

    quantidade e qualidade do trabalho que este fornece (BOLTANSKI, 1979).

    Atualmente, no Brasil, as mulheres no trabalho, independentemente de

    seus pesos, esto mais sujeitas a vulnerabilidade social. No raro esto

    inseridas em postos de trabalho de menor prestgio e remunerao,

    submetidas a longas jornadas, muitas vezes sem vnculos trabalhistas e so as

    mais afetadas pelo desemprego (LAVINAS, 2001). De acordo dom Bulport

    (1987), o assalariamento no qual as mulheres se inserem de forma significativa

    um fato histrico. A diferena em favor dos homens grande, estes recebem

    40% a mais, um hiato social que se torna maior em relao aos domiclios

    chefiados por mulheres. A proporo de mulheres chefes de famlia tem

    crescido no Brasil e isso provavelmente tem um impacto enorme no aumento

    da pobreza e da excluso social (MELO, 2005).

    As altas taxas de desemprego levaram muitas mulheres a se instalarem

    em atividades informais. Apesar da diminuio da desigualdade de gnero no

    mercado de trabalho, na dcada de 90, h uma ntida relao entre a diviso

    de trabalho e a pobreza das mulheres. A insero feminina aconteceu em

    paralelo com o crescimento das atividades informais e tem menor presena

    sindical e desta maneira encontram-se mais expostas ao desemprego (MELO,

    2005).

    Neste sentido, estas mulheres se inserem no mercado informal com o

    intuito de proporcionar uma condio digna a sua famlia e no raro vo as ruas

    vender, principalmente, alimentos. Na cidade do Salvador existe uma

    gastronomia muito sedutora e provavelmente isto faz com as mulheres

    soteropolitanas escolham o acaraj para trabalharem. Este movimento se

    concretizou, alm de outros fatores, com a criao de cursos para o

    aprendizado do acaraj e outros quitutes, como o Projeto Mo na massa

    realizada com o apoio da Prefeitura de Salvador, resultou em um aumento do

    nmero de baianas na cidade do Salvador.

    Apesar de haver uma mudana, mesmo que sorrateira para o

    consumidor, da tradicionalidade que cercam as baianas de acaraj, no que

    tange a religiosidade e dificuldades financeiras, esta modalidade de trabalho

    apresenta aspectos que podem contribuir para o agravamento de patologias,

    bem como aquisio de novas enfermidades.

  • 32

    Segundo Pena (2005), todo trabalho humano pode ser compreendido

    tanto como um processo de manuteno da sade (enriquecimento

    biopsquico, social, cultural e condies de viabilidade social), quanto

    antagnico preservao da sade (trabalho realizado de forma fragmentada,

    repetitiva, em ambiente insalubre e perigoso).

    A partir dessa compreenso, a baiana de acaraj tem, por um lado, o

    controle de grande parte do processo de trabalho, a propriedade dos

    instrumentos de trabalho e comercializa diretamente o seu produto,

    socialmente valorizado, vide o reconhecimento como patrimnio cultural em

    2004; por outro lado, apesar de toda a valorizao, em especial, pela

    visibilidade turstica para degustao de seu produto, este trabalho est sujeito

    a acidentes e outros riscos; e, como trabalhadora informal, sem direitos

    trabalhistas e previdencirios, ela no pode adoecer, pois isto resulta nas

    perdas das vendas e no menor rendimento no final do ms.

  • 33

    ARTIGO I

    OBESIDADE E TRABALHO DAS BAIANAS DE ACARAJ NA CIDADE DO SALVADOR-BAHIA, BRASIL

    OBESITY AND WORK OF THE "BAIANAS DE ACARAJ" IN THE

    CITY OF SALVADOR-BAHIA, BRAZIL.

    AMANDA ORNELAS TRINDADE MELLO RONALDO RIBEIRO JACOBINA

    MARIA DO CARMO SOARES FREITAS

  • 34

    RESUMO

    Trata-se de um estudo de carter qualitativo cujo objetivo analisar as

    acepes sobre o fenmeno do corpo obeso das baianas de acaraj e a

    relao com sua sade, ambiente e prticas alimentares no trabalho. O

    trabalho da baiana desgastante e requer muita dedicao. Ao mesmo tempo

    em que a forma de subsistncia destas trabalhadoras, este tipo de atividade

    pode trazer prejuzos sade destas mulheres. O fogo, a fumaa e os

    movimentos repetitivos so apontados como possveis riscos para a aquisio

    de acidentes e enfermidades. Foi identificado que as baianas elegem um duplo

    corpo em relao ao modo de viver no mundo: obeso para o seu trabalho de

    baiana e magro para sua vida cotidiana. Neste sentido percebe-se tambm que

    a falta de tempo para a vida social possibilita baiana a no cuidar do seu

    corpo e da sua alimentao.

    Palavras chave: obesidade; sade do trabalhador; alimentao e cultura; trabalhador artesanal

    ABSTRACT This is a qualitative study aiming to examine the meanings of the phenomenon

    of the obese body of the "baianas de acaraj" and the relationship with their

    health, environment and eating habits at work. The work of the "baiana de

    acaraj" is exhausting and requires much dedication. While that is the livelihood

    of these workers, this kind of activity can bring harm to the health of these

    women. The fire, smoke and repetitive movements are mentioned as possible

    risks for the acquisition of accidents and illnesses. It was identifeid that the

    "Baianas de acaraj" elect a double body regarding the way of living in the

    world: obese for their work and lean to your daily life. In this sense it is

    perceived that the lack of time for social life allows them to not take care of their

    body and their food.

    Keywords: obesity, health worker, food and culture, handicraft worker.

  • 35

    Introduo

    Verdadeiras construtoras do imaginrio que identifica a cidade de Salvador com suas comidas, sua indumentria, seus tabuleiros e suas maneiras de vender , essas mulheres, monumentos vivos de Salvador e dos terreiros de candombl, so um tipo consagrado, revelador da histria da sociedade, da cultura e da religiosidade do povo baiano. Oficio das Baianas de Acaraj (IPHAN. MINC. MINC, 2004)

    A cidade soteropolitana da Bahia no Brasil tem trs milhes de

    habitantes e existe cerca de cinco mil comerciantes do acaraj (ANVISA,

    2004). So personagens femininas e nomeadas baianas de acaraj.

    Espalhadas por toda cidade (tambm na zona urbana do interior do Estado da

    Bahia), formam um cenrio esttico-visual prprio (SANTOS, 2008).

    Estas baianas tm o ofcio de preparar e vender os produtos do

    tabuleiro, principalmente, o acaraj em pontos de vendas apropriados, bem

    como se vestir de forma adequada, com as indumentrias brancas (batas,

    toros, anguas) e colares de contas coloridos, no candombl, chamados de

    guia (MARTINI, 2007).

    A comercializao do acaraj teve incio no final do perodo da

    escravido (sculo XIX), com as escravas de ganho (ou ganhadeiras). Estas

    trabalhadoras eram negras que ocupavam um lugar destacado no mercado de

    trabalho urbano e que poderiam ser tanto mulheres escravas colocadas no

    ganho pelos seus proprietrios, como mulheres libertas que lutavam para

    garantir o seu sustento e de seus filhos. (SOARES, 1996). As ganhadeiras

    trabalhavam nas ruas com quitutes em tabuleiros ou produtos da terra e do mar

    que compravam para revender. Isto possibilitou a estas mulheres negras de

    herana escrava, a compra da alforria dos maridos, a criao de irmandades

    religiosas e manuteno do candombl (CANTARINO, 2005).

    Nessa tradio de ganhar a vida, o acaraj - um dos smbolos da

    comida de santo na Bahia - deixa de ser apenas uma oferenda, passando a ser

    vendido como uma mercadoria dos terreiros de candombl, onde tambm

    foram acrescidos outros produtos como: abar, vatap, caruru, salada de

    tomate verde, passarinha (bao de boi), bolinho de estudante (massa de

    tapioca frita), cocadas, peixe frito etc.

  • 36

    Recentemente, ocorreram algumas conquistas, em especial, o seu

    tombamento histrico, em 15 de agosto de 2005, como patrimnio imaterial

    nacional, pelo Programa Nacional do Patrimnio Imaterial - PNPI, institudo

    pelo Decreto n 3.551, de 4 de agosto de 2000. O registro do Ofcio da Baiana

    de Acaraj (inscrito no Livro de Registros e Saberes, das Celebraes, das

    Formas de Expresso e dos Lugares) no reconhece apenas o acaraj, como

    uma representao da culinria histrica, mas tambm outros saberes e

    fazeres tradicionais aplicados na produo e na comercializao das chamadas

    comidas da Bahia, feitas com dend (IPHAN. MINC, 2004). Outras conquistas

    foram a inaugurao, em 9 de junho de 2009 do Memorial da Baiana do

    Acaraj, situado na Praa da Cruz Cada, Salvador, Bahia (IPHAN. MINC,

    2009); e o estabelecimento, por lei federal (DOU, 20/01/2010), do dia 25 de

    Novembro como o Dia Nacional da Baiana do Acaraj (IPHAN. MINC, 2010).

    Porm, vale ressaltar que, apesar deste reconhecimento para a

    profisso de baiana, continuam precrias suas condies de trabalho. No h

    condies sanitrias para atender as demandas pessoais da baiana e nem

    higienizao do ambiente ou do ponto do trabalho.

    Desta forma, o trabalho dessas mulheres se torna invisvel s polticas

    pblicas e s relaes sociais em seus cotidianos, uma vez que possuem uma

    rdua jornada de trabalho entre todo o processo de preparao do acaraj

    somado responsabilidade com a casa e a famlia. Esta condio produz uma

    fadiga crnica, que pode ser afrontada pelo sobrepeso e a obesidade. As

    enfermidades associadas obesidade, como a hipertenso e a diabetes,

    aparecem como parte de seus destinos ali embotados cuja sobrevivncia

    previsvel permanentemente ameaada pelo meio ambiente do posto de

    trabalho insalubre.

    As primeiras incurses em campo, para o exerccio etnogrfico,

    justificam a escolha de gnero neste estudo, vez que inicialmente elegem a

    mulher e trabalhadora como a protagonista do risco de obesidade.

    No livro Baa de Todos os Santos: guias de ruas e mistrios, Jorge

    Amado (1977) traz alguns trechos de caracterizao das baianas: Maria de

    So Pedro (...) serviu no alto de sua dignidade de preta gorda, famosos atores.

    [...] Maria Jos gorda e risonha. Mulata de olhos dengosos.

    Estas mulheres so nomeadas como baianas pelo seu trabalho, sua

    identidade profissional que se confunde com a originalidade. Para o trabalho

  • 37

    usam vestimentas do candombl, como se transferissem para as ruas um rito

    sagrado que est em si mesmas. Para elas, conforme nossa observao inicial,

    o Santo protege sua filha para vender o produto, envolve seu tabuleiro, seu

    posto de trabalho, seu corpo em que o movimento de mos e braos da baiana

    faz analogia com a dana no terreiro de candombl.

    Nesta cena de comrcio e crena, estas trabalhadoras com suas

    indumentrias de rendas brancas e contas de muitas cores chamam a ateno

    do pblico, em sua maioria, pelo seu corpo volumoso e tantas vezes em

    sobrepeso e obeso.

    Diante do corpo em opulncia, enquanto uma visvel representao

    desse profissional, no mercado da Bahia, este estudo tem como objetivo

    analisar as acepes sobre o fenmeno do corpo obeso das baianas de

    acaraj, considerando o livre curso de suas narrativas a respeito de seu corpo,

    suas condies de sade e prticas alimentares no trabalho.

    Aspectos metodolgicos Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, realizado no perodo

    de setembro a dezembro de 2009, em Salvador, com dez baianas de acaraj

    que trabalham em vrios pontos da cidade. A insero nesta comunidade se

    deu a partir da escolha dessas trabalhadoras que mais se destacam nas

    vendas do acaraj, conforme informao da ABAM (Associao de Baianas do

    Acaraj, Mingaus e similares). Esta instituio indicou as baianas que poderiam

    ser entrevistadas, levando em considerao os bairros que trabalham, locais

    tursticos ou que apresentam uma caracterstica histrica na construo da

    profisso como os bairros de Liberdade, Rio Vermelho e Comrcio, onde

    surgiram as primeiras baianas de acaraj.

    Por se tratar de uma cidade histrica, turstica e com a forte presena

    cultural, em toda a cidade h o contato com uma baiana de acaraj. Este fato

    facilitou os instrumentos metodolgicos utilizados como a observao

    participante e os registros em dirio de campo, ainda que o foco mais

    importante se deu em dez pontos da cidade, nos seguintes bairros: Barris,

  • 38

    Canela, Itapu, Barra, Praa da S, Pelourinho, Campo-Grande, Federao,

    Rio Vermelho e Liberdade.

    Nesse sentido, foram realizadas entrevistas com estas baianas cujos

    encontros foram marcados diretamente com elas. As entrevistas foram feitas

    no prprio local de trabalho, com o uso do gravador, seguindo um roteiro semi-

    estruturado de questes que abrangeram trs blocos relacionais: o cotidiano do

    trabalho; a obesidade e as prticas alimentares. As entrevistadas participaram

    de modo voluntrio, assinando o termo de consentimento livre e esclarecido.

    Os critrios para eleio dos sujeitos deste estudo foram: ser mulher; ser

    baiana de acaraj; e trabalhar ao menos cinco dias na semana.

    As entrevistas foram transcritas e analisadas identificando termos

    analticos como palavras e sentenas significantes, as quais foram agrupadas

    em categorias que revelaram similitudes e diversidades do tema estudado.

    Para a categorizao foi construdo um quadro analtico com fragmentos das

    falas e comentrios conjugados (MINAYO, 2006). A partir deste momento

    realizou-se a escrita do texto.

    Este trabalho foi aprovado pelo Comit de tica em Pesquisa da Escola

    de Nutrio da UFBA em 18 de setembro de 2009 (parecer de nmero 20/09) e

    financiado pelo CNPq (edital n57/2008).

    Caracterizao das baianas de acaraj do estudo

    As baianas entrevistadas so mulheres organizadas, associadas a

    ABAM que fica situada no bairro do Pelourinho. Para elas, as verdadeiras

    baianas so aquelas que apresentam uma gerao de mulheres que seguiram

    o oficio de baiana de acaraj. Denominam-se baianas Patrimnio, ou seja

    devem aprender o oficio desde a infncia no tabuleiro da me ou av e seguir

    na profisso tambm perpetuando o mesmo para os filhos e netos.

    Neste sentido, para este estudo foram entrevistadas apenas as baianas

    patrimnio.

  • 39

    O Trabalho da baiana de acaraj na cidade de Salvador, Bahia

    As baianas de acaraj so mulheres, em sua maioria, negras, que fazem

    parte do cenrio esttico-visual da cidade soteropolitana, na Bahia - Brasil. Elas

    trabalham vestidas com trajes prprios, sentadas com seus tabuleiros e esto

    espalhadas por todo pas, vendendo os quitutes trazidos na poca da

    escravido, como o acaraj e o abar.

    I - um trabalho muito duro: O trabalho e a sade da baiana de acaraj

    Todo o processo de trabalho da baiana acontece em trs espaos

    distintos. Estes espaos fazem parte de um ritual que transcende a

    originalidade de um trabalho artesanal, uma vez que este rito abrange uma

    relao com o divino sacralizando todas as etapas do fazer-acaraj.

    O primeiro espao do trabalho a feira. A presena da baiana neste

    momento imprescindvel para a aquisio dos melhores gneros alimentcios;

    o segundo espao a cozinha, onde ser realizado o pr-preparo e preparo

    dos quitutes dos tabuleiros; e o terceiro espao o ponto de venda dos

    quitutes. Este ponto um ambiente apropriado pela baiana e pode ser

    localizado, principalmente, nas esquinas das ruas da cidade do Salvador.

    Tanto o ponto de venda como o ofcio destas trabalhadoras so

    passados de forma hereditria para as filhas, sobrinhas ou agregadas. Apesar

    de, algumas vezes, haver a presena do homem, este trabalho fica centrado na

    figura feminina. Estas aprendem desde criana algumas atividades, menos

    especficas, tornando um espao de aprendizagem e destinao.

    Todo este processo tradicionalmente artesanal, derivado de uma forma

    individual, em que a trabalhadora, em geral, a proprietria do seu material

    (instrumentos de trabalho), a baiana domina todas as etapas do trabalho e

    vende o seu produto final para a sua subsistncia (PENA, 2005). Apesar de

    haver caractersticas que demonstrem uma transio para o mercado formal,

    uma vez que existe o assalariamento dos ajudantes que realizam algumas

    atividades, esta organizao ainda se situa no mercado informal, uma vez que

    no h contratao por meio de carteira de trabalho assinada conforme os

    ditames da Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT). No entanto em uma das

  • 40

    baianas entrevistadas foi identificada a eminncia de registro (pessoa jurdica)

    do seu estabelecimento, com o intuito de obter maiores benefcios, como

    aquisio de crditos e planos de sade para os funcionrios, alm do servio

    de entrega em domiclio com o disk-acaraj.

    Por ser artes, a baiana de acaraj est presente em todas as etapas de

    preparao e venda dos quitutes. Este trabalho torna, para ela, rduo e

    desgastante, alm de estar exposta a todos os riscos provenientes das

    atividades realizadas. Todas as exigncias demandadas no processo de

    fabricao do acaraj podem proporcionar s baianas problemas de sade

    provocados pelas aes geradas na atividade laboral (dores, cansao, fadiga)

    e pelas condies insalubres que este tipo de trabalho proporciona.

    O artesanato no Brasil, de uma forma geral, no apresenta uma

    regulamentao especfica para a proteo a sade e a segurana no trabalho.

    O arteso, em geral, no tem direito ao seguro acidentrio. Com isso, o

    adoecimento ou afastamento implica ao no trabalho destas mulheres e,

    conseqentemente, a perda de vendas, pois esta atividade, muitas vezes, a

    principal renda destas famlias.

    II - Sinto muitas dores nos braos e na coluna: o sofrimento gerado pelo processo de trabalho da baiana

    As condies de trabalho das baianas proporcionam as mesmas uma

    espcie de fadiga crnica decorrente do processo de trabalho desgastante.

    Casos graves e prolongados de fadiga so atualmente caracterizados como um

    quadro sindrmico, a sndrome de burnout (burn out = queimar por completo),

    quando h esgotamento fsico e mental intenso ligado vida profissional, com

    perda de interesse pela atividade, que surge principalmente nas profisses que

    trabalham em contato direto com pessoas em prestao de servio, como

    conseqncia desse contato dirio no seu trabalho (FREUDENBERGER,

    1974).1 Este um bom tema para pesquisa, pois, embora o trabalho da baiana

    seja artesanal, ela vive pressionada a se manter permanentemente neste

    processo fatigante.

    1 Um dado curioso: o estudante Juliano Moreira, em sua tese inaugural de 1891, j caracterizava a fadiga crnica ocupacional e a relacionava com a gravidade e precocidade da sfilis (MOREIRA, 1991, p.75).

  • 41

    So dois espaos de trabalho da baiana, a cozinha e o ponto de venda

    dos quitutes. Em ambos, diversos fatores podem contribuir para um processo

    de adoecimento desta trabalhadora.

    No trabalho da cozinha, as baianas passam em mdia sete horas, em

    p, preparando os quitutes. Dentre as atividades esto o pr-preparo dos

    alimentos e a preparao dos acompanhamentos como vatap e caruru, e de

    outros quitutes do tabuleiro, como as cocadas e os doces.

    Sinto muito as pernas porque a gente fica em p o dia todo, difcil a gente sentar, s na hora de almoar mesmo, ai senta um pouquinho, almoa. Na hora de cortar a salada, a gente senta tambm meia hora e mais ou menos, mas o que di mais so os braos e as pernas (Baiana Ana).

    Por outro lado, no ponto, estas mulheres ficam nove horas sentadas,

    fritando, vendendo e despachando os produtos, totalizando 16 horas de

    trabalho. Ficar sentada por muito tempo. Sinto dores na coluna (Baiana

    Joana).

    Por ser um trabalho centrado na baiana, estas mulheres sentem o peso das atividades realizadas em seu corpo, em forma de cansao, dores e

    doenas. Das atividades mais desgastantes em todo o processo de trabalho, o

    ato de lavar o feijo e bater a massa do acaraj foi apresentado de forma mais

    relevante para as baianas. ... tem um rapaz que lava o feijo porque ns em

    casa temos uma quantidade grande de feijo, a coluna no agenta (risos)

    (Baiana Isadora)

    Isto proporciona s mesmas um desgaste que se agrava, uma vez que,

    esta profisso no apresenta regulamentao especfica no Brasil em relao a

    sua sade e segurana no trabalho, em que as doenas e os acidentes

    gerados pela atividade laboral ou os acidentes ocupacionais passam

    despercebidas pela Previdncia Social. Eis um exemplo de acidente de

    trabalho:

    Ontem fui comer acaraj, mas a baiana no estava no ponto. Disseram que ela est internada h 15 dias porque o tacho cheio de dend quente virou em cima dela (Anotaes do Dirio de Campo).

  • 42

    O fazer-acaraj associado ao uso de equipamentos, muitas vezes

    improvisados, pelas baianas pode resultar em situaes adversas,

    ocasionando em adaptaes nocivas do corpo ao trabalho. Atividades

    exaustivas, prejudiciais a sade, constituindo riscos para Leses por Esforo

    Repetitivo / Distrbios Osteo-musculares Relacionadas ao Trabalho (LER/

    DORT).

    As narrativas demonstram que muitas destas mulheres j apresentam

    enfermidades relacionadas ao trabalho, uma vez que a exposio s atividades

    que geram movimentos repetitivos acontece desde a infncia, quando j

    iniciam algumas atividades. Toda a baiana tem [leses]. No comeo eu no

    tinha, mas agora vai chegando aos quarenta, vai comeando a aparecer

    tendinite, busite [sic], LER, por causa da movimentao repetitiva (Baiana

    Isadora).

    Em outros estudos realizados com trabalhadores artesanais tambm foi

    identificada a presena de movimentos que possibilitem o aparecimento de

    doenas relacionadas ao trabalho, principalmente, as LER/DORT. Pena (2008),

    ao estudar as marisqueiras, tipo de trabalho artesanal com extrao de

    mariscos, da Ilha de Mar, Salvador-Bahia, identificou nove casos de

    LER/DORT entre as mesmas. Silva et al. (2006), estudando rendeiras, em uma

    comunidade em Fortaleza-Cear, identificou a presena de esforos repetitivos

    entre estas trabalhadoras, porm nenhum caso da doena foi diagnosticado a

    poca.

    Estas e outras questes relacionadas a sade da baiana se agrava

    quando as mesmas priorizam o trabalho e os afazeres em detrimento de

    preveno da sade, como a ida a um servio de sade, voc fica escrava de

    si prpria (Baiana Solange). Alm disso, justificam que no apresentam plano

    de sade e esperar pelo Sistema nico de Sade (SUS) demandariam muito

    tempo. Alm disso, a ida a um servio pblico no garante o atendimento

    adequado. Em estudo com mulheres obesas, Silva (1995) constatou que os

    profissionais de sade apresentam limitaes para o atendimento estas

    mulheres, uma vez que este profissional tem dificuldade de enxergar a mulher

    fora do seu papel de me. Devido ao fato da maioria das mulheres brasileiras

    e, neste caso, as baianas acumularem vrias funes (me, trabalhadora, dona

    de casa) como forma inerente para a sua sobrevivncia, demanda um

  • 43

    atendimento que percebesse estes mltiplos espaos ocupados pela mulher

    hoje.

    Em 2003, o Ministrio da Sade lana a Poltica Nacional de

    Humanizao da Ateno e Gesto do SUS, conhecido como HumanizaSUS

    que apresenta como um dos conceitos de humanizao do SUS: Luta por um

    SUS mais humano, porque construdo com a participao de todos e

    comprometido com a qualidade dos seus servios e com a sade integral para

    todos e qualquer um. Apesar deste avano no servio pblico, isto no atinge

    a baiana, pois a mesma no prioriza a sua sade, porque o seu trabalho a

    sua principal fonte de renda, e este tempo para a realizao das atividades

    sagrado.

    Ademais da exigncia do seu trabalho e a escravizao no tempo, as

    baianas utilizam de manobras para evitar a dor proveniente do processo de

    trabalho: As vezes eu uso doutorzinho (para as dores no corpo), as vezes eu

    fao massagem. No outro dia alivia, e pronto (Baiana Ana).

    Neste sentido, de extrema importncia um olhar atento das polticas

    pblicas para esta categoria profissional, no que tange os possveis danos

    causados pelo processo de trabalho. Porm, alm deste fator, existem outros

    que tambm proporcionam possveis causadores de enfermidade, como o

    cheiro do dend.

    III - Aparentemente no fumaa: o cheiro do acaraj Uma das atividades realizadas pelas baianas de acaraj o ato de fritar

    os bolinhos de feijo, em tachos com azeite de dend aquecido, podendo este

    a chegar a mais de 200C.

    Em alguns estudos foram evidenciados que a coco de alimentos,

    principalmente, a fritura pode originar compostos orgnicos prejudiciais sade

    como os Hidrocarbonetos Policclicos Aromticos (HPAs) (Pereira Neto et al,

    2000).

    Os HPAs pertencem a uma famlia de compostos que possuem dois ou

    mais anis aromticos fundidos. So substncias que podem ser encontradas

    em todos os compartimentos ambientais, em misturas complexas e sua

  • 44

    importncia se deve ao fato de ter um potencial carcinognico (Pereira Neto et

    al, 2000).

    A exposio dos alimentos a altas temperaturas (acima de 200C) gera a

    formao de HPAs, principalmente atravs da pirlise das gorduras. Estes

    tambm podem ser produzidos por queima de outras fontes orgnicas como as

    protenas e os carboidratos (Camargo & Toledo, 2002).

    Segundo a Portaria 3214/78 NR1, anexo n 13 Agentes qumicos,

    acrescentada pela Portaria 14 de 20/12/95: Hidrocarbonetos Policclicos

    Aromticos e seus compostos carbono so considerados substncias

    cancergenas (Brasil, 1978; Brasil, 1995). O contato desta substncia com os

    olhos pode provocar irritao com vermelhido das conjuntivas. O risco est

    mais associado ingesto e aspirao dos hidrocarbonetos, em que a partir

    da no s a baiana, mas tambm os consumidores podem estar expostos.

    Em pesquisa na cidade do Salvador com anlise de hambrgueres foi

    identificado uma elevada quantidade de HPAs nestes alimentos que podem

    contribuir para a aquisio de doenas. Este fato se agrava uma vez que ainda

    no h estipulado a quantidade mnima deste componente que pode ser

    ingerida pelo ser humano sem lhe trazer prejuzos a sade (Santana, et al.,

    2009).

    Nas entrevistas com as baianas, muitas referiram que a fumaa do

    dend era prejudicial a sade, apesar delas no apresentarem nenhum

    respaldo cientfico, o trabalho dirio proporciona o aparecimento de alguns

    sintomas:

    E outra coisa que me prejudica no acaraj o azeite. Tem dias que eu sinto muita rouquido. Agora mesmo estou sendo encaminhada para um oftalmologista para fazer um exame (das vistas) devido a fumaa (Baiana Maria). Porque aparentemente no fumaa, mas isso aqui esse cheiro todo dia bate em cima de voc e a pode vir um prejuzo sim, como para muitas Baianas j vieram (Baiana Helena). A fumaa incomoda um pouco, a fumaa do azeite que eu trabalho. A gente no pode ficar tomando essa fumaa toda hora, mas a gente tem que tomar, essa fumaa prejudica muito a sade da gente. Fica todo dia tomando essa fumaa no bom. A maioria das baianas comea a ter problemas cardacos devido a essa fumaa (Baiana Ana).

  • 45

    Alm dos aspectos patolgicos que esta fumaa pode proporcionar s

    baianas, existe uma particularidade simblica, encontrada na intersubjetividade

    destes sujeitos que atribui a sua obesidade, o seu corpo gordo ao confronto

    dirio com o cheiro do dend, resultante da fritura do acaraj. Misericrdia,

    eu digo, s esse cheiro de acaraj aqui me engorda (...) possvel, porque

    antes de eu trabalhar com o acaraj eu no tinha esse corpo (Baiana Helena);

    Eu tenho pra mim que o que engorda a baiana o dend, a satura do dend, a fritura. Aquilo ali constante [aponta para a fumaa do dend fritando acaraj], voc engorda. No tem baiana que no engorde (Baiana Sara).

    O seu corpo pode at estar emagrecido pela falta de uma alimentao

    adequada, mas, ao se inserir no universo do acaraj como uma baiana, seu

    corpo se encontra, a partir de ento, destinado a ser um corpo obeso.

    Segundo a Teoria dos Miasmas, estudado por muitos pesquisadores

    (Lan Entralgo, 1978; Machado, 1978; Czeresnia, 1997), no sculo XVIII,

    muitas das enfermidades que assolavam os indivduos, naquela poca, eram

    causadas pelo mau cheiro ou odores. Estes continham os miasmas e eram

    transmitidos pelo ar. Enquanto a teoria do contgio estava relacionada ao tato,

    a teoria miasmtica enfatizava o olfato. Eram relatados que as pessoas que

    estivesse em locais com mau cheiro e o aspirassem poderiam ser

    contaminados e desenvolver qualquer tipo de doena. Os miasmas seriam

    todas as emanaes nocivas, as quais corrompiam o ar e atacavam o corpo

    humano. A atmosfera podia ser infectada por eflvios resultantes da alterao

    e da decomposio de substncias orgnicas, vegetais, animais ou humanas

    (Chernoviz, 1890, p. 421). Para a 'teoria miasmtica', tanto o meio fsico quanto

    o social seriam produtores de miasmas. Essas emanaes eram combatidas

    pela renovao e circulao do ar. Tudo que estivesse parado, estagnado

    poderia ser um elemento perigoso sade pblica, um produtor de miasmas.

    Inicialmente, supunha-se que a doena estava no ar e que, portanto, era

    necessrio faz-lo circular (Martins, 1997).

    Pode-se realizar uma analogia aos miasmas de provenincia espiritual

    que tambm so nocivos sade incorprea. Estes seriam todas as sujidades

    associadas ao profano que ficariam presas ao corpo imaterial (ou Esprito)

    podendo tambm ocasionar enfermidades. Segundo Carrel (2005) quando os

  • 46

    sinais e sintomas de uma doena se fazem presentes no corpo, indicam que a

    causa desta manifestao j se encontra no Esprito.

    Em ambos os casos deve haver uma higienizao do corpo ou do

    Esprito em que evitaria certos tipos de enfermidades.

    Em Salvador, nas festas de largo, pode ser percebido, as limpezas que

    so realizadas atravs dos banhos de folhas, banho de pipoca, banho de sal

    grosso, que so preceitos, oriundos do Candombl, realizados para retirar o

    mau olhado proveniente das relaes interpessoais e espirituais.

    Segundo Souza Junior (2003), o equilbrio que existe entre o fiel e o

    orix designado pelo fechamento do corpo. Segundo o autor Fechar o

    corpo o mesmo que passar por uma srie de prescries rituais capazes de

    garantir a sua proteo. Ter o corpo fechado significa ter ax, ter fora, fora

    que pode aumentar ou diminuir. ter poder, sucesso, realizaes. Significa

    estar sadio. Afirma tambm que o corpo se abre em situaes especficas

    quando o ax diminui e o corpo fraqueja, o que se expressa na doena.

    H nas falas das baianas uma combinao entre a teoria qumica da

    mudana de estado (do lquido azeite de dend - para o gasoso

    representado pela fumaa na fritura do bolinho no azeite e a idia da teoria

    miasmtica de que, pelo olfato, aspirando a fumaa de modo contnuo, a

    quituteira fica obesa (s esse cheiro... me engorda, aquilo ali constante, voc

    engorda).

    As falas acima tambm expressam uma viso tradicional do adoecer a

    viso ontolgica, onde doena entra e sai do homem como por uma porta

    (Canguilhem, 2006, p.19). A herana, os aspectos dinmicos da pessoa no

    tm importncia, ou, pelo menos, no tm tanto importncia como os agentes

    externos, em particular a fumaa, relacionada a tantos valores simblicos pelos

    saberes religiosos.

    IV - Gordura sadia x gordura doentia: o corpo das baianas e o trabalho

    Diante das narrativas, foi identificada uma diferena entre o corpo para o

    trabalho de baiana e o corpo para a vida social. O corpo para estas mulheres

    mais do que um instrumento de execuo do trabalho. Ele faz parte de um

  • 47

    campo esttico em que este corpo volumoso adicionado s suas roupas, suas

    vestimentas, seus adereos se apresentam como uma condio para suas

    vendas. como se o encontro do fregus com um corpo gordo e caracterizado

    se apresentasse de forma positiva, trazendo a idia defendida h tempos atrs

    em que gordura seria significado de poder e ostentao. Porque o corpo da

    gente representa mais a baiana, a gente meio magrinha fica meio estranha. A

    gente fortizinha j sai mais, a baiana sai mais, representa mais um pouco a

    baiana (Baiana Ana, grifo nosso).

    Segundo Meurer & Gesser (2008), existe um elo entre a beleza e o

    poder retratados pelos corpos esculpidos da sociedade contempornea,

    sugerindo a idia de que pessoa obesa, que um dia inspirou obras de arte,

    hoje condenada pelo contexto scio-cultural e pela medicina e responsvel por

    sua obesidade, devido falta de vontade de se exercitar/disciplinar e de

    autocontrole. No entanto, neste estudo, a mulher enquanto trabalhadora, esse

    elo se apresenta situado em seu corpo volumoso, centrado na baiana de

    acaraj como um carto postal da cidade do Salvador.

    Este fato pode ser observado na baiana Ceclia. Seu ponto localizado

    no corao do Pelourinho, onde h muita passagem de turistas. Porm a

    mesma no permite que lhe tirem uma foto sem que lhe paguem uma quantia

    de R$10,00 ou comprem o seu acaraj. A partir da corpo e beleza passam a

    ser atributos do mercado como um objeto de consumo.

    Em estudo de Ferreira (2006), realizado no Rio de Janeiro, com

    mulheres obesas, a autora identificou um corpo obeso apto para o trabalho.

    Entre um corpo magro e gil e um magro e doente este ltimo parecia ser

    ameaador para o trabalho. Particularmente neste grupo, o uso do corpo pode

    compreender uma viso mais utilitria, fruto da importncia da fora fsica nas

    ocupaes desempenhadas (trabalhos informais).

    No sculo XIX, um pouco de adiposidade era sinal de status e riqueza e

    conseqentemente prestgio social. Em contraponto a essa idia do sculo

    retrasado, hoje o mnimo sinal de gordura rechaado. Alm disso, os

    referenciais de obesidade e magreza podem mudar com o tempo. No passado,

    era preciso ser bem mais gordo para ser julgado obeso e bem menos magro

    para ser considerado magro. (Fischler, 1995, p 79). Porm este referencial

    pode tambm mudar com o lugar, o ambiente que ele est alocado. Ser gordo

    em Salvador, no necessariamente implica o mesmo em outras localidades

  • 48

    (Santos, 2008 p, 98). O termo obeso para o doente, portador de uma

    patologia, mas o termo gordo no necessariamente se refere a uma doena.

    H em Salvador, com sede no Pelourinho, uma Associao dos Gordos e

    Obesos de Salvador (ASGOBS). Distino no separao e, no por acaso,

    ela foi adotada para nomear esta organizao da sociedade civil.

    Segundo Tonial (2001) o corpo magro est relacionado entre as classes

    mais populares enquanto corpo fraco, inapto para enfrentar as tarefas dirias

    de trabalho. Porm nas classes mais altas, o corpo magro representa um

    padro utilizado como forma de ascenso ou promoo social, como requisito

    de insero no mercado de trabalho e como smbolo de status social.

    No Brasil, o estudo de Zaluar (1985) revelou que para as mulheres das

    classes populares, a obesidade era por vezes valorizada como elemento de

    fora. Silva (1995) verificou em seu estudo com mulheres obesas de baixa

    renda que a obesidade era um atributo sexual importante no grupo. Freitas

    (2002) realizou um estudo em um bairro popular de Salvador, onde a

    obesidade, nesta comunidade, no considerada uma doena, mas antes uma

    escolha de ser, em que a esttica corporal representa sade e atrativo sexual.

    Em outros momentos histricos ser obeso significava beleza, grandiosidade e

    feminilidade (Meurer & Gesser, 2008). O corpo ertico e sensual era

    representado pelas formas arredondadas.

    Neste sentido h um paradoxo existente nos discursos destas mulheres

    que elegem um corpo obeso para o trabalho de baiana e um corpo mais magro

    para a vida cotidiana. Que as baianas magras me perdoem, mas a gordura em si, eu t falando aquela gordura sadia, que voc fica bem na roupa. Aquela gordura doentia no, no serve, nem pra mim nem pra ningum. Pelo menos a minha ela sadia (Baiana Helena).

    Baiana magra feinha, baiana magra feia (risos). Eu reclamo assim: eu sou gorda para meu marido, quando eu tiro a roupa aquele negcio, mas eu gorda para o meu trabalho? Eu me acho o mximo. H 13 anos eu era um palitinho, vestia as roupas, ficava tudo balanando em mim, e agora no, eu to chique, eu me acho um mximo (Baiana Joana).

    Este corpo obeso para a vida social no satisfatrio, pois quando no

    esto em seus pontos de trabalho, o referencial de corpo referido por estas

    trabalhadoras o padro de beleza divulgado pela mdia: corpos magros,

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    esculpidos e belos. Eu queria perder uns quilinhos (Baiana Helena).

    Adicionado a isso, este corpo obeso sempre relacionado com a esttica que

    apresenta a baiana de acaraj, mas no como um corpo doente que pode ser

    adquirir outras enfermidades. Porque tem pessoas que gorda demais por

    doena n? E tem aquelas pessoas gordinhas, cheinhas, que uma gorda

    cheinha, mas a sade t inteira (Baiana Helena).

    Eu sou uma pessoa que eu gosto de tudo de mim, eu no sinto complexo de nada, eu no me acho feia de nada, tudo para mim est confortvel, eu to achando agora que eu estou com uma barriguinha, estou caminhando todos os dias pela manha e fechando a boca, s tenho colesterol alto. Baiana Maria

    Segundo Gonalves (2004), estas mulheres podem achar a sua

    corpulncia normal, por exemplo, pelo fato de que algumas doenas

    atualmente associadas obesidade pela Medicina como hipertenso arterial,

    diabetes, colesterol elevado e muitas outras, no apresentarem sintomas nas

    fases iniciais, o que pode tornar mais difcil a busca pelo tratamento, pois no

    sente a doena (dor, por exemplo). Este fato pode ser agravado quando se

    sabe que existe por detrs de todo o processo de trabalho um ritual de

    oferenda. Neste sentido, agradar o orix pode trazer uma sensao de prazer e

    satisfao, mascarando todo processo de dor e sofrimento que pode gerar este

    tipo de trabalho.

    No candombl, os corpos mais aceitos so os volumosos, corpulentos,

    por existir uma relao destes com os rituais desta religio. Estes corpos

    significam sade e beleza. Neste sentido, um freqentador desta religio no

    deve realizar nenhum tipo de dieta, ou regime, pois quem determina as formas

    anatmicas do seu corpo o Santo que faz sua cabea, ou seja, o Orix e

    isso determinado desde o seu nascimento.

    Nas narrativas percebe-se uma relao com as formas do corpo e o

    Candombl. Vou logo dizer, numa roda de samba, quando t todo mundo

    vestido, as gordinhas ressaem mais at. Porque a roupa combina mais, cai

    melhor a roupa (Baiana Helena).

    Neste sentido, o conhecimento do corpo, das percepes sensoriais,

    para o Candombl um aspecto importante para a inicializao, e

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    possibilidade de danar no rito pblico desta religio (Barbara, 2002). A

    gestualidade e a dana podem ser entendidas como uma linguagem ou como

    uma outra possibilidade da palavra, pois o corpo que fala ao grupo social

    (Leite, 1996).

    O corpo volumoso da baiana e os movimentos de suas mos e braos

    se apresentam de forma inerente ao trabalho, no mais como um instrumento

    apenas para a execuo das tarefas. A movimentao do seu corpo na batida

    da massa e fritura dos acarajs remete a um ritual presente nas festas de

    Terreiro que a dana dos Orixs. Com o corpo movimentando de forma

    cadenciada, ombros levemente arqueados, seus braos seguram forte a colher

    de pau, como quem segurasse o chicote de Ians. Seus braos levantam e

    abaixam a colher na massa, em um movimento circular de fora para dentro,

    como quem puxasse o alimento para si. Ao formar o bolinho com a colher e

    coloc-los em pequenas quantidades nos tachos para fritar, as baianas

    realizam mais um movimento, agora, lateralizado. Com os braos arqueados,

    na altura dos ombros, estas mulheres afastam e aproximam seus membros do

    corpo em um movimento tpico da dana africana.

    Um momento de naturalizao das relaes com o sagrado ao colocar a

    panela no meio de suas pernas estas mulheres estabelecem um elo com a

    fertilidade representada por cada bolinho retirado do seu ventre. Assim com

    sua me Ians.

    Este ritual se encerra na venda do acaraj para o cliente, sempre aberto

    ou furado, nunca fechado, com o intuito de impedir que o utilizem de forma

    prejudicial baiana, uma vez que a sacralizao com o divino deve ocorrer da

    me para a filha. o sagrado e o profano que se encontram no universo do

    acaraj.

    V - Todo mundo acha que baiana gorda porque come acaraj o tempo todo: as prticas alimentares no tabuleiro

    O trabalho da baiana apresenta muitas atividades e isto requer

    dedicao desta trabalhadora sua atividade laboral. Devido a isto, a baiana

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    prioriza o seu trabalho em detrimento de outras atividades como, por exemplo,

    o lazer, a alimentao e o cuidado com o corpo.

    Em muitas narrativas foi referido que a quantidade de trabalho que elas

    realizam muito grande impossibilitando a ida a servios de lazer como ir ao

    teatro, ao cinema, praia, e tambm a prtica de atividade fsica, como

    caminhadas, pois o tempo que se apresenta para o trabalho e para o

    descanso.

    Adicionado a escravizao no tempo, estas trabalhadoras no

    apresentam uma rotina alimentar, principalmente, em seu ambiente de

    trabalho. Em sua maioria elas no se alimentam enquanto esto trabalhando,

    pois referem no ter tempo para isto. Aqui eu no como. Porque eu no sinto

    fome por causa das coisas que eu fao. Uma vez na vida e s como metade (o

    acaraj) porque no desce, enjoa (Baiana Sara).

    Alm disso, o acesso aos alimentos pode conduzir os grupos menos

    favorecidos a diferentes arranjos de sobrevivncia. Nessa perspectiva, as

    estratgias de consumo alimentar so caracterizadas pela seleo de gneros

    bsicos e de alta densidade calrica como as gorduras e acares atravs dos

    quais os indivduos conseguem as calorias necessrias para a tentativa de

    reproduzir a fora de trabalho de que necessitam.

    Os alimentos que se fazem presentes em seu ambiente de trabalho so

    os que so