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URI – UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA SANDRA DE FÁTIMA KALINOSKI AS CICATRIZES DA CENSURA: MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAGMENTAÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64 Prof. Dr. LIZANDRO CARLOS CALEGARI Frederico Westphalen, RS, Brasil Agosto de 2011

AS CICATRIZES DA CENSURA: MEMÓRIA, MELANCOLIA E ... · 1 uri – universidade regional integrada do alto uruguai e das missÕes prÓ-reitoria de pesquisa, extensÃo e pÓs-graduaÇÃo

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URI – UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DASMISSÕES

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃODEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALENMESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

SANDRA DE FÁTIMA KALINOSKI

AS CICATRIZES DA CENSURA: MEMÓRIA, MELANCOLIA EFRAGMENTAÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64

Prof. Dr. LIZANDRO CARLOS CALEGARI

Frederico Westphalen, RS, Brasil

Agosto de 2011

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SANDRA DE FÁTIMA KALINOSKI

AS CICATRIZES DA CENSURA: MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAG-MENTAÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64

Dissertação apresentada como requisito parci-al para obtenção do Título de Mestre em Le-tras na Universidade Regional Integrada do Al-to Uruguai e das Missões – URI, campus deFrederico Westphalen. Área de concentração:Literatura.

Orientador: Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari

Frederico Westphalen, RS, Brasil

Agosto de 2011

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES-PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTESCAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,aprova a Dissertação de Mestrado

AS CICATRIZES DA CENSURA: MEMÓRIA, MELANCOLIA EFRAGMENTAÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64

Elaborada porSANDRA DE FÁTIMA KALINOSKI

como requisito parcial para a obtenção do grau de

Mestre em Letras

COMISSÃO EXAMINADORA:

____________________________________________Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari – URI

(Presidente/Orientador)

_____________________________________________Profa. Dra. Márcia Ivana de Lima e Silva – UFRGS

(1ª arguidora)

____________________________________________Prof. Dr. Breno Antonio Sponchiado – URI

(2º arguidor)

Frederico Westphalen, 16 de agosto de 2011

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A vida, prezado leitor, é uma sucessão de acontecimen-tos, monótonos, repetidos e sem imprevisto. Por isto, al-guns homens de imaginação foram obrigados a inventar oromance. O homem na terra, nasce, vive e morre semque lhe aconteça nenhuma dessas aventuras pitorescasde que os livros estão cheios.

(Caminhos cruzados, Erico Verissimo)

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Para minha mãe, por tudo que representa em minha vida.

Para Sandro, por tudo que passou a representar.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus,

por me possibilitar, através do dom da vida, a chegar até aqui

e continuar sonhando com novas conquistas. A essa força in-

visível que me guia e que me dá coragem para lutar e vencer

os obstáculos, mesmo quando eles parecem invencíveis, mi-

nha imensa gratidão;

A Leonora, minha mãe,

por ter me dado a vida e por ter me ensinado não a teoria dos

livros, mas a prática dos valores morais e éticos, indispensá-

veis para a conquista de uma vida digna. Por tudo que fez por

mim para que eu pudesse iniciar o longo caminho que me

trouxe até aqui, meu eterno agradecimento;

Ao Sandro, meu namorado,

pelo grande incentivo, pela força, paciência e compreensão.

Por ter vivenciado junto comigo cada etapa dessa conquista,

por sorrir quando sorri, por enxugar minhas lágrimas quando

elas insistiram em cair e por segurar minha mão quando me

senti só. Por ter ficado ao meu lado nos momentos de angús-

tia, pelas palavras de carinho e estímulo, pela dedicação e pe-

lo afeto demonstrado, que me fizeram seguir em frente, meu

reconhecimento e meu carinho. Sobretudo, pelas vezes que

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acreditou muito mais em mim do que eu mesma, minha terna

gratidão.

Aos professores do curso de Mestrado em Letras da URI,

pelos valiosos ensinamentos transmitidos;

Ao Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari – de modo muito especial,

por ter me apresentado a essa temática e apontado caminhos

possíveis, pelo valoroso incentivo, pela orientação segura, pe-

la inteligência, por seu exemplo de competência, pela plena

confiança e compreensão diante de tantas inquietações e an-

gústias. Sou imensamente grata por seu apoio, paciência e in-

cansável trabalho de leitura, pela forma carinhosa com que me

auxiliou a construir um texto em meio a tantas ideias truncadas

e confusas. Mas, acima de tudo, agradeço pela amizade e

confiança – pois isso não tem preço. Levo comigo esse grande

exemplo de mestre e de amigo, mas, sobretudo, de humani-

dade. Por ter me auxiliado e dividido comigo uma parte de seu

saber, minha gratidão, reconhecimento, carinho e amizade;

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES,

pela bolsa concedida;

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RESUMODissertação de Mestrado

Curso de Mestrado em LetrasUniversidade Regional Integrada – Frederico Westphalen

AS CICATRIZES DA CENSURA: MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAG-MENTAÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64

Autor: Sandra de Fátima KalinoskiOrientador: Lizandro Carlos Calegari

Local e data da defesa: Frederico Westphalen, 16 de agosto de 2011

A presente pesquisa investiga como as práticas autoritárias do período ditatorial sãorepresentadas na Literatura Brasileira, verificando aspectos como a problemática damemória e do esquecimento, a melancolia dos protagonistas e, consequentemente, afragmentação da narrativa. O corpus desse estudo é formado por duas narrativassurgidas em meio ao contexto histórico ditatorial: Quatro-olhos, de Renato Pompeu,publicada em 1976, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós, lançada em 1977. Ainvestigação se dá em torno da figura dos protagonistas das obras, principalmente noque se refere ao esforço de ambos na tentativa de narrar suas experiências em rela-ção ao sistema opressor e a dificuldade encontrada para fazê-lo diante da problemá-tica da memória e da perturbação psicológica. Para dar conta dos referidos elemen-tos estudados, leva-se em conta textos da Teoria Literária, bem como busca-se res-paldo em referenciais de outras áreas do saber, como as teorias dos consagradosestudiosos da Escola de Frankfurt, mais notadamente Walter Benjamin e TheodorAdorno. Pressupostos teóricos provindos da psicanálise, como os de Sigmund Freud,também são utilizados na compreensão da literatura de testemunho enquanto narrati-va do trauma instaurado na memória dos sujeitos vitimados pela barbárie do período.

Palavras-chave: Literatura de testemunho. Memória. Melancolia. Trauma. Fragmen-tação.

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ABSTRACTMaster’s Thesis

Master’s Degree Program in LiteratureUniversidade Regional Integrada – Frederico Westphalen

SCARS FROM THE CENSORSHIP: MEMORY, MELANCHOLY, ANDFRAGMENTATION IN THE POST-64 BRAZILIAN FICTION

Author: Sandra de Fátima KalinoskiChair: Lizandro Carlos Calegari

Time and place of defense: Frederico Westphalen, 16th August, 2011

This thesis analyzes how the authoritarian practices carried out during the 1964-85dictatorship in Brazil are represented in the literature, departing from some aspectslike memory and forgetting, melancholy and fragmentation of the narratives. RenatoPompeu’s Quatro-olhos (1976) and Renato Tapajos’ Em câmara lenta (1977) con-stitute the corpus of the present research. The investigation centers on theprotagonists of the two novels, especially with regard to the efforts of both to anattempt to narrate their experiences in relation to the system of oppression and thedifficulty of doing so because of memory and psychological disturbances. Works fromvarious areas of knowledge like literary theory and literary sociology, most notablyWalter Benjamin and Theodor Adorno, ground this analysis. Theoretical issues frompsychoanalysis are also used in the understanding of testimonial literature concerningthe trauma established in the memory of individuals victimized by the barbarism of theperiod.

Keywords: Testimonial literature. Memory. Melancholy. Trauma. Fragmentation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................ ........................... 11

1 A FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64: AUTORITARISMO E RESISTÊNCIA ............. 16

1.1 A produção cultural pós-64: ditadura, censura e literatura no Brasil ............... 16

1.2 Tendências da ficção brasileira pós-64: a busca pelo novo ............................ 25

1.3 As obras de Renato Pompeu e Renato Tapajós: estudos críticosacerca de Quatro-olhos e Em câmara lenta ...................................................... 36

2 A ESCRITA DA DOR: LINGUAGEM E SILÊNCIO NANARRATIVA DOS ANOS 70 NO BRASIL ................................................................ 47

2.1 O romance no século XX ................................................................................. 47

2.2 Fronteiras da narrativa: ficção, história e testemunho ..................................... 58

2.3 As narrativas do trauma no século XX ............................................................ 68

3 MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAGMENTAÇÃO EM QUATRO-OLHOS EEM CÂMARA LENTA .......................................................................................... 79

3.1 Memória e esquecimento em Quatro-olhos e Em câmara lenta .................. 79

3.2 A melancolia nas obras de Pompeu e Tapajós ............................................. 101

3.3 Trauma e fragmentação em Quatro-olhos e Em câmara lenta .................. 125

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 146

REFERÊNCIAS ................................................................................................. ...... 152

ANEXOS .................................................................................................................. 158

Figura 1 – Angelus Novus, de Paul Klee .......................................................... 159

Figura 2 – Melancolia I, de Albrecht Dürer ........................................................ 160

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INTRODUÇÃO

Desvio-me do caminho. O verdadeiro caminho passa por uma cor-da que não está esticada a grande altura, mas muito próxima dochão. Parece estar ali para nos fazer tropeçar, e não para que sepasse por cima dela.

(Parábolas e fragmentos, Franz Kafka)

As palavras de Franz Kafka aludem à necessidade de se desviar do caminho

já conhecido e buscar olhar, através de um novo rumo, menos repisado, para aquilo

que ainda permanece oculto e que anseia pelo reconhecimento. Parece que as pala-

vras de Kafka mantêm uma estreita empatia com o interesse por histórias de um pas-

sado de sofrimento e de horror, que, ao permanecerem no desconhecimento, geram

sensação de desconforto nos indivíduos.

O século XX, tanto na Europa como na América Latina, foi cenário para as

mais hediondas experiências de autoritarismo e de violência. Regimes políticos auto-

ritários baniram das sociedades a liberdade e instituíram normas rígidas de compor-

tamento reguladas pelo Estado, reprimindo, assim, qualquer manifestação adversa às

normas do poder.

Dentro desse contexto, destaca-se o caso do Brasil, que vivenciou, por duas

décadas, o modelo governamental autoritário, decorrente do golpe militar de 1964.

Sob outro olhar, convém não ignorar que a história da nação brasileira sempre esteve

marcada pelo autoritarismo, dominação e violência. Inicialmente, no descobrimento,

com a chegada dos portugueses e a dominação dos indígenas; depois, com os ne-

gros, que eram submetidos às mais desumanas condições de vida com a escravatura

e, posteriormente, com as diversas lutas políticas por territórios e posses. Nesse ce-

nário, o golpe militar de 1964 passa a integrar o palco dos acontecimentos brutais do

país, marcando profundamente a sociedade e a cultura brasileira. Contudo, tendo em

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vista o elevado grau de violência, o grande número de desaparecidos e de mortos,

pode-se dizer que, talvez, a Ditadura Militar tenha se configurado na maior e mais

truculenta experiência autoritária de toda a história da nação, possibilitando ao país

pertencer ao rol das sociedades da “era das catástrofes”1.

Assim, rememorar esse período histórico brasileiro significa revisitar um tempo

autoritário e reconhecer as mais variadas formas de violência e tortura praticadas

contra pessoas muitas vezes inocentes, bem como a catástrofe desse tempo, a tra-

gédia, a barbárie e a repressão. O fato de se conhecer muitas dessas atrocidades

cometidas para com as gerações passadas configura-se em possibilidades de ações

distintas no presente, para que aquela triste história jamais torne a se repetir. Por ou-

tro lado, esquecer ou fingir esquecer esse tempo, segundo Renato Franco2, ao fazer

releitura de Theodor Adorno, pode significar não tomar consciência do passado, mas,

ao contrário, levá-lo ao recalque, suprimindo, negando e transformando-o em um

não-acontecimento. Situação esta capaz de redimir e apagar a história nacional, cul-

minando não em uma libertação do passado, mas em uma vivência condenada à ig-

norância e vitimada por tal passado.

Fato é que toda essa agitação ocasionada pelos conflitos violentos refletiu nas

relações entre indivíduo e sociedade, problematizando de tal modo esse vínculo, que

a constituição subjetiva e psicológica também foi afetada. Diante disso, as formas de

manifestação artística e cultural também sofreram bruscas transformações, uma vez

que a representatividade estética estava condicionada aos acontecimentos circun-

dantes. Uma vasta produção literária, de indiscutível qualidade, surgiu nos escombros

do período ditatorial. Entretanto, muito pouco ainda se sabe a respeito dessas produ-

ções, uma vez que, vitimadas pela censura, foram silenciadas e, ainda hoje, depois

de quase três décadas do fim da Ditadura Militar, muitas dessas obras ainda perma-

necem desconhecidas ou pouco valorizadas.

Dessa forma, por configurar-se num campo relativamente ainda pouco estu-

dado pela crítica, mas com inúmeras possibilidades de pesquisa e análise, é que se

justifica a presente pesquisa acerca do romance pós-64. Além disso, outros motivos

dizem respeito ao anseio de se investigar como fatores como a repressão e a violên-

cia contribuíram para o caos psicológico instaurado na mente dos sujeitos e explorar

os elementos que influenciaram na fragmentação formal das obras, tão comum em

1 Cf. HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). 1995. p. 112.2 FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 16.

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muitos relatos produzidos nesse período. A esses interesses soma-se o fato de se

averiguar o quão importante é para o artista vitimado pelo abuso de poder encontrar

na literatura um espaço para a denúncia das barbáries de modo que o passado não

volte a se repetir.

Assim, foram eleitos para esse estudo dois romances que podem ser repre-

sentativos daquele período violento e brutal no Brasil. São eles: Quatro-olhos, de

Renato Pompeu, publicado em 1976, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós, publi-

cado em 1977. A investigação propõe uma reflexão acerca da representação literária

do autoritarismo e da violência oriundos do período ditatorial, considerando alguns

elementos como a problemática da memória e do esquecimento – diante da necessi-

dade de dar testemunho dos narradores –, a melancolia dos protagonistas das obras,

a questão do trauma e a fragmentação da narrativa. A escolha por esse corpus deu-

se, inicialmente, por ambos apresentarem narrativas fragmentárias e, num segundo

momento, pela constatação da presença de narradores perturbados psicologicamen-

te. Tais considerações, da mesma forma que se propõem a justificar a escolha das

referidas obras, servem para situá-las em relação ao objetivo proposto.

Quatro-olhos é uma narrativa de cunho memorialístico, que, através da mes-

cla de lembranças do passado e ficção, aborda a repressão e suas estratégias violen-

tas. Quatro-olhos – o protagonista, que, aliás, também nomeia a obra – tem o árduo

exercício de recuperar, através da memória, o passado violento. Nessa tentativa, de-

para-se com a impossibilidade de lembrar, de maneira íntegra, os fatos transcorridos.

Diante disso e marcado por um alto teor melancólico, o relato aparece descontínuo e

destituído de qualquer organização lógica.

Seguindo a mesma linha memorialística, Em câmara lenta faz uma reflexão

crítica acerca das estratégias de guerrilha ocorridas no norte do Brasil e também de-

nuncia o emprego brutal da violência decorrente da repressão. Ao abordar esses as-

pectos, o protagonista depara-se com a dificuldade de lembrar e organizar em sua

mente, de maneira ordenada, os fatos sucedidos. Diante do desconhecido que o per-

turba e tomado pela melancolia, que o afastam da realidade, o personagem constrói

um relato de interrupções, de vaivens temporais e de repetições.

A fim de dar conta do objetivo proposto, a presente pesquisa foi organizada

em três segmentos básicos. O primeiro aborda questões relacionadas ao contexto

histórico e social pós-64, bem como os rumos tomados pela ficção brasileira nesse

período em decorrência da situação política instaurada no país. Trata ainda das no-

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vas tendências do romance como forma de resistência à censura e à repressão ori-

undas do regime governamental autoritário. Para esses aspectos, destaca-se a utili-

zação dos suportes teóricos de Creuza Berg, Flávio Aguiar, Janete Gaspar Machado,

Malcolm Silverman, Márcio Seligmann-Silva, Renato Franco, Silviano Santiago e Tâ-

nia Pellegrini, dentre outros, usados na elucidação das questões abordadas.

O segundo capítulo trata da produção literária enquanto escrita da dor. Nesse

segmento, são apresentadas considerações sobre o abandono do modelo tradicional

do romance, bem como é discutida a estreita relação entre ficção, história e testemu-

nho. Partindo desse enfoque, faz-se uma reflexão sobre as narrativas do trauma sur-

gidas durante o século XX, enquanto testemunhos do horror e da catástrofe. Para dar

suporte teórico a essa abordagem, são levados em conta os estudos de Anatol Ro-

senfeld, Cathy Caruth, Erich Auerbach, Hayden White, Márcio Seligmann-Silva, Ro-

land Barthes, Sigmund Freud, Theodor W. Adorno e Walter Benjamin, dentre outros.

O terceiro capítulo, por sua vez, trata da análise do corpus desta pesquisa e

traça uma reflexão acerca da memória, da melancolia, do trauma e da fragmentação

à luz dos teóricos supracitados. A análise radica em torno do problema de memória e

de seu correlato, o esquecimento, a manifestação da melancolia nos protagonistas

das obras e a problemática da fragmentação da narrativa. Quanto à questão da me-

mória, pode-se dizer que a necessidade de os protagonistas dos romances lembra-

rem o passado e narrá-lo, para assim conseguirem retornar à vida cotidiana, é barra-

da pelo esquecimento. Diante dessa condição supostamente imposta pelas práticas

violentas, os personagens principais travam uma árdua luta entre a necessidade de

contar, dar testemunho da sua experiência, e a dificuldade para fazê-lo. Diante dos

embates psicológicos dos protagonistas, tendo em vista a percepção de ambos em

relação às perdas sofridas, de cunho subjetivo e material, vê-se o desenvolvimento

do sentimento melancólico nos narradores, que, diante da impossibilidade de recupe-

rar o que era para eles motivo de valorosa estima e que ficou perdido no passado,

adoecem.

Diante desses aspectos motivados pelas amarras do Estado opressor, a mani-

festação artística também ficou prejudicada. A escrita em fragmentos, observada tan-

to em Quatro-olhos quanto em Em câmara lenta, não se dá gratuitamente, mas é

resultado de uma mente problemática e perturbada psicologicamente devido aos

traumas ocasionados pelas experiências violentas, a exemplo da tortura. A ferida a-

berta deixada na memória impossibilita a assimilação dos acontecimentos traumáti-

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cos, impedindo a simbolização do trauma, de modo que os narradores não conse-

guem encontrar palavras adequadas para serem utilizadas, nem mesmo concatenar

de maneira lógica o seu discurso. A fragmentação acaba sendo a materialização de

uma mente confusa, a prova de que a linguagem não é suficiente para encobrir o

trauma sofrido.

Para a abordagem das temáticas selecionadas, levaram-se em conta referen-

ciais da Teoria da Literária, da História e da Psicanálise, tendo em vista autores como

Walter Benjamin e Theodor Adorno, estudiosos consagrados da Escola de Frankfurt,

e Sigmund Freud, autor dos mais importantes estudos psicanalíticos que se têm até a

atualidade. Além disso, no decorrer da pesquisa, foram acrescentados outros refe-

renciais além dos já mencionados, a fim de atender às particularidades que iam sur-

gindo no transcorrer do estudo e possibilitar uma melhor construção da análise inter-

pretativa.

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1 A FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64: AUTORITARISMO ERESISTÊNCIA

Como foi que viveram desde que principiou a epidemia, Saímos dointernamento há três dias, Ah, são dos que foram postos de qua-rentena, Sim, Foi duro, Seria dizer pouco, Horrível, O senhor é es-critor, tem, como disse há pouco, obrigação de conhecer as pala-vras, portanto sabe que os adjectivos não nos servem de nada, seuma pessoa mata outra, por exemplo, seria melhor enunciá-lo as-sim, simplesmente, e confiar que o horror do acto, só por si, fossetão chocante que nos dispensasse de dizer que foi horrível, Querdizer que temos palavras a mais, Quero dizer que temos senti-mentos a menos.

(Ensaio sobre a cegueira, José Saramago)

1.1 A produção cultural pós-64: ditadura, censura e literatura no Brasil

A gente teve que se acostumar com aquilo. Às penas, que, comaquilo, a gente nunca se acostumou, em si, na verdade.

(A terceira margem do rio, Guimarães Rosa)

Abordar o tema da produção cultural brasileira, de modo especial no que se

refere à literatura produzida no período que compreende a segunda metade da déca-

da de 1960 e toda a década de 1970, é uma tarefa que, antes de ser definitivamente

iniciada, deve ser situada e entendida dentro de uma determinada condição histórica,

social e política. Fato é que as décadas transcorridas entre os anos 60 e 80 foram

marcadas por um período sombrio e triste e, quando se adentra no campo de enten-

dimento da produção artística dessa época, é importante que ela seja identificada

também dentro desse contexto truculento.

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A partir de 1964, a sociedade brasileira experimenta um longo e tenso período

de acontecimentos históricos e políticos que, articulados de maneira desordenada,

conferem ao país uma estrutura caracterizada pela desordem social. O Brasil volta a

vivenciar a situação política já experimentada na metade do século XX, com a implan-

tação do Estado Novo (1937-1945) pelo governo Getúlio Vargas. Entretanto, apesar

da semelhança, o período que se iniciaria em 64 superaria em muitos sentidos – prin-

cipalmente no que se refere à censura, à repressão e à violência – aquele implantado

no Estado Novo. Durante o período Vargas, o clima de autoritarismo pairou incessan-

temente no território brasileiro, incluindo em seu projeto governamental torturas, exe-

cuções e perseguições variadas contra todos aqueles que tentavam contestar o sis-

tema, bem como contou com o controle de informações na imprensa, e a censura a

obras literárias, cinematográficas e teatrais. Transcorridas quase duas décadas desse

regime, o país volta a vivenciar a mesma experiência a partir de 1964, com a Ditadura

Militar.

O contexto político da década de 60 começa a sofrer modificações e configu-

ra-se decisivamente em 1961, quando o então presidente da República Jânio Qua-

dros renuncia ao governo. Assume o poder o seu vice-presidente João Goulart, que,

mesmo munido de grandes ideais de reformas sociais e econômicas para o país, tem

seu governo marcado pelo agravamento da crise econômica, bem como por conflitos

sociais e políticos, não conseguindo, com isso, nem manter a ordem no país, nem

levá-lo adiante como era seu objetivo. Perante tal cenário e alegando assegurar a

economia e a ordem democrática, os militares tomam o poder na noite de 1º de abril

de 1964. Tal ato passou a determinar os rumos da nação nas próximas duas déca-

das, e seu regime governamental passou a ser conhecido como Ditadura Militar.

No intuito de promover o desenvolvimento do país, acabar com as disparida-

des sociais existentes entre as regiões, controlar a inflação e ainda atrair investimento

estrangeiro (objetivos que seriam buscados pelos governos militares até o fim da di-

tadura em 1984), os militares precisariam investir em ações capazes de lhes conferir

plena autonomia econômica dentro do contexto capitalista da época. Para que seus

projetos desenvolvimentistas fossem plausíveis de concretização, o governo militar

investiu em ações capazes de lhe conferir poderes para a administração da vida polí-

tica da nação. Tais ações ficaram conhecidas como Atos Institucionais (AIs), através

dos quais os militares controlavam e modificavam a vida política brasileira de acordo

com suas convicções e interesses. Muitos desses atos foram criados, contudo, o AI 5,

de 13 de dezembro de 1968, instituído no governo Costa e Silva, foi considerado o de

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maior relevância para todo o contexto político, histórico e social do período e, o mais

importante, principalmente no que tange à produção cultural e artística do país.

Com a implantação do AI 5, a ditadura consolida-se e o país adentra no perío-

do mais violento e intolerante de todo o regime, pois esse AI supera em todos os sen-

tidos os anteriores tendo como força motriz a censura. A sociedade se depara com

um sistema político em que tudo é proibido, tanto na imprensa quanto no que se refe-

re à produção cultural. Qualquer manifestação contrária ao sistema vigente era con-

siderada provocativa e desafiadora para com o governo, merecedora de punições

severas, como perseguições, tortura, sequestro, exílio e até mesmo assassinato.

Creusa Berg, ao pesquisar a implantação e a permanência da censura durante

o regime militar, afirma que esta não se deu unicamente de um modo, mas de várias

formas. A autora classifica a censura de duas maneiras. Uma primeira considerada

de cunho burocrático, pois estava baseada em leis e decretos, sendo algumas formu-

ladas pela Escola Superior de Guerras (ESG) e exercidas pela Divisão de Censura e

Diversões Públicas (DCDP), com o único objetivo de “promover” a “Segurança Nacio-

nal”. Essa etapa da censura ainda se dividia em dois níveis: a preventiva, que se re-

sumia na censura prévia ao que seria apresentado, e a punitiva, que desencadeou

processos judiciais contra aqueles que não observavam as normas impostas pelo

Estado. Um segundo tipo de censura era aquela de caráter coercitivo, a qual ganhou

espaço com a promulgação do então AI 5. Essa forma era muito mais radical e vio-

lenta, e, não raras vezes se sobrepôs à censura legal. Era praticada por terroristas de

extrema direita que pertenciam à ala radical do Exército e também pela polícia que

estava vinculada ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e dirigida a

todos os pertencentes, ou que de alguma forma estavam ligados ao meio artístico e

que representavam a resistência à censura convencional3.

Tais subdivisões, a que se refere a autora, são formas de visualizar a propor-

ção, o alcance e o (não)limite da censura imposta aos meios artísticos pelo DCDP. A

censura prévia era considerada o primeiro nível da repressão e, como o próprio nome

indica, atuava de maneira preventiva em relação às causas, vetando e proibindo a

exibição de trabalhos artísticos. O segundo nível, a censura punitiva, de ação mais

repressiva, agia, de um modo geral, sobre os efeitos das causas, ou seja, sobre a

divulgação ou a apresentação pública de um trabalho já vetado, ou ao desrespeito

3 BERG, Creusa. Mecanismos do silêncio: expressões artísticas e censura no regime militar(1964-1984). 2002. p. 121.

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aos cortes dos censores. A censura punitiva estava amparada judicialmente com ple-

nos poderes para gerar processos, impedimentos contra apresentação de trabalhos e

até mesmo a prisão. Contudo, é no terceiro nível, através da censura coercitiva, que

se pode visualizar o ápice da violência propriamente dita, contra artistas, intelectuais,

escritores e até mesmo contra o público que prestigiava tais produções. Classificada

de caráter totalmente extralegal, buscava eliminar, destruir e neutralizar todos os diri-

gentes, bem como os mecanismos que iam contra o sistema prevendo todo o tipo de

operação, desde a tortura ao assassinato.

Não obstante esse acompanhamento repressivo a que eram submetidas as

produções artísticas como música, teatro, romances, entre outras, os artistas conse-

guiam na maioria das vezes fazer com que os cortes e as modificações sugeridas

pelos censores fossem burladas de alguma forma. Creusa Berg, ao realizar pesquisa

em documentos oficiais do governo acerca da atuação da censura, afirma que, ape-

sar de muitos terem sido os trabalhos que sofreram cortes ou que tiveram sua apre-

sentação e/ou publicação proibidas, de alguma forma, driblaram o controle dos cen-

sores, deixando as respectivas proibições somente “no papel”, mantendo e apresen-

tando os textos originais, principalmente no caso do teatro. Tamanha era a repressão

praticada nos diversos segmentos artísticos, que Caetano Veloso chegou a denomi-

nar de “linguagem de fresta” a linguagem metafórica que era usada pelos composito-

res musicais para driblar o controle do Estado. Essa denominação referia-se ao dis-

farce que era dado ao real sentido das palavras utilizadas nas composições, fazendo

com que o verdadeiro sentido da mensagem que estava sendo passada fosse perce-

bido nas “frestas” dessas palavras.

Através de atitudes como essas, identifica-se a resistência às imposições que

pairava entre os artistas. Contudo, essa resistência configurada através da insistência

em apresentações de peças teatrais e espetáculos já embargados pela censura, bem

como a divulgação de músicas que atentavam aos interesses do sistema vigente,

representavam “desobediência civil”4. Isso desencadeava contra os “desobedientes”

processos-crime5 e também a censura punitiva, levando à prisão, à tortura e ao exílio,

sem justificativa, muitos artistas como, dentre outros, Caetano Veloso, Geraldo Van-

dré, Gilberto Gil, Marília Pêra, Rodrigo Santiago, Zezé Motta. A violência praticada

como fruto da censura coercitiva, bem como a eliminação – até mesmo física – de

4 Idem. Ibidem. p. 144.5 A autora não discute esse tipo de processo, pois só se pode ter acesso aos arquivos de quemteve essa punição com autorização do envolvido no processo.

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muitos daqueles que resistiram, visavam a amedrontar e, de certa forma, exemplificar

o que poderia acontecer a quem se mostrasse contrário ao sistema implantado. Essa

prática de repressão violenta contava com a colaboração de civis de extrema direita,

como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), com o apoio de empresários que

recebiam privilégios da polícia e com militares radicais.

Dessa forma, durante toda permanência dos militares no poder, a censura foi

uma estratégia que atuou como instrumento de controle da nação. Segundo Thomas

Skidmore, desde 1964, ocorria uma divergência muito grande entre os militares radi-

cais com aqueles mais moderados, no que se referia ao uso da repressão6. Talvez

essa divergência fosse o fio condutor capaz de explicar as diversas variações da

censura nesse período, desde a censura prévia – amparada legalmente e submetida

a processos jurídicos nos quais ambas as partes, repressão e resistência, passavam

pela decisão judicial, como possibilidade de diálogo – até chegar à censura coercitiva,

como resposta dada pelos militares radicais a essa flexibilidade e a esse diálogo que

o governo, mesmo que de forma muito restrita, mantinha com os artistas através dos

processos judiciais.

Nesse âmbito, o peso que teve a vigência do AI 5 para a esfera cultural e artís-

tica do país foi um fator de extrema relevância ao enfocar o tema referente à produ-

ção literária da década de 70, determinando não só os padrões da escrita, mas tam-

bém os rumos que os artistas tomariam em suas produções tais como a temática a

ser abordada e como seria abordada. Acredita-se que, com a institucionalização da

censura, grande parte da produção artística e cultural da época em questão ficou ou

silenciada no íntimo dos artistas ou confiscada e apreendida pelos oficiais. Mesmo

assim, muitos foram os críticos escritores, principalmente jornalistas, que, impulsio-

nados pela estética literária, conseguiram ultrapassar as barreiras impostas pela cen-

sura e traçar, através de suas produções, um diagnóstico do turbulento período histó-

rico e social em que se encontrava o país.

Silviano Santiago, ao discutir acerca da repressão e da censura que assolou o

campo das artes na década de 70, aborda essa situação dividindo-a em duas partes

que se complementam. De um lado, trata dos estragos advindos das proibições da

censura, referindo-se, num sentido geral, ao grandioso número de livros que foram

proibidos de circular, às peças de teatro que foram barradas, aos filmes – nacionais e

estrangeiros – que não foram exibidos, às canções que não foram tocadas e canta-

6 SKIDMORE, Thomas. Brasil de Getúlio a Castelo. 1976.

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das, bem como todos os escritores, cineastas, dramaturgos, compositores, entre ou-

tros artistas, que enfrentaram problemas com a censura. Sob outra ótica, o autor tra-

balha sob um viés paradoxal de que, apesar da repressão do regime militar, a produ-

ção cultural brasileira não foi afetada quantitativamente7. Contraditório ou não, fato é

que o autor, ao fazer tal afirmação, adentra num campo muito mais profundo do que

representou a censura para a vida artística do país. Para ele, o artista, ao ser censu-

rado, sofre bastante porque é afetado moral e economicamente, ou seja, a censura

atinge brutalmente a pessoa humana do artista, mas não necessariamente a obra

enquanto produção artística porque,

no caso específico da obra de arte, o processo criador – semelhantea um avestruz – se alimenta praticamente de tudo: flores, pregos, co-bras e espinhos. Livros, peças, canções continuaram a ser escritas.E, pelo que se sabe, artista algum mudou de partido político por cau-sa da censura; ou deixou de pensar, imaginar, inventar, anotar, es-crever, por causa da censura. Nenhum deixou de dizer o que queria,ainda que em voz baixa, para o papel, para si ou para os poucoscompanheiros. [...] A repressão e a censura podem, no máximo, ali-mentar certa preguiça latente em cada ser humano, podem apenasjustificar racionalmente o ócio que impede o artista muitas vezes afazer só amanhã e pensar hoje8.

Através dessas palavras, observa-se que Santiago acredita num possível ócio,

que possa surgir no artista, a partir da censura, mas não necessariamente num impe-

dimento para a produção, uma vez que ele é capaz de encontrar vários modos e lan-

çar mão de inúmeras estratégias para burlar a repressão. Porém, o crítico acredita

veementemente que, embora a censura não seja impedimento total para a produção

artística, ela pune severamente a sociedade ao impedir a circulação de tais obras:

[o] grande punido, punido injustamente, pela censura artística, é asociedade – o cidadão, este ou aquele, qualquer. [...] É o cidadão quedeixa de ler livros, de ver espetáculos, de escutar canções, de verfilmes, de apreciar quadros, etc. Ele é quem recebe um atestado deminoridade intelectual. Por causa da censura, nesses períodos, a so-ciedade tem a sua sensibilidade esclerosada e o seu pensar-artísticoembotado (e também o seu pensar-crítico e o seu pensar-científico).Nessa circunstância, o fruidor da obra de arte fica desfacelado decertos elementos que o ajudariam a compor o quadro global da soci-edade em que vive, pois apenas recebe uma única voz que circuns-

7 SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. 1982. p. 52.8 Idem. Ibidem. p. 49.

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creve toda a realidade. A voz do regime autoritário, a única permiti-da9.

Nesse sentido, é possível inferir que, ao impedir a circulação das produções

na década de 70, a censura, além de agredir moral e fisicamente a pessoa do artista,

contribuiu de forma significativa na (de)formação intelectual dos indivíduos, pois agiu

como barreira entre os artistas e os indivíduos, impedindo que aqueles pudessem

levar as mais diversas informações e, até mesmo, “orientações” para esses últimos.

Assim, o papel castrativo que teve a censura no pensamento da sociedade possibili-

tou não só uma espécie de atraso intelectual nos indivíduos, mas a formação de la-

cunas vazias no campo de entendimento sócio-político da sociedade.

Em meio a esse cenário autoritário e repressivo, em que a palavra de ordem

era censura a toda e a qualquer manifestação contrária ou que fosse capaz de deses-

tabilizar a “ordem” imposta, Tânia Pellegrini também discute a atuação da censura no

campo das artes brasileiro. A autora busca entender até que ponto essa barreira im-

posta foi determinante e influenciou diretamente nas produções literárias da década

de 70, ou se tal situação foi apenas mais uma dentro de uma variedade muito maior

de transformações em que se encontrava o país10.

Antonio Candido, ao proferir conferência nos Estados Unidos, em 1972, tam-

bém mostra um posicionamento similar ao de Pellegrini, quando declara:

[o] atual regime militar no Brasil é de natureza a despertar protestoincessante dos artistas, escritores e intelectuais em geral, e seria im-possível que isto não aparecesse nas obras criativas [...]. Por outrolado, este tipo de manifestação é extremamente dificultado pelo re-gime, que exerce um controle severo sobre os meios de comunica-ção. Controle total na televisão e no rádio, quase total nos jornais demaior circulação, muito grande no teatro e na canção; nos livros enos periódicos de pouca circulação a repressão é mais branda [...].Além disto, existe em escala nunca vista antes a repressão sobre osindivíduos. É claro que isso afeta a atividade intelectual e limita aspossibilidades de expressão. Mas é difícil dizer se influi na natureza esobretudo na qualidade das obras criativas11.

Assim como Candido evidencia na última frase de seu comentário, há dúvidas

em relação a até onde a censura pesa e impede a criatividade dos artistas. Nesse

9 Idem. Ibidem. p. 51.10 PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996.11 CANDIDO, Antonio. A literatura brasileira em 1972. Arte em Revista, 1979. p. 25.

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sentido, em relação à produção literária de 70, Pellegrini discute duas opiniões con-

trárias entre si a respeito dessa influência. De modo ponderado, a autora averigua

que, em um primeiro momento, a censura pode ter sido sim um fator decisivo para a

produção literária no período da Ditadura Militar, exercendo realmente uma função

castradora sobre a criação artística da época. Contudo, reforça ela, esse fator não

pode ser tomado como único, tendo em vista que o país, assim como outras socieda-

des contemporâneas, sofriam rupturas e experimentavam a influência da indústria

cultural, sendo este um fator que deve ser acolhido no momento de avaliar a produ-

ção literária pós-6412. Em relação à influência da indústria cultural, Pellegrini afirma

que, mesmo esta sendo sustentada pela ideologia do poder autoritário, possuía ca-

racterísticas próprias como produto do desenvolvimento capitalista dos países desen-

volvidos. Nesse meio, o padrão de avaliação configurava-se no produto, no objeto,

jamais no homem, que começa então a entrar num processo de alienação, ou seja, a

indústria cultural não era determinada pelo consumidor, mas estava a serviço de um

público-massa homogêneo e nivelado às instituições que produzem e difundem as

mensagens13.

Nesse contexto nivelado mundialmente, em que cai por terra, com o desenvol-

vimento da indústria cultural, a oposição clássica entre cultura erudita e cultura popu-

lar, sendo que ambas se veem impregnadas de elementos da indústria cultural, a lite-

ratura, até então tida como elemento de conhecimento e de transformação do real,

sofre também. Ocorre o choque entre a ideologia literária, que passa a ser inconciliá-

vel com a realidade circundante, exigindo, pois, uma produção direcionada ao grande

público. Assim, o romance brasileiro na década de 70 se vê, de certa forma, ameaça-

do pelas transformações sociais e políticas, mas também modificado pelo desenvol-

vimento do capitalismo universal. O aumento massivo do mercado editorial na época,

um crescente número de escritores desconhecidos, bem como a afirmação do conto

como gênero narrativo de maior evidência também contribuíram para que o romance

não se desenvolvesse tanto. Evidencia-se, então, no discurso de Pellegrini, que o fato

de não surgirem tantos romances na década de 70 não é, em absoluto, consequência

da censura imposta pelo regime militar. Isso se deu tanto pela proliferação do conto,

devido à sua rapidez e imediaticidade estrutural, quanto pelo surgimento da poesia

marginal, em função do uso de elementos e procedimentos considerados antiliterá-

rios. Por esse motivo, o conto e a poesia marginal eram mais bem recebidos pelo

12 PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996. p. 9-10.13 BOSI, Ecléa. Cultura de massas e cultura popular. 1978. p. 49.

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público e pela crítica, pois representavam a inovação e a experimentação de um tem-

po que também buscava inovação14.

Entretanto, ao levar em consideração as ideias defendias por Pellegrini, convém

destacar que a expansão e o incentivo da indústria cultural também foram ações desen-

volvidas pelo governo como forma de censura. Em outras palavras, a intensa repressão

que pairou sobre período de 1969 a 1974 não foi a única ação praticada pelo sistema

de governo contra a produção cultural. Ao se analisarem minuciosamente esses ou-

tros elementos que a autora julga como deslocados da censura imposta pelo gover-

no, a questão que fica é se a modernização, das condições materiais, da criação cul-

tural, a melhoria das condições de expansão e consolidação da indústria cultural no

Brasil, não passou de uma estratégia modernizada de censura. Diante disso, torna-se

plausível o retorno ao acolhimento e ao reconhecimento, de forma significativa, no

peso que teve a censura na produção cultural e, em especial, na criação literária.

Ao se citarem alguns dos exemplos de incentivo cultural aos quais o governo

incutia sua ideologia conservadora e autoritária, tem-se a criação de algumas univer-

sidades em meados da década de 60 que se voltaram para o cumprimento dos obje-

tivos do regime. Nessas instituições, a criação de áreas como as Ciências Humanas

tende à sistematização e à implantação dos ideais do governo. Do mesmo modo, o

ensino de disciplinas como a literatura possibilita a definição dos rumos que o gover-

no almejava para essa prática. Outra expansão também diz respeito ao que se ob-

serva na área da comunicação, com a expansão da rádio e a da televisão. Nesse

meio, as imposições do governo se faziam sentir, uma vez que a programação, tanto

no que se referia a notícias ou a músicas, era fiscalizada pelo regime, sofrendo cortes

e manipulações, podendo ser veiculado apenas aquilo que estava de acordo com os

interesses do Estado. Na realidade, o que acontece é que a Ditadura Militar lança

mão de tais mecanismos de expansão e de transformação do processo material da

cultura, e vê nisso a oportunidade para incutir, de modo indiscriminado, sua ideologia.

Nesse sentido, é válido, portanto, considerar a censura como fator negativo

principal (e talvez o único) para os problemas da produção literária pós-64. O Estado,

mesmo com elementos de incentivo à produção e divulgação da cultura, sempre tentou

“direcionar” e alterar, a seu modo, tais manifestações. Porém, a agitação desencadeada

pela ditadura era sentida nos diversos segmentos, e estes influenciavam as diversas pro-

duções culturais que surgiam. Diante disso, o governo percebe que a estratégia não fora

14 PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996. p. 16.

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acolhida por escritores e intelectuais do meio cultural. Vendo-se então incapaz de contro-

lar os produtos culturais, parte para a repressão autoritária e violenta, censurando de

forma inigualável a produção ficcional dessa década. E, é então, através da implantação

do AI 5, que o governo vê a possibilidade de transformar e direcionar os rumos da ativi-

dade cultural, objetivando, assim, não só administrar a fluidez das produções, mas de

modo especial, seu conteúdo.

Nesse sentido, ao se analisar a produção literária pós-64, torna-se importante

não a “catalogação” quantitativa, se assim se pode dizer, mas observar, tomando

emprestada a definição de Flávio Aguiar, o valor da palavra escrita no calor da luta,

não no recolhimento posterior; a palavra escrita entre malho e bigorna, forjada ao

mesmo tempo de um tanto de ousadia e de outro tanto de fuga, em todo caso não

omissa15. Em outras palavras, deve-se levar em consideração a forma engajada soci-

almente com que os escritores trataram das questões relativas à forma de política

repressiva implantada pelo regime militar do momento, no afã de tentar encontrar

respostas para o tempo caótico que a sociedade enfrentava.

Atualmente, após algumas décadas já transcorridas do período ditatorial,

quando já é possível olhar para esse triste passado com um certo distanciamento,

nota-se que talvez a ditadura não tenha atingido tão brutalmente a criatividade literá-

ria, assim como fez com o teatro, com o cinema e com a música. Em meio à repres-

são, observa-se, na produção literária, a emergência de alguns mecanismos, consi-

derados como “desvios formais”16 que fizeram com que os autores seguissem produ-

zindo. Tais desvios configuraram-se em tendências para as obras desse período, a-

tribuindo características marcantes a cada tipo de romance e, dentre essas tendên-

cias, tem-se o romance jornalístico, o memorial, o de massificação, o de costumes

urbanos, o intimista, o regionalista histórico, o realista político, o de sátira política ab-

surda e o de sátira política surrealista.

1.2 Tendências da ficção brasileira pós-64: a busca pelo novo

Ir contra a corrente geral é uma coisa bastante incômoda. É possí-vel que a maior parte das misérias morais e intelectuais se come-tam por isso, para não contradizer as ideias dos nossos patronos,

15 AGUIAR, Flávio. A palavra no purgatório: literatura e cultura nos anos 70. 1997. p. 18-19.16 SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. 1982. p. 52.

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vizinhos, amigos. Um pensamento independente é um lugar solitá-rio e ventoso.

(A louca da casa, Rosa Montero)

Frente à situação política instaurada no Brasil na década de 1960, é importan-

te atentar para o contexto cultural e, de modo particular, para a produção literária que

resistia não só à censura imposta, como também iniciava um processo de renovação

no campo da produção ficcional. Entretanto, ao se voltar algumas décadas na história

literária brasileira, observa-se que as modificações que a produção literária sofreu

após a década de 60, bem como as diferentes tendências observadas, são frutos de

influências formuladas ainda na década de 20, com os modernistas, e que vieram se

estendendo e se adaptando com o romance de 30, nas produções de 40 e 50, até

chegarem às manifestações do período em questão, o período pós-64.

Segundo Janete Gaspar Machado, o modernismo de 20 deve ser considerado

ainda na atualidade como o marco de onde se inicia o despertar para a busca do no-

vo na arte e, de modo especial, na literatura17. Seguindo essa linha de pensamento,

infere-se que o escritor das décadas de 60 e 70 reafirma o vínculo com um passado

literário, sendo o legado modernista um dos principais argumentos para sua produ-

ção. Na visão de Machado, destaca-se como o mais importante elemento de contribu-

ição do modernismo de 20, para a ficção pós-64, o fato de que aquele primava pela

fidelidade ao presente. Assim, como no período de 20 o “romance novo”18 buscou

representar, através de formas também inovadoras, as transformações e as mudan-

ças atuais do cenário social decorrentes das inovações tecnológicas e científicas do

início século XX, os artistas do período ditatorial – também impulsionados pelas

transformações – mas principalmente afetados pela censura, procuraram a renova-

ção da estética romanesca e a representação do período histórico e social em que se

encontravam.

O romance de 30, por sua vez, critica a produção de 20, pelo fato de esta se

fixar em aspectos basicamente formais, e passa a utilizar técnicas da tradição realista

e naturalista. Para João Luiz Lafetá, tal estratégia representa o despertar desses ar-

tistas, através da consciência do subdesenvolvimento, para a denúncia social, liber-

17 MACHADO, Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social eestética. 1981. p. 26.18 Idem. Ibidem. p. 26.

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tando-se, assim, da preocupação com a linguagem e com o estilo, principal caracte-

rística do modernismo de 2019. Entretanto, apesar desse desvencilhamento, o que,

para muitos estudiosos como Janete Gaspar Machado, havia significado “um passo

atrás”, para a história literária, o romance de 30 passou a ser importante devido aos

seus novos estilos, principalmente pelo fato de demonstrar seu comprometimento

com o social e de chamar atenção da sociedade para o subdesenvolvimento cultural

presente no cenário brasileiro20.

Fato é que o romance de 30, ao tratar de questões sociais da época, não só

demonstrava um comprometimento com o seu tempo e com a sociedade, como tam-

bém desempenhava o papel de precursor em relação a como seria abordado o pes-

simismo e a denúncia social no romance pós-64. Isso pode ser assim considerado

pelo fato de que as vanguardas de 20 primavam não exclusivamente pela questão da

estética formal da linguagem, mas também defendiam uma reforma geral no campo

das artes, e, dentro dessa reforma, encontrava-se igualmente a questão temática. O

que acontece é que geralmente uma característica se sobrepõe a outra, como foi o

caso da estética modernista de 20 e da temática proposta pelo romance de 30. As-

sim, ambos os períodos encontravam-se voltados para o compromisso de figurar e

representar seu tempo, mesmo que um fator prevalecesse sobre outro nesses dois

momentos.

Apesar do espaço ocupado pelo modernismo de 20 e pelo romance de 30 no

cenário brasileiro em busca de um novo fazer literário, é na metade da década de 40,

com a chamada Geração de 45, que o experimentalismo na produção literária se in-

tensifica. Tal Geração contraria seu período antecessor e retoma o culto aos valores

poéticos parnasianos, dando privilégio para a palavra, para o verso, para o ritmo e

para a rima. Nessa ocasião, a preocupação era externalizar, através da obra (poe-

mas, principalmente), o trabalho do artista, de modo a enfatizar a inclusão da estética

do autor dentro de sua própria obra21. Essa Geração, ao retomar os valores parnasi-

anos, reaviva e enriquece a proposta das vanguardas modernistas de 20, o que pas-

sou a contribuir também de forma significativa para a produção literária das próximas

décadas e, em especial, para a ficção dos anos 70, em cujas obras se observa o en-

riquecimento da temática através da poética, ou seja, o emprego estético das pala-

vras de modo a contribuir para o valor temático.

19 LAFETÁ, João Luiz. A volta do velho. In: ____. 1930: a crítica e o modernismo. 1974.20 MACHADO, Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social eestética. 1981. p. 31.21 Idem. Ibidem. p. 32.

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Com base nisso, os rumos dos artistas de 70, bem como as diversas tendên-

cias possíveis de serem observadas, também tiveram impulso com as produções da

Geração de 45, uma vez que, nesse período, o principal objetivo era conseguir ex-

pressar e mostrar, através da obra, o trabalho que teve o artista na composição literá-

ria. O mesmo pode ser notado na produção pós-64, pois, mais do que representarem

o caos social instalado pela Ditadura Militar, os artistas queriam chamar atenção para

o esfacelamento da sociedade e do indivíduo em meio a essa situação. Por isso, a

não linearidade do texto, a fragmentação e o uso específico de determinados vocábu-

los, capazes de atribuir às palavras “mil faces secretas”, como uma forma de resis-

tência e estratégia contra a censura.

As vanguardas de 50 e início de 60 também deixaram um legado significativo

à ficção literária produzida no período ditatorial. Essa produção, predominantemente

poética, revitalizou a linguagem do romance. Considera-se, para tanto, como principal

contribuição desse período, a Poesia Concreta, a Poesia Práxis e o Poema Processo,

que, juntas, chamam atenção para o despertar de um interesse mais comprometido

para com a realidade literária do país, incentivando uma espécie de revisão crítica do

que se estava produzindo. Segundo Affonso Romano de Sant’Anna, a palavra é um

instrumento de dominação e sempre esteve, de uma ou outra forma, a serviço do po-

der22. Com base nisso, o objetivo das vanguardas de 50 e 60, representadas nas três

iniciativas poéticas mencionadas, era desvincular a palavra do poder e despertar para

um novo fazer poético, longe da repressão e do protecionismo das ideologias do po-

der.

Diante do exposto, cabe destacar que não é objetivo deste trabalho levantar

categoricamente como se deu cada período aqui elencado, desde o modernismo de

20 até as vanguardas de 60, mas fazer uma explanação dos principais elementos que

podem ter influenciado as tendências do romance de 70. Outrossim, convém mencio-

nar que as iniciativas defendidas pelo modernismo de 20, na busca de um novo fazer

literário, são complementadas pelas vanguardas de 50 e 60, representadas pela bus-

ca da liberdade expressiva e ratificadas pela produção de 70, em que se vê a explo-

são de distintas tendências literárias à cata dessa mesma liberdade de expressão em

prol dos valores individuais e sociais.

22 SANT’ANNA, Affonso Romano de. A antiga relação entre escrita e poder. In: ____. Por umnovo conceito de literatura. 1977. p. 139.

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A pretensão desse levantamento é, então, mostrar como o modernismo de 20,

o romance de 30, a Geração de 45 e as produções de 50 e início de 60 contribuíram

para o surgimento e a consolidação do considerado romance de 70, objeto de estudo

dessa pesquisa. Nesse sentido, observa-se que as produções de 70 encontram-se

marcadas pela mistura das características presentes nas manifestações literárias das

décadas anteriores, demonstrando, com isso, que muito se deve às contribuições

desses antecessores. Tais contribuições serviram para compor o saldo positivo da

literatura de 70, cujos romances alcançaram um nível estético em que o privilégio do

conteúdo de 30 ou a primazia da forma de 45 não são apresentados individualmente,

mas paralelamente, tornando-se um único elemento. Desse modo, ao unir forma e

conteúdo, os escritores de 70 mostram que é possível a crítica sem o abandono da

criatividade, elemento pelo qual a arte tanto preza.

Com base nisso, a atividade literária desenvolvida no Brasil, a partir da meta-

de da década de 60 e durante os anos 70, incorporou em sua prática as mais diver-

sas tendências, o que, segundo Janete Gaspar Machado, foi uma forma de responder

ao impacto das alterações históricas através da criatividade23. Pode-se acrescentar a

essa colocação o peso da censura que recaiu sobre os escritores, que não só fiscali-

zava suas produções como as confiscava, torturava os autores, obrigando-os, muitas

vezes, ao exílio como única alternativa para escapar da morte. Apesar de, em 1964,

logo no início, a ditadura não suprimir de todo a liberdade de produção da intelectua-

lidade, esse fato ocorreu em 1968, com a consolidação do regime autoritário.

Em meio a esse cenário modificado rigorosamente, o governo passa a desen-

volver e a incentivar diversas ações de intimidação à intelectualidade, como a buro-

cratização das atividades intelectuais, o remanejamento das instituições universitá-

rias, o desestímulo do pensamento crítico e, ainda, a cooptação intelectual. Tão mar-

cante é a repressão sobre a produção literária, que os escritores precisam tomar ru-

mos capazes de burlar a censura e a repressão a fim de ser possível a expressão

literária como forma de denúncia e crítica social. Para tanto, a prosa de ficção que

marca os anos 70 assume algumas tendências, que, de acordo com Malcolm Silver-

man, podem classificar toda a produção romanesca da época em nove categorias,

sendo esses romances: o jornalístico, o memorial, o de massificação, o de costumes

urbanos, o intimista, o regionalista histórico, o realista político, o de sátira política ab-

23 MACHADO. Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social eestética. 1981. p. 33.

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surda e o de sátira política surrealista24. Antes de se iniciar a abordagem de cada

uma dessas tendências, com suas respectivas especificidades, convém frisar que

nem sempre as fronteiras entre elas aparecerão demarcadas claramente, uma vez

que, por tratarem praticamente da mesma temática e por estarem nas mesmas con-

dições turbulentas de produção, uma mesma obra pode flutuar por mais de uma clas-

sificação.

O romance jornalístico, também denominado romance-reportagem, origina-se

da censura imposta à imprensa, considerando que esta foi uma das esferas que mais

sofreu com a repressão do período ditatorial, pois qualquer coisa que pudesse ofen-

der ou prejudicar o sistema vigente não podia ser abordado nas páginas jornalísticas

e muito menos questionado pela imprensa. Tal fator impulsionou um grande número

de escritores dos meios de comunicação de massa, principalmente jornalistas, a mi-

grarem para a esfera literária, vendo na literatura uma possibilidade de manifestação.

Na literatura, esses profissionais encontram ambiente favorável para o relato do coti-

diano, para a denúncia social e para prática artística do bem escrever, que eles tanto

idealizavam. Oriundas desse meio, as obras dialogavam com seu próprio tempo, e as

produções literárias transformavam-se lentamente em documentos da época da bar-

bárie. Tendo em vista que o objetivo desses escritores era muito mais informativo do

que estético, esse romance tem as qualidades sociológicas e histórias bem mais evi-

denciadas, perdendo um pouco seus atributos especificamente literários. A respeito

dessa produção, destacam-se como de maior representação: Zero (1975), de Ignácio

de Loyola Brandão; A república dos assassinos (1976), de Aguinaldo Silva; e Porque Cláudia Lessin vai morrer (1978), de Valério Meinel, dentre outros.

Quanto ao romance memorialista ou autobiográfico, na maioria das vezes, ele

resultou de testemunhos e vivências dos escritores ou de jornalistas que sofreram

com a tortura e com o exílio. Muitos escritores, ao comporem suas obras, migraram

para esse estilo como uma possibilidade de, através da escrita, recuperar e

(re)organizar, em sua memória, o passado vivido. Se, no romance jornalístico, os es-

critores desvinculavam-se muitas vezes da ficcionalização do romance para transfor-

má-lo num transmissor de notícias proibidas, no romance memorialista, eles faziam o

caminho inverso, pois, na ânsia de dar seus testemunhos e falar de fatos reais, atri-

buíam uma forte carga de ficção a tais relatos. São algumas obras significativas des-

sa tendência: Baú de ossos (1972), de Pedro Nava; Confissões de Ralfo (1975), de

24 SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance brasileiro. 1995. p. 25-210.

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Sérgio Sant’Anna; Armadilha para Lamartine (1976), de Carlos Sussekind; Quatro-olhos (1976), de Renato Pompeu; Em câmara lenta (1977), de Renato Tapajós, e Oque é isso companheiro? (1979), de Fernando Gabeira.

O classificado romance de massificação aborda temas referentes ao desen-

freado crescimento urbano que assola as cidades, transformando os indivíduos em

meros produtos da sociedade enlouquecida. Para Renato Franco, esse tipo de ro-

mance estabelece uma crítica contundente à ideia de progresso, uma vez que esta

sublima, na visão dominante, a permanência do horror e da barbárie na estrutura so-

cial25. É trazida à tona, nesse tipo de produção, a situação desigual em que se encon-

tram os indivíduos perante o que a classe dominante chamava de progresso. Têm-se

casos como o consumismo desenfreado praticado por aqueles que tinham melhores

condições de vida, em oposição à frustração dos menos favorecidos financeiramente.

Nessas situações, pode-se observar a crítica às circunstâncias que a sociedade mui-

tas vezes tenta ocultar, mas que continua segregando a grande parcela de oprimidos.

Tudo isso pode ser observado em romances como Babel que a cidade comeu(1968), de Ignácio de Loyola Brandão; O caso Morel (1973), de Ruben Fonseca; e Afesta (1976), de Ivan Ângelo.

O romance de costumes urbanos irá percorrer um caminho em alguns momen-

tos semelhante ao romance de massificação no que se refere ao trato com os seres

humanos. Nesse tipo de produção, o protagonista pode ser um indivíduo ou um grupo

de indivíduos que relatam seus problemas existenciais enquanto seres que vivenciam

dramas e preocupações decorrentes da situação instaurada com o golpe militar de

64. São considerados alguns dos representantes dessa vertente: Dona Flor e seusdois maridos (1966), de Jorge Amado; As meninas (1973), de Lygia Fagundes Tel-

les; e Simulacros (1977), de Sérgio Sant’Anna.

A quinta categoria mencionada por Malcolm Silverman trata-se do romance

intimista. Essa denominação abarca aquelas obras que se enveredaram pelo sagaz

caminho da representação dos dramas vividos por uma determinada classe social e

dos conflitos decorrentes das imposições políticas da época aos quais o sujeito esta-

va exposto. Dentre os principais expoentes dessa tendência, destacam-se: SargentoGetúlio (1971), de João Ubaldo Ribeiro, e Os sinos da agonia (1974), de Autran

Dourado.

25 FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 171.

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Classificado de romance regionalista-histórico, as obras dessa vertente consti-

tuem-se de narrativas que abordam a reconstituição da história, dos costumes, da

geografia e dos demais elementos que compõem o cenário de um determinado espa-

ço, geralmente rural. É também característica desse tipo de narrativa o registro das

sagas regionais, genealógicas e políticas de um determinado lugar. É possível obser-

var tais particularidades em produções exemplares da época tais como: Os guaianãs(1962-1975), de Benito Barreto; O coronel e o lobisomen (1964), de José Cândido

de Carvalho; Mad Maria (1980), de Márcio Souza; A república dos sonhos (1984),

de Nélida Piñon; e Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro.

O romance realista-político, dentre as nove tendências, é o que pode ser con-

siderado como o que exige uma maior atenção do leitor para poder ser assim classifi-

cado. Esse romance requer certa sensibilidade e conhecimento prévio acerca do te-

ma abordado, pois parte de um presente totalmente metaforizado para tratar de as-

suntos de um passado distante ou de um passado bem recente. Em função disso,

para que o leitor seja capaz de captar tal informação, precisa estar atento. É muito

comum nesses livros a presença da sátira em relação à situação política da época.

Algumas das obras que representam essa tendência são: O senhor embaixador(1965), de Erico Verissimo; Sombras de reis barbudos (1974), de José J. Veiga;

Galvez, o imperador do Acre (1976), de Márcio Souza; e A cidade dos padres(1986), de Deonísio da Silva.

O romance de sátira política absurda e o romance de sátira política surrealista

podem ser elencados quase que paralelamente pelo fato de ambos elegerem o modo

paródico de se fazer crítica social. Nessas produções, o incomum aparece como cor-

riqueiro e banal, o inesperado e até mesmo o sobrenatural são características recor-

rentes nessas produções. O humor é abundante e se sobrepõe à seriedade que o

momento exige, expondo, quase sempre, os fatos reais ao ridículo e à gozação. A

única diferença possível de ser observada dentre essas duas tendências é que a pri-

meira envereda para a verossimilhança, voltando sua ficção para fatos relacionados

diretamente com a ditadura imposta em 64 e, para isso, faz uso de elementos extraí-

dos da realidade factual como nome de cidades e datas. Farda, fardão, camisola dedormir (1979), de Jorge Amado, é um bom exemplo dentro desta linha. Já o romance

de sátira política surrealista preocupa-se em narrar os diversos problemas sociais,

porém através da utilização de espaços e personagens totalmente imaginários e até

mesmo grotescos, como é o caso de Incidente em Antares (1971), de Erico Veris-

simo.

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Já Renato Franco, por sua vez, ao estudar a produção ficcional dos anos da

ditadura, caracteriza-a em dois períodos significativos. O primeiro compreende os

anos de 1969 a 1974 e é denominado Cultura da Derrota. Este se refere aos primei-

ros anos da tomada do poder pelos militares, configurando-se no momento em que

diversos setores ligados à vida cultural do país sofreram repressão. O segundo mo-

mento abrange os anos de 1975 a 1980 e ficou conhecido como Época de Resistên-

cia ou também Época de Abertura, por coincidir com a política de abertura imposta

pelo regime. Esse período caracterizou-se por uma recorrente luta pela resistência às

imposições da censura numa tentativa desesperada contra o silenciamento26.

De acordo com a classificação proposta por Renato Franco, o período da Cul-

tura de Derrota constituiu-se, por um lado, pelo romance de impulso político e, por

outro, pelo romance que, por tratar prioritariamente de aspectos diversos da vida ur-

bana, pôde ser identificado como o romance da desilusão urbana. Para esse período,

destacam-se como principais expoentes os livros: Quarup e Pessach, ambos de An-

tonio Callado, publicados em 1967; Engenharia do casamento (1968) e Paixão bemtemperada (1970), os dois de Esdras do Nascimento; Bebel que a cidade comeu(1968), de Ignácio de Loyola Brandão; Cural dos crucificados (1971), de Rui Mou-

rão; As meninas (1973), de Ligia Fagundes Telles27.

Os romances de desilusão urbana representam os impasses e as transforma-

ções experimentadas pela classe média urbana, decorrentes das dificuldades de a-

dequação em relação às novas exigências de atuação e de comportamento requeri-

das pela rápida modernização que abalava e gerava insegurança à sociedade. Já os

romances de impulso político, que foram plausíveis de veiculação somente no início

do período ditatorial, são os que caracterizam o romance da Cultura da Derrota. Es-

sas obras representam a angústia e a desilusão dos escritores em relação ao que

escrever e a como escrever uma vez que eles se encontravam em plena vigência do

AI 5. A produção ficcional desse período buscava privilegiar a tarefa literária de cons-

tituir a memória por meio da recomposição do passado enquanto ruína, que, relem-

brada no presente, atualiza esse passado, fazendo ecoar seu grito no aqui e agora:

modo, portanto, de a literatura opor-se tanto ao esquecimento – sempre socialmente

provocado – quando à “história oficial”28.

26 FRANCO, Renato. Ficção e política no Brasil: os anos 70. 1992. p. 8-13.27 FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 28.28 FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio(Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 358.

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Com o início do governo de Ernesto Geisel, em 1975, os rumos da estratégia

política do Estado sofrem algumas alterações, pois, com o objetivo de solidificar ainda

mais o regime instaurado, o governo decreta o fim do estado de exceção (estratégia

do governo anterior) e desenvolve a “política de abertura”. Tal estratégia, na verdade,

significou a manutenção da censura prévia e de uma disposição repressiva ainda

mais contundente em relação aos primeiros tempos do regime. Segundo Renato

Franco, essa prática adotada por Geisel nada mais era que a face moderna de sua

organização repressiva e um meio privilegiado para prolongar ainda mais seu caráter

ditatorial29. Nesse período, surge um considerável número de obras, cuja maior parte

caracteriza-se pelo memorialismo, justamente por serem produzidas por militantes

políticos que sofreram a tortura e/ou exílio e que, ao retornarem, tentaram recuperar

suas memórias e reorganizar suas vidas através da escrita. É nessa segunda fase

que a prosa de ficção sofre uma considerável expansão, cuja variedade de obras

rompe com a tradição literária e percorre novos caminhos e procedimentos literários.

Franco confere, então, àquelas produções mais comprometidas com a veiculação e a

utilização de elementos de cunho político a denominação de Literatura de Resistên-

cia.

A Literatura de Resistência, aliás, adotou um estilo de linguagem bastante sin-

gular, pois incorporou, em sua constituição, signos, elementos do presente como car-

tazes, manchetes de jornais e procedimentos técnicos originários de outros meios de

expressão, como da rádio, da televisão e do cinema. Assim, esse romance nascia da

montagem dos artifícios de que dispunham os escritores, da fragmentação e da mul-

tiplicação dos distintos pontos de vista narrativos da história política da época. Dentre

as muitas obras desse período, o autor destaca: Confissões de Ralfo (1975), de

Sérgio Sant’Anna; Quatro-olhos (1976), de Renato Pompeu; Em câmara lenta(1977), de Renato Tapajós; e Zero (1979), de Ignácio de Loyola Brandão.

Obras como essas buscaram não só dar respostas às atrocidades do período

ditatorial como também instigar a produção de uma consciência literária original em

relação à condição e ao alcance do romance enquanto manifestação cultural em meio

a uma sociedade autoritária. Ao tratar de assuntos como a tortura, a perseguição polí-

tica, a repressão violenta, as prisões, os sequestros, o funcionamento do sistema re-

pressivo do Estado, a violência cotidiana a que estavam vulneráveis todas as pesso-

as, o sofrimento das camadas populares, a loucura a que chegavam os militantes

29 FRANCO, Renato. Ficção e política no Brasil: os anos 70. 1992. p. 11.

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presos, tais livros dão o testemunho das situações de barbárie praticadas pelo Esta-

do. A maioria desses escritores enveredou pelo caminho de lembrar os horrores e

narrá-los, a fim de não esquecer seu sofrimento e também como forma de acusar o

inimigo pela violência perpetrada, na tentativa de impedi-lo a continuar adotando tais

práticas. Essa produção ficcional, composta por obras de ex-militantes revolucioná-

rios, que, após serem presos e torturados, resolvem relatar suas experiências, consti-

tui-se em literatura de testemunho, o que Franco, assim como Seligmann-Silva30, en-

tre outros autores, chegam a denominar de Literatura do Trauma. Isso porque tais

livros fazem muito mais do que narrar as experiências vividas pelos escritores; eles

representam, através da escrita, o trauma sofrido por seus narradores-personagens31.

Segundo Márcio Seligmann-Silva, o trauma é um acontecimento que não pode

ser assimilado nem enquanto ocorre, nem mesmo em tempos posteriores, a não ser

de modo pouco satisfatório32. Para o autor, o trauma é resultante de uma incapacida-

de do indivíduo de recepção de um evento que vai além dos limites da percepção

humana e que se torna algo sem-forma, atemporal, sempre retornando à consciência

da vítima. Em relação à representação do trauma na literatura, o estudioso desenvol-

ve, em seu estudo A história como trauma, questões relativas à temática do Holo-

causto e sua relação direta com a representação estética33. Nessa linha, afirma que a

experiência humana moderna está imersa num acúmulo de barbáries e catástrofes e

que o artista ou o escritor, no momento de representarem tais experiências, debatem-

se entre a necessidade de escrever para perpetuar tal evento e a consciência da im-

possibilidade de cumprir tal tarefa justamente pela falta de um aparato conceitual ca-

paz de levá-lo à assimilação de tal evento. O autor ainda enfatiza que a dificuldade de

recepção de um evento ocorrido bem como a incapacidade de sua assimilação con-

correm, numa perspectiva psicanalítica, para o problema do trauma, é definido por ele

como “uma ferida na memória”34, a qual permanece sempre presente na mente, pas-

sando a afetar diretamente a linguagem do indivíduo e, consequentemente, sua escri-

ta.

Theodor W. Adorno, em Teoria estética, ao abordar questões relativas à arte,

à sociedade e à estética, afirma existirem vínculos entre as barbáries das quais a so-

30 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A literatura do trauma. Cult, 1999.31 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA,Márcio (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 361.32 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A literatura do trauma. Cult, 1999. p. 40-47.33 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. Pulsional, Revista de Psicanálise, dez.-jan., 1998/99.34 Idem. Ibidem. p. 46.

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ciedade foi vítima e as produções artísticas. Para o autor, os dilemas do indivíduo,

que não são plausíveis de resolução ou de assimilação na realidade, irão retornar às

manifestações artísticas não somente como fatores temáticos, mas configurados em

problemas de forma35. A proposta teórica desenvolvida por Adorno, ao abordar a de-

sestruturação estética do romance, aponta para tal característica como consequência

da situação social a que o artista estaria submetido no momento da produção.

Nessa perspectiva, a dificuldade de assimilação da barbárie unida à necessi-

dade da escrita acaba por influenciar diretamente na ordem estética da produção.

Assim, algumas obras literárias, ao representarem ou apresentarem esse indivíduo

problemático, condicionado historicamente, o fazem através da fragmentação, carac-

terística recorrente em muitos dos romances da década de 70. Dentre eles, desta-

cam-se Quatro-olhos, de Renato Pompeu, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós,

romances que, por suas propriedades testemunhais, remetem à constante presença

da problemática da escrita de seus narradores-personagens enquanto vítimas da

barbárie e do trauma sofrido, decorrentes da Ditadura Militar.

1.3 As obras de Renato Pompeu e Renato Tapajós: estudos críticos acercade Quatro-olhos e Em câmara lenta

[I]nsatisfeito com a minha história pessoal até então e também in-satisfeito com o meu provável e mediano futuro, resolvi transfor-mar-me em outro homem, tornar-me personagem.

(Confissões de Ralfo, Sérgio Sant’Anna)

A literatura produzida nos anos truculentos da Ditadura Militar, apesar de ain-

da pouco estudada e divulgada, contribui significativamente para a construção de

uma versão da história do país a qual a ideologia dominante insiste em apagar ou

mascarar. Os romances Quatro-olhos e Em câmara lenta representam um tipo de

fazer literário que tematiza não apenas os vários aspectos originários da vida política

da década ou da modernização econômica conservadora e autoritária dos anos 70,

mas, sobretudo, expressam-se através de procedimentos literários pouco usuais para

35 ADORNO, Theodor W. Teoria estética. 2008. p. 18.

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a época, como é o caso da narrativa altamente fragmentada, da presença de múlti-

plos pontos de vista narrativos e, ainda, da utilização da montagem. Esses livros são

escritos não simplesmente para veicular certos tipos de informações, mas para tentar

transmitir experiências. Funcionam, também, como contraponto a versões oficiais

legitimadas em benefício próprio dos poderes constituídos ou usurpados. Natural-

mente, além de exercerem um papel de contribuição pública, realizam o processo

particular de narração de episódios traumáticos.

Esse tipo de ficção, que integra a linha do chamado Romance de Resistên-

cia36, oferece uma possível resposta ao caos social instaurado bem como promove

uma luta contra o esquecimento, procurando recuperar o material histórico recalcado

pelo brutal sistema repressivo da ditadura. Dessa forma, a literatura, enquanto produ-

ção cultural, cumpre com seu papel perante a sociedade, qual seja, despertar a cons-

ciência crítica frente às mazelas sociais e históricas. Apesar da insistência de alguns

críticos de que a literatura produzida nos anos iniciais da ditadura permaneceu com

suas “gavetas vazias”37, a própria censura suscitou nos artistas o desejo de escrever,

externalizar, de algum modo, através da arte, a situação social e histórica vivenciada

naquele momento. Assim como a literatura, o cinema também contribuiu significati-

vamente para a representação da situação ditatorial em que se encontrava o país.

Nessa perspectiva, o filme Batismo de sangue (2006), de Helvécio Ratton, i-

lustra a perseguição, a prisão e as brutalidades a que eram submetidos jovens mili-

tantes nas secretas salas de tortura do Departamento de Ordem Política e Social

(DOPS). Com fortes cenas de violência, a obra trata da perseguição dos militares a

todos aqueles que se mostrassem contrários ao sistema ou que tentassem qualquer

manifestação capaz de desestabelecer a ordem imposta pelo Estado. Perpassado

por um clima tenso de perseguições, ameaças, violência e morte, o filme chama a-

tenção para a dificuldade de um personagem, Frei Tito, libertar-se das lembranças

dos momentos terríveis por que passou nas mãos dos torturadores. A sensação de

perseguição e de intimidação é uma constante no dia-a-dia desse personagem que

somente vê no suicídio uma possível libertação desse trauma. A opção por mencio-

nar Batismo de sangue no início desta discussão não é gratuita: ocorre em função

da sua grande proximidade com o modo como o trauma vivido é representado pelo

36 Cf. FRANCO, Renato Bueno. Ficção e política no Brasil: os anos 70. 1992.37 Expressão usada para se referir aos primeiros anos de Ditadura Militar, quando se acreditavaque não havia surgido nenhum tipo de produção artística capaz de representar essa época. Cf.PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996.

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narrador de Quatro-olhos e, como isso desenvolve nele outros problemas de ordem

psicológica.

Cabe dizer, no entanto, que Quatro-olhos apresenta diversas possibilidades

de leitura e interpretação, não ficando condicionada apenas à questão traumática que

envolve o narrador. Dentre algumas possibilidades investigativas do romance, têm-

se: a destruição do sujeito por parte do sistema autoritário, a luta do protagonista con-

tra o esquecimento ocasionado pelo trauma da tortura, a loucura como uma possibili-

dade de lucidez, a melancolia que assola e isola o personagem do mundo bem como

fatores de ordem estética como a construção literária (des)organizada pela fragmen-

tação.

Quatro-olhos foi escrito entre os anos de 1968, inicialmente quando Pompeu

escreveu à mão todo o primeiro capítulo, e, mais tarde, em 1975, quanto ele retoma o

livro após um tratamento psiquiátrico de um ano e meio. Através de sua divisão tripar-

tida, composta de três partes, sendo a primeira Dentro (24 capítulos), narrada em

primeira pessoa, e as duas últimas, Fora (4 capítulos) e De volta (capítulo único), nar-

radas em terceira pessoa, Quatro-olhos avança pelas sinuosas sendas do regime

autoritário, abordando de forma veemente o alto grau de dificuldade de narrar e orga-

nizar o pensamento, tendo em vista a problemática do esquecimento perante o apa-

gamento da memória decorrente da violência das torturas praticadas durante o regi-

me militar.

Publicado em 1976, um ano depois da divulgação da Política Nacional de Cul-

tura, iniciativa da Política de Abertura do governo Ernesto Geisel, a narrativa trata da

tentativa do personagem-narrador em reescrever um livro que lhe fora tomado pela

polícia. Embora não tenha atingido um numeroso público leitor na época, essa obra,

devido à sua originalidade, ocupa um lugar de destaque no rol das produções literá-

rias e é considerada pela crítica como um dos romances mais instigantes da década

de 70. Seu prestígio se dá por conseguir reunir em sua estrutura não só elementos

temáticos capazes de externalizar a realidade social e histórica do período, mas tam-

bém elementos significativos de ordem estética capazes de levar o leitor ao conheci-

mento e à compreensão da realidade psicológica a que ficaram condicionadas as

vítimas da violência cometida pela ditadura, desde a censura até o ponto mais extre-

mo do autoritarismo, a tortura física e mental.

A fábula dessa obra é a seguinte: o protagonista Quatro-olhos é um escritor

que tem seu apartamento invadido pela polícia que procurava prender sua mulher,

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uma professora universitária e militante revolucionária que consegue fugir. Entretanto,

nessa invasão, a polícia vasculha a residência e apreende um livro escrito disciplina-

damente por ele, dos seus 16 aos 29 anos “durante todos os dias, exceto numa se-

gunda-feira em que fora acometido de forte dor-de-cabeça”38. Em função disso, é

preso e, de acordo com certos indícios dados pela narrativa, é torturado. O texto con-

fiscado e a mulher desaparecida eram as únicas ligações do protagonista com a rea-

lidade e, com a perda deles, que eram as únicas fontes de prazer e refúgio, em meio

ao desconforto social do cotidiano, o protagonista torna-se transtornado e completa-

mente alheio à realidade, chegando a ser internado numa clínica de saúde mental. Ao

se reabilitar e voltar à vida social, o personagem entende que precisa reaver o livro

perdido e, após inúmeras buscas sem sucesso, conclui que precisa reescrevê-lo. Ao

retomar a escrita, na tentativa de reconstruir seu trabalho original, chega à conclusão

de que tal atividade configura-se numa tarefa impossível, pois, o que lembra de sua

obra original, são apenas fragmentos isolados e, com isso, conclui que jamais poderá

reconstituí-lo integralmente devido à perda de memória sofrida. A única narrativa que

resulta do seu esforço é a narrativa fragmentada, provinda de suas vagas e tumultua-

das lembranças.

Para Malcolm Silverman, Quatro-olhos pertence à condição de romance me-

morialista39 e, segundo os pressupostos teóricos desenvolvidos por Seligmann-Silva,

ele integra o grupo das obras que compõem a Literatura do Trauma40. Essa classifi-

cação se justifica devido à manifestação de indícios no texto que demonstram a des-

truição do sujeito dentro do sistema autoritário vigente e também pelo fato de o livro

apresentar uma construção literária calcada basicamente na fragmentação e na luta

contra o esquecimento.

Para Renato Franco, Quatro-olhos é um dos melhores representantes do que

se considerou como literatura engajada nos anos 70, uma literatura como atividade

de resistência e crítica. Para o estudioso, esse livro, na verdade, narra um não-

acontecimento, pois o narrador, mesmo conhecendo todos os obstáculos que o im-

pedem de escrever, em virtude de uma quase impossibilidade, decide escrever,

“mesmo que para nada”41. Em síntese, Franco avalia Quatro-olhos como uma obra

elaborada e bastante singular por articular várias narrativas simultâneas, fragmenta-

38 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 15.39 SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance brasileiro. 1995.40 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A literatura do trauma. Cult, 1999. p. 40-47.41 FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 48.

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das e pouco vinculadas a um eixo cronológico. Devido à sua linguagem antirrealista,

o crítico classifica esse romance como resultado de uma experiência traumática soci-

almente imposta ao narrador-protagonista42. Isso conduz à ideia de que o pensamen-

to e a visão histórica e social da época são apresentados de forma estilhaçada, atra-

vés de trechos fraseológicos desconexos, o que demonstra um fenômeno vinculado

ao caráter alegórico da obra a serviço da condição melancólica do sujeito.

Dito em outros termos, a composição fragmentada desse livro não é aleatória.

Ela procura estabelecer relações com a não-superação do trauma da tortura vivido

pelo narrador, bem como com a representação do sujeito melancólico imerso nas

adversas situações sociais impostas. Além disso, não deixa de externalizar, através

dos fragmentos, a tentativa desesperada de um indivíduo que, muito mais do que

tentar reconstruir seu trabalho, busca reconstruir seu passado através da memória.

Para Franco, a narrativa dilacerada apresentada em Quatro-olhos não é gratuita,

mas constitui-se na mímese da estrutura repressiva da atual vida social43. Ainda de

acordo com o crítico, “o alvo secreto do narrador não é mais recuperar o material es-

quecido, o saber e a experiência nele eventualmente contidos, mas o de denunciar

que algo de fundamental foi esquecido”44.

Janete Gaspar Machado vê Quatro-olhos como um romance que tematiza a

loucura como uma forma de sensibilidade apontada para a problemática da composi-

ção literária em sua dificuldade de escrever sobre a realidade, sem deixar de abordar

as formas de expressão anuladoras do homem45. Para a autora, a prática da constru-

ção do livro é uma estratégia que o narrador encontrou para se manter vivo dentro do

contexto social opressor como complementa:

sua [de Quatro-olhos] fuga para a escrita e para a Literatura vai re-sultar numa atitude de transgressão da ordem vigente, transgressãoaos padrões habituais de comportamento, ao mesmo tempo que seexpõe como possibilidade de libertação [...]. A transgressão, contudonão se limita à subversão de padrões de comportamento. O roman-ce, como um todo, efetua, a despeito da loucura, e através dela, acrítica lúcida ao contexto cultural, aproximando-se do discurso histó-rico, quando tematiza forças ideológicas que agem contra a individu-alidade e contra a comunidade. São essas forças opressoras que

42 FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio(Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 365.43 FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 112.44 FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio(Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 371.45 MACHADO. Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social eestética. 1981. p. 111.

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empurram o personagem para o refúgio da escrita, decidem suaperda de racionalidade46.

Ainda na visão de Machado, é no refúgio da escrita que se observa o conflito

existente entre o real e o irreal, entre o conteúdo do romance perdido e o do romance

reescrito, o que acaba gerando a fragmentação estrutural do relato, uma vez que a-

grega a mistura de rememorações do texto perdido à realidade presente. Fato é que

a ordenação ou a fusão de tais perspectivas distintas gera várias narrativas – uma em

função da outra; uma, muitas vezes, contrastando com a outra –, ao invés de um úni-

co relato. Em suma, a autora aponta Quatro-olhos como um romance que, ao com-

binar rebeldia e denúncia, tematiza a angústia de um indivíduo e sua luta para a liber-

tação das condições a que foi submetido, vendo na escrita e, particularmente, na lite-

ratura, o único refúgio plausível para externalizar suas angústias e única possibilidade

para reconstruir e retomar sua vida47.

Quanto à temática de Quatro-olhos, a analogia se dá com muitos romances

do período. Entretanto, observa-se a estreita relação que ele estabelece com Emcâmara lenta, de Renato Tapajós, uma vez que este texto também compõe o quadro

de obras classificadas como Literatura do Trauma. Uma versão, não do livro, mas do

drama relatado nesse texto, também teve espaço no cinema. Araguaya: a conspira-ção do silêncio (2004), do cineasta Ronaldo Duque, delineia o pouco preparo e o

fracasso de uma organização de guerrilheiros que pretendiam vencer as imposições

da ditadura através de uma luta que se iniciaria no campo – em particular, na selva

amazônica – e avançaria até os grandes centros urbanos, onde a repressão se fazia

sentir com maior brutalidade. Contudo, a grande maioria desses idealizadores são

capturados, torturados e mortos, fazendo com que se sintam desolados e melancóli-

cos.

Em câmara lenta, de Renato Tapajós, foi publicado em 1977 pela Alfa-

Ômega, uma editora de oposição ao regime militar. Assim que foi divulgado em todo

o país, o livro despertou a fúria de diversos setores conservadores, o que ocasionou

a prisão de Renato Tapajós em São Paulo. A referida prisão foi justificada pela acu-

sação de que a obra se mostrava como um instrumento de guerra revolucionária. Ini-

cialmente, a circulação do romance não foi proibida e não teve, do ponto de vista le-

gal, nenhum impedimento à sua circulação; entretanto, após alguns dias da prisão de

46 Idem. Ibidem. p. 112-113.47 Idem. Ibidem. p. 119.

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Tapajós, o texto foi censurado e teve sua venda proibida. Escrito parcialmente na

prisão do Carandiru, em 1973, quando Tapajós esteve preso, esse texto foi a primeira

obra nacional produzida por um escritor que atuou na esquerda armada. Em função

disso, é uma obra que reflete criticamente acerca das estratégias da guerrilha e de-

nuncia o brutal emprego da tortura por parte da repressão. Essa obra inclina-se pela

via estética para desenvolver a narração do trauma fundamental sofrido pelo narra-

dor-personagem. O trauma, no caso, resulta da prisão e da bárbara tortura sofrida

pela companheira do narrador-personagem – que, assim como ele, era também mili-

tante da mesma organização revolucionária –, seguida de sua execução cruel em

estabelecimento militar. Dessa forma, o núcleo do trauma que perpassa essa obra, a

saber, a execução, sob cruel tortura, da sua companheira, nomeada na obra como

Ela, traz à narrativa a frequente repetição desse evento traumático na obra, o qual se

dá como se fosse um flashback cinematográfico exibido em câmara lenta. A narra-

ção, portanto, configura-se em duas tentativas: por um lado, de tentar esclarecer tal

tragédia e, por outro, de narrar sua própria prisão e o simultâneo desmoronamento do

projeto político revolucionário acalentado pela organização em que militou.

A trama é difícil e sinuosa, e as ações relatadas entrecruzam-se em fragmen-

tos e a narrativa remete a um quebra-cabeça, que, aos poucos, por meio do acrésci-

mo de detalhes – na medida em que a narração avança – adquire a configuração do

todo. Composta fragmentariamente, essa obra, assim como muitas outras produzidas

sob a atmosfera repressiva e violenta dos anos 70, apresenta várias narrativas para-

lelas através das quais o narrador reflete sobre o sentido da luta, os impasses enfren-

tados pelos militantes frente à brutalidade da repressão e dos tropeços do movimento

guerrilheiro. Na medida em que o relato segue em frente, é possível observar a des-

crição feita pelo narrador a fim de demonstrar a brutalidade cotidiana do Estado mili-

tar através de sua mais usual prática terrorista: a tortura, indiscriminadamente prati-

cada na obscuridade dos porões. Tendo em vista o alto teor denunciativo desse livro,

muitos foram os posicionamentos críticos ocorridos ainda em 1977, logo após sua

publicação, estendendo-se até os dias atuais.

Talvez uma das primeiras manifestações sobre Em câmara lenta que merece

ser abordada nesse trabalho refere-se àquela formulada por Antonio Candido na o-

portunidade em que elaborou um parecer acerca da obra, o qual foi parte integrante

da defesa de Renato Tapajós quando esteve preso. Segundo as palavras do crítico:

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43

[t]endo sido indicado como Perito no Processo movido conta o escri-tor Renato Tapajós, por causa da publicação de seu romance Emcâmara lenta, penso que os pontos importantes, no caso, são osseguintes: 1. este livro é subversivo? 2. a sua leitura induz a uma ati-tude subversiva, ou à prática de atos subversivos?Antecipo que a resposta é – “Não”, – pelos motivos abaixo discrimi-nados48.

Após essas palavras, Candido prossegue sua defesa explicitando os argumen-

tos capazes de mostrar aos censores o equívoco que estavam cometendo ao consi-

derar o livro subversivo. Ele alega que se trata de um romance e, por isso, tem seu

discurso marcado pela função poética cujo único objetivo está em “realçar as quali-

dades estéticas da palavra”49, não sendo possível, portanto, tomá-lo como informativo

ou como documento. Ao se referir ao segundo questionamento apontado, posiciona-

se argumentando que a obra não é capaz de induzir a práticas subversivas, pois o

máximo que pode acontecer, é despertar no leitor o interesse pelos dramas pessoais,

pela sucessão de atos, pelo suspense das cenas, pelas imagens poéticas ou, ainda,

pelo mistério que paira nela e que se desvenda lentamente e, diante disso, conclui

sua defesa: “não vejo, em momento algum, convite à prática, induzimento ou sequer

sugestão por meio do embelezamento ou realce do que é escrito”50.

Outra contribuição importante a respeito dessa obra também é dada por Sér-

gio Buarque de Holanda, quando escreve ao advogado de Renato Tapajós, Lins e

Silva. Sérgio Buarque comenta no documento que, apesar de não ter concluído a

leitura do livro de Tapajós, mas que, pelo muito que dele já percorreu, não sente dú-

vidas em afirmar que, a despeito da moldura ficcional que o autor lhe atribuiu, trata-se

de um impressionante depoimento sobre alguns aspectos da era da violência em que

a sociedade se encontrava. Acrescenta, ainda, tratar-se de um romance no qual os

historiadores futuros encontrarão um indispensável documentário sobre o Brasil da-

quela época e que, por isso mesmo, em sua opinião, não vê nesse texto nada que se

pareça com o incitamento à guerrilha51.

Por meio da composição de Em câmara lenta, Tapajós demonstra que sua

escrita não se restringira apenas à veiculação e à expurgação de suas conflituosas

48 CANDIDO, Antonio. Parecer. In: MAUÉS, Eloísa Aragão. Defesa notável. Teoria e Debate,2007. p. 36.49 Idem. Ibidem. p. 36.50 Idem. Ibidem. p. 38.51 MAUÉS, Eloísa Aragão. Em câmara lenta, de Renato Tapajós: a história do livro, experiênciahistórica da repressão e narrativa literária. 2008. p. 197.

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pulsões emocionais. Muito além disso, o autor busca alcançar a catarse através de

uma construção que objetiva mostrar as constantes tensões ocorridas na militância,

segundo a observação que faz Tânia Pellegrini ao discorrer sobre o assunto:

um dos personagens mais importantes da narrativa em questão émesmo o próprio autor que, através de seu relato, sai em busca deuma catarse ao mesmo tempo particular e coletiva, junto ao público.Todavia, a procura de purgação, de descarrego, não minimiza por siessa literatura; explica-a, apenas, assinalando mais um aspecto,parte integrante e indispensável do contexto que a gerou52.

Já Renato Franco não vê essa obra como uma produção ficcional cujo princi-

pal valor seja de ordem autobiográfica, capaz de encerrar seu interesse no relato his-

tórico de caráter político53. Ao contrário, aposta em sua estrutura temática e estética

com o intuito de valorizar um tipo de narrativa cuja preocupação está na originalidade

com que conduz, ao longo do relato, a reflexão acerca dos dilemas da guerrilha e a

apresentação dos mais variados e minuciosos detalhes dos combates armados.

Quanto à estrutura fragmentada do texto, o crítico o avalia como resultado da dificul-

dade de o narrador relatar a história inteira e reconstruir completamente a memória

de um passado histórico também fragmentado e desprovido de qualquer nexo lógico.

Assim, o ato de narrar é visto como um intrigante jogo de armar que – pouco a pouco,

através do lento acréscimo de mínimos detalhes, por meio de procedimentos técnicos

originários do cinema, como o flashback e a câmara-lenta – vai ganhando uma confi-

guração mais nítida54.

Janete Gaspar Machado, por sua vez, ao estudar a obra em apreciação, con-

sidera-a como um veículo de informação, explicitando, é claro, não se tratar de um

romance composto pela mesma linguagem utilizada no jornal, mas por aproveitar a

função do jornal, qual seja, divulgar e tornar conhecidas as informações, o que, para

a autora, foi impedido aos veículos de informação, a fim de preservar os interesses

da ideologia do poder55. Entretanto, a crítica reconhece na obra uma linguagem jorna-

52 PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996. p. 29.53 FRANCO, Renato. Ficção e política no Brasil: os anos 70. 1992. p. 48.54 Idem. Ibidem. p. 112.55 MACHADO. Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social eestética. 1981. p. 76.

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lística, mas enriquecida por valores de significação, tratados com muito mais profun-

didade em comparação a uma reportagem jornalística56.

Ao discorrer a respeito da ordem estética composicional de Em câmara lenta,

a autora chama a atenção para o fato de a fragmentação que compõe a obra ser o

resultado e a representação da impossibilidade de o narrador lembrar seu passado e

retomar sua vida, dificultados pelas imposições da censura:

[s]ua forma narrativa objetiva recuperar a totalidade de um fatoguardado na memória, através da recordação. A única possibilidadede coordenação dos movimentos da narrativa é a oferecida pelo nar-rador-personagem, que guarda na memória a sequência dos fatos, eos vai apresentando numa ordem que obedece a uma espécie de li-vre associação de ideias, a qual parece ser ditada por uma impossi-bilidade ideológica – força da censura – de apreender a totalidadeem sua sequência causal lógica. Isto não quer dizer, simplesmente,que a censura é a única responsável pelos desvios formais operadosna narrativa. Quer dizer (e também) que as forças repressoras, a-gindo continuamente, criam um bloqueio na própria memória do nar-rador-personagem, dificultando o relato [...]. Isto explica porque ostrechos que compõem a narrativa parecem estáticos [...]. [E]stafragmentação do texto é que leva o leitor a refletir, por sua vez, so-bre as razões dos cortes e enxertos do curso lógico do texto, sobre aprópria linguagem do texto e dos significados que ela produz57.

O romance exige uma reflexão acerca da linguagem reproduzida no texto da

mesma forma que atenta para uma tomada de consciência sobre um passado próxi-

mo. Por meio de sua estrutura calcada em fragmentos, ao representar seu próprio

dilaceramento formal, enquanto texto, representa também o dilaceramento da socie-

dade, conclui Machado. O próprio Renato Tapajós, quando fala de sua obra, comenta

ser esta “uma reflexão emocionada, porque tenta captar a tensão, o clima, as espe-

ranças imensas, o ódio, e o desespero que marcaram uma tentativa política desespe-

rada e extrema em nosso país: um romance a respeito da ingênua generosidade da-

queles que jogaram tudo, inclusive a vida, na tentativa de mudar o mundo”58.

Através das palavras de Tapajós, é possível a reflexão acerca do que em es-

pecífico e de modo mais urgente, tenha instigado escritores como ele e Pompeu, en-

tre tantos outros, a escreverem a respeito de suas experiências dentro do contexto

político ditatorial da época. Nesse sentido, o desejo de retorno a esse passado, mui-

56 Idem. Ibidem. p. 77.57 Idem. Ibidem. p. 77-78.58 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977.

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tas vezes, pode ser suscitado pelo simples fato de se lembrar de algum ou de vários

episódios e os relatar. Entretanto, nas obras que constituem o corpus deste trabalho,

nota-se claramente que o objetivo não é a recordação prazerosa e descompromissa-

da, mas a reflexão crítica de um momento histórico traumático. De certo modo, as

rememorações de Pompeu e Tapajós, ao relatarem fatos encravados em um deter-

minado período político, especialmente um período de autoritarismo, buscam, através

do registro da vítima e do oprimido, fornecer subsídios e preencher as lacunas deixa-

das pela ideologia dominante na compreensão da história da nação brasileira.

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2 A ESCRITA DA DOR: LINGUAGEM E SILÊNCIO NA NARRATIVADOS ANOS 70 NO BRASIL

A necessidade de contar “aos outros”, de tornar “os outros” partici-pantes alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráterde impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outrasnecessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essanecessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de libe-ração interior. Daí, seu caráter fragmentário: seus capítulos foramescritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência. Otrabalho de ligação e fusão foi planejado posteriormente.Acho desnecessário acrescentar que nenhum dos episódios foifruto de imaginação.

(É isto um homem? Primo Levi)

2.1 O romance no século XX

Chega um momento em que o narrador precisa ajustar melhor su-as linhas, tencionar melhor o seu arco, tirar alguns efeitos técni-cos. Todos esperam isso dele, sobretudo na hora da emoção. Maso narrador já aprendeu, com o tempo, que um livro, um longo rela-to, não é apenas uma sucessão de histórias que se contam numpunhado de páginas brancas. Um livro não se controla.

(O que é isso companheiro? Fernando Gabeira)

Em suas reflexões teóricas, Anatol Rosenfeld, Theodor W. Adorno e Walter

Benjamin, dentre outros, discutem mudanças significativas no que diz respeito às

formas de representação estética, em particular, aquelas observadas no romance.

Para esses críticos, o que deve ser observado, para a compreensão de tal premissa,

é o fato de que a obra literária estará sempre, de uma forma ou de outra, vinculada a

fatos e a ocorrências da realidade social e histórica de uma determinada época e cul-

tura. Em outros termos, o texto literário, enquanto fenômeno cultural, jamais pode vir

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a existir por si só, mas como produto originário e representativo de uma determinada

realidade.

Ao traçar suas considerações acerca do surgimento do romance moderno,

Rosenfeld discute algumas hipóteses instigantes a esse respeito. Num primeiro mo-

mento, o crítico se apoia na tese de que, para cada fase histórica da humanidade, há

um espírito unidificador que coloca em contato todas as manifestações culturais59.

Para o estudioso, ao se tomar como paradigma a cultura ocidental, mesmo sendo

esta complexa e caracterizada pela autonomia em diversas esferas da vida social,

histórica e científica, existe certa interdependência e influência entre os diferentes

campos, o que acaba por gerar certa unidade de espírito e de vida capaz de impreg-

nar e influenciar, dentre outras atividades, a atividade literária.

Em um segundo momento, Rosenfeld julga o fenômeno da “desrealização”, i-

nicialmente observado na pintura, como de grande importância para a compreensão

das transformações estruturais ocorridas no âmbito literário. Ao transferir o sentido do

vocábulo “desrealização” da pintura para o domínio da literatura, o crítico está se re-

ferindo ao abandono e à recusa da mera cópia ou reprodução da realidade tal como

esta se apresentava60. Em outras palavras, conforme o autor,

[i]sso, sendo evidente no tocante à pintura abstrata ou não-figurativa,inclui também correntes figurativas como o cubismo, expressionismoou surrealismo. Mesmo estas correntes deixaram de visar a repro-dução mais ou menos fiel da realidade empírica. Esta, no expressio-nismo, é apenas “usada” para facilitar a expressão de emoções e vi-sões subjetivas que lhe deformam a aparência; no surrealismo, for-nece apenas elementos isolados, em contexto insólito, para apre-sentar a imagem onírica de um mundo dissociado e absurdo; no cu-bismo, é apenas ponto de partida de uma redução a suas configura-ções geométricas subjacentes. Em todos esses casos podemos falarde uma negação do realismo, se usarmos este termo no sentidomais lato, designando a tendência de reproduzir, de uma forma esti-lizada ou não, idealizada ou não, a realidade apreendida pelos nos-sos sentidos61.

No que tange às proposições elaboradas, na visão de Rosenfeld, a arte deixa

de ser cópia fiel da realidade, pois a perspectiva já não é mais a mesma, uma vez

que sofreu certas distorções como podem ser observadas a partir da pintura moder-

59 ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ____. Texto/contexto. 1969. p.73.60 Idem. Ibidem. p. 74.61 Idem. Ibidem. p. 74.

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na, na qual o ser humano passa a ser dissociado no cubismo e deformado no ex-

pressionismo. Desse modo, ao discutir as profundas alterações presenciadas no

campo da pintura e que desencadearam o desaparecimento do “retrato”62 – reprodu-

ção fiel e plastificada da realidade sensível –, o autor segue uma linha de raciocínio

muito semelhante em relação aos rumos que toma o relato romanesco no século XX,

e trata, mais especificamente, da questão da fragmentação do romance moderno.

Ao discutir as transformações sofridas pelo gênero romanesco63, na passagem

do século XIX para o XX, o crítico conclui que se trata de uma modificação muito se-

melhante à observada na pintura moderna e que a característica principal da narrati-

va contemporânea é o surgimento de uma manifestação artística em que a cronologia

e a continuidade temporal foram abaladas, enfim, “os relógios foram destruídos”. Ain-

da segundo o autor, “[o] romance moderno nasceu no momento em que Proust, Joy-

ce, Gide, Faulkner começam a desfazer a ordem cronológica, fundindo passado, pre-

sente e futuro”64. Para o estudioso, não é mais possível observar claramente a ordem

cronológica dos fatos, pois a continuidade temporal dos acontecimentos foi abolida da

mesma forma que o espaço, ou pelo menos a ilusão de espaço, que se tinha no ro-

mance realista.

O narrador já não é mais alguém que tudo sabe e tudo apreende, mas que vê

o mundo e a realidade a partir de uma perspectiva, de um ângulo muitas vezes dis-

torcido e deformado pela realidade social e histórica. No romance, não é mais possí-

vel demarcar as fronteiras entre passado, presente e futuro, uma vez que é próprio do

fazer literário moderno a fusão entre os tempos, tendo em vista que o narrador “pas-

seia” entre estes numa contínua intercalação de fatos e relatos, ora do passado, ora

do presente, ora de sua própria imaginação. Tal fenômeno muitas vezes conduz o

leitor a certas dificuldades de adaptação a esse tipo de produção, pois nega o com-

promisso com um mundo de aparências tido até então como real e absoluto, regido

pelo tempo e pelo espaço até o momento determinado pelo realismo tradicional e

pelo senso comum.

Rosenfeld, ao se valer dos elementos da pintura a fim de compreender as mu-

danças estruturais do romance, está traçando linhas distintivas entre o romance que

era produzido no século XIX e aquele que emergiu no século XX. Ao mencionar a

62 Idem. Ibidem. p. 75.63 O vocábulo “romanesco”, tal como empregado neste trabalho, refere-se ao gênero moderno“romance”, e não ao gênero medieval, que recebe denominação similar.64 Idem. Ibidem. p. 78.

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questão da perspectiva e da reprodução fiel que a pintura representava, está também

se referindo às produções romanescas tradicionais, cuja funcionalidade principal era

possibilitar ao leitor um saber total, já direcionado pelo narrador, e uma ampla visão

dos elementos que pertenciam à sua estrutura. Por outro lado, quando menciona a

abolição da plasticidade, da cópia fiel da realidade circundante e da mudança de

perspectiva, está fazendo uma menção às tendências do romance moderno. Para

tanto, apoia-se em pressupostos de que a arte deve não só acompanhar as transfor-

mações do mundo, mas apresentar o homem a ele mesmo e à sua realidade através

de outra perspectiva, revelando não só uma nova temática, mas, acima de tudo, uma

nova estrutura estética capaz de suscitar estranhamento no indivíduo para, a partir

disso, levá-lo à assimilação e à compreensão dos episódios.

As narrativas modernas apresentam como principal oposição em relação ao

romance realista a ruptura com suas características fundamentais que são a tempora-

lidade e a causalidade. Em Rosenfeld, a argumentação capaz de justificar e mesmo

explicar as transformações observadas no romance surgido no século XX reside no

fato de tal gênero, assim como qualquer outra expressão artística, representar um

mundo em constantes transformações e em crise. Na visão do crítico, para a com-

preensão da narrativa moderna, deve-se estar atento aos vínculos que ela mantém

com as mudanças estruturais observadas na sociedade.

Assim, de acordo com os argumentos propostos por Rosenfeld, as alterações

ocorridas no gênero narrativo não se deram gratuitamente. O estudioso explica que

foi o mundo que sofreu grandes transformações desencadeadas por guerras, por a-

vanços de pensamento científico e tecnológico, por mudanças de dogmas e crenças

mitológicas e religiosas, dentre tantos outros colapsos. Frente a isso, a realidade, ao

se transformar e avançar rapidamente, deixa para trás lacunas que precisavam ser

elucidadas, e os artistas, então, precisaram adaptar suas formas estéticas de modo a

contemplar e representar o maior número possível de fatores, ações e pensamentos

em suas obras65.

Em notas semelhantes às de Rosenfeld, Erich Auerbach, em seu texto Mime-sis, também discute pressupostos acerca das mudanças ocorridas no gênero roma-

nesco no século XX. Nesse estudo, Auerbach analisa um trecho do livro To the Ligh-thouse (1927), de Virginia Woolf, a fim de traçar sua linha argumentativa acerca das

novas tendências do romance moderno. Nessa reflexão, as proposições do autor são

65 Idem. Ibidem. p. 77-78.

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inicialmente delineadas com base na situação em que são apresentados os persona-

gens no relato. Assim, ao contrário do que se poderia imaginar, segundo o romance

tradicional, os personagens eram apresentados dentro de contextos sistemáticos,

através da exposição ou até mesmo da introdução, para, com isso, facilitar o enten-

dimento da linha de raciocínio lógico que o narrador queria causar no leitor. Aqui, o

personagem em questão, Mrs. Ramsay, aparece através de formas enigmáticas. Se-

gundo Auerbach, a exemplo desse trecho da obra de Woolf, é perceptível que “[o]

escritor, como narrador de fatos objetivos, desaparece quase que completamente;

quase tudo o que é dito aparece como reflexo na consciência dos personagens do

romance”. Tampouco é comunicado ao leitor “o conhecimento que Virgínia Woolf tem

da essência de Mrs. Ramsay, mas reflexos dessa essência e dos seus efeitos sobre

diferentes figuras do romance, junto ‘aos espíritos sem nome’”66.

Para Auerbach, o modo ordenado e claro de como eram mostrados os aconte-

cimentos nas produções literárias e de como eram utilizados na construção do ro-

mance por escritores do século XIX e até mesmo do início do século XX já não pode

mais ser encontrado nas tramas do romance moderno desse século67. O poder de

representação da palavra literária entra em crise, e o romance perde a capacidade de

ser um espelho do mundo. O narrador do romance moderno, por sua vez, perde a

crença no mundo perante as diversas modificações e, assim, passa a encenar o con-

flito entre sua condição precária que se resume em falta de autoridade para narrar e a

necessidade deste narrar.

No romance realista, a pretensão do narrador era de dizer como as coisas a-

conteciam, mesmo que todo o relato fosse fantástico. O narrador era o sujeito que

dominava a experiência e, por isso, selecionava os fatos mais importantes e confiá-

veis, ordenando-os em uma narrativa lógica e coerente. Assim, o leitor acreditava

nessa ordem que lhe era apresentada e na capacidade do narrador de transformar

episódios dispersos em uma narração única e completa, aceitando a ilusão de que se

tratava de um relato confiável68. A narrativa contemporânea, em contrapartida, está

longe de ser una e linear, uma vez que o próprio narrador não possui mais total do-

mínio da matéria nem da forma.

66AUERBACH, Eric. A meia marrom. In: ____. Mímesis: a representação da realidade na literaturaocidental. 1971. p. 469.67 Idem. Ibidem. p. 470-471.68 SANSEVERIANO. Antonio Marcos Vieira. Realismo e alegoria em Machado de Assis. 1999.p. 55-56.

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O próprio escritor, ao criar o narrador da trama, já não o faz objetivamente

como alguém que relata, observa e interpreta os pensamentos, anseios e atitudes

dos seus personagens. Abre-se espaço no romance contemporâneo para um narra-

dor sapiente, mas com olhos duvidosos, interrogativos:

aqui, onde o escritor atinge a impressão mencionada colocando-se asi próprio, por vezes, como quem duvida, interroga e procura, comose a verdade acerca do seu personagem não lhe fosse mais bemconhecida do que aos próprios personagens ou ao leitor. Tudo é,portanto, uma questão da posição do escritor diante da realidade domundo que representa; posição que é, precisamente, totalmente di-ferente da posição daqueles autores que interpretam as ações, as si-tuações e os caracteres dos seus personagens com segurança obje-tiva, da forma que, anteriormente, ocorria em geral. Goethe ou Kel-ler, Dickens ou Meredith, Balzac ou Zola comunicavam-nos, partindode um conhecimento seguro, o que os seus personagens faziam, oque pensavam ou sentiam ao agirem, de que forma deveriam ser in-terpretadas as suas ações ou pensamentos69.

Tendo em vista a complexidade e as particularidades que compõem não só a

estrutura do texto literário moderno, mas também os fatores sócio-históricos que se

entrecruzam na sua composição, torna-se importante a busca de suportes teóricos

capazes de tentar explicar a complexidade de certas ocorrências literárias que as

teorias tradicionais já não dão mais conta. Para tanto, unem-se às proposições já le-

vantadas por Rosenfeld e Auerbach posicionamentos críticos formulados por filósofos

da Escola de Frankfurt como Theodor W. Adorno e Walter Benjamin. Esses autores

dedicarem-se ao estudo e à compreensão do fenômeno estético, em particular, do

romance.

Theodor W. Adorno, em seu livro Teoria estética, ao discutir questões relati-

vas à arte, à sociedade e à estética, enfatiza que as obras de arte mantêm uma es-

treita ligação com a vida social. Dessa forma, o crítico aponta para a existência de um

vínculo permanente entre as barbáries que a sociedade enfrenta ou enfrentou e as

produções artísticas. Para Adorno, uma tensão externa não resolvida irá motivar, no

romance, uma tensão interna, que se revelará em formas específicas de representa-

ção estética. Segundo o autor, “os antagonismos não resolvidos da realidade retor-

nam às obras de arte como problemas imanentes da sua forma. É isto, e não a trama

69 AUERBACH, Eric. A meia marrom. In: ____. Mímesis: a representação da realidade naliteratura ocidental. 1971. p. 470.

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dos momentos objetivos, que define a relação da arte com a sociedade”70. De acordo

com a proposta teórica elaborada por Adorno, é possível entender que o artista, ao

estar em contato com uma determinada realidade social, a internaliza, e, se essa rea-

lidade for caracterizada por conflitos e tensões, da mesma forma será a representa-

ção artístico-cultural, não só em nível temático, mas principalmente formal.

Para Adorno, a realidade não é percebida como algo harmônico, logo sua re-

presentação também não pode ser harmoniosa, pois, se assim o fosse, ter-se-ia uma

falsa projeção dessa realidade. Com isso, rompe-se com o conceito de perspectiva

mantido pelo romance realista, e surge uma nova forma de expressar ou representar

as experiências. A linearidade e a logicidade que definiam o romance realista são

abolidas, e o que o romance moderno incorpora, são fragmentos e estilhaços de ima-

gens e de pensamentos formulados a partir da realidade, negando a ideia de que a

arte deve ser concebida e entendida como totalidade:

[a] arte de elevada pretensão tende a ultrapassar a forma como tota-lidade, e desemboca no fragmentário. A indigência da forma deveriaexpressamente acabar de se fazer sentir na dificuldade da arte tem-poral [...]. Uma vez desembaraçada da convenção, nenhuma obrade arte pode já manifestadamente concluir de modo convincente,enquanto que os desenlaces tradicionais apenas procedem como seos momentos singulares se associassem a com o ponto final notempo para constituir a totalidade da forma. Em numerosas obras damodernidade que, entretanto, forma objeto de ampla recepção, aforma manteve-se habilmente aberta, porque queriam provar que aunidade da forma já não lhes era garantida71.

A posição do narrador no romance contemporâneo é outro item analisado pelo

crítico frankfurtiano. Para ele, o fato de narrar implica a necessidade de “ter algo es-

pecial a dizer”, entretanto, na contemporaneidade, isso é impedido pelo mundo admi-

nistrado pela estandardização e pela mesmidade. No romance contemporâneo, é

preciso considerar a impossibilidade do narrador de contar sua participação em cer-

tos episódios traumáticos. A experiência desintegrou-se, e a vida articulada e contí-

nua em si mesma já não pode mais ser apresentada sem fissuras. Para Adorno, a

ideia de que alguém possa se sentar para ler um bom livro é ultrapassada, pois o que

precisa ser considerado no mundo contemporâneo não deve ser somente a coisa

70 ADORNO, Theodor W. Teoria estética. 2008. p. 18.71 Idem. Ibidem. p. 171.

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comunicada, mas a forma como é apresentada72. Frente a isso, o artista fica condi-

cionado à parcialidade dos fatos e suscetível ao engano, ao esquecimento e às ruptu-

ras do relato. O romance realista, por outro lado, ao reproduzir uma visão absoluta e

consistente do real, ficava condicionado à reprodução da fachada, enganando e mas-

carando a realidade ao apresentá-la através de uma aparência de totalidade, sem

lacunas e sem cortes.

Walter Benjamin, crítico ligado à Escola de Frankfurt, dentre seus estudos de

filosofia, estética, religião e história, também se dedicou à teoria literária e, em parti-

cular, às transformações da arte moderna. Em seus ensaios, o autor reflete acerca da

sociedade, de seus processos de industrialização, modernização, guerras e demais

conflitos históricos. Assim, as compatibilidades teóricas entre Benjamin e Adorno são

visíveis uma vez que ambos examinam a produção artística sob o impacto das diver-

sas situações históricas e sociais ocorridas no século XX.

Em seu ensaio Sobre o conceito da história, Benjamin observa algumas das

formas como a história tem sido narrada e concebida. Segundo ele, nem a historio-

grafia progressista nem a historiografia burguesa cumprem com a tarefa adequada-

mente, pois, enquanto a primeira procura enfatizar uma ideia de progresso histórico

inevitável e cientificamente previsível; a segunda, que diz respeito ao historicismo,

oriundo da grande tradição acadêmica, objetiva reviver o passado através de uma

espécie de identificação afetiva do historiador com o seu objeto. Essa última tenta

contar um passado sem questionar a posição do historiador ou a forma como a maté-

ria é narrada e realizada.

Perante essas correntes, Benjamin entende que somente a voz dos dominado-

res e vencedores é contada e, por isso, acredita que a verdadeira história fica supri-

mida e abafada. O crítico enfatiza que essa forma de narrar a história deve ser aban-

donada e substituída pelo materialismo histórico, o qual não mascara a barbárie co-

metida pelo poder opressor. O materialismo histórico resulta da visão e da forma de

narrar dos vencidos, e principalmente das vozes caladas e soterradas em meio aos

escombros do passado, violento e repressor. Benjamin destaca que a imagem do

passado é de ruínas, porque a civilização foi concebida a partir de episódios de des-

truição, de massacre e de barbárie, ou melhor, a civilização teve como alicerce o

72 ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ____ et al. Textosescolhidos. 1983. p. 269-270.

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sangue de muitos povos. Todas as sociedades são marcadas fortemente por tensões

e conflitos dos quais o intelectual não pode se eximir.

Diante disso, a proposta que Benjamin apresenta para uma nova escrita da

história é de que a narração deve estar comprometida na causa contra as barbáries

cometidas ao longo dos tempos. O crítico sugere que o olhar do narrador deve estar

sempre voltado para a história como catástrofe, como “ruína sobre ruína”73, e, assim,

relatá-la, fora de uma certa lógica e de um nexo causal, mas em fragmentos, como

que de forma a reconstituir os cacos da história.

Na visão de Adorno e Benjamin, o caminho para se entender a narrativa mo-

derna está em se pensar e considerar problemas de teoria da literatura e aconteci-

mentos da experiência humana, sem deixar de levar em conta o contexto em que

uma determinada obra fora produzida, bem como seu impacto sobre as formas literá-

rias. Em outras palavras, as proposições de ambos os teóricos servem para explicar

que os problemas de ordem estética de determinadas narrativas – como ruptura da

linearidade, fragmentação, descontinuidade temporal, tais como observados nas o-

bras que compõem o corpus desta pesquisa, ou seja, Quatro-olhos, de Renato

Pompeu, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós – podem ser entendidas através da

ótica de um contexto bárbaro, turbulento e violento que circundava o momento de sua

produção.

Ignácio de Loyola Brandão, ao discutir sobre as tendências e as característi-

cas do romance moderno, observa que, no Brasil, esse tipo de produção literária foi

influenciado fortemente pelo jornalismo, pelo documentário, por depoimentos e por

acontecimentos cotidianos oriundos da situação ditatorial e violenta do país pós-64.

Devido a isso, então, as obras de ficção foram marcadas pelo desejo sincero de retra-

tar tais episódios antes que fossem esquecidos ou que se perdessem por algum mo-

tivo proveniente da censura. O principal objetivo dos escritores era “evitar que esco-

assem para o esgoto da história, fornecendo um álibi ao sistema duro e desumano

que imperava o Brasil”74.

Para Brandão, a década de 70, no Brasil, desenvolveu na mentalidade dos

escritores uma nova forma de encarar a realidade e, consequentemente, de reprodu-

zi-la. Um novo público formava-se e reunia-se para falar de literatura brasileira, mas

73 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política.2006. p. 226.74 BRANDÃO. Ignácio de Loyola. Literatura e resistência. In: SCHWARTZ, Jorge; SOSNOWSKI,Saul (Orgs.). Brasil: o trânsito da memória. 1994. p. 178.

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também de política e da situação do país. Esse novo público, formado principalmente

por escritores-jornalistas, costumava ter em mãos as notícias censuradas, as fotos e

as reportagens proibidas de serem veiculadas pelos meios de comunicação. Frente à

presença da censura e da necessidade de driblar esse sistema opressor, o crítico

pondera que a literatura sofria uma brusca transformação, cuja forma de composição

e expressão migrava em direção ao fantástico e ao metafórico. Já os conceitos de

realismo, verossimilhança e logicidade, que compunham os romances tradicionais de

até então, são abalados de forma que perdem seus limites e passam a ganhar elasti-

cidade. Ou seja, o escritor ganha maior liberdade na escrita e rompe com barreiras e

conceitos quase que intransponíveis do romance realista75.

Outrossim, cabe acrescentar que, ao se tratar das tendências do romance

moderno, deve-se ponderar o fato de que a forma estética de apresentação de certas

narrativas representa a intenção essencial do escritor de não impor à vida, ao seu

tema, uma ordem que ela própria não oferece76. Em outras palavras, seria quase im-

possível representar ou apresentar o decurso completo de uma vida ou de um con-

junto de episódios, que merecessem ser contados, sem que os lapsos de memória do

escritor ou do narrador não interferissem na narrativa. Contudo, é possível esperar

que relatos de poucos personagens, ocorridos em curtos espaços de tempo, possam

ser contados ou reproduzidos com maior perfeição, assim como episódios, muitas

vezes aleatórios, sem um nexo cronológico definido, mas que apresentam detalhes e

fatores que, ao serem relatados, transformam-se em grandes reflexões sobre a vida

social e/ou histórica do homem.

O romance moderno, ao apresentar elementos fragmentados, desconexos e

por não seguir uma ordem linear, seja ela de tempo ou de causalidade, busca instigar

o leitor à interpretação da vida que, por sua vez, surge também de fatos do cotidiano

e de experiências de vida tampouco organizadas cronologicamente. A literatura mo-

derna forma-se a partir das distintas experiências encontradas em pensamentos, na

consciência humana, nas palavras e em ações, que geralmente se configuram em

episódios desordenados. Provavelmente, este seja o desafio dos escritores moder-

nos, ou seja, representar, através da arte, e em particular através do romance, a es-

sência da vida humana e de tudo que a cerca e, assim, possibilitar ao leitor ou ao

75 Idem. Ibidem. p. 179.76 AUERBACH, Eric. A meia marrom. In: ____. Mímesis: a representação da realidade naliteratura ocidental. 1971. p. 481.

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expectador da arte sua própria interpretação e conclusão de determinadas situações,

uma vez que

dentro de nós realiza-se incessantemente um processo de formaçãoe de interpretação, cujo objeto somos nós mesmos: a nossa vida,com passado, presente e futuro; o meio que nos rodeia; o mundo emque vivemos, tudo isso tentamos incessantemente interpretar e or-denar, de tal forma que ganhe para nós uma forma de conjunto, aqual, evidentemente, segundo sejamos obrigados, inclinados e ca-pazes de assimilar novas experiências que se nos impinjam, modifi-ca-se constantemente de forma mais rápida ou mais lenta, mais oumenos radical77.

Nesse sentido, pondera-se olhar para o romance moderno assim como fazem

os escritores no momento de sua produção e buscar a interpretação dos fatos relata-

dos a partir do entrecruzamento, da contradição e, por que não, da complementação

resultante dos episódios apresentados. O processo de construção do romance con-

temporâneo segue pelas sendas instintivas da inteligência, que observa e representa

uma realidade que não é única, mas dissolvida em múltiplos e distintos reflexos da

consciência humana. Sendo assim, a emergência de determinadas características

que se podem observar em romances que surgem durante a Ditadura Militar no Brasil

não é de difícil entendimento, já que traduz um sintoma da confusão e do desconser-

to da sociedade da época.

Portanto, ao se observarem obras esteticamente fragmentadas como Quatro-olhos e Em câmara lenta, produzidas no calor do regime autoritário e violento, refor-

çam-se as teses defendidas por Adorno e Benjamin, segundo os quais o romance

moderno possibilita um novo jeito de tratar de questões históricas, políticas e sociais,

em que a temática não é o principal eixo da trama, mas a fusão desta com a forma de

organização da obra. A tentativa desses escritores está em não mais impor um nar-

rador que organize o caos e o relate, mas fazer com que o leitor, através dos destro-

ços da narrativa, despedaçada e desarticulada entre si, consiga observar a situação

de sua perspectiva e chegar ao seu próprio conceito de verdade e de realidade.

77 Idem. Ibidem. p. 482.

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2.2 Fronteiras da narrativa: ficção, história e testemunho

Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ga-nhamos; ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo quealguém escape, o mundo não lhe dará crédito [...]. Ainda que fi-quem algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão queos fatos narrados são tão monstruosos que não merecem confian-ça: dirão que são exageros e propaganda aliada e acreditarão emnós que negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos ahistória dos Lager (campos de concentração).

(Os afogados e os sobreviventes, Primo Levi)

A história e a ficção, durante séculos, trilharam caminhos semelhantes, pois

ambas eram responsáveis por apresentar e recontar os acontecimentos das civiliza-

ções. Tal responsabilidade, por um lado, marcava a aproximação entre essas duas

áreas do saber; por outro, estimulava determinadas divergências entre elas. Diante

disso, a relação entre narrativa histórica e narrativa ficcional apresenta-se à humani-

dade em constantes diálogos e debates, no intuito de refletir acerca das singularida-

des de cada uma, bem como chamar atenção para os elementos que unem tais dis-

cursos.

Ao se tomar como ponto de partida dados como a ação de escrever a história,

(re)contar os fatos e interpretar o mundo, percebe-se que tanto a história quanto a

ficção apresentam-se capazes de ordená-los a fim de narrar o que deve ser relatado;

entretanto, a forma como essa escrita pode se configurar é o que irá variar. A história

e a literatura compartilham os mesmos elementos para as suas composições, a sa-

ber, fato, personagens, espaço, tempo, ações. Contudo, o procedimento em organi-

zá-los é muito variável entre essas duas formas de narrar, distinguindo assim história

de literatura, sem, no entanto, conferir mais ou menos autenticidade de uma em rela-

ção à outra. Para tanto, a filosofia da história e a teoria literária têm procurado enten-

der e esclarecer os laços que unem ficção e história, bem como os fatores que as

divergem, numa busca constante para compreender de que modo essas áreas elabo-

ram e relatam uma mesma temática e que tipo de recursos narrativos podem ser en-

contrados em suas diegeses.

Assim, se as relações entre literatura e história encontram-se no centro do

debate da atualidade, e as fronteiras entre essas duas áreas parecem cada vez mais

fluídas, torna-se importante destacar que a segunda metade do século XIX é tida co-

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mo referência quando o assunto é ruptura entre esses dois campos do conhecimento,

uma vez que se instaura o modelo de interpretação positivista da história. Toma-se,

então, a história como um sistema científico, dotado de verdades absolutas, e a litera-

tura como arte, tida unicamente como lugar do fictício, do subjetivo e do imaginário.

Frente a isso, observa-se a sobreposição do cientificismo como prática da verdade,

opondo-se categoricamente à arte literária, conferindo a esta a posição produtora de

inverdades.

Roland Barthes, ao discutir o que seria o discurso histórico, enquanto lugar de

“verdades”, refere-se a uma tessitura capaz de comportar em sua unidade fatores

“existentes” e “ocorrentes”78. Tal classificação é exemplificada através de Heródoto,

cuja definição de “existentes” inclui dinastias, príncipes, generais, soldados, povos e

lugares, e, para a de “ocorrentes”, ações como as de devastar, submeter, reinar, de-

vastar, aliar-se e fazer expedições, consultar oráculo, etc79. Nesse sentido, o autor

afirma: “[s]endo essas coleções (relativamente) fechadas, devem oferecer-se a certas

regras de substituição e de transformação, e deve ser possível estruturá-las – tarefa

de maior ou menor dificuldade, evidentemente, conforme os historiadores”80.

Com base nessa categorização, que organiza a narrativa histórica, entende-se

que tais conjuntos de elementos apresentam-se restritos ao campo da história, ca-

bendo ao historiador a tarefa de arranjá-los da forma que melhor lhe pareça adequa-

da. Dá-se a liberdade para que o historiador constitua seu discurso de acordo com

sua ideologia e com seu ponto de vista, podendo tanto enfatizar e glorificar um even-

to, quanto denegri-lo ou depreciá-lo, dependendo da ênfase que confere aos dados

de que dispõe.

Entretanto, ainda com base na definição de Heródoto acerca dos elementos

composicionais da história, itens considerados até então específicos ao domínio da

história também podem ser encontrados na ficção. Assim, acredita-se ser impossível

delimitar categoricamente o que incumbe à literatura e o que é próprio do discurso

histórico. Isso porque as fronteiras entre essas duas áreas revelam-se muito fluídas,

uma vez que elementos tidos como característicos da história migram para a ficção, e

a história, por vezes, migra “para uma forma metafórica”81. Desse modo, a partir do

momento em que se observa que as mesmas categorias podem servir tanto à história

78 BARTHES, Roland. O discurso da história. In: ____. O rumor da língua. 2004. p. 171.79 Idem. Ibidem. p. 171.80 Idem. Ibidem. p. 171.81 Idem. Ibidem. p. 175.

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quando à literatura, a teoria da história concebida até então é posta em xeque. A pro-

pósito da definição do discurso histórico, Barthes ainda acrescenta:

[o]s próprios processos históricos (seja qual for o seu desenvolvi-mento terminológico) levantam – entre outros – um problema inte-ressante: o de seu estatuto. O estatuto de um processo pode ser as-sertivo, negativo, interrogativo. Ora, o estatuto do discurso históricoé uniformemente assertivo, constativo; o fato histórico está ligadolinguisticamente a um privilégio de ser: conta-se o que foi, não o quenão foi ou o que foi duvidoso. Enfim, o discurso histórico desconhecea negação (ou conhece raramente, de maneira excêntrica). [...] Po-de-se dizer que, em certo sentido, o discurso “objetivo” (é o caso dahistória positivista) alcança a situação do discurso esquizofrênico;num caso como no outro, há censura radical da enunciação82.

Em outros termos, Barthes está chamando atenção para o fato de que a histó-

ria sempre será positivista, capaz de relatar o que aconteceu, sem se preocupar com

aquilo que deixou de acontecer, com os fatos que foram encobertos. Ou seja, sempre

haverá algum tipo de censura na enunciação histórica, seja por ideologia do historia-

dor ou por necessidade de uma certa classe ou por outro motivo qualquer. Fato é

que, para que o historiador consiga concatenar as informações selecionadas de que

dispõem, em uma certa ordem lógica e aceitável, ele precisa dar significação a tais

subsídios, isto é, precisa interpretá-los de acordo com seus conhecimentos e com

seu ponto de vista. Sem a interpretação, a narrativa não tem significação:

[p]ara que a História não signifique, é necessário que o discurso selimite a uma pura série inestruturada de anotações: é o caso dascronologias e dos anais [...]. No discurso histórico constituído (“forra-do”, poderíamos dizer), os fatos relatados funcionam irresistivelmen-te quer como índices, quer como núcleos cuja sequência mesmatem valor indicial [...]. No discurso histórico da nossa civilização, oprocesso de significação visa sempre a “preencher” o sentido da his-tória: o historiador é aquele que reúne menos fatos do que signifi-cantes e os relata, quer dizer, organiza-os com a finalidade de esta-belecer um sentido positivo e de preencher o vazio da série pura83.

Como se observa, Barthes vê o discurso histórico como fruto da elaboração

ideológica e principalmente da elaboração imaginária do historiador, confirmando as-

82 Idem. Ibidem. p. 173.83 Idem. Ibidem. p. 176.

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sim o papel que tem a ficção para a composição do discurso histórico. Tal proposição

serve para ratificar que a metaforização que se faz presente na ficção também irá ser

encontrada na narrativa histórica, postulando que, em nenhum momento, elementos

da ficção ou da história são fatores determinantes para a caracterização de uma e

para a exclusão da outra, mas que cada vez mais essas duas áreas do saber pare-

cem interligadas.

Hayden White, em Trópicos do discurso, ao discutir questões relacionadas à

natureza humana, como cultura, sociedade e história, postula que o registro histórico

é algo muito compacto e ao mesmo tempo difuso demais, e que, por isso, comparti-

lhando da mesma visão de Barthes, o historiador é alguém que geralmente precisa

interpretar os elementos de que dispõem a fim de conseguir narrar o processo históri-

co de modo coerente e verossímil, bem como preencher possíveis lacunas84:

o historiador deve “interpretar” os seus dados, excluindo de seu rela-to certos fatos que sejam irrelevantes ao seu propósito narrativo. Deoutro lado, no empenho de reconstruir “o que aconteceu” num dadoperíodo da história, o historiador deve inevitavelmente incluir em suanarrativa um relato de algum acontecimento ou conjunto de aconte-cimentos que carecem dos fatos que poderiam permitir uma explica-ção plausível de sua ocorrência. E isto significa que o historiadorprecisa “interpretar” o seu material, preenchendo as lacunas das in-formações a partir de inferências ou de especulações85.

Dessa forma, a narrativa histórica, ao passar pela interpretação do escritor, re-

sulta numa organização de eventos explicados adequada ou inadequadamente. Fa-

tos inferidos pelo historiador e estabelecidos como representação são tomados como

explicação para o processo narrativo da história. Assim, as narrativas históricas pas-

sam a ser “ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos

e cujas formas assemelham-se à literatura”86.

White, ao reler Collingwood, afirma que o historiador era acima de tudo um

contador de histórias e que sua sensibilidade era manifestada através de sua capaci-

dade de, a partir de fatos que muitas vezes se apresentavam desorganizados e ca-

rentes de sentido, criar uma história dotada de sentido. Para Collingwood, o registro

histórico sempre será fragmentário e incompleto e, por isso, o historiador precisa usar

84 WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. 2001. p. 65.85 Idem. Ibidem. p. 65.86 Idem. Ibidem. p. 98.

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sua imaginação construtiva. Entretanto, o crítico observa nos historiadores a tendên-

cia para o relato de testemunho a partir do senso das formas possíveis que os dife-

rentes tipos de situação humana podem assumir. Na visão de White, os acontecimen-

tos históricos, ao serem relatados, eram organizados através da supressão de alguns

elementos e do realce de outros, de acordo com o ponto de vista do narrador e com

as estratégias ideológicas que este lograva contemplar. Em suma, o texto histórico

reunia as técnicas que normalmente se esperava encontrar na composição da trama

de um romance ou de uma peça87. White complementa a observação de Collingwood:

nenhum acontecimento histórico é intrinsecamente trágico; só podeser concebido como tal de um ponto de vista particular ou de dentrodo contexto de um conjunto estruturado de eventos do qual ele é umelemento que goza de um lugar privilegiado. Pois na história o que étrágico de uma perspectiva é cômico de outra [...]. [O]s acontecimen-tos históricos são de valor neutro [...]. O mesmo conjunto de eventospode servir como componentes de uma estória que é trágica ou cô-mica, conforme o caso, dependendo da escolha, por parte do histo-riador, da estrutura de enredo que lhe parece mais apropriada paraordenar os eventos desse tipo, de modo a transformá-los numa estó-ria inteligível88.

De acordo com as ideias levantadas por White e Collingwood, pode-se inferir

que o acontecimento histórico nada mais é do que um conjunto de fatores capaz de

possibilitar ao escritor uma série de sequências narratológicas dotadas de sentidos

diferentes, provenientes das mais distintas concepções de seus historiadores. A con-

figuração de uma determinada situação histórica requer do historiador muita sutileza

a fim de harmonizar seu enredo e conferir-lhe sentido. Trata-se, portanto, de uma

espécie de apropriação, por parte do historiador, da operação literária, da prática cri-

adora de ficção.

White, ao citar Levi-Strauss, argumenta que esse autor, em um de seus ensai-

os sobre historiografia, discute que, quando se trata de escrever um relato abrangen-

te de um determinado período temporal, o historiador deixa-se levar por “esquemas

fraudulentos”, “abstrações”, pois só é possível construir uma história compreensível

do passado mediante o abandono de alguns fatos. Assim, a explicação do processo

histórico é determinada mais pelo que se deixa de fora da “representação” do que

87 Idem. Ibidem. p. 100.88 Idem. Ibidem. p. 101.

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pelo que nele é incluído. O crítico conclui, dessa forma, que uma história considerada

clarividente jamais escapa completamente à natureza da imaginação89.

Tais pressupostos são acolhidos por White quando complementa que a narra-

tiva histórica é uma narrativa simbólica, pois não reproduz os eventos que descreve,

apenas aponta a direção que os acontecimentos devem ser pensados, trazendo, com

isso, à mente, imagens dos eventos que indica, assim como faz a metáfora90. Segun-

do White, aceitar o teor ficcional no discurso histórico não deprecia o status dessa

narrativa em sua concepção de fornecedora de um tipo de conhecimento. A respeito

dessa relação de elementos históricos e literários que se entrecruzam no ato de nar-

rar a história, o crítico reconhece a necessidade de cada vez mais se debater a res-

peito da produtiva relação que essas áreas podem possibilitar. Para White, essa dis-

cussão joga luz ao verdadeiro passado histórico, pois se em cada relato histórico há

um elemento ficcional, em cada elemento da ficção também irá se encontrar um ou

mais fatos históricos que merecem ser observados.

De acordo com o crítico, a antiga distinção entre ficção e história, na qual a

ficção era concebida como a representação do imaginável, e a história como a repre-

sentação do verdadeiro, “deve dar lugar ao reconhecimento de que só se pode co-

nhecer o real comparando-o ou equiparando-o ao imaginável”91. Assim, a narrativa

histórica, por ser uma estrutura complexa, abre-se para um vasto mundo de experi-

ências que ela se propõe a apresentar de modos distintos. Logo, a história do mundo

real adquire sentido da mesma forma que o romancista confere aspecto e forma re-

conhecível à sua ficção. Portanto, “[n]ão importa se o mundo é concebido como real

ou apenas imaginado; a maneira de dar-lhe um sentido é a mesma”92.

O que se percebe com base em Barthes e também em White, é que o cami-

nho do conhecimento tanto para a história quanto para a literatura não se encontra

nas divergências entre elas, mas na tentativa de borrar tais distinções. White, em es-

pecial, ao defender a prática da semelhança, postulando as similaridades entre histó-

ria e literatura, defende a política da afinidade entre tais discursos, opondo-se ao sis-

tema conceitual que concebeu à historiografia maior similitude às ciências naturais.

Nessa sinuosa fronteira entre ficção e história, parece não haver espaço para

afirmações categóricas, pois, se, em White, a narrativa histórica é concebida como

89 Idem. Ibidem. p. 107.90 Idem. Ibidem. p. 108.91 Idem. Ibidem. p. 115.92 Idem. Ibidem. p. 115.

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um tipo de arte e, se, para Collingwood, tanto no romance quanto na história, é im-

prescindível a imaginação a priori por parte do escritor, infere-se que os laços que

unem história e literatura tornam-se cada vez mais estreitos e fluidos93. De um lado,

tem-se a história, que se usa das ferramentas literárias a fim de compor sua narrativa;

de outro, a literatura, em especial a produzida no século XX, que é vista como um

espaço de autorreflexão da linguagem, não meramente para representar o “real”, mas

para dar forma a ele94. Seligmann-Silva classifica essa literatura do “real” como litera-

tura de testemunho, justamente pela presença, em sua tessitura, do entrecruzamento

de elementos literários e do mundo fenomênico.

A caracterização de literatura de testemunho surgiu em países europeus, prin-

cipalmente na Alemanha e na França, referindo-se às narrativas literárias associadas

aos relatos testemunhais que se propunham a narrar o evento da Shoah, dos campos

de concentração e extermínio da Segunda Guerra Mundial. Esta literatura de teste-

munho não pode ser meramente classificada como um gênero, mas como uma face

da literatura que surge em meio a uma época de catástrofes, fazendo com que, após

séculos, o conceito de literatura de autorreferência seja questionado, bem como seu

compromisso com o “real”. Este “real” a que se refere a literatura de testemunho não

deve ser confundido com a realidade antes pensada pelo romance realista e natura-

lista, mas deve ser olhado sob a luz freudiana do trauma, como “um evento que jus-

tamente resiste à representação”95.

Esclarecidos tais conceitos, é hora de tratar do testemunho. Testemunho pode

ser definido de duas formas em latim: testis ou supertes. Essa segunda nomenclatura

é também conhecida como mártir em grego. A primeira definição significa o depoi-

mento de um terceiro em um processo. A testemunha é aqui alguém que dá sua ver-

são dos fatos vivenciados, é alguém que sobreviveu a uma catástrofe, mas que não

consegue dar conta do vivido, porque ficou traumatizado (elemento subjetivo) devido

à dimensão da catástrofe (elemento objetivo). Quanto à segunda definição, esta refe-

re-se a alguém que passou por uma provação, ou seja, o sobrevivente96. Sendo as-

sim, a ideia de testemunha remete à verificação da verdade, ou seja, sua existência

só é possível quando houver indícios de dúvida e possibilidade de mentira. A literatu-

93 COLLINGWOOD, Robin George. Idea de la historia. 1952. p. 238.94 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O testemunho: entre a ficção e o “real”. In: ____ (Org.). História,memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 372.95 Idem. Ibidem. p. 273.96 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção.In: ____. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. 2005. p. 84.

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ra de testemunho configura-se, portanto, na literatura do trauma, pois concentra-se

na tentativa de representar o irrepresentável e buscar, através da língua, alguma

possibilidade de testemunhar aquilo que foi visto, mesmo que para isso seja preciso

recorrer às estratégias da ficção. Dessa forma, a literatura de testemunho surge para

tentar trazer à esfera da realidade tudo aquilo de mais terrível que possa ter sido en-

coberto pelo discurso dos vencedores.

Em seu ensaio Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a fic-

ção, Seligmann-Silva discute que a literatura de testemunho deve ser olhada como a

representação de uma “cena”, como o testemunho, escrito ou falado, de uma “cena”

violenta, de um acidente ou de uma guerra97. Para o crítico, entretanto, sempre que

se tratar de um testemunho, a representação não pode ser entendida como uma des-

crição realista do ocorrido, devido à impossibilidade de a testemunha apresentar a

totalidade da cena vivenciada. Outrossim, o testemunho irá instigar uma possível re-

organização sobre aquela cena que não conseguiu ser completamente simbolizada

pela mente do indivíduo que a vivenciou ou presenciou. O olhar da testemunha traz

para a tessitura narrativa aquelas informações que não são encontradas nos arquivos

da história. Com isso, a testemunha revela-se, através do texto literário, num arquivo

vivo repleto de informações capazes de indicar uma nova (re)leitura da história.

A literatura de testemunho sempre irá implicar a presença de uma testemunha

ocular, de alguém que passou por uma experiência traumática. Para tanto, essa lite-

ratura irá exigir uma nova ética de representação, que se caracteriza pela presença

de imagens mudas, impossíveis de serem representadas, a não ser através de uma

nova performance da linguagem98. Portanto, a literatura de testemunho é a transposi-

ção para a forma escrita do caráter individual e intransferível da vivência da catástro-

fe. Essa forma de ficção deve ser vista como uma narração necessária não só em

termos individuais, mas principalmente pela sua esfera universal, funcionando assim

como um testemunho à posteridade.

A essência da literatura de testemunho não se encontra mais na imitação da

realidade, mas numa espécie de manifestação de uma cena não simbolizada e en-

tendida no campo da memória. Não se trata de transpor de modo imediato essa cena

ou o “real’ para a literatura, mas fazer da trama literária um espaço para que, através

da linguagem, seja possível representar na ficção esse “real” enquanto trauma, en-

97 Idem. Ibidem. p. 105.98 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção.Letras, 1998. p. 22.

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quanto uma “perfuração” na mente, ferida que não se fecha, diante da memória do

sofrimento vivido99:

[é] um chavão dizer que essas experiências-limite são indescritíveis:mas não é menos verdade que elas foram carimbadas na mente desobreviventes aos quais escapava a nossa capacidade cotidiana desimbolização. A onipresença da morte faz com que a linguagem setorne mais “concreta”: as pessoas num campo de concentração sãoqueimadas literalmente, a fome mata literalmente, o mais forte é lite-ralmente dono de você etc. Não há espaço para metáfora – apenaspara a metamorfose. Daí por que essas imagens formam como quehieróglifos indecifráveis para os testemunhos (e para os leitores des-ses textos). Hieróglifos (um misto inseparável de imagens e concei-tos) ou simplesmente imagens que, como diz Wilkomirski, “voltamcom frequência à minha mente”, de modo descontrolado e desorde-nado100.

Nesse sentido, a literatura de testemunho pode ser considerada uma ramifica-

ção da própria história, narrando a “contrapelo”101 os (des)caminhos trilhados pela

história tida como objetiva e verdadeira. Por sua vez, a literatura de testemunho reite-

ra o comprometimento em “desenterrar” um passado que poderia estar destinado a

permanecer em ruínas. O mundo e os indivíduos passam a ser (re)construídos atra-

vés dessa forma de ficção. Poder-se-ia dizer que é uma forma de narrativa dedicada

ao resgate das experiências de um indivíduo ou de um grupo, a fim de reintegrar sua

memória e sua identidade.

Walter Benjamin, ao discutir questões acerca da arte de testemunho, aponta

para essa forma de ficção como sendo um trabalho da memória. Dito em outro termo,

a literatura que dedica sua ficção ao testemunho é por excelência literatura da memó-

ria. Cabe destacar, no entanto, que não se trata de uma mera rememoração do pas-

sado, mas de uma tarefa comprometida com a necessidade do lembrar e de sua im-

possibilidade. O autor desenvolve suas proposições contra o historicismo que apenas

reproduz a alienação entre a experiência e o indivíduo, e reitera a força do trabalho

da memória na reconstrução do passado histórico através do testemunho. Para o

estudioso, a literatura de testemunho faz o caminho inverso da historiografia tradicio-

nal, pois, ao invés de seguir uma certa linearidade clara e de percurso ascendente,

sua narrativa se dá em fragmentos, possibilitando ao expectador um espaço aberto

99 Idem. Ibidem. p. 382-383.100 Idem. Ibidem. p. 110.101 Cf. expressão utilizada por BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia etécnica, arte e política. 1994. p. 223.

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para diversas (re)leituras do que é narrado. A reflexão de Benjamin sobre história e

consecutivamente sobre a arte chama atenção para a cesura do tempo, para a que-

bra da prosa linear. O tempo, sob essa ótica, não pode ser considerado algo vazio,

mas denso, carregado de sentido e matéria102.

Para finalizar, retomam-se as proposições elencadas por Seligmann-Silva

quando o autor enfatiza que o significativo número de produções literárias surgidas

após o evento da Shoah sugere um pensar permanente acerca da relativização do

processo narrativo histórico enquanto puro e objetivo. Para o estudioso, não é possí-

vel pensar em um texto puramente histórico e quase científico, de um lado, e um pu-

ramente fictício, de outro, se se levar em consideração a diversidade de obras consi-

deradas literatura de testemunho que surgiram no último século. Para o autor, pensar

sobre literatura de testemunho implica diretamente repensar acerca da visão que se

tem da história, do fato histórico enquanto acontecimento e manifestação narrativa. O

testemunho que surge na ficção literária deve ser acolhido não como a narração objetiva

e plastificada dos fatos violentos, mas como resistência à compreensão deles.

Em suma, tanto o historiador quanto o romancista estão expostos e cercados pelo

mundo real e imaginário, transformando-o em ponto de referência para a composição de

suas narrativas. Dessa forma, seus discursos se sobrepõem, pois “as técnicas ou estra-

tégias de que se valem na composição de suas narrativas são substancialmente as

mesmas”103. Vivencia-se, portanto, a ficcionalização da história como explicação pelo

mesmo motivo que se vivencia a grande ficção como iluminação para um mundo em ruí-

nas. Em ambas, reconhecem-se as formas pelas quais a consciência humana constitui e

povoa o mundo que ela própria busca habitar confortavelmente104.

A ficcionalização da história pela literatura não prejudica o pacto narrativo en-

tre autor e escritor, tampouco na literatura o uso da história não significa substituir a

emoção pela razão. Com isso, a narrativa histórica e a ficcional se interpenetram,

completando-se. Os personagens ficcionais ganham vida no sentido de agir e refletir

sobre sua ação histórica. O universo fictício que coexiste com a narrativa histórica

não se sobrepõe ao histórico, mas interage com ele de várias formas. O historiador

produz sua obra representando acontecimentos históricos com inferências de sua

imaginação, o que constitui o lado ficcional da narrativa, de cuja realidade que envol-

ve a imaginação é impossível fugir. Da mesma forma, o romancista, principalmente

102 Idem. Ibidem. p. 221-228.103 WHITE, Hayden. As ficções da representação factual. In: ____. Trópicos do discurso: ensaiossobre a crítica da cultura. 2001. p. 137.104 Idem. Ibidem. p. 116.

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escritor da literatura de testemunho, não tem como se desviar dos elementos históri-

cos que se impõem à sua volta. Quem escreve, seja o historiador ou o romancista, dá

voz à sua narrativa e, nesta voz, afloram os sentimentos de quem vive uma realidade

de lembranças e momentos significativos de seu mundo. Por isso, história e ficção

trilham os mesmos caminhos, completando-se mutuamente e intrinsecamente para

uma melhor compreensão do mundo social.

2.3 As narrativas do trauma no século XX

Chega um momento da vida em que, entre todas as pessoas queconhecemos, os mortos são mais numerosos que os vivos. E amente se recusa a aceitar outras fisionomias, outras expressões:em todas as faces novas que encontra, imprime os velhos dese-nhos.

(Cidades invisíveis, Ítalo Calvino)

A história da humanidade do século XX apresenta-se caracterizada por uma

série de avanços no âmbito científico e tecnológico, oferecendo, com isso, uma série

de possibilidades aos indivíduos. Entretanto, paralelo a tais conquistas, não se pode

deixar de mencionar que esse mesmo período foi cenário dos mais violentos atos de

barbárie praticados no mundo e no Brasil. Com essa colocação, não se pretende a-

pagar dessa mesma história a memória dos genocídios e das guerras ocorridas nos

séculos anteriores, muito menos inocentar tais atos. Porém, tal século supera em to-

dos os sentidos o nível de violência e o número de vítimas dizimadas pelos massa-

cres. Tanto é que recebeu denominações como “era dos extremos” e “era dos cata-

clismos”, “era das catástrofes” e “era do totalitarismo”, confirmando, assim, a fatalida-

de desse período sobre a humanidade105:

[n]o último século, o homem inventou a bomba atômica, cometeu oHolocausto, travou as mais violentas e mortíferas guerras de todos ostempos. Antes dele, houve muitos combates, mas nenhum tão mons-truoso e destruidor. Somente na Primeira Guerra Mundial, dez mi-lhões de vidas foram dizimadas, e isso seria menos de um quinto donúmero de pessoas que morreria poucas décadas depois, na Segun-da Guerra. A carnificina estava longe de acabar. Antes, durante e de-

105 CORNELSEN, Elcio Loureiro. O testemunho na chave do trauma: aspectos teóricos. In:UMBACH, Rosani Ketzer; CALEGARI, Lizandro Carlos (Orgs.). Estética e política na produçãocultural: as memórias da repressão. 2011. p. 10.

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pois das guerras mundiais, incontáveis embates eclodiram nos cincocontinentes – uma quantidade tão grande que não caberia de modoalgum em nossas páginas106.

Para Márcio Seligmann-Silva, esse numeroso conjunto de barbáries, que inte-

grou a história da humanidade, suscitou uma série de eventos que ficaram conheci-

dos como “pós” catástrofes, a saber, pós-massacre dos armênios, pós-Primeira

Grande Guerra, pós-Segunda Guerra Mundial, pós-Shoah, pós-gulag, pós-guerras de

descolonização, pós-massacres no Camboja, para citar somente alguns. Tal prefixo,

entretanto, não remete à ideia de superação do passado, mas, conforme complemen-

ta o estudioso, “[e]star no tempo ‘pós-catástrofe’ significa habitar essas catástrofes”,

num constante chocar-se contra elas e reviver todo o terror do trauma desse suposto

“passado”107.

Diante de tantas atrocidades, prestar testemunho ou relatar para outras pes-

soas e gerações as experiências vividas por aqueles que passaram por algum desses

episódios tornam-se tentativas de resgatar, através da memória, a outra versão dos

fatos e estabelecer um contradiscurso. Tal premissa é relevante porquanto visa a su-

perar as fissuras deixadas pelo discurso oficial, geralmente ancorado à política do

esquecimento, do silenciamento e da desmemória. É nesse contexto violento e diante

da necessidade de dar testemunho do terror, que se torna importante refletir sobre a

literatura de testemunho do século XX e a sua relação direta com o trauma, ou seja,

pensar na literatura de testemunho como narrativa do trauma desse século.

A literatura de testemunho, enquanto possibilidade de acesso direto ao “real”

(conforme definição proposta por Freud), implica não uma visão positivista dos even-

tos ocorridos, calcada no progresso e passível de plena aceitabilidade por parte da

sociedade. Ao contrário, ela se volta para uma concepção de realidade, através do

conceito de trauma, que permite a intelectuais e expectadores o retorno à história

sem máscaras e livre da alienação positivista do historicismo oficial.

A literatura de testemunho, como uma nova forma de se conceber a história,

não adere às premissas do historicismo; antes, é correlata ao conceito de materialis-

mo histórico. Walter Benjamin, a propósito, é um dos teóricos que aborda tal questão.

106 OLIVEIRA, Fabiana de Toledo. Cem anos de contradição. Guerras e conflitos do século 20,2009. p. 4.107 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura e trauma: um novo paradigma. In: ____. O local dadiferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. 2005. p. 63.

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Segundo o autor, o cronista deve voltar-se para uma narrativa dos acontecimentos

sem distinção entre os grandes e os pequenos eventos, sem privilegiar uma determi-

nada ideologia ou deixar esquecidas as vozes dos oprimidos. Conforme Benjamin,

“nada do que um dia aconteceu no passado pode ser considerado perdido para a

história”108, o sofrimento do passado de uma nação deve ser não só recuperado, mas

conhecido no presente para só então mudar o que precisa ser mudado a fim de cons-

truir um futuro sem cometer os mesmo erros. Como complementa,

[a]rticular historicamente o passado não significa conhecê-lo “comoele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminescência, tal comoela relampeja no momento de um perigo [...]. O dom de despertar nopassado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historia-dor convencido de que também os mortos não estarão em segurançase o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer109.

Benjamin postula que todo o sistema é opressor, de modo que a sociedade

passa a ser vítima de uma minoria que conta a sua versão dos fatos e a impõe como

única e verdadeira. Segundo a avaliação proposta pelo autor, não existe cultura sem

barbárie e, por isso mesmo, ele acredita que é através do materialismo histórico que

o passado dos vencidos pode ser conhecido, uma vez que esta possibilidade de nar-

ração, contrária ao método proposto pelo positivismo, relata uma outra versão da his-

tória oficial a contrapelo110.

Na tese IX do ensaio Sobre o conceito da história, o crítico frankfurtiano repre-

senta metaforicamente sua teoria a respeito do olhar que se deve ter para a narração

da história. Nessa tese, ele descreve um quadro de Paul Klee, intitulado Angelus No-

vus (ver anexo à pág. 156), o qual mostra um anjo completamente desfigurado, de

olhos escancarados, boca dilatada e asas abertas, tendo seu rosto voltado para o

passado, vendo o acumular de ruínas como resultado de uma catástrofe:

[o]nde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catás-trofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dis-persa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortose juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e

108 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política.1994. p. 223.109 Idem. Ibidem. p. 224-225.110 Idem. Ibidem. p. 225.

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prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fe-chá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, aoqual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até océu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso111.

Com base nessa imagem do Angelus Novus, que volta seu olhar para trás,

entende-se que o passado da civilização não pode ser concebido livre de tragédias e

barbáries, mas encarado como catástrofe. O olhar do anjo chama a atenção para a

necessidade de se observarem os escombros do passado como um acúmulo de ruí-

nas e tentar perceber, através desse amontoado catastrófico, aqueles eventos que

ficaram escondidos sob os escombros da história oficial. Para Benjamin, o método

proposto pelo historicismo positivista torna-se insustentável diante do assombro que

acometeu o século XX.

Com isso, reforça-se a necessidade de as vítimas das catástrofes históricas

darem testemunho de seu passado de modo a se resgatarem das ruínas aquelas vo-

zes soterradas e silenciadas. Como resultado, tem-se uma nova concepção da histó-

ria que, segundo alguns críticos, pode e deve ser avaliada sob a perspectiva do trau-

ma. É possível, ainda, que, pelo fato de a voz testemunhal não se referir a um relato

universalizante, mas a uma posição específica, ela situa seu interesse político em

contrariedade ao autoritarismo, colocando-se em oposição ao discurso oficial e às

repressões institucionais.

Em seu ensaio Experiência e pobreza, Benjamin menciona que, após a Pri-

meira Guerra Mundial, grande parte dos soldados sobreviventes, ao retornarem a

seus países, apresentavam um comportamento muito diferente em relação ao que

tinham antes de partir. O ponto comportamental mais crítico observado nesses solda-

dos dizia respeito a distúrbios mentais e impossibilidades de elaboração de discursos

racionais acerca das situações vividas nos campos de batalha. A problemática que

gira em torno da organização de ideias no testemunho passa a ser a triste caracterís-

tica e sinal do desconcerto mental do sobrevivente, isto é, da testemunha112.

É Freud quem, através de seus estudos psicanalíticos, irá jogar luz a esse

campo do desconcerto mental do sujeito que passou por algum tipo de situação

traumática. Em suas Conferências introdutórias sobre a psicanálise (1915-1917), es-

111 Idem. Ibidem. p. 226.112 BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1984. p.114-115.

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crita em plena Primeira Guerra Mundial, o psicanalista direciona sua atenção às neu-

roses traumáticas dos soldados e sobreviventes da guerra, observando que essas

vítimas apresentam

fixação no momento do acidente traumático que está na sua base.Esses doentes repetem nos seus sonhos regularmente a situaçãotraumática. Quando ocorrem ataques de tipo histérico, que permitemuma análise, percebe-se o ataque correspondente a uma total trans-posição naquela situação. É como se esses pacientes não tivessemse desvencilhado a situação traumática, como se ela estivesse diantedeles como uma tarefa (Aufgabe) não dominada e nós aceitamoscom toda seriedade esse ponto de vista113.

É, em 1920, contudo, através do seu ensaio Para além do princípio de prazer,

que esse estudo das neuroses pós-guerras é enriquecido plenamente ao ser desen-

volvido sob a reflexão sobre as pulsões. Nessa etapa, Freud reúne uma série de ele-

mentos capazes de dar conta dos acontecimentos traumáticos oriundos das catástro-

fes. Nesse texto, o psicanalista aborda a relação existente entre o trauma e o pavor

(“schreck”, como ele denomina), implicando, também, a ruptura da “prontidão angus-

tiada” do indivíduo, uma espécie de angústia positiva que o prepara para o desco-

nhecido. Em Freud, o trauma é caracterizado como uma fixação psíquica que perma-

nece presa à situação de ruptura, sempre retornando simbolicamente ao evento cau-

sador desse trauma, seja através de seus pensamentos involuntários ou através de

imagens oníricas: “é como se esses pacientes não tivessem findado com a situação

traumática, como se ainda estivessem enfrentando-a como tarefa imediata ainda não

executada”114.

Através de tais observações, Freud apresenta seu conceito de experiência

traumática, concluindo ser a que, “em curto período de tempo, aporta à mente um

acréscimo de estímulo excessivamente poderoso para ser manejado ou elaborado de

maneira normal, e isto só pode resultar em perturbações permanentes da forma em

que essa energia opera”115. O fato de a situação causadora da neurose traumática

ser algo novo – algo para o qual o sujeito não estava preparado para enfrentar, como,

113 Extraído de FREUD, Sigmund. Freud-Studienausgabe. 1970. p. 274. Conforme tradução deRosani Ketzer Umbach.114 FREUD, Sigmund. Fixação em traumas – o inconsciente. In: ____. Edição standard brasileiradas obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 1976a. p. 323.115 Idem. Ibidem. p. 325.

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por exemplo, desastres ferroviários, acidentes que envolvem risco de vida, guerras116

– faz com que esse indivíduo não saiba como lidar com esses acontecimentos, que

passam a ser internalizados, mas não compreendidos ou simbolizados por ele. Essa

premissa, de acordo com Freud, justifica tanto o constante retorno mental à cena

traumática por parte do sujeito quanto a sua dificuldade para organizar de forma coe-

rente e lógica seu discurso.

Seligmann-Silva, ao fazer uma releitura de Bohleber, observa que o trauma é

caracterizado pelo enfraquecimento da capacidade de organização dos traços mne-

mônicos nos representantes objetais da mente do sujeito traumatizado. Os fatos vivi-

dos não são reconhecidos como parte do ego, a capacidade de representação interna

falha. Com isso, ocorre o registro, mas não a representação, isso porque o trauma

representa “uma espécie de quisto autônomo que representa um núcleo duro resis-

tente à simbolização e ao significado”117. Baseando-se nos estudos de Freud, o críti-

co brasileiro classifica o trauma como uma incapacidade de recepção de um evento

extremo e sem qualquer limite. Ele é visto como algo desprovido de forma e, sendo

assim, a repetição da cena traumática é recorrente no sobrevivente. Isso acontece

uma vez que o trauma está diretamente ligado tanto ao choque quanto ao fato de ser

um “distúrbio de memória no qual não ocorre uma experiência plena do fato vivencia-

do que transborda a nossa capacidade de percepção”118.

De acordo com essas proposições, o campo sobre o qual a literatura do trau-

ma se debruça apresenta-se dúbio, pois, de um lado, impera a necessidade de narrar

uma experiência vivida, de outro, tem-se a percepção da dificuldade para articular a

linguagem perante o conjunto de fatos a serem contados, muitas vezes inenarráveis,

justamente pelo seu caráter excepcional e, por vezes, inverossímil. O testemunho,

segundo Seligmann-Silva, apresenta-se sob o signo da simultânea necessidade e

impossibilidade119, devido ao excesso de realidade testemunhado que, por vezes, ao

apresentar-se tão imponente, o indivíduo não consegue simbolizá-lo verbalmente,

causando a ruptura entre evento e linguagem. A lacuna “impreenchível” que passou a

existir entre a experiência traumática e sua narração confirma que um possível relato

de tal experiência somente será possível de materialização – ainda que parcial e pro-

116 FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: ____. Obras psicológicas completas.1976b.117 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. 2005. p. 71.118 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. 2000. p. 85.119 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O testemunho: entre a ficção e o “real”. In: SELIGMANN-SILVA,Márcio (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 46.

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blemática – através da ficção. Por meio da ficção, o sobrevivente do choque traumáti-

co encontra um modo de tentar permanecer vivo e estabelecer relação com os outros

e com a sociedade. A escrita de suas memórias passa a ser uma forma de guardar e

lembrar a experiência vivida.

Néstor A. Braunstein, ao discutir a questão do testemunho à luz do trauma, fi-

lia-se à ideia de que, na situação traumática, o sujeito é alguém que atravessou uma

situação na qual poderia ter morrido, mas não o fez. Em virtude disso, tem-se um so-

brevivente, “[u]m morto potencial que apesar disso continua vivendo. Alguém que vive

além do momento em que deveria ter morrido. Está ‘entre duas mortes’. Uma que já

passou e outra que está por chegar”120. Para Braunstein, o trauma é um aconteci-

mento que divide a vida em duas etapas, antes e depois do trauma, pois o sujeito que

sobreviveu depois já não é mais o mesmo de antes, mas um outro que ficou em seu

lugar, portando seu nome e suas memórias.

Para Cathy Caruth, o trauma, além de ser apresentado como uma patologia,

assim como observado por Freud, é, em sua definição genérica, uma resposta a um

evento violento inesperado ou arrebatador, que não é inteiramente compreendido

quando acontece, retornando mais tarde em flashbacks, pesadelos e outros fenôme-

nos repetitivos121. A autora acredita que o trauma não pode ser considerado uma feri-

da no corpo, uma cicatriz que pode ser curada e desaparecer com o passar do tem-

po, mas uma marca deixada na memória eternamente. Para a crítica, o fato de o so-

brevivente ter passado por experiências inexplicáveis e inverossímeis é o que ocasi-

ona na memória essa ferida aberta que sempre irá retornar incessantemente – e, a-

gora, comungando das proposições de Freud e Seligmann-Silva – através de pensa-

mentos, ações repetitivas, pesadelos, dificuldade de assimilação dos acontecimentos,

organização ilógica e até mesmo através de silêncios à mente do sobrevivente.

A propósito de tais ponderações, Caruth complementa seu pensamento afir-

mando que, na maioria das vezes, o sobrevivente enlouquece, pois não consegue

superar a dor do trauma e o estágio da loucura, algo que acaba corrompendo a pró-

pria identidade do sujeito. A loucura, portanto, passa a ser o correlato do trauma para

o qual o sujeito não conseguiu encontrar ou organizar uma linguagem capaz de defi-

nir tal experiência. “Enlouquecer é ser submetido à angústia e ficar prisioneiro do uni-

120 BRAUNSTEIN, Néstor. Sobrevivendo ao trauma. s. d. p. 1.121 CARUTH, Cathy. Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da memória). In:NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. 2000 p.111-120.

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verso do não sentido, em que nossa linguagem fica aquém da possibilidade de inter-

pretar o que experimentamos”122.

Na literatura de testemunho enquanto narrativa do trauma, encontra-se, como

um dos principais expoentes representativos dessa manifestação traumática e con-

sequentemente enlouquecedora, o relato testemunhal de Primo Levi, sobrevivente da

Segunda Guerra Mundial. Primo Levi, enquanto testemunha dos campos de concen-

tração nazistas, apresenta em seus relatos uma complexa combinação de perplexi-

dade e necessidade de fala. Seu trabalho está pautado na dura batalha entre memó-

ria e esquecimento, uma vez que o reencontro com o que foi vivido pode trazer, em

seu interior, um risco de repetição do sentimento de dor, pois o testemunho nada

mais é do que narrar a proximidade da morte.

Com isso, trava-se a necessidade de rememorar com o intuito de organizar a

mente e entender a experiência vivida como forma de se firmar um compromisso com

aqueles que já não podem mais falar. Jaime Ginzburg argumenta que a escrita do

sobrevivente sempre estará vinculada à memória daqueles que não sobreviveram e,

por isso, é uma modo de dar “túmulo aos mortos”, para que não sejam esquecidos.

Isso reforça a necessidade de narrar como uma forma de compromisso moral com

aqueles que já não podem mais fazê-lo. O registro ficcional do sobrevivente se faz

necessário como condição elementar na tentativa de elaboração de suas vivências e,

em função disso, o autor acredita que estudar a literatura de testemunho implica dire-

tamente uma noção de linguagem intrínseca ao trauma. A escrita não pode ser con-

cebida na literatura de testemunho como lúdica, mas comprometida com o sofrimento

e seus fundamentos, mesmo que estes sejam por vezes obscuros e repugnantes123.

“[E]ntre o impacto da catástrofe e os recursos expressivos, pode haver um a-

bismo intransponível, de modo que toda formulação pode ser imprecisa ou insuficien-

te”124. Para tanto, o valor da narrativa do trauma muitas vezes não está em sua capa-

cidade de ser comprovada, como se fosse posta à prova em termos científicos, mas é

a representação da tentativa de resgate da identidade do sujeito da enunciação, que

fora perdida em função do trauma. Sem identidade, o sobrevivente faz uso da narra-

ção como forma de atribuir um sentido não antecipadamente definido e, por isso, a-

122 BIRMAN, Joel. O lugar do psíquico na experiência da loucura. Ciências Hoje, 1983. p. 30-36.123 GINZBURG, Jaime. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Conexão Letras, 2008.124 Idem. Ibidem. p. 61.

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presenta um “discurso instável, híbrido, em que os conflitos sociais são incorporados

aos fundamentos expressivos”125.

Diante da impossibilidade de narrar o evento traumático, Seligmann-Silva, em

seu ensaio Testemunho de Shoah e literatura, enfatiza a singularidade existente na

catástrofe com base em duas proposições que se opõem constantemente, a saber,

por um lado, a descrição sempre será parcial, e, por outro, ela nunca poderá dar con-

ta da experiência do sobrevivente. Ou seja, cada sujeito que entrou em choque com a

barbárie a recebeu de uma forma: para cada um, o que se passou foi único. Já a lin-

guagem, em contrapartida, é concebida a serviço do universal e deixa de lado o parti-

cular, não dando conta de suprir a carência da representação. O crítico ainda men-

ciona desabafos acerca da carência de linguagem, observados em obras como a de

Ruth Klüger, Paisagens da memória: autobiografia de uma sobrevivente do ho-locausto, na qual a narradora postula que, diante de tamanha barbárie, “justamente

sobre tais vivências extremas pode-se falar impressionantemente pouco. A fala hu-

mana foi criada e pensada para outra coisa”126.

Seligmann-Silva, ao citar Sarah Kofmann, comenta que em seu livro Parolessuffoquées, essa autora menciona: “Sobre Auschwitz e depois de Auschwitz, não é

possível narração, se por narração entende-se: contar história de eventos fazendo

sentido”127. Por outro lado, o evento existe e precisa ser narrado porque o sobreviven-

te sente necessidade de contar e porque os crimes precisam ser registrados. Contu-

do, a escrita, para o sobrevivente, assume um papel duplo segundo Seligmann-Silva,

pois “ela é disposição, inscrição, memória no sentido de recolhimento e armazena-

mento de dados, mas é também um ato de separação desta memória. No ato de es-

critura o passado é como que passado adiante”128. Ou seja, a testemunha, no mo-

mento de narrar sua experiência, ao transmitir o que viveu, sente uma espécie de

alívio por fazer isso. O peso da carga traumática é parcialmente diminuído no mo-

mento em que divide com o outro e com a sociedade seu sofrimento de fato vivido e

aquele revivido no ato de narrar sua experiência.

Ainda de acordo com Seligmann-Silva, entende-se que o sobrevivente de um

evento traumático não é alguém que vê o que poderia ser trivialmente aceito pelo

senso comum, mas alguém que está diante de uma excepcionalidade que exige ser

125 GARCÍA, Gustavo V. La literatura testimonial latinoamericana. 2003. p. 50.126 In SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho da Shoah e literatura. 2007. p. 5.127 Idem. Ibidem. p. 6.128 Idem. Ibidem. p. 7.

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relatada. No entanto, o fato de ter atravessado um sofrimento desmedido abala a re-

lação que existia entre a língua e o pensamento, de modo que a linguagem passa a

ser concebida como traço indicativo de uma ausência. O sobrevivente da experiência

traumática não possui em sua memória a imagem total do ocorrido, mas episódios

em fragmentos. Em função disso, a experiência traumática não pode ser assimilada

por completo pela vítima, gerando a repetição constante da cena que ocasionou o

trauma129.

Assim, em concordância com Seligmann-Silva, infere-se que aquele que tes-

temunha defronta-se a cada dia com a árdua e ambígua tarefa de rememorar a tra-

gédia e enlutar os mortos. Tarefa essa que o coloca sempre frente a frente com a

ferida aberta do trauma, desencadeando a resistência e a tentativa de superação,

bem como a busca por um consolo completamente inalcançável130:

[a]quele que testemunha sobreviveu – de modo incompreensível – àmorte: ele como que a penetrou. Se o indizível está na base da lín-gua, o sobrevivente é aquele que reencena a criação da língua. Nelea morte – o indizível por excelência, que a toda hora tentamos dizer –recebe novamente o cetro e o império sobre a linguagem131.

Diante disso, observa-se que o sobrevivente encontra na imaginação um meio

para a narração, ou seja, a “imaginação é chamada como arma que deve vir em auxí-

lio ao simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma”132. Tal premissa se

justifica pelo fato de que o sujeito traumatizado não consegue em hipótese alguma

relatar de modo íntegro e linear os acontecimentos sobre o trauma tendo em vista

que as lembranças são recorrentes, fazendo-o reportar-se sempre ao momento trau-

mático e sofrer uma vez mais. Entre o real traumático e o ato de narrar, sempre existi-

rá uma distância muito grande capaz de impossibilitar a narrativa linear, interromper a

sequência lógica do pensamento e transportar o narrador continuamente ao seu inte-

rior ligado ao passado, passado este nunca plenamente realizado.

Perante tais considerações, cabe destacar um trecho da obra brasileira de Ol-

ga Papadopol, que narra sua sobrevivência após a permanência no campo de con-

129 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão. In: ____ (Org.). História, memória eliteratura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 47.130 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O testemunho: entre a ficção e o “real”. In: ____ (Org.). História,memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 52.131 Idem. Ibidem. p. 52.132 Idem. Ibidem. p. 70.

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centração. No livro, a narradora se dá conta da impossibilidade para relatar o vivido

diante do abalo traumático: “Quero me convencer de que a melhor forma para poder

viver é tentar esquecer, mas como encontrar a fórmula para apagar as lembranças?

O esquecimento é de fato impossível”133. Para o sobrevivente, o fato de não ser ca-

paz se livrar das memórias do trauma bem como ter dificuldade de narrar tudo o que

precisa ser externalizado faz com que, muitas vezes, o próprio sobrevivente entre em

choque consigo mesmo a ponto de se questionar e ficar em dúvida quando da credu-

lidade de seus próprios fatos que são narrados.

As palavras não são suficientes para dar conta do relato do trauma. Em razão

disso, o sujeito traumatizado sufoca-se entre a insuficiência da linguagem e a neces-

sidade de narração. Tal necessidade, a rigor, vai muito além de uma simples trans-

missão de informações. Ela se compromete em se livrar, mesmo que parcialmente,

do peso do passado, sepultando os que morreram. Assim, a narração é tomada como

uma possibilidade de denúncia, como um legado para as próximas gerações e, por

fim, como um sinal humanitário capaz de servir à memória, no intuito de evitar uma

possível repetição de semelhantes atrocidades.

Em suma, pode-se compartilhar das ideias dos críticos mencionados de que

não há palavras para dizer tudo o que se quer. Entretanto, o que ocorre é um esforço

de se dizer o indizível. Isso pode acontecer e ser observado, nas obras literárias, a-

través das fissuras da narrativa, das pausas, dos fragmentos, das recorrentes repeti-

ções, das reticências, dos silêncios interpostos pelo narrador, através das frases cur-

tas, da não-linearidade, bem como de tantos outros recursos estéticos notados nas

narrativas do trauma. Com isso, essa relação de impossibilidade liga-se ao compro-

misso do testemunho que é de resgatar o que existe de mais terrível no “real” para

apresentá-lo, mesmo que para isso precise da literatura e de recursos estéticos que

somente a ela são permitidos, sendo talvez essa a única condição possível de narrar

encontrada pelo sujeito traumatizado.

133 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho da Shoah e literatura. 2007. p. 11.

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3 MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAGMENTAÇÃO EMQUATRO-OLHOS E EM CÂMARA LENTA

Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa línguanão tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de umhomem. Num instante, por intuição quase profética, a realidadenos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais para baixo não é pos-sível. Condição humana mais miserável não existe, não dá paraimaginar. Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos,até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão – e, se nos escuta-rem, não nos compreenderão. Roubarão também o nosso nome,e, se quisermos mantê-lo, deveremos encontrar dentro de nós aforça para tanto, para que, além do nome, sobre alguma coisa denós, do que éramos.

(É isto um homem? Primo Levi)

3.1 Memória e esquecimento em Quatro-olhos e Em câmara lenta

E pela primeira vez tentou captar algumas lembranças da vidapassada – mas o vácuo é enorme, o vazio, um túnel sem saída.[...] Se ao menos pudesse pensar no passado. Mas tudo pareciaestar em branco para trás... Os guardas passaram uma esponjano meu passado, lavaram a minha mente – só tenho que suportaras algemas, o escuro, o simples prato de sopa incolor...(Os que bebem como cães, Assis Brasil)

A palavra memória, de origem latina, deriva de menor e oris, e significa “o que

lembra”, ligando-se, dessa forma, ao passado; logo, ao já vivido. Em nível individual,

a memória é a capacidade de um conjunto de funções psíquicas que possibilitam

conservar certas informações, graças às quais o homem pode atualizar impressões

ou informações passadas, ou que ele concebe como passadas134. Henrique Serra

Padrós, ao fazer releitura de Schacter, aponta para o fato de que, ao lembrar, o sujei-

134 LE GOFF, Jacques. História e memória. 1996. p. 423.

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to pode libertar-se dos imperativos imediatos do tempo e do espaço, percebendo,

novamente, o passado, e imaginando o futuro à vontade135.

Fato é que nem sempre (re)visitar o passado, através da memória, foi uma

tarefa fácil de ser realizada. As dificuldades impostas pela censura, como repressão e

violência, através de torturas físicas e psicológicas, durante o período da Ditadura

Militar no Brasil, foram algumas das estratégias utilizadas a fim de agir como barrei-

ras interpostas entre as memórias do pretérito e as ações do presente, e, assim, im-

pedir que lembranças de um passado sombrio fossem conhecidas. Através da re-

pressão, punição, violência moral e física, o governo militar inibia toda e qualquer

manifestação artística que podia oferecer algum tipo de perigo à ordem imposta pelo

regime, bem como à versão de história que a ideologia dominante pregava. Durante

as duas décadas em que os militares permaneceram no poder, o povo brasileiro pou-

co ou nada sabia a respeito do sistema de “interrogatórios” aplicado nos porões do

país, tampouco das reais versões dos desaparecimentos repentinos de cidadãos

considerados subversivos.

É somente a partir de 1979 que essa realidade começa a mudar ou, pelo me-

nos, começa a ser – mesmo que de forma muito penosa – divulgada. Através da

promulgação da lei da Anistia e com o retorno de muitos exilados ao país, inicia-se

um longo processo de relatos de torturas e de maus-tratos sofridos pelos sobreviven-

tes. Testemunhos esses que vieram a público através de um significativo número de

obras de ficção consideradas autobiográficas ou memorialísticas, assim como é o

caso de Quatro-olhos, de Renato Pompeu, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós.

O romance Quatro-olhos, de Renato Pompeu, foi publicado em 1976, logo

após a divulgação da Política Nacional de Cultura do governo Ernesto Geisel. Essa

estratégia política, na prática, configurava-se na manutenção da censura prévia já

instaurada no país e aderia a métodos de repressão ainda mais incisivos que aqueles

inaugurados nos primeiros anos do regime. Diante de tal realidade, o livro de Pom-

peu, ao ser publicado, não só se posiciona contrário a essa política e a suas respecti-

vas práticas violentas, como também burla a extrema vigilância imposta pela censura.

De modo muito análogo a Quatro-olhos, a obra Em câmara lenta, publicada em

1977, apresenta-se comprometida com a denúncia acerca das atrocidades empreen-

didas durante o regime militar, bem como radica em torno da necessidade de reme-

135 PADRÓS, Enrique Serra. Usos da memória e do esquecimento na história. Letras, 2001. p. 80.

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morar o passado a fim de contribuir para a (re)construção e para o aclaramento de

uma outra versão da história da sociedade brasileira.

Nessas obras, a constante tentativa de recuperação do passado, na medida

em que atenta para a história dos vencidos, configura-se também no ataque ao inimi-

go que oprime e faz calar. Sendo assim, tais narrativas não se restringem à mera de-

núncia do abuso de poder, ratificado através das barbáries e das atrocidades cometi-

das e por elas reveladas. Elas vão muito além, pois lutam, com um esforço descomu-

nal, pela busca e pela recuperação das memórias apagadas, com o compromisso

não só de levar ao conhecimento da sociedade o que se passou, mas, além disso,

como uma espécie de obrigação com aqueles sujeitos que passaram pela mesma

experiência, mas que já não podem mais falar, nem exercer seu direito civil de deixar

seu próprio depoimento à sociedade.

A partir de tais apontamentos, nota-se que, em narrativas memorialísticas co-

mo Quatro-olhos e Em câmara lenta, oriundas de vivências traumáticas dos tempos

da Ditadura Militar no Brasil, equilibram-se dois objetivos básicos por parte de seus

escritores para com o ato de narrar. Trata-se da necessidade de elucidação de acon-

tecimentos repressivos negados pelos órgãos do governo militar e da prestação de

contas para com a própria consciência, numa tentativa de avaliação dos erros e acer-

tos das ações decorrentes da postura antiditatorial. Com isso, para que aconteça a

narração dos fatos, os narradores precisam retornar ao ocorrido, esmiuçando os fatos

e atribuindo-lhes valores específicos. A rememoração, por sua vez, transporta o escri-

tor para o seu passado e o coloca novamente diante daquilo que o atormentou e que,

no momento da rememoração, torna a torturá-lo, fato esse pelo qual muitos escritores

deixaram de registrar suas experiências.

Renato Franco, ao discorrer acerca de Quatro-olhos, enfatiza a originalidade

do livro no que diz respeito à problemática do esquecimento. Para o autor, a trama da

obra direciona para o duplo sentido da narrativa: por um lado, a tentativa de reescre-

ver o livro; por outro, a sua dificuldade para lembrar, o que representa, também, a luta

pela recuperação da identidade do protagonista136. O duelo que o protagonista trava

na obra para reconstituir o seu original perdido é o mesmo duelo travado na tentativa

de recuperar a memória de sua vida, unir o presente ao passado e, assim, integrar-se

novamente à sociedade. Segundo a proposição de Franco, “o alvo secreto do narra-

136 FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio(Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 366.

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dor não é mais recuperar o material esquecido, o saber e a experiência nele eventu-

almente contidos, mas o de comunicar que algo de fundamental foi esquecido”137.

Com base na leitura de Quatro-olhos, é possível inferir que seus aspectos

constitutivos, estéticos e temáticos concorrem para o desvelamento e para a denún-

cia de práticas ligadas ao esquecimento, bem como buscam revelar a conturbada

relação entre memória e esquecimento. A tentativa de rememoração, nesse romance,

é evidenciada já na primeira página da narrativa, da mesma forma que a imponente

dificuldade para a realização de tal atividade:

[p]erdi os originais há muitos anos, em circunstâncias que não meconvém deixar esclarecidas. Do trabalho, tão importante, guardo a-penas memória vaga; de que havia, indubitavelmente, um tema, ouvários temas, e mesmo um ou outro personagem, mas não consigoreproduzir um único gesto, nenhuma situação ou frase. Às vezes,sinto dúvidas e hesitações138.

Diante da percepção das poucas memórias ou das “memórias vagas”, como o

próprio protagonista nomeia sua falta de conteúdo memorialístico, fica evidenciado

que algum tipo de evento significativo aconteceu e abalou decisivamente o narrador,

de modo que todo o conteúdo foi esquecido. Por sua vez, o fato de ele não querer

expor, inicialmente, as circunstâncias em que perdeu seu romance remete para o

pensar na censura e consequentemente na violência provinda dela. Ou seja, o ato de

confiscar o livro sugere que algo de importante ou de ameaçador ao poder dominante

poderia estar presente naquela obra. Sendo assim, ao fazer com que ela desapareça,

pode-se inferir que tal atitude é mais uma estratégia por parte dos censores para a-

pagar a história nela contida, silenciá-la a fim de que não permaneça nenhuma ver-

são da realidade além daquela contada pelo poder dominante. Diante disso, percebe-

se o esforço do narrador-protagonista em tentar vencer o esquecimento supostamen-

te imposto. Entretanto, fica claro também que seu empenho em lembrar não é re-

compensado pela sua memória, pois ele não consegue sequer afirmar com clareza

quanto à existência de um ou mais temas em seu romance, tampouco da existência

ou não de personagens. Tamanha é sua dificuldade para lembrar, que o protagonista,

por vezes, chega a duvidar de si próprio, se realmente foi capaz de produzir, em um

determinado momento, uma obra-prima como ele acreditava.

137 Idem. Ibidem. p. 367.138 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 15.

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De maneira similar, observa-se, em Em câmara lenta, os problemas de me-

mória que atingem o protagonista. Em Quatro-olhos, o narrador luta constantemente

contra o esquecimento, numa tentativa de rememoração de um tempo pretérito, atra-

vés das vagas reminiscências desse passado que vêm à sua mente e trava uma dura

batalha, tentando reconstruir e entender esse tempo e assim recuperar sua identida-

de perdida. Em contrapartida, em Em câmara lenta, tem-se um narrador que tenta,

por meio da memória, reavaliar o passado marcado pelo fracasso e também chegar à

compreensão deste e dos acontecimentos bárbaros ocorridos em seu meio e que o

perturbam constantemente. Nessa narrativa, a memória do protagonista, embora mui-

to fragmentada, apresenta-se menos turva que a de Quatro-olhos, porém, não me-

nos problemática, assim como pode ser observado no seguinte fragmento:

[é] muito tarde.A imagem já se perdeu no tempo, mas está bem viva – como umcorte de navalha [...].É muito tarde.Mesmo que todas as informações reconstruam os fatos, mesmo quesaiba exatamente quem estava lá, mesmo que o ódio atravessadona garganta possa encontrar rostos a serem destruídos. Não foi a-penas uma pessoa que morreu, foi o tempo. De repente o mundo es-tá cheio de algodão, espesso e pegajoso, as palavras não fazemmais sentido porque não nomeiam coisas – apenas soam como e-cos, prolongados por ouvidos acostumados a classificá-los. O tempoacabou, mas os gestos continuarão a ser feitos, repetidos e aperfei-çoados139.

Nota-se que o protagonista conserva mais nítida em sua mente a memória do

passado, conforme se evidencia pelo retorno que faz no tempo de sua existência, um

tempo em que, embora pareça distante, permanece preso ao seu presente e em sua

memória. Essa percepção de um tempo que já se foi revela não só o seu compromis-

so em relatar tal passado, mas principalmente a sua impotência em tratar de um tem-

po que não pode ser consertado no presente. É possível inferir, através do discurso

do narrador, sua consciência em relação ao passado e as marcas deste deixadas,

que impedem o presente de seguir seu curso normal. A tentativa de compreender e

reavaliar o passado através da memória confere ao narrador a tomada de consciên-

cia de que, mesmo que ele consiga obter todas as informações possíveis e reorgani-

zar, através de sua memória, tudo o que se passou, mesmo que encontre os culpa-

dos pelas atrocidades e violências cometidas, jamais conseguirá encontrar linguagem

139 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 13-15.

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suficiente para expressar todo o sentimento de perda que restou em sua memória.

Para o narrador, somente ficará aprisionada em sua memória a presença de gestos e

de ações incompreensíveis.

Enrique Serra Padrós, ao discorrer sobre os usos da memória enquanto re-

construção do passado histórico, afirma que, mesmo que a memória seja composta

por experiências pessoais, as lembranças sempre serão o resultado da interação com

outras pessoas. Dito em outros termos, a memória é construída ligada às lembranças

das experiências e dos laços afetivos de pertencimento a um determinado coletivo

social, e tais laços, a rigor, irão produzir, induzir e reforçar as lembranças comuns à

memória social. Sendo assim, ocorrerá o surgimento de diversos grupos sociais,

marcando e reforçando a consciência de fronteiras socioculturais vinculadas ao reco-

nhecimento do seu pertencimento e de sua identidade. Ao considerar a memória co-

mo uma construção, o autor afirma que “ela é perpassada por mediações que ex-

pressam relações de poder hierarquizadas de acordo com os interesses dominantes,

sejam eles aspectos de classe, políticos, culturais, etc”140.

Nessa linha de pensamento, o autor acrescenta que a capacidade de lembrar

possibilita a preservação dessa base comum de elementos – sejam eles políticos,

sociais ou culturais – transformados em referência e identidade nas relações sociais.

O ato de lembrar preserva as experiências históricas para as novas gerações. Assim,

a ação de lembrar, realizada por um determinado grupo social ou por um indivíduo

desse grupo, a fim de transmitir a outras gerações esse legado de experiências acu-

mulado, muitas vezes, não é condizente e tampouco agrada à ideologia dominante

responsável pela história positivista. Tal ação, por sua vez, irá fazer com que a elite

dominante lance mão de estratégias para “apagar” da memória de determinados indi-

víduos o que convém ser esquecido ou desconhecido da sociedade141.

Segundo Jacques Le Goff, uma das grandes preocupações das classes, dos

grupos e dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas, é torna-

rem-se detentores da memória e do esquecimento142. Para tais classes vinculadas ao

poder, lembrar o que lhes é conveniente assim como deter o esquecimento e os si-

lêncios da história resumem-se também a formas de manipulação da memória coleti-

va. O esquecimento, os silêncios e os não-ditos podem ser formas de ocultar o que

não se quer revelado. Diante disso, é válido lembrar que o desconhecimento é tam-

140 PADRÓS, Enrique Serra. Usos da memória e do esquecimento na história. Letras, 2001. p. 81.141 Idem. Ibidem. p. 80-83.142 BURKE, Peter. Variedades de história cultural. 2000. p. 426.

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bém uma forma de apagamento da memória, pois impede o posicionamento consci-

ente e faz com que o sujeito permaneça na inércia do esquecimento coletivo143.

Com base na problemática do apagamento da memória, nota-se, em Quatro-olhos, que, através do trabalho de reescritura, a tentativa do narrador-protagonista é

justamente resistir a essas formas de supressão da memória. Para tanto, centra-se

na denúncia da situação social que assombrava o país, referindo-se não só à violên-

cia física, mas também à violência moral, em relação às quais ele se sente vitimado.

Por meio da narração, o protagonista busca um espaço em que possa criar um

novo mundo menos nebuloso que aquele que estava à sua volta. O mundo que ele

procura criar em sua obra é aquele em que pessoas com mentalidade e postura críti-

ca têm coragem de enfrentar as adversidades tais como se apresentavam anterior-

mente. Por outro lado, a própria tessitura do texto mostra como a sociedade da época

ditatorial encontrava-se perdida e carente de informação referente à real situação do

país, e como as pessoas eram alienadas em relação à sua realidade, bem como con-

firma a repressão quanto aos setores educacionais como escola e universidades, que

não repassavam nem se preocupavam com o desenvolvimento do senso crítico dos

cidadãos:

[m]as quando conto essas coisas me parece viver fantasias, o livrocresce a meus olhos como muito mais real do que minha pobre vida.Seus personagens eram muito mais complexos, tinham muito maisdomínio sobre as condições circundantes do que eu jamais tive naescola [...]. Tinha também dificuldades para acompanhar as conver-sas, já que citavam muitos nomes de autores que eu desconhecia.Me espantava como podiam ser finos, esses revolucionários, oquanto importante para eles era a pronúncia correta de nomes es-trangeiros [...]. Nessas ocasiões meus dentes doíam em riso coprofí-lico a alguma observação esculachada, de que eram pródigos ospresentes. Mas me sentia mais a vontade conversando com meuamigo funileiro, colega do primário que eu encontrava às vezes emsua oficina – ou então trocando ideias com vendedores de algodão-doce ou artistas de circo mambembe. Em casa, afagava os objetos,cinzeiros de cristal, sofá de couro, aparelhos de som de brilho opa-co, punha algum licor rosa num copo fino para combinar e me sentiadono144.

143 Entretanto, mesmo concordando com Jacques Le Goff, cabe fazer uma indagação acerca dofato de por que, ainda na atualidade, mesmo a classe dominante que já é de certa forma integradapor pessoas que fizeram parte do grupo dos vencidos de outrora, ainda continua encobrindo,ocultando e dificultando o acesso aos documentos e aos registros de épocas de violência, comofoi o caso da Ditadura Militar no Brasil.144 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 100.

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Observa-se, com essa passagem de Quatro-olhos, como o narrador procura

(re)criar sua obra de modo cuidadoso, bem como imaginar personagens de mentali-

dade e conhecimento superior às pessoas e a ele próprio. Tal ação, para ele, era algo

tão primoroso e complexo e, por isso, não se equiparava a nada daquilo que tinha

aprendido nos bancos escolares, uma vez que julgava tais conhecimentos alienados

e superficiais.

Quando ele menciona as reuniões com revolucionários, organizadas por sua

esposa e que aconteciam em sua casa, deixa evidente a admiração que tinha com o

conhecimento que demonstravam os militantes e quão grande era sua dificuldade

para entender o que eles falavam nessas reuniões, haja vista que ele não adquirira

formação similar que lhe possibilitasse fazer parte das conversas. Tanto é, que ele

revela sentir-se bem na presença de seu amigo funileiro – colega de primário, como

enfatiza – ou, então, conversar com vendedores de algodão-doce ou artistas de circo.

No entanto, a condição de pobreza intelectual, com que se apresenta o narrador-

personagem, é ornada com a presença de objetos fúteis como cinzeiros de cristal,

sofá de couro e aparelhos de som de brilho opaco. Além disso, observa-se a ação de

colocar licor rosa num copo fino, simplesmente para combinar, aludindo, assim, uma

crítica às práticas e costumes burgueses da época, que se sobrepunham aos muitos

interesses sociais.

Em câmara lenta – ao cumprir seu papel de veículo de denúncia contra as

violências praticadas durante o regime militar, mesmo que de forma menos elaborada

e agressiva que Quatro-olhos, mas nem por isso de menor qualidade denunciativa –

trata também da questão da alienação dos sujeitos em relação à conturbada realida-

de social. Nessa obra, tal problemática refere-se à fracassada organização guerrilhei-

ra:

[o]s seis guerrilheiros tinham pela frente uma floresta imensa e des-conhecida, armas ineficazes, uma ignorância quase total a respeitodo que queriam fazer. Mas acreditavam [...]Sonâmbulos de uma ideia grandiosa, meia dúzia de adolescentesexaustos, cambaleando para explodir um continente145.

145 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 17 e 40.

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Com base no fragmento, nota-se a presença do grande ideal que nutria os

guerrilheiros, que objetivavam a organização de uma grande guerrilha no norte do

país, em plena floresta amazônica. Esses revolucionários acreditavam que, saindo da

cidade e indo ao campo, iriam conseguir um grande número de adeptos à luta arma-

da contra a Ditadura Militar. Entretanto, não é bem isso o que acontece: o pequeno

grupo de seis guerrilheiros não consegue encontrar pessoas dispostas a unir-se a

eles e a lutar contra o regime imposto. Diante do fracasso da organização guerrilhei-

ra, da qual o narrador-protagonista também participou, ele se dá conta de quão ingê-

nuos e sonhadores foram em almejar tal ação:

[a]gora eu sei, sozinhos, fazendo ações sem ir buscar os outros, osque sabem, os que precisam, os que querem, os que podem, assimsozinhos nós só poderíamos chegar onde chegamos, acabar um aum, perder tudo, a vontade, a esperança e viver somente com ódio euma amargura [...]. Ele me disse que nesse tempo, dois anos a or-ganização assentou, cresceu [...]. [E]u compreendi de repente umaverdade simples, óbvia, que eu devia ter sabido sempre, mas é pre-ciso que morra um monte de gente, é preciso sacrifício e sangue prase entender uma coisa simples, fácil e óbvia que nem essa, que nemisso tudo, apenas que é o povo, a massa, o proletariado que faz arevolução e não nós sozinhos que o que nós temos pra fazer é bus-cá-los e ensinar, educar, organizar e eles se levantarão e derrubarãotudo. E nós não entendemos, nem soubemos fazer isso e tambémque, para fazer isso, é preciso saber o que ensinar, como organizare isso eu não sei, eu só aprendi outras coisas146.

Através da rememoração desse passado em que o pequeno grupo de estu-

dantes pretendia vencer uma legião de militares, ele se dá conta do despreparo e do

desconhecimento que tinham em relação ao sistema político e social em que se en-

contravam. O narrador entende que não poderiam ter tido outro destino além daquele

que tiveram – em que alguns foram mortos, outros presos e torturados –, pois não

receberam um preparo adequado, não tinham desenvolvido uma organização capaz

de tal atitude. Após um tempo transcorrido, o narrador-personagem entende que o

que eles deveriam ter buscado antes de pegar em armas era conhecimento, era o

contato com pessoas que podiam lhes ensinar o verdadeiro sentido de lutar em prol

de justiça para aí sim levar esse mesmo conhecimento até outras pessoas, até a

grande massa. A desilusão do protagonista radica em torno do quão despreparados

146 Idem. Ibidem. p. 159-160.

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eram “esses sonhadores”, pois não aprenderam a desenvolver o espírito crítico, vive-

ram alienados do conhecimento capaz de verdadeiramente revolucionar, e só lhes

restou, em atitude desesperada, pegar em armas.

A questão da alienação social em que a grande parte da população vivia e-

mergida encontra seu ápice de denúncia quando o narrador narra a situação em que

viveram quando chegaram a um pequeno vilarejo isolado em meio à floresta amazô-

nica. Nesse relato, o narrador lembra como foi o contato com aquelas pessoas que lá

se encontravam:

[o]s guerrilheiros pararam e o venezuelano começou a falar, um dis-curso que misturava português e espanhol. Os outros se dispuseramem círculo em torno dele. Falou da miséria em que os caboclos vivi-am e os caboclos não sabiam que em sua vida havia miséria. Falouda exploração a que o povo era submetido e os caboclos sequer i-maginavam que fossem explorados ou que pudessem sê-lo: desdesempre viviam assim. Ele falou ainda da luta para derrubar os o-pressores, convidando a que aderissem à guerrilha e os caboclosnão sabiam contra quem lutar nem porquê147.

Fica nítido com tal fragmento que, se os próprios estudantes encontravam-se

desorientados e sem preparo para enfrentar o problema da repressão e do regime

militar, quanto mais as pessoas simples que viviam em meio à floresta e distante de

tudo. Pode-se inferir, através de uma passagem como essa, a crítica que o narrador

faz ao próprio sistema político desenvolvimentista que propunham os militares. Ora,

se o país se direcionava para grandes avanços em todos os setores, segundo as

propostas dos militares, como aceitar que pessoas ainda vivessem extremamente

isoladas e alheias a tudo, “ali como a floresta e como o rio [...], presos à terra como

árvores”148. Nota-se que o narrador enfatiza como falaram a essas pessoas sobre a

miséria, sobre a exploração e da importância de lutar contra tudo isso. Entretanto,

parecia que esses indivíduos nada estavam entendendo, pois como sempre haviam

vivido assim, não sabiam que outra vida mais justa e mais digna era possível.

Diante de tais eventos, o trabalho meticuloso a que se propõem os narradores-

protagonistas tanto de Quatro-olhos quanto de Em câmara Lenta representa não

147 Idem. Ibidem. p. 41.148 Idem. Ibidem. p. 40.

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um simples lembrar o passado, mas “recordá-lo”149 por meio do processo de escrita

literária. Para tanto, ao se falar da criação literária pautada no resgate da memória,

levam-se em consideração os pressupostos levantados por Maurice Halbwachs, um

dos críticos precursores a defender a ideia de que o resgate da memória individual

sempre estará diretamente interligada à memória coletiva150. Para o autor, a memória

coletiva, enquanto constitutiva da história, somente acontece a partir das lembranças

de cada um dos indivíduos pertencentes a uma determinada coletividade. Dessa for-

ma, a memória individual está sempre relacionada ao meio social, e as lembranças

individuais devem ser entendidas como provenientes e também constitutivas da vida

social.

Michael Pollak, por sua vez, em seu artigo Memória, esquecimento, silêncio,

ao comentar o conceito de memória coletiva tal como proposto por Halbwachs, argu-

menta que o que este autor propõe, a partir de tal conceito, é não um processo de

seletividade de memórias individuais, mas um trabalho de “negociação” entre memó-

ria coletiva e memórias individuais:

[p]ara que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta queeles nos tragam seus testemunhos: é preciso também que ela nãotenha deixado de concordar com suas memórias e que haja suficien-tes pontos de contato entre ela e as outras para que a lembrançaque os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma basecomum151.

Dessa forma, as memórias individuais, aqui apresentadas através da narração

dos protagonistas de Quatro-olhos e de Em câmara lenta, são entendidas de acor-

do com a crítica de Halbwachs, uma vez que as lembranças dos narradores, ao se

apresentarem individualmente, são constituídas de acordo com um contexto social

comum. Suas lembranças compõem um quadro dos acontecimentos sociais e coleti-

vos da época, e as memórias de ambos os protagonistas concorrem para a referência

a uma versão (des)conhecida do passado de uma coletividade.

Nos dois romances, as tentativas recorrentes de rememoração do passado

apresentam formas e conteúdos semelhantes entre si, representando, pois, a memó-

149 Para Benjamin, “lembrança” significa “lembrar” – Andenken –, e “recordar” significa “terpresente” – Eingedenken. Cf. UMBACH, Rosani Ketzer. Memórias da repressão e literatura:algumas questões teóricas. In: ____ (Org.). Memórias da repressão. 2008. p. 15.150 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 1990. p. 32-65.151 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, 1989. p. 3.

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ria de uma coletividade diretamente relacionada ao meio social. A referência à violên-

cia física e às torturas representa, desse modo, as cíclicas rememorações similares

dessas narrativas, assim como pode ser observado através da seguinte passagem de

Quatro-olhos:

[t]odos estavam condenados à tortura, em ambientes infectos e su-jos e poucos protestavam, pois sempre havia a hora de escovar osdentes, o intervalo das refeições; à noite havia o lazer fabricado vin-do de longe, sempre elétrico, e não era proibido urinar. A vida erasuportável nos intervalos das torturas [...]. As torturas eram o cami-nho concreto para a libertação, pelo menos era o que se comentava.Antes de chegarem a determinado grau, ou melhor a grau indetermi-nado, era impossível fazer qualquer coisa. Os graus variavam paracada um, ou talvez fosse sempre o mesmo grau, alguns o atingindo,outros não – para o meu amigo funileiro, o momento chegou cedodemais. Eu particularmente nunca sofri muito, a não ser quando es-tava fazendo o livro152.

O relato do protagonista deixa evidente como era a realidade da época da di-

tadura no que se refere às torturas físicas como prática de repressão e silenciamento.

Nota-se a referência ao ambiente caótico a que eram submetidas as vítimas presas.

Contudo, observa-se que o narrador se vale de certa sutileza, mas sem deixar de

lado o sarcasmo, para referir-se à cadeira elétrica, também conhecida como cadeira

do dragão, um instrumento de tortura, que disparava altas descargas elétricas nas

vítimas e era utilizada pela polícia do Brasil, pelo Departamento de Ordem Política e

Social (DOPS) e pelo Destacamento de Operações de Informações – Centro de Ope-

rações de Defesa Interna (DOI-CODI), durante o regime militar. Para referir-se a tal

instrumento, ele faz menção ao lazer que vinha de longe à noite, sempre elétrico, ao

qual não era proibido urinar, remetendo, assim, ao grau exagerado da violência prati-

cada com esses instrumentos. Lembra inclusive como o grau era diferente entre um e

outro preso. Analisando a referência que faz o narrador a respeito dos determinados

graus de tortura a que eram submetidas as vítimas, pode-se entender também que

alguns não resistiam por muito tempo tais práticas violentas e morriam, como no caso

de seu amigo funileiro, ao qual o narrador se refere dizendo que o tempo para aquele

chegou cedo demais, pois não aguentou vivo por muito tempo as torturas.

Em Quatro-olhos, observa-se a denúncia das torturas e das violências prati-

cadas durante a ditadura, geralmente de modo muito sutil, em que o narrador-

152 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 23.

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protagonista, na maioria das vezes, usa-se de estratégias discursivas capazes de

disfarçar o tom da denúncia em relação a tais situações. Já em Em câmara lenta, o

testemunho da violência física aparece de maneira mais explícita e audaciosa, confe-

rindo à narrativa um tom desesperador de denúncia perante tais violências:

[c]om um esforço, continuava calada. Eles puxaram-na pelo braçoquebrado, obrigando-a a sentar-se. Amarram-lhe os pulsos e os tor-nozelos, espancando-a e obrigando-a a encolher as pernas. Passa-ram a vara cilíndrica do pau-de-arara entre seus braços e a curva in-terna dos joelhos e a levantaram, para pendurá-la no cavalete.Quando a levantaram e o peso do corpo distendeu o braço quebra-do, ela deu um grito de dor, um urro animal, prolongado, gutural,desmedidamente forte. Foi o único som que emitiu durante todo otempo [...]. Os choques incessantes faziam seu corpo tremer e secontrair, atravessavam-na como milhares de punhais e a dor era tan-ta que ela só tinha uma consciência muito tênue do que acontecia.Os policiais continuavam a bater-lhe no rosto, no estômago, no pes-coço e nas costas, gritando palavrões entremeados por perguntas eela já não poderia responder nada, mesmo que quisesse [...]. Umdeles enfiou na cabeça dela a coroa-de-cristo: um anel de metal comparafusos que o faziam diminuir de diâmetro [...]. O policial começoua apertar os parafusos e a dor a atravessou, uma dor que dominoutudo, apagou tudo e latejou sozinha em todo o universo como umaimensa bola de fogo [...]. Quando os ossos do crânio estalaram e a-fundaram, ela já havia perdido a consciência, deslizando para a mor-te com o cérebro esmagado lentamente153.

Nota-se, em tal fragmento de Em câmara lenta, como o narrador-personagem

se preocupa em relatar a violência em todos os seus detalhes. A forma como ele

descreve as etapas da violência até culminar com a morte da vítima, sua companhei-

ra, é clara e destituída de qualquer máscara ou disfarce capaz de burlar a censura.

Entretanto, o fato de tal passagem, repleta de detalhes, aparecer em sua narrativa

apenas nas últimas páginas da obra pode inclusive ser vista como uma estratégia de

ataque quando nada mais faz sentido, quando o narrador percebe que sua organiza-

ção fracassou e que também perdeu sua companheira para o sistema repressivo e

violento. Nessa etapa da narrativa, infere-se que o narrador-personagem já não se

preocupa mais com o que lhe pode acontecer por denunciar de modo tão explícito as

barbáries, pois nada mais tem a perder, e o que lhe resta é levar ao conhecimento

dos outros o que ele agora sabia em relação às torturas e às mortes de pessoas ino-

centes.

153 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 171-172.

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Com base em tais excertos, que apelam à memória como ferramenta primor-

dial para emitir juízos e versões sobre os fatos do passado, pode-se acrescentar que

a obra literária enquanto ficção não busca negar por completo a autoridade da histó-

ria. Contudo, a obra literária que se pauta na rememoração preza pela liberdade em

lançar novas luzes sobre os eventos do passado, a fim de estabelecer uma nova re-

lação entre memória e história, para, dessa forma, reconstruir um passado não alicer-

çado somente em fontes históricas embasadas na ideologia dominante, mas também

de um modo subjetivo, através da memória individual e coletiva, e, assim, reerguer a

história sob outro foco, sob a perspectiva da “história vista de baixo”, conforme ex-

pressão utilizada por Peter Burke154.

Rosani Ketzer Umbach, em seu artigo Memórias da repressão e literatura: al-

gumas questões teóricas, aborda as definições elencadas por Astrid Erll acerca da

memória nos estudos literários, em que o crítico distingue-a em três categorias: 1)

memória da literatura; 2) memória na literatura; 3) literatura como “veículo da memó-

ria coletiva”155. A primeira classificação pauta-se na imagem metafórica de “memória

do sistema simbólico literatura”, ou seja, a memória é manifestada nos textos por

meio de referências intertextuais, quando, em uma obra literária, a literatura anterior é

rememorada, através da intertextualidade, de esquemas, de pensamento ou de ex-

pressão. Nessa categoria, inclui-se ainda a “memória do sistema social literatura”, a

qual é representada por meio da história da literatura e pelo cânone, institucionali-

zando, assim, a memória de uma tradição literária no mundo social. A segunda classi-

ficação, a memória na literatura, refere-se à “mímese da memória”. Esta remete à

encenação da memória, tratando de recordações e lembranças em textos literários.

Tal memória traz à mostra o funcionamento, processos e problemas da memória (in-

dividual e coletiva) no campo ficcional por meio de procedimentos estéticos. A tercei-

ra classificação trata da literatura como veículo da memória, atuando na formação de

versões do passado, na construção de identidades coletivas, na negociação de me-

mórias concorrentes e, inclusive, agindo como instância de supervisão crítica de pro-

cessos culturais que tenham relação com a memória.

154 Cf. BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. 1992.155 UMBACH, Rosani Ketzer. Memórias da repressão e literatura: algumas questões teóricas. In:____ (Org.). Memórias da repressão. 2008. p. 12.

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Diante de tais classificações, a autora atenta para a relação que deve existir

entre os estudos da memória na literatura com a construção da história156. Tal pre-

missa é justificada pelo fato de que o século XX, por ser caracterizado pela violência

e repressão extremadas, tanto na Europa quanto na América Latina, gerou inúmeras

vítimas, mas deixou também sobreviventes, cujas memórias apresentam-se “de suma

importância para a conscientização das gerações posteriores a respeito da intolerân-

cia, das perseguições e dos extermínios que ocorreram”157. Dessa forma, a autora

chama a atenção para a importância da produção literária memorialística para o res-

gate de tais eventos históricos associados à violência, à catástrofe e ao trauma. Tal

resgate, do seu ponto de vista, estaria a serviço da reconstituição da história, não a

tradicional, mas aquela defendida por Walter Benjamin158, a qual, pautada na memó-

ria das ruínas do passado, busca uma reconstituição dessa memória e, consecutiva-

mente, da história dos vencidos, daqueles deixados à margem da sociedade pela

historiografia oficial.

Márcio Seligmann-Silva, ao desenvolver estudos acerca da memória, direciona

seus argumentos para o fato de que não é possível existir memória sem seu correla-

to: o esquecimento159. A respeito de tais considerações propostas pelo autor, obser-

va-se que, tanto em Quatro-olhos quanto em Em câmara lenta, ocorre uma relação

muito forte entre lembrar e esquecer, pois os protagonistas, ao mesmo tempo em que

se esforçam para rememorar o passado na tentativa de entendimento e assimilação

deste, percebem que nem tudo o que gostariam de relatar está ao alcance de sua

memória, já que muitos fatos foram esquecidos.

Em Quatro-olhos, tem-se um narrador-protagonista que se debate na tentati-

va de narrar em seu livro lembranças as quais lhe parecem de extrema importância e

que, por isso, não deveriam ficar de fora de seu manuscrito. Entretanto, depara-se

com o esquecimento que assombra sua memória e o impede de organizar de forma

harmônica os fatos que sobressaltam sua mente, impedindo-o de identificar com cla-

reza quando está falando do seu passado ou quando está se referindo ao conteúdo

de sua obra original que fora perdida:

156 UMBACH, Rosani Ketzer. Estética e política nos espaços comparatistas. 2011. [no Prelo].Palestra proferida pela autora durante as atividades do II SINEL, III SENAEL e III SELIRSrealizadas na URI-FW durante os dias 10 a 13 de maio de 2011.157 UMBACH, Rosani Ketzer. Memórias da repressão e literatura: algumas questões teóricas. In:____ (Org.). Memórias da repressão. 2008. p. 17.158 Idem. Ibidem. p. 17.159 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento. In: ____(Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 60-63.

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[e]la, porém, me amava, o que só vim a perceber muito recentemen-te, no intervalo do primeiro para o segundo tempo de um jogo a queeu estava assistindo muito depois de tê-la visto pela última vez. Con-tinuo porém a comportar-me como se ela me amasse ainda hoje, doque aos poucos fui adquirindo imutável certeza. Mas foi nesse instan-te, lá no estádio a caminho da cerveja do meio-tempo, que me lem-brei não só que ela me amava mas também do livro. O rebate do te-lefonema não fora verdadeiro. A roda de mãos dadas é recordaçãode adulto. As crianças, como se sabe, não têm infância e nunca brin-cam. A fila de ônibus, porém, realmente existiu. O rapaz chegou paraa moça da fila e disse: “Te trago um embrulho cor-de-maravilha”. Erauma lata de goiabada, disso me lembro perfeitamente, mas acho quenão fazia parte do livro. O homem estava morto na avenida. Achoque no romance não havia rosas.É certo, no entanto, que se tratava de um campo de concentração.Nem sempre tinha sido assim. Agora aliás não estou falando do meutrabalho, acima e além de tudo, restrito ao puro cuidado de criar, dis-tante de qualquer confissão. É o que me lembra no momento, mas àsvezes me surgem lembranças inadequadas; não sei onde foi parar olivro, mas em algum lugar eu o deixei. Agora estou pensando em ou-tras coisas: dedos desprezíveis me tocaram, mais de uma vez [...]. Elembrava, não sei se do livro ou da vida160.

Em tal passagem, é possível perceber como o narrador-protagonista não con-

segue ordenar e expor com clareza suas lembranças. Ele começa a narrar a respeito

de sua vida pretérita – lembrando os momentos da vida real que passou com sua

mulher e dos sentimentos que ambos nutriam um pelo outro –, mas, logo, sua narra-

ção migra, de forma muito repentina, para outras recordações, as quais não conse-

gue identificar se são de sua própria vida ou do livro que escrevera. Em sua mente,

as imagens se confundem, e as lembranças de pessoas que ele não lembra se fize-

ram parte de sua vida ou de seu livro surgem e mesclam-se constantemente. Com

certo esforço, lembra que havia um local específico para a realização das torturas e

que essa lembrança que, por ora, assombra sua mente, não se refere somente ao

conteúdo do livro, mas a um acontecimento de sua própria vida. Tece inclusive vagas

lembranças acerca das brutalidades praticadas nesse local onde parece que esteve.

As lembranças inadequadas vêm à sua mente – inadequadas porque o fazem sofrer

novamente a violência que “dedos desprezíveis” praticaram por muitas vezes. Res-

salva-se, portanto, o dificultoso trabalho de Quatro-olhos para relatar o passado, tanto

da vida quanto do livro, e sua tentativa em manter-se lúcido diante dessas memórias

embaralhadas que lhe atormentam.

160 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 20 e 31.

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O narrador-protagonista de Em câmara lenta revela também sua dificuldade

para organizar seus pensamentos e suas memórias. Tal constatação pode ser com-

provada com passagens como:

[o] que fizeram com ela? O tempo bate nos ouvidos, passa gota agota, o mundo arrebentado em milhares de pedaços, a casa vazia. Osorriso e as mãos, uma expressão tranquila, e de repente. A vida ra-chou no meio, ficou lá toda certeza possível. O próprio gesto, agora,é um movimento hesitante feito de diversas repetições. Como umvaso que cai: estilhaçado em pedaços irregulares. Alguma vez eleesteve inteiro? Estilhaços. Misturados no chão com uns restos de vi-da, um pedaço de rosto, uma frase, um livro rasgado. O tempo nosouvidos: é muito tarde. O que deixou de ser feito, nunca mais seráfeito. É tarde. O que fizeram com ela? [...]O gesto continuava estilhaçado, espalhado aos pedaços pelo chãoda casa e é impossível reunir as peças para reconstituir seu sentido.Para restituir a forma ao jogo de armar. Os elementos acumulados eordenados pelo tempo se arrebentaram, explodiram em mil fragmen-tos no momento em que ela [...]. Então agora: tudo muito de repente,tudo de uma vez fragmentado e não há mais tempo para nada. Oespelho foi de novo colocado, mas agora ele está trincado em milpedaços e devolve uma imagem partida. Uma imagem que não émais do mundo, mas de uma solidão voltada sobre si mesma. Ogesto incompleto, estilhaçado, no momento em que ela161.

Nesse discurso, nota-se a constante presença da dúvida que paira sobre os

pensamentos do narrador. Inicialmente, a indagação por não saber o que aconteceu

com sua companheira, o que fizeram com ela e como foi morta. A constante verifica-

ção de uma vida que não pode mais seguir seu curso normal – pois algo de muito

grave aconteceu e fez com que tudo perdesse o sentido – vem à mente do narrador

de forma muito fragmentada. Ele se dá conta da problemática que está enfrentando,

de que não consegue reunir as informações suficientes para entender o que aconte-

ceu no passado para, talvez com isso, encontrar um sentido e seguir a vida. As ima-

gens e lembranças que ele tem não são suficientes para lhe fazer entender a atual

sensação de perda e desilusão em que se encontra.

Tudo agora é muito vago, a memória em si é muito vaga e incompleta, pois ele

lembra de algumas vidas, de rostos, de frases ditas e de um livro rasgado, mas não

consegue unir esses estilhaços da memória a fim de entender o que se passou. A

vagueza e a incompletude das informações apontam para um pensar acerca de que

forma o esquecimento passou a dominar sua memória, bem como a notória falta de

161 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 38-43.

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informações da qual se sentia vítima. Contudo, a lembrança do livro rasgado que ful-

gura em sua mente pode servir para questionar e propor uma reflexão sobre as for-

mas de silenciamento utilizadas pelo poder. A menção ao livro pode ser analisada

como uma metáfora em relação à imposição do esquecimento por meio da violência,

à destruição de conteúdos e ao apagamento de mensagens que o poder não queria

que fossem divulgados e conhecidos.

A dificuldade para organizar de forma coerente e lógica o passado, bem como

as poucas lembranças deste, demonstra a quão árdua era a tarefa de trazer esse

passado até o presente, mesmo que isso se fizesse necessário para ajudar os prota-

gonistas a reerguerem suas vidas. De acordo com Walter Benjamin, sempre existirá

uma relação intrínseca entre ações do presente em relação aos fatos do pretérito.

Assim, pelo fato de os protagonistas não conseguirem lembrar com clareza as suas

histórias de vida, evidencia-se como suas mentes foram abaladas pelos acontecimen-

tos desencadeados pelo poder dominante e pelas práticas de repressão, comprome-

tidas com o apagamento da memória, provindas do regime ditatorial.

A impossibilidade de se estabelecer um elo entre o passado e o presente re-

toma uma vez mais a ideia de correlação entre a memória e o esquecimento, tal co-

mo defendida por Seligmann-Silva. Essa mesma ideia é ratificada por Renato Franco,

quando enfatiza que tentar lembrar daquilo que fez parte do seu passado é uma for-

ma de colocar o indivíduo diante de sua condição de homem cindido. Ainda segundo

o autor, o conteúdo do esquecimento está relacionado à sua própria identidade, ao

que, no passado, ele mesmo foi. Torna-se, assim, consciente de como está dilacera-

do, incapaz de unir o passado ao presente162.

Essa tensão existente entre lembrança e esquecimento, entre revelação e

ocultamento dos eventos violentos, é discutida também por Loiva Otero Felix. A auto-

ra afirma que, ao se estudar a memória, não se está apenas tratando da perpetuação

de eventos, mas do esquecimento, dos silêncios e dos não-ditos163. Segundo a pes-

quisadora, lembrança e esquecimento estão imbricados, não há uma oposição entre

o que é verdadeiro e o que é falso, e o que ocorre não é uma contradição, mas uma

zona intermediária entre esses dois polos, em que a verdade (alétheia) se desloca

progressivamente em direção ao esquecimento (léthe), e assim reciprocamente. Ao

se olhar para o esquecimento como um elemento fundador, não se pode deixar de

162 FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio(Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 366.163 FELIX, Loiva Otero. História e memória: a problemática da pesquisa. 1998. p. 45.

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perceber que ele nunca se dá de forma neutra em relação ao que deve ser esquecido

ou a quem deve ser imposto o esquecimento164. Usar-se das estratégias de esqueci-

mento é, sem dúvida, uma possibilidade de manipulação da memória pelo poder. Ca-

be ressaltar ainda que “esquecimento ou silêncio é a potência da morte que se ergue

frente à potência da vida, Memória”165. Lembrar, portanto, é uma atividade desafiado-

ra da vida em relação à morte.

A narrativa de Quatro-olhos, ao tentar resgatar a memória para reconstituir

fatos e assim cumprir também com um compromisso social, concorre, inclusive, para

a representação de práticas que visavam ao ocultamento da violência praticada: “Vol-

ta o veterano e, da derrota triunfa: ‘Enquanto os senhores ouviam meu colega, as

manchas de sangue foram lavadas; o cadáver há muito foi recolhido. Partículas de

hemoglobina, porém, ficarão para sempre agregadas a esse trecho de asfalto’”166.

Essa é uma passagem lembrada pelo protagonista e que estava em seu livro

perdido. A crítica aqui pode ser feita no seguinte sentido. Enquanto a grande maioria

da população, naquele momento, ocupava-se com discursos de progresso dos milita-

res, propagados pelos meios de comunicação de massa como televisão e rádio, mui-

tas pessoas desapareciam, eram torturadas e mortas sem que a sociedade se desse

conta da real situação em que se encontrava o país.

Já o protagonista de Em câmara lenta atenta para uma denúncia mais incisi-

va no que se refere às formas como o sistema vigente da época se manifestava em

relação aos desaparecimentos e mortes de pessoas que eram presas e possivelmen-

te torturadas:

[p]rincipalmente agora, com toda essa gente sendo “atropelada”, ca-indo debaixo de caminhões ou mesmo da escada até virar uma coi-sa sangrenta, pasta de gente [...]. Porque com quase todos foi as-sim, todo mundo sabe que a notícia do jornal é uma mentira, o quefizeram com ela?167.

A referência à tentativa de ocultamento da violência que era praticada contra

os presos militantes fica explícita quando o narrador, através do uso da palavra “atro-

pelada”, ironiza a frieza com que eram tratados os casos de pessoas que apareciam

164 Idem. Ibidem. p. 51.165 In Idem. Ibidem. p. 45.166 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 19.167 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 18.

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mortas. Da mesma forma, estende sua crítica a como eram divulgadas essas notícias

nos jornais. Isso porque, apesar de as pessoas saberem que os mortos que apareci-

am completamente desfigurados não poderiam ter sido simplesmente vítimas de a-

tropelamentos ou outro acidente qualquer, eram essas as versões que predominavam

nos meios de comunicação de massa, ocultando a verdade e mascarando a violência

praticada.

Nelly Richard, ao tratar de questões ditatoriais chilenas semelhantes às ocorri-

das no Brasil, discute como o país buscou o ocultamento das barbáries ditatoriais e

como tais estratégias possivelmente foram estendidas a outros países. A autora dis-

cute que, no Chile, a elite dominante procurou restabelecer a ordem, impondo uma

espécie de consenso entre as oposições, eliminando, com isso, os desajustes da

memória que recordavam experiências traumáticas do passado e criando “uma histó-

ria social e cultural falsamente reconciliada consigo mesma”168. Segundo Richard,

colocar lado a lado as classes distintas foi uma forma de suprimir as memórias do

passado que poderiam atacar a elite dominante e, consequentemente, o poder vigen-

te.

Loiva Otero Félix também traça caminhos de discussão acerca do ocultamento

ou do encobrimento das memórias do passado com base no que se refere à anistia

política. A respeito disso, a autora comenta que essa era uma forma de fazer com

que a lembrança dos sujeitos que passaram por provações extremas fosse esqueci-

da, a fim de que houvesse o perdão das lembranças dolorosas169. Contudo, tal estra-

tégia concorre para a possibilidade de se estabelecer uma relação entre verdade e

engano, ou seja, a verdade torna-se uma propriedade da elite, que passa a ser a de-

tentora da “verdade” é também do poder de enganar. Enfim, o objetivo da classe do-

minante é fazer uso de um discurso para construir uma realidade que seja livre de

qualquer opacidade capaz de macular o consenso histórico positivista170.

Em Quatro-olhos, a necessidade de rememoração é tão grande, que o narra-

dor sente que convém deixar registrado em sua narrativa o dia em que não foi autor,

o dia em que não conseguiu lembrar de nada para escrever. Conforme nota-se a se-

guir:

168 RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. 2002. p. 57.169 FELIX, Loiva Otero. História e memória: a problemática da pesquisa. 1998. p. 45.170 Idem. Ibidem. p. 46.

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[n]ecessidades de ordem prática, me levaram naquela desprimorosasegunda-feira a deixar de lado o trabalho. Muito positivamente, esta-va desprovido do instrumental imprescindível à consecução da tare-fa. Desmesura explicar que me faltavam papel e tinta, de modo que,nessa segunda-feira certa, nada escrevi. Interessante lembrar compormenor as horas em que não fui autor, quando nada recordo do li-vro171.

Essa certa segunda-feira, em que ele não conseguiu escrever nada, elucida a

constante batalha que se travara em sua mente entre a necessidade de lembrar e a

constatação dessa dificuldade para fazê-lo. O fato de o narrador nada conseguir es-

crever nesse referido dia o distancia ainda mais da realidade, pois, lembrar para ele

era uma forma de voltar a sentir-se vivo, voltar a relacionar-se com o mundo,

(re)construir um mundo aceitável para viver. Querer escrever, não encontrar em sua

mente “instrumental imprescindível à consecução da tarefa” e dar-se conta de que as

palavras não são suficientes para expressar o que ele gostaria de colocar no livro

fazem com que Quatro-olhos desista dessa tarefa naquele dia. Isso porque, como ele

mesmo afirma, as palavras pareciam entrelaçadas e distantes, de tal modo que sua

contribuição à ciência naquele momento seria muito mais o silêncio que a vã tentativa

para escrever.

Também para o narrador-protagonista de Em câmara lenta, por algumas ve-

zes, as palavras lhe parecem destituídas de qualquer sentido e inúteis para lhe ajudar

na tarefa de rememoração e de denúncia. Assim como se observa:

[n]ao foi apenas uma pessoa que morreu, foi o tempo. De repente omundo está cheio de algodão, espesso e pegajoso, as palavras nãofazem mais sentido porque não nomeiam coisas – apenas soamcomo ecos, prolongados por ouvidos acostumados a classificá-los172.

Para o narrador de Em câmara lenta, o mundo que o cerca já não apresenta

mais nenhum sentido, de forma que a própria linguagem também já lhe parece caren-

te de significado e de importância. Para as lembranças recuperadas através de pou-

cas e vagas informações, que eventualmente lhe são oferecidas em relação ao seu

171 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 38.172 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 15-16.

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passado, ele não consegue encontrar palavras adequadas para externalizá-las em

seu relato, ficando sempre frases por concluir e perguntas sem respostas.

O sujeito sente necessidade de contar o que viveu, mas é incapaz de organi-

zar os fatos em seu pensamento. O trauma da violência, sofrido pelos protagonistas,

opera uma cisão na memória, o que os impossibilita não só de lembrar o passado,

mas principalmente de encontrar linguagem apropriada para narrá-lo devido à grandi-

osidade do evento. Os narradores não são capazes de organizar os episódios de

maneira harmônica, e isso se dá em razão das circunstâncias históricas em curso,

em especial a repressão e as torturas sofridas por eles. Tais mecanismos traumáticos

não permitem que o sujeito posicione-se criticamente como seria seu desejo, contri-

buindo inclusive para o esquecimento de muitos episódios e desencadeando uma

narrativa esteticamente problemática, destituída de integridade e linearidade.

Entretanto, discutir o processo narrativo tanto de Quatro-olhos quanto o de

Em câmara lenta permite que se avalie a penosa luta, por parte de seus narradores,

contra o esquecimento imposto pelo poder. Diante disso, torna-se imprescindível ob-

servar como tais narrativas se constituem em tentativas de (re)organização e de

(re)estruturação de histórias de vida marcadas pela violência. Assim, os narradores-

protagonistas de ambos os romances buscam, através da recuperação da memória e

da possibilidade de narrá-la, uma forma de (re)integração social e um espaço para

expor a sua versão da história, mesmo que em desacordo à versão oficial.

Walter Benjamin, ao discorrer sobre o conceito de história, o que consiste

também numa teoria da memória, insiste na reconstrução da história através da re-

memoração. Para o teórico, torna-se imprescindível trazer à tona o passado deixado

à margem pelo método historicista, o qual se preocupa em narrar somente a versão

dos vencedores, abafando a verdadeira história das sociedades oprimidas173. Em

outros termos, conforme explica Jeanne Marie Gagnebin, o historicismo acaba por

mascarar a luta de classes e por contar a história dos vencedores, culminando, as-

sim, no apagamento da memória dos excluídos, isto é, dos esquecidos da memória

oficial174. Ainda segundo a autora, cabe ao historiador materialista não deixar essa

memória dos excluídos esquecida, mas zelar pela sua conservação e assim contribuir

na reapropriação desse fragmento de história. “Cada geração recebe assim uma ‘tê-

173 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política.1994. p. 223-224.174 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória e libertação. In: ____. Walter Benjamin: os cacos dahistória. 1982.

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nue força messiânica’, porque cabe a cada presente resgatar o próprio passado; não

apenas guardá-lo e conservá-lo, mas também libertá-lo”175, reforça a autora com base

na Tese II de Benjamin.

Para finalizar, cabe retomar Nelly Richard quando afirma que recordar a ten-

são e os dilaceramentos da arte da memória é uma forma de resgatar dessa memória

um campo de forças plurais e divergentes, para assim abrir uma multiplicidade de

pontos de vista176. Para a autora, as contradições históricas oriundas dos distintos

pontos de vista não podem permanecer silenciadas de acordo com a vontade de uma

ideologia que busca abolir qualquer “corpo estranho”177 que se apresente como ame-

aça à clarividência de uma história social e cultural falsamente harmonizada consigo

mesmo.

Assim, narrar as memórias das experiências vividas por parte dos protagonis-

tas de Quatro-olhos e Em câmara lenta configura-se em pequenas peças de um

grande quebra-cabeça que, muitas vezes, toma-se desconhecido ou não acontecido.

Com isso, ao se retomar a ideia de que as diversas formas abusivas de repressão e

violência praticadas sob a forma de tortura, durante o período ditatorial, resultavam

no apagamento da memória dos indivíduos e, consequentemente, no apagamento de

uma história que a elite não queria que fosse lembrada e repassada, reforça-se a ne-

cessidade cada vez maior de se (re)visitar esse passado e trazê-lo novamente ao

presente. Assim, através da percepção dos distintos pontos de vista desse passado,

a sociedade pode compreendê-lo e, da mesma forma, entender o presente e planejar

o futuro de modo a evitar acontecimentos semelhantes.

3.2 A melancolia nas obras de Pompeu e Tapajós

À proporção que declinava o dia e que as sombras cobriam o céu,esse vago inexprimível da noite no meio das ondas, a tristeza emelancolia que infunde o sentimento da fraqueza do homem emface dessa solidão imensa de água e de céu, se apoderavam demeu espírito.

(Cinco minutos, José de Alencar)

175 Idem. Ibidem.176 RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. 2002. p. 57.177 Idem. Ibidem. p. 57.

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A brutalidade a que foi exposta grande parte da sociedade em virtude da im-

plantação da Ditadura Militar no Brasil, na medida em que afetou a memória das pes-

soas envolvidas, suprimindo, através do esquecimento imposto, uma série de lem-

branças importantes para sua própria existência e para a sociedade, provocou tam-

bém uma série de perdas. A ideia de perda que por ora é elencada, se, por um lado,

permanece relacionada à noção de perda de memória individual e coletiva por parte

de uma significativa parcela da sociedade que sofreu as consequências da repres-

são, por outro, remete às figuras do desaparecimento e da ausência física de muitos

militantes revolucionários, políticos, artistas, intelectuais, estudantes, dentre outros

que se mostravam contrários ao regime imposto.

Diante disso, torna-se importante refletir acerca dos sentimentos que são de-

sencadeados pelo sujeito quando este é afetado por uma perda. O sujeito, quando

perde seu objeto de investimento libidinal, seu objeto de amor, atravessa um proces-

so de intenso sofrimento. Segundo Nelly Richard, as perdas, sejam elas de que natu-

reza forem, podem desenvolver no sujeito bloqueios psíquicos, paralisações afetivas

e inibições da vontade178, em função da sensação de irrecuperabilidade do objeto

perdido. Frente a tal situação, principalmente quando ocasionada em meio a uma

condição histórica marcada pela violência, o sujeito passa a viver um luto tensional e

mergulha numa espécie de tristeza sem fim, sentimento esse denominado de melan-

colia.

O termo melancolia179, definido por Hipócrates como um estado de tristeza e

medo de longa duração, deriva do grego mélas kolé, “humor negro”, e é considerado

o estado psicológico típico do temperamento atrabilioso – de atrabilis ou bílis negra.

Para o filósofo, o melancólico é alguém cujo estado mental apresenta-se perturba-

do180. Já Aristóteles, ao discorrer sobre a melancolia, a define como a natureza (phy-

sis) e o hábito (ethos) do filósofo. Não como doença, o temperamento melancólico

passa a ser associado à personalidade de exceção, à genialidade, aos espíritos ex-

cepcionais. De acordo com o filósofo, existiria uma ligação entre a postura melancóli-

ca e o pensamento contemplativo, necessário à filosofia. Aristóteles também aponta

178 RICHARD, Nelly. Políticas da memória e técnicas do esquecimento. In: MIRANDA, WanderMelo (Org.). Narrativas da modernidade. 1999. p. 325.179 Convém destacar que a pretensão desse estudo não é fazer um prolongado levantamentoacerca das distintas concepções de melancolia que se apresentaram ao longo dos tempos.Entretanto, acredita-se ser plausível o levantamento de algumas das principais concepções, bemcomo dos distintos pontos de vista acerca desse sentimento, para assim tornar mais produtivo oentendimento dos romances em análise.180 GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinteanos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 45.

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para o fato de que é a bile negra a responsável pelo desenvolvimento do sentimento

melancólico. Segundo ele, a bile negra tem por propriedade a inconstância e, por is-

so, ela pode se comportar de modo variável, por vezes muito quente, por vezes muito

fria, a ponto de causar efeitos diversos e geralmente contraditórios, sendo assim o

melancólico, por natureza, um ser contraditório181.

Entretanto, é Constantinus Africanus, autor árabe medieval, quem desenvol-

veu um importante estudo acerca do sentimento melancólico. O estudioso partiu da

premissa de que a melancolia compõe-se de um misto de medo e tristeza que con-

funde a alma: tristeza pela perda de algo muito amado e medo pela suspeita de que

algo possa causar no sujeito um dano futuro182. Com base nisso, observa-se que,

tanto em Hipócrates como em Constantinus, a melancolia é apresentada como uma

doença. Para o primeiro, ela é decorrente de uma degradação do sangue, de uma

putrefação que desordena o funcionamento do corpo. Para o segundo, o sentimento

melancólico seria o resultado de excessos ou faltas, ou seja, o sujeito possui um mo-

delo de equilíbrio humano, que é a sua capacidade de dosagem na vida, entre o mo-

vimento e a quietude, o sono e a vigília, a comida e a bebida, etc., e o excesso ou a

falta de algum desses elementos pode gerar no corpo efeitos nocivos. Para o autor,

até mesmo o excesso de meditação e a tentativa de investigar o incompreensível po-

dem provocar a melancolia183.

Susana Kampff Lages, ao fazer releitura de Jean Starobinski, atenta para o

fato de que a história da melancolia pode se resumir em três períodos históricos até o

século XIX. Tais períodos subdividem-se em: o da Antiguidade clássica, o que se es-

tende da Idade Média até o século XVIII e, finalmente, a época moderna, que abran-

ge os séculos XVIII e XIX, em que se origina a moderna psiquiatria, da qual derivará

a psicanálise freudiana, e dela então o mais moderno conceito de melancolia que se

tem184.

A concepção moderna da melancolia, citada por Lages, encontra-se profun-

damente ligada às suas bases antigas. A hipótese de que existe uma conexão entre a

experiência de perda e a condição melancólica, levantada por Africanus, é a base

principal para a abordagem psicanalítica elaborada por Freud em 1917, quando da

publicação de seu ensaio Luto e melancolia, escrito em 1915. Tal estudo pauta-se na

181 ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema XXX, I. 1998.182 GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinteanos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 46.183 Idem. Ibidem. p. 47.184 LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. 2002. p. 32.

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questão psicológica da melancolia em cuja análise o autor desenvolve uma distinção

entre os dois sentimentos que podem se manifestar diante da experiência de uma

perda: o luto e a melancolia. Para o autor, esses dois sentimentos apresentam muitas

semelhanças, e é através dessa correlação existente entre suas características aná-

logas, que Freud traça também os pontos divergentes entre os sentimentos de luto e

de melancolia. Segundo o psicanalista,

[a] correlação entre a melancolia e o luto parece ser justificada peloquadro geral dessas duas condições. Além disso, as causas excitan-tes devidas a influências ambientais são, na medida em que pode-mos discerni-las, as mesmas para ambas as condições. O luto, demodo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de al-guma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o pa-ís, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante [...]. Tam-bém vale a pena notar que, embora o luto envolva graves afasta-mentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, ja-mais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológicae submetê-lo a tratamento médico. Confiamos em que seja superadoapós certo lapso de tempo, e julgamos inútil ou mesmo prejudicialqualquer interferência em relação a ele185.

Ao expor as causas e as características do luto, que servirão de base para a

discussão acerca da melancolia, Freud explicita que este é ocasionado diante de uma

perda objetal irreversível. Diante dessa perda, embora o sujeito sinta-se imensamente

desolado, o luto não pode ser considerado uma patologia, pois, após algum tempo, o

sofrimento vivido é superado, uma vez que o indivíduo passa a transferir seu investi-

mento libidinal a outro objeto, substituindo dessa forma o objeto perdido.

Com base em tais apontamentos, Freud adentra na natureza da melancolia,

elencando os principais traços que a distinguem do luto, bem como defendendo o

lado patológico desse sentimento. Segundo Freud,

[o]s traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo pro-fundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, aperda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer ativida-de, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de en-contrar expressão em autorrecriminação e autoenvilecimento, culmi-nando numa expectativa delirante de punição. Esse quadro torna-seum pouco mais inteligível quando consideramos que, com uma únicaexceção, os mesmos traços são encontrados no luto. A perturbação

185 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977. p. 249.

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da autoestima está ausente no luto; afora isso, porém, as caracterís-ticas são as mesmas186.

Ao fazer uso dos elementos encontrados no luto para esclarecer a melancolia

e ao contrapor esses dois afetos, Freud observa que os traços mentais similares

aparecem em ambos. Porém, a divergência observada nesse paralelo é que, no luto,

o indivíduo consegue chegar à superação do seu estado. Nesse período, o

psicológico é extremamente afetado pelo vazio deixado pelo ser ou pelo objeto

amado que não existe mais na realidade, e isso começa a exigir do indivíduo que

todo o seu investimento libidinal seja retirado daquele objeto, passando a ser

desviado para outro que se faz presente. Já na melancolia, não ocorre uma perda

objetal como no luto, mas ideal, ou seja, o sentimento melancólico é ocasionado não

necessariamente pela morte de alguém, do objeto amado, mas pela perda de algo

enquanto objeto de amor. No luto, o indivíduo sabe exatamente o que perdeu, já na

melancolia, mesmo que o paciente esteja consciente de que houve a perda de algo

ou alguém, ele não consegue identificar o que exatamente perdeu com isso. Assim, o

sujeito passa a conservar por muito tempo, em alguns casos pela vida inteira, esse

sentimento, pois, como não tem definido com exatidão a sua perda, não consegue

encontrar substitutos para ela.

Na visão de Susana Kampff Lages187, Freud, ao estabelecer um paralelo entre

luto e melancolia, coloca-se a favor da hipótese da existência de uma melancolia

“positiva”, a qual consegue ser superada pelo sujeito, e a existência de uma

melancolia “negativa”, da qual o indivíduo sofre profundamente para libertar-se. Em

ambos os casos, a perda se configura no momento em que o objeto desaparece do

campo de investimento do enlutado. Contudo, se, no luto, o sujeito consegue

desligar-se do objeto por ora desinvestido e investir em novos objetos, na melancolia,

esse sujeito não se desenlaça, perdendo-se psicologicamente no vínculo com o

objeto de amor perdido.

Em relação aos mencionados traços melancólicos, nota-se que, tanto na obra

Quatro-olhos, quanto em Em câmara lenta, tem-se a presença de narradores-

protagonistas marcados por sentimentos considerados melancólicos, cujos laços psi-

cológicos permaneceram, mesmo após muito tempo, atrelados aos objetos de amor

já desaparecidos do campo de investimento dos sujeitos. De acordo com as já men-

186 Idem. Ibidem. p. 250.187 LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. 2002. p. 53.

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cionadas características melancólicas elaboradas por Freud, no que se refere ao sur-

gimento da melancolia como uma reação à perda de um objeto amado, observa-se

que, em Quatro-olhos, o sentimento melancólico que toma conta da vida do prota-

gonista resulta, principalmente, da perda de seu livro, objeto que ele considerava co-

mo sua obra-prima e que o mantinha dentro de um certo equilíbrio e ligação com a

realidade. Poder-se-ia acrescentar ainda a esse episódio a fuga de sua mulher, bem

como a própria situação ditatorial, que fazia com que ele se sentisse um verdadeiro

derrotado perante essa realidade tão particular. Entretanto, o fato de ter perdido o

livro e sua impossível recuperação, diante da tentativa frustrada de tentar reescrevê-

lo e não conseguir lembrar de seu conteúdo, deixa Quatro-olhos completamente frus-

trado e melancólico, assim como se pode observar na passagem a seguir:

Mais ou menos dos 16 aos 29 anos passei no mínimo três a quatrohoras todos os dias, com exceção de um ou outro sábado e de certasegunda-feira, escrevendo não me lembro bem se um romance ouum livro de crônicas. Recordo com perfeição, porém, tratar-se de o-bra admirável, a por a nu de modo confortavelmente melancólico acondição humana universal e eterna, particularizada com emoçãodiscreta nas dimensões nacionais e de momento [...]. Às vezes sintodúvidas e excitações188.

As lembranças que vem à mente do narrador e que aparecem logo no primeiro

parágrafo da obra já dão indícios do quão importante era para ele o romance que

escrevera e que fora confiscado pela polícia. O protagonista evidencia que passou

boa parte de sua juventude dedicado à incessante escrita dessa “obra admirável”.

Entretanto, as lembranças que vêm estilhaçadas à mente do narrador e que remetem

a episódios de um passado triste, do qual ele não consegue se libertar, justamente

por não conseguir recordá-lo com clareza, associam-se diretamente ao esquecimen-

to, possivelmente imposto. Diante de tal episódio, a perda da memória por parte do

narrador configura-se juntamente com a apreensão do seu manuscrito original, nas

causas de seu estado melancólico, destituindo-o então de qualquer interesse pela

realidade, fazendo com que seu mundo psicológico e físico passe a girar em torno

dessa infindável e profunda tristeza. O ego do protagonista apresenta-se totalmente

destituído de qualquer valor, pois, por não se recordar de seu passado, sente-se des-

prezível e inferior, e chega até mesmo a duvidar de sua própria capacidade de com-

posição.

188 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 15.

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Na mesma proporção, é possível observar, em Em câmara lenta, como os

aludidos elementos melancólicos que perturbam o narrador-protagonista são eviden-

ciados em seu discurso. Este também é um livro marcado pela perda e pela ausên-

cia, e, precisamente por ser a sequela primeira da falta de algo e/ou de alguém, a

melancolia se faz presente na narrativa. Esse romance, assim como Quatro-olhos, é

construído dentro da mesma condição histórico-social violenta do regime ditatorial, e

tem, em sua narração, a apresentação do sofrimento psíquico que perturba o sujeito

em função da dor causada pelo sistema opressor. Nesse sentido, a perda, em Emcâmara lenta, refere-se à frustração por parte do narrador em relação à organização

guerrilheira que pretendia atacar a Ditadura Militar e que fracassara, bem como à

perda de sua amada que fora morta, sob tortura, nas mãos de militares. De acordo

com tais apontamentos, observa-se, já no início dessa obra, como o discurso deixa

transparecer a melancolia do narrador:

[é] muito tarde.A sensação de perda é física, como se faltasse a laringe ou o esôfa-go e não vai passar porque se, ao menos, tivesse servido para al-guma coisa. Mas não, simplesmente acabou, e com isso acabou otempo [...]. Nada deu certo, o fogo de artifício iluminou o céu, maspouca gente entendeu, nem podia entender e agora estamos sozi-nhos, vinte, trinta, sei lá [...]. Não foi apenas uma pessoa que mor-reu, foi o tempo189.

O constante refletir do protagonista, durante o discurso acerca da fracassada

organização guerrilheira, remete para a sua tomada de consciência em relação à der-

rota que obtiveram perante a inexperiência do grupo de militantes. A decadência do

grupo é perceptível, pois é denunciada pelo próprio narrador. Tal declínio marca nes-

se sujeito o sentimento de desamparo e angústia frente à perda do tempo que pas-

sou, perante a vã tentativa de guerrilha. Entretanto, expressa principalmente a perda

de um ideal e a sensação de que nada mais é plausível de sentido diante de tamanha

frustração, restando apenas as poucas e vagas lembranças melancólicas de um tem-

po obscuro que não pode ser modificado nem recuperado.

Em relação à perda de sua amada, averigua-se, ao longo da narrativa, a dor

pela qual passa o narrador frente ao desconhecido. Diante do que ignora, observa-se

189 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 13-15.

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a constante tentativa, também frustrada, de conhecer o que lhe foi ocultado acerca

dessa morte:

aquele corpo, o que fizeram com ela? Talvez agora já soubessem demais alguma coisa, no ponto o companheiro talvez tivesse uma in-formação nova. Mais depressa. Chegar lá e saber. Mas saber praquê? Para alimentar ainda mais o ódio, o desespero, a solidão? Étarde demais, mas é preciso continuar vazio, um sentimento oco190.

Nota-se, nessa passagem, que o protagonista busca explicações para o que

aconteceu com sua amada, travando uma luta constante com suas próprias memó-

rias e tentando buscar, através de outras pessoas, informações que pudessem lhe

amenizar tal sofrimento. Porém, o desconhecimento e a cansativa luta por saber ver-

dadeiramente o que aconteceu, que o fez vítima de tamanhas perdas, acabam ge-

rando no protagonista todo um sentimento de desorientação e desalento, despertan-

do e alimentando, inclusive, sentimentos de desprezo, raiva e ódio, muitas vezes,

direcionados a si próprio.

Segundo os pressupostos levantados por Freud, a “perda ideal” que ocorre no

sujeito melancólico afeta diretamente seu ego, deixando-o totalmente enfraquecido.

Ou seja, no melancólico, há uma diminuição de sua autoestima, um empobrecimento

de seu ego em grande escala; em contrapartida, no luto, é o mundo que se torna

pobre e vazio. Em função desse empobrecimento do ego, o sujeito melancólico

apresenta um caráter tendencioso a autoacusar-se e recriminar-se constantemente

por ser alguém tão desprezível. Esse quadro de um delírio de inferioridade

(principalmente moral) é completado pela insônia e pela recusa a se alimentar, e – o

que é psicologicamente notável – por uma superação do instinto que compele todo

ser vivo a se apegar à vida191.

Ainda de acordo com as definições propostas por Freud, o sujeito melancólico

é alguém cujo prazer está em demonstrar a sua própria precariedade. Nos romances

em apreciação, são evidentes as demonstrações, por parte dos narradores, de seus

sentimentos de dor, frustração, desânimo, incerteza e fragilidade. Em Quatro-olhos,

é possível notar essa problemática em determinadas passagens:

190 Idem. Ibidem. p. 14.191 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977.

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e eu comecei a chorar no meio da rua, ou melhor, sentei na calçadae comecei a chorar, mas não era comentário nem revolta, meparece, apenas reação natural das glândulas lacrimais antepoderosos estímulos ópticos, e não sentia nenhuma vontade delouvar em ação de graças a graça de nascer e viver, e meu rostocomeçou a ficar negro de óleo e rugoso de pedrinhas, e triste, muitotriste, porque todo mundo era filho de pai e mãe, e todas as coisaseram filhas das mãos de todos, mas eu não me sentia agradecido192.

O fragmento descreve uma cena em que Quatro-olhos, já cansado de tanto

procurar seu livro perdido, entra em desespero devido à inutilidade de seu esforço.

Este trecho ilustra de maneira muito conveniente a sensação de debilidade do

protagonista diante do sentimento de dor ocasionado pela perda de seu manuscrito e

revela como ele se sentia diante da impossibilidade de recuperá-lo, em meio ao

sistema político violento que vigorava. Nota-se que o narrador é tomado por uma

profunda tristeza e igual desinteresse a ponto de não se importar com o fato de

demonstrar esses seus sentimentos em público e começa a chorar “no meio da rua”.

A trivialidade com que vê seus próprios sentimentos e até mesmo sua própria

existência demonstra um sujeito cujo ego está empobrecido e altamente abalado,

sendo que, para ele, a exposição da sua própria fragilidade e do seu empobrecimento

passa a ser sua única alternativa de prazer existencial.

Passagens similares podem ser encontradas em Em câmara lenta, quando o

narrador também deixa transparecer episódios de desalento e debilidade em função

de sua situação melancólica. Assim, observa-se:

[h]oje o pensamento está seco, o desespero é uma coisa calma,uma coisa que não grita e nem explode, uma coisa que se arrastacom a inevitabilidade da permanência. O companheiro disse que euestava estranho e eu estou [...]. Eles tombaram e pronto. Elatambém. E isso é irreversível, perdi a ponte que dá passagem aofuturo e estou acorrentado aos fantasmas. E não quero quebraressas correntes porque pertenço a eles, a ela [...]. Sobreviver seriaválido para vingá-los, para destruir seus destruidores, mas nãoacredito mais nisso [...]193. Eu fiquei sepultado na madrugada,ancorado, preso, comprometido com os que tombaram e com os quevão tombar194.

Nesse fragmento, observa-se como o narrador descreve todo o seu

sentimento de dor e de tristeza pela perda de seus companheiros e também de seu

192 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 31.193 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 83-84.194 Idem. Ibidem. p. 86.

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ideal. O protagonista faz questão de permanecer ligado a aqueles ou a aquilo que já

não existe mais. Transpor a barreira que separa o passado do presente é algo que

lhe é praticamente impossível, pois ele vê, nesse passado perdido, sua única

possibilidade – e que já não existe mais – de vida. Entretanto, apesar de revelar sua

dor e ao mesmo tempo expor seu ódio e desespero, é plenamente notável o

enfraquecimento psicológico do narrador diante de tais eventos ocasionados pela

repressão violenta do regime militar. Assim como em Quatro-olhos, o narrador não

se limita a simplesmente viver e sentir o seu luto e a sua perda. Antes, faz questão de

expor sua melancolia como uma possível forma de amenizá-la e também mostrar

como sua própria vida foi aniquilada e como seu ego destruído sofre diante da

impossibilidade de reversão desse triste quadro.

Considerando as proposições freudianas, é possível inferir que o melancólico

é alguém cujo ego adoeceu e, diante disso, não consegue retomar sua vida e encon-

trar esperanças no futuro, pois se acredita incapaz, indigno e sem condições de qual-

quer tipo de realização, devido à sua baixa autoestima. Em virtude disso, o melancó-

lico sente uma grande necessidade de expor sua depressão, sua precariedade, bem

como recriminar-se e punir-se pela situação que enfrenta. Entretanto, as recrimina-

ções e as acusações direcionadas a si próprio, na verdade, dirigem-se a outra pessoa

que é, foi ou deve ser amada pelo melancólico, ou ainda refere-se a um tempo e a

uma situação pretérita que ele não consegue mais recuperar. O fato de o paciente as

dirigir a si mesmo ocorre devido ao que o autor chama de processo de identificação

narcisística com o objeto amado e perdido, cuja relação foi rompida ou frustrante, e

pelo qual ele passa a nutrir, inconscientemente, sentimentos ambivalentes de amor e

ódio195.

Sobre o processo de identificação narcisística, Julia Kristeva argumenta que o

estado patológico em que se encontra o melancólico repousa sobre uma complexa

dinâmica de idealização e de desvalorização de si e do outro e, por isso, o

melancólico, inconscientemente, exige a presença de um superego fortíssimo: “[p]ois

é identificando-me com o outro amado-odiado, por incorporação-introjeção-projeção,

que instalo em mim sua parte sublime, que se torna meu juiz tirânico e necessário,

assim como sua parte abjeta, que me rebaixa e que desejo liquidar”196, complementa

a autora. Para a psicanalista, esse processo narcisístico pode ser entendido como o

esconderijo da agressividade contra o objeto perdido. Esse processo de queixa

195 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977.196 KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. 1989. p. 17.

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contra si seria, pois, uma queixa contra o outro e a autocondenação à morte, um

disfarce trágico do massacre de um outro. De acordo com Kristeva, ao voltar-se

contra si, o sujeito melancólico, na verdade, mesmo que inconscientemente, está

atacando o objeto de amor que se encontra dentro dele e que fora perdido.

Outra característica recorrente observada nos sujeitos melancólicos dos

romances em apreciação diz respeito à forte ligação que eles mantêm com seus

passados e à consciência diante da percepção da passagem do tempo. Tal afirmação

pode ser comprovada a partir de fragmentos como o abaixo citado, retirado de

Quatro-olhos:

[m]uito embora não creia não ser possível condenar o presente emnome do passado, pois o passado já passou e o presente estápassando; muito embora julgue prevenir acidentes dever de todos,ou seja, a condenação do presente deve ser marcada em nome dofuturo – na verdade, não encontro, no fundo do meu coração atéonde posso ir, não encontro em meu coração outro recurso. Disfarçocom esperteza essa minha limitação, eu não poder condenar emnome do que virá, avanço com solércia o insolente subterfúgio deque falo do que não foi. Incapaz de defender o futuro, defendo ofuturo do passado – com essa argumentação tento encobrir meuataque ao presente197.

De acordo com essa passagem, nota-se, no discurso de Quatro-olhos, como

a temporalidade é encarada pelo narrador-protagonista. Ele vê com tristeza um

passado que, além de comprometer seu presente, impõe obstáculos à chegada do

futuro. Mesmo ao ver com profundo pesar um passado destruído e destituído de

qualquer sentido, em função das perdas que este lhe causara, o narrador não

consegue libertar-se daquele tempo. O fato de o protagonista sentir que foi

extremamente prejudicado no passado não permite que ele anseie por um futuro sem

danos. A dor que sente, proveniente das perdas que tivera, faz com que ele

conserve, mesmo que de modo bastante fragmentado, os laços com seu passado,

numa tentativa de conservar, mesmo que na mente, tudo aquilo que fora perdido.

No romance de Tapajós, a ligação com o passado é uma recorrente no

discurso do narrador. A vinculação do protagonista a um tempo em que ele estava

em companhia de pessoas, às quais já não existem no presente e ideais que também

foram destruídos, passa a ser o refúgio do narrador, numa constante tentativa de não

197 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 28.

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só resgatar em sua íntegra esse passado, mas talvez compreendê-lo em sua

plenitude. Com base nisso, observa-se em Em câmara lenta:

[s]e o gesto falhou. Em algum lugar em algum momento, deve terhavido um erro. Não é possível pensar direito com esse ruído surdoque bate nos ouvidos, a dor e o desespero, os olhos e o rosto quevoltam sempre e agora são inatingíveis. Mas deve ter havido um erro[...]. Havia muita gente há apenas três anos e hoje o que há é ummonte de mortos, uma multidão de exilados no exterior e algumassolidões tentando continuar. Algumas pessoas dispersas que poucose encontram, quase nunca discutem e se contentam emsobreviver198.

A incansável volta do narrador ao tempo pretérito de sua vida demonstra

também sua tentativa de não só rememorar esse tempo, mas também encontrar

respostas plausíveis para toda a destruição que vinha enfrentando. O narrador

demonstra que sente dificuldade em pensar com clareza, pois seus pensamentos são

afetados pelos ruídos, pelas vozes e até mesmo pelos rostos daqueles que faziam

parte da sua vida no passado e que agora se encontram “inatingíveis”, enfim, é uma

referência aos mortos e aos desaparecidos. Sendo assim, a tentativa de descobrir o

que falhou, o que em específico destruiu o ideal que o narrador e seu grupo de

militância tinham, é um pensamento cíclico notado no discurso do protagonista. Na

medida em que a narrativa avança, esse pensamento e essas lembranças o jogam

para o campo perdido do passado e o fazem perseguir e reviver, incessantemente,

esse passado perdido.

De acordo com o observado, o sujeito melancólico é alguém que não conse-

gue se desligar do passado e, assim, suas lembranças, ao permanecerem presas a

esse tempo que não pode mais existir, nem ser resgatado, fazem com que o quadro

patológico do melancólico agrave-se ainda mais. Ao ser prisioneiro de uma idealiza-

ção do tempo passado, o melancólico sofre, como argumenta Susana Kampff Lages,

na pele e na alma, de um mal-estar que provém da consciência demasiado aguçada

de sua situação199. Ele é envolvido por um passado que o atrai e o remete ao já vivi-

do satisfatório e um futuro que se apresenta a ele como uma miragem, algo muito

distante do objeto desejado.

198 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. p. 48-49.199 LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. 2002. p. 45-60.

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Julia Kristeva também discute questões acerca dessa debilidade sentida pelo

melancólico em relação ao seu não desvinculamento com o passado. Segundo a

autora, o melancólico vive numa temporalidade descentrada, cujo vetor antes/depois

não o governa, não o conduz de um passado para uma finalidade. O sujeito

melancólico é alguém que permanece “fixado ao passado, regressando ao paraíso ou

ao inferno de um experiência não ultrapassável, é uma memória estranha: tudo findou

ele parece dizer, mas eu permaneço fiel a esta coisa finda, estou colado a ela, não há

revolução possível, não há futuro”200. No melancólico, o passado ocupa todas as

dimensões da continuidade psíquica do sujeito, retirando qualquer perspectiva em

relação ao futuro e, ao mesmo tempo, direcionando a memória do melancólico para

um processo de incubação do objeto narcisístico dentro de “um túmulo pessoal sem

saída”201.

Ainda em relação a essa característica do melancólico, cabe acrescentar as

proposições de Kant202, quando ele se refere à ideia do surgimento da melancolia

como dependente muito mais de um tempo do que de um lugar. Assim, o autor,

quando caracteriza o nostálgico, diz que este, ao voltar-se para o passado, não

deseja ter de volta o lugar de sua juventude, mas sua própria juventude, enquanto um

tempo a ser recuperado, e não enquanto coisa203. O melancólico quer seu passado

de volta e, enquanto habitante de um tempo incompleto e que não pode ser

recuperado, torna-se necessariamente um habitante do seu imaginário, de seus

próprios pensamentos enquanto tentativa de recuperar esse passado.

A necessidade que sente o sujeito enlutado de voltar-se para dentro de si e

manter-se ligado à sua imaginação, à sua memória, relaciona-se diretamente ao

isolamento e à tendência ao apego por ambientes mórbidos. Dessa forma, o apego

pela noite é uma característica constante na narrativa de Quatro-olhos:

[à] noite eu saia para andar e me sentia embrulhado pelas luzes noescuro, o ar mortiço em volta piscando brilhos, ar embaçado escor-regando pelos meus músculos, luzes viscosas como óleo nos olhos;ficam assim noite avançada [...]. A noite acontece mas é uma con-venção e minha mulher a ignorava, nunca prestava atenção no ar decinzas do fim do dia. Em meu livro arranjava cenas no fim de tarde

200 KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. 1989. p. 61.201 Idem. Ibidem. p. 61.202 Apud KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. 1989.203 Idem. Ibidem. p. 62.

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para cantar a noite. Como a em que passava bela moça no lusco-fusco pardo da rua José Bonifácio204.

A situação de apego à noite demonstra a tentativa de fuga do sujeito melancó-

lico. A sensação de sentir-se bem em meio às trevas noturnas que expressa o narra-

dor, a busca por refúgio na noite, metaforiza a procura por algo que o retire da reali-

dade triste em que se encontra. Tal inclinação por ambientes noturnos pode remeter

também à representação do desejo de morte. Para o melancólico, a escuridão, as

trevas, são tomadas como símbolo de finitude e resolução para a sua situação. O

sujeito melancólico é alguém que reflete acerca do tempo em que se encontra no que

se refere à insatisfação do tempo presente e da falta de perspectiva para com o futu-

ro, e, para tal atividade, o ambiente sombrio e silencioso da noite pode servir de refú-

gio e lhe auxiliar nesse encontro com seu interior.

Na obra Em câmara lenta, assim como em Quatro-olhos, o apego à noite

fica evidente como uma opção por parte do narrador, principalmente para sair em

busca de informações acerca do passado desconhecido. Tal situação aponta para o

possível perigo de ser visto à luz do dia, diante da violência que era praticada contra

todo aquele que pudesse despertar desconfiança e uma provável ameaça ao sistema

vigente. Entretanto, o apego do sujeito melancólico de Em câmara lenta a ambientes

sombrios e espaços solitários fica mais bem evidenciado através de passagens como

a seguinte:

essa casa vazia, de repente enorme. Andar da sala para o quarto,do quarto para o banheiro, do banheiro para o outro quarto [...]. Osofá está lá, imóvel, morto, vazio. E, do outro lado dele, o cinzeiro nochão. Continua lá, esperando o cigarro que não vem mais. Não adi-anta mudar nada. Para quê? [...]. Os olhos que veem o cinzeiro es-tão vazios, são olhos vazados de um corpo morto que continua pas-seando seu ódio e seu desespero [...]. Essa casa é um monte de es-combros e de corpos mortos amontoados em cada canto. Não hánada para fazer: andar, comer, esperar [...]. Porque hoje não há na-da para fazer senão andar pela casa [...]205.

Nesse excerto, o narrador não demonstra uma ligação com a noite propria-

mente dita, mas, ao relatar determinadas situações em que se encontra solitário em

sua própria casa, agora silenciosa, carente de qualquer resquício de vida, vazia e

204 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 63.205 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 47-49.

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praticamente abandonada, remete a um pensar nesse ambiente como uma represen-

tação da noite que se abate sobre ele. O gélido e sombrio ambiente da casa vazia e

silenciosa que o envolve se assemelha ao ambiente noturno que o sujeito melancóli-

co procura para completar sua tristeza e sua desolação. A própria casa vazia, que

remete à ausência de alguém ou de algo que antes a habitava e a preenchia, metafo-

riza esse ambiente de vagueza e de solidão que a noite por si só representa.

Inserido em um ambiente noturno e propício ao isolamento, o sujeito melancó-

lico encontra o ambiente ideal para solidificar-se em sua situação de autorrecrimina-

ção e autopunição, conforme apontado por Kristeva. Dentro desse processo de em-

pobrecimento do ego, em que o melancólico faz questão de demonstrar sua precarie-

dade206, ele também se mantém fixo a uma imagem de finitude do tempo. Logo, a

insatisfação de ver o tempo passar, a presença de um presente bárbaro e a impossi-

bilidade de mudança para um futuro melhor fazem com que esse sujeito se fixe num

horizonte marcado pelo desejo de finitude e de morte. Em Quatro-olhos, é possível

perceber várias passagens que apresentam o protagonista imerso nessa ideia:

[f]ora do livro, a vida espelhada em grandes rasgos tinha muitasfaces em combate e não conseguia formar um todo coerente. Nobaile de formatura do científico, comecei a pensar nos meus ossosdescarnados décadas depois e no meio das valsas isso era a únicacoisa que fazia sentido [...]. Eu me apalpava e pensava: esses ossosainda hão de ser enterrados. Percebi que todos aqueles quedançavam haviam de morrer e pus-me a imaginá-los mortos. Ummorto com um copo de cuba-libre passou atabalhoado por mim e medeu um empurrão; uma morta de vestido vaporoso deixou agarganta exposta ao lançar a cabeça para trás numa gargalhadalúbrica207.

Diante disso, observa-se o olhar atento do protagonista em relação à situação

social à sua volta, quando ele menciona que “fora do livro” a vida apresentava-se

como um grande combate e fragmentada. Devido ao contexto em que fora escrito o

romance, tal referência possivelmente alude à situação de violência, tortura,

massacres e repressão que vigorava durante a Ditadura Militar. Nota-se como

mergulhado em tal contexto, o narrador-protagonista logo migra para uma narração

em que prevalece a ideia de finitude da vida e tendência à morte. A percepção do

protagonista melancólico, diante da caótica situação social, é de destruição e de

206 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977.207 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 117-118.

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degradação. Ao imaginar que seu próprio corpo iria se degradar e ao imaginar as

pessoas à sua volta como mortas, como indivíduos que aos poucos vão se

desfazendo, infere-se a sua visão frustrada diante da vida. A imagem das pessoas

mortas que vem a mente do narrador demonstra a sua tristeza e desilusão perante a

realidade violenta da época e diante de uma sociedade que aos poucos também vai

se degradando, desaparecendo e morrendo.

Em Em câmara lenta, a tendência à morte também se faz presente em função

de o narrador não suportar mais a dor imposta e o desespero em que se encontrava

diante dos acontecimentos que ocasionaram perdas importantes em sua vida. O ego

do sujeito apresenta-se tão empobrecido e destituído de qualquer tipo de esperança

em relação ao futuro, que ele não encontra mais razões para seguir lutando por

qualquer objetivo, apenas vê a vida como uma espera da morte:

[e]le quer conversar, não apenas contar como foi e eu não sei queconversa é essa. Talvez ele tenha esperança e ache que há saídapara essa situação toda. Sei lá. E nem importa. Mesmo que eletenha. Quem não tem mais sou eu, porque tudo acabou. A vida éapenas, hoje, um adiamento da morte próxima, uma pausa entrequem sobrevive e aqueles que já morreram, porque eles levaram oque havia de futuro208.

Nessa passagem, o narrador-protagonista externaliza sua falta de esperança

em relação à vida e em relação ao futuro. Para ele, nada mais faz sentido, pois sofre

com a perda e com a ausência de algo. O ideal revolucionário fora suprimido e, diante

disso, ele vê seu mundo dilacerado e acabado, cuja vida, agora, destituída de

qualquer valor, já não pode mais seguir adiante. Nota-se, a partir de fragmentos como

o acima citado, como o personagem sente-se insatisfeito com o momento presente e

ao mesmo tempo sem qualquer perspectiva em relação ao futuro, pois acredita que

qualquer futuro, plausível de realização, foi extinto com aqueles que morreram.

Jaime Ginzburg, ao retomar os conceitos de melancolia levantados por

Constatinus Africanus, argumenta que a noção de tristeza profunda que é

desenvolvida a partir de uma perda desencadeia no sujeito uma espécie de ponto-

chave tenso. Segundo o autor, esse quadro melancólico é extremamente difícil de ser

revertido ou curado, e nada pode ser pior do que uma mente perturbada por esse

208 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 83.

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sentimento209. Geralmente, o melancólico é alguém que sofreu a perda de filhos,

amigos queridos ou algo muito precioso e que não pode recuperar210. Em função

disso, o sujeito enlutado permanece preso a um passado o qual vê com sofrimento e

pesar, devido às perdas que teve, e também se perturba com o futuro, por temer

novamente outro dano. Envolvido nessa angústia, em função da experiência negativa

do passado e por temer mais sofrimento no futuro, o melancólico não consegue

encontrar tranquilidade e vê na autodestruição a única saída. Segundo Guardini, a

ausência de referências de orientação, que tornam o presente do sujeito tão penoso,

é o que o leva ao desejo de deixar de existir, transformando a morte num alívio para a

dor da existência211.

Embora originalmente vista como uma patologia por Constantinus e Freud, a

melancolia produz uma situação que, para alguns autores, como Aristóteles e Walter

Benjamin, apresenta fatores positivos, pois é capaz de desenvolver no melancólico

uma atitude contemplativa. A respeito dessa tendência, é Benjamin quem, em seu

livro sobre o drama barroco alemão, disserta sobre o elo existente entre melancolia e

contemplação212. Em Quatro-olhos, é possível perceber passagens, como a abaixo

citada, que demonstram a tendência do melancólico de permanecer em seu quadro

de isolamento e de profundo pensar, em estado meditativo:

de manhã não queria acordar e prezava a posição horizontal acimade tudo, envolto em lençóis e colchas que me separavam do mundoacidentado. A meditação presa procurava um ponto fixo, perfeito, umponto de luz num mundo escuro, Deus ou o que fosse213.

Essa passagem demonstra que o sujeito melancólico é alguém que busca o

distanciamento do mundo real. O não querer acordar pela manhã remete a um não

querer voltar a fazer parte de um mundo caótico, e a necessidade que demonstra

Quatro-olhos de permanecer no silêncio de seu quarto, longe “do mundo acidentado”,

evidencia o seu desejo de também não querer fazer parte daquela situação social

que se apresentava. O isolamento contemplativo que busca o melancólico é também

uma tentativa para compreender o mundo à sua volta. A partir desse aparente distan-

209 GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinteanos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 46.210 Idem. Ibidem. p. 46-47.211 Apud Idem. Ibidem. p. 64.212 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984. p. 163-169.213 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 70.

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ciamento da realidade, as situações de autoritarismo e repressão não passam des-

percebidas ao melancólico. É através da reflexão e da contemplação que o protago-

nista procura encontrar explicações aceitáveis para a real situação histórica que o

cercava.

Nesse sentido, o fumo é também outro fator que caracteriza a ação contem-

plativa do sujeito: “[s]entei-me à cadeira do quarto e fiquei até a madrugada fumando,

sentindo o peso do paletó em meus ombros e acariciando as mangas, pensando na-

quela vida que se fora dentro daquele paletó”214. Uma cena como essa demonstra

uma situação bem típica do sujeito melancólico, uma vez que, diante de grande frus-

tração e de comportamento alterado, passa a manifestar de forma intensa seu desâ-

nimo. Nesse caso, a representatividade através do ato de fumar remete à imagem do

sujeito desesperado, que até mesmo inconsciente tenta fazer mal contra si próprio.

Por outro lado, o cigarro serve para marcar ainda mais a condição de debilidade do

melancólico, desligado do mundo à sua volta e imerso na contemplação.

Situação similar é encontrada em Em câmara lenta, quando, por vezes, o nar-

rador-protagonista demonstra estar só, em estado de meditação ou simplesmente em

busca de suas próprias convicções já perdidas ou desencontradas. Assim é possível

perceber:

[o] vazio, outra vez, como agora, sozinho em casa, sentado na beirada cama, olhando a parede. Quase escuridão, um zumbido surdo, apele se esticando, os olhos mortos cansados de ver e vendo, aindauma vez, na parede o rosto dela, os cabelos curtos, os olhos ligei-ramente estrábicos dando um ar de distanciamento no rosto branco,como se visse o mundo de longe, com segurança e certeza do quevia215.

Aqui, o protagonista demonstra seu isolamento e a reflexão oriunda desse es-

tado. Apresentar-se sozinho em seu quarto diante de uma “quase escuridão” expres-

sa a busca do narrador pelo reencontro com seus pensamentos e com suas memó-

rias perdidas. A reflexão, ou o simples ato de parar para pensar em tudo o que acon-

teceu, é característica recorrente desse sujeito, pois ele tenta, através de suas me-

mórias, reencontrar o objetivo e assim suprir sua ausência, mesmo que por momen-

tos. O voltar-se para o tempo passado, um tempo que não pode mais ser recuperado

214 Idem. Ibidem. p. 118.215 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 24.

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no presente, é uma forma de tentar recuperar algo perdido. E, assim como o exposto

por Freud, o maior desejo do melancólico resume-se em eliminar completamente as

marcas do tempo e incluir no seu presente outras dimensões temporais, sem o sofri-

mento decorrente do reconhecimento dessa impossibilidade e da realidade inquestio-

nável da separação216.

Através do isolamento e da meditação, o sujeito é capaz de chegar a um pro-

fundo entendimento da verdade. Walter Benjamin, em seus argumentos, aponta para

a questão de que o melancólico mantém uma pré-disposição muito grande à contem-

plação e destaca que a meditação é própria do sujeito enlutado217. Segundo o autor,

tal pressuposto está amparado por dois elementos básicos. Em primeiro lugar, pela

associação que faz da melancolia à bílis negra e, posteriormente, pela gravura de

Albrecht Dürer, que representa a melancolia, a Melancolia I (ver anexo à pág. 157).

De acordo com Benjamin, a bílis negra, que é a substância fisiológica caracterizada

dentro da patologia dos humores pelo excesso do elemento seco e frio no organismo,

é a responsável pelo desenvolvimento da melancolia bem como é capaz de motivar o

espírito enlutado à meditação.

Benjamin ainda acrescenta a esse elemento o fato de que a teoria da

melancolia está diretamente associada à doutrina das influências astrais, sendo que,

nesse quadro, Saturno é o planeta que governa o melancólico. Sendo assim, ao ser

compreendida na perspectiva de Saturno, que é o planeta mais alto e o mais afastado

da vida cotidiana, responsável por toda a contemplação profunda, a alma do sujeito

melancólico é convocada para a vida interior, afastando-se das exterioridades,

levando-a a subir cada vez mais alto e inspirando-lhe um saber superior e um dom

profético218. Em relação ao segundo elemento que representa a melancolia enquanto

propícia à meditação, refere-se ao quadro de Dürer, a Melancolia I, o qual trás um

personagem, situado em meio a uma série de objetos dispersos pelo chão, que tem

seu rosto apoiado em uma das mãos, olhar distante e perdido, alheio a tudo à sua

volta. Tal figura ilustra, segundo Benjamin, a imagem convencional da tristeza e um

símbolo do homem contemplativo, em busca da verdade profunda.

Friedrich Schiller, em seu texto Acerca do sublime, argumenta que a

imensidão do universo contrasta com a finitude do ser humano. Diante disso, a

sensibilidade que emanaria do sujeito estaria atenta à grandiosidade, justamente

216 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977.217 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984. p. 163.218 Idem. Ibidem. p. 171-172.

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voltada para a demanda de superar limitações inevitáveis219. De acordo com o autor

alemão, a contemplação retira o espírito do melancólico do cativeiro da realidade

opressiva de sua vida física e representa uma recusa da imponente condição em que

vive.

Tais apontamentos, que não deixam de retomar algumas proposições já

iniciadas por Aristóteles e Constantinus Africanus, contribuem para a compreensão

de situações, hábitos, atitudes e comportamentos expressados pelos narradores-

protagonistas de Quatro-olhos e de Em câmara lenta. Nos respectivos romances,

os protagonistas, imersos em um sistema autoritário e violento, lutam constantemente

contra as amarras impostas às suas existências. Dentro desse plano, nota-se que

ambos os protagonistas demonstram ciência da condição de fracasso humano em

que se encontram e, diante disso, é possível observar que, por vezes, seus

comportamentos oscilam. O caráter dos protagonistas, não raras vezes, passa a ser

determinado por um dualismo intenso, cuja personalidade ora apresenta-se forte e

poderosa, ora frágil e precária.

Em Quatro-Olhos observa-se esse espírito dual, de acordo com o abaixo

exposto:

[e]m meio à empreitada, me detinha por vezes em esquinas e assombras das nuvens me ultrapassavam, de modo que eu ficava àsvezes sombrio e outras iluminado. Não ventava, mas nos momentosem que a sombra saía de mim (pois não era eu que estava àsombra, ela passava por mim) ou quando a luz corria por mim, derepente e só nesses momentos eu me sentia me movimentando,embora estivesse parado. E lembrava, não sei se do livro ou davida220.

Nota-se a dificuldade que o sujeito melancólico tem para administrar situações

referentes ao espírito e ao corpo. Nesse estado, o melancólico sofre uma ruptura do

seu universo interior com os elementos exteriores que o cercam. A dualidade está

em, mesmo tendo consciência da realidade que o cerca, o sujeito melancólico

permanece no seu universo íntimo e triste, como alguém que procura o refúgio dentro

de si próprio. Nessa cena, o melancólico é alguém dividido entre o desejo da ação e a

dificuldade para realizá-la. As ideias contraditórias invadem seu pensamento, e sua

personalidade passa a migrar de um extremo emocional para outro: ora o narrador

219 SCHILLER, Friedrich. Acerca do sublime. In: ____. Teoria da tragédia. 1991. p. 54.220 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 31.

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sente-se “iluminado” ora “sombrio”. Sua percepção aguçada da realidade, provinda

da inclinação à meditação, apresenta um sujeito tipicamente melancólico, desiludido,

profundamente triste e que sente prazer em expor sua debilidade diante das perdas

que sofrera. Contudo, essa mesma necessidade de exposição da fragilidade, de

modo muito particular, é invertida na narrativa de Quatro-olhos quando o narrador

demonstra sua insistência em recriar sua obra, em lutar contra o esquecimento e

reconstruir sua vida.

Em Em câmara lenta, o mesmo paradoxo é encontrado. O sujeito melancólico

– que, nesse caso, apresenta-se vencido e debilitado perante a derrota e que não vê

mais sentido em viver – é o mesmo que, em determinadas cenas, irá à luta numa ten-

tativa de vingança em honra às perdas que tivera. Diante o exposto, observa-se:

[a] sensação de perda é física, como se faltasse a laringe ou o esô-fago e não vai passar porque se, ao menos, tivesse servido para al-guma coisa. Mas não, simplesmente acabou, e com isso acabou otempo [...]. [É] muito tarde. Para qualquer coisa; e, além do mais, sechamar atenção, que é que tem? Se eles virem e atirarem e as balaspegarem no peito, na cabeça, que é que tem? Se a dor vier e rasgaro corpo de cima a baixo é um alívio221[...].[L]utar. Qualquer outra alternativa é fuga, é demissão, é colaboraçãocom o inimigo. E isso continua valendo: qualquer escolha que a pes-soa faça será uma traição se ela não escolher a luta [...].[S]obreviver e gritar que ainda estamos vivos222.

O primeiro fragmento apresenta o narrador-protagonista extremamente debili-

tado diante da sua condição de sujeito derrotado pelo sistema violento e opressor. O

vazio ocasionado pelas perdas que sofrera é tão grande e doloroso, que se iguala, na

sua concepção, a um órgão vital indispensável ao funcionamento de seu corpo. Dian-

te disso, ao dar-se conta do seu dilaceramento, o personagem não apresenta qual-

quer zelo pela preservação de sua própria vida, pelo contrário, chega a creditar que a

morte pode até servir como um alívio para sua dor. No entanto, no segundo trecho

citado, o narrador demonstra um pensamento contrário em relação ao primeiro. Nes-

te, ele busca forças para continuar vivendo e lutando. Mesmo diante da dor e da vio-

lência socialmente impostas, ele demonstra a necessidade de manter-se vivo para

continuar a luta que fora perdida no passado. A renúncia a esse ideal, bem como o

221 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 13-14.222 Idem. Ibidem. p. 49-50.

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abandono da própria vida, passam a ser criticados pelo mesmo sujeito que em um

momento anterior parecia não se importar mais com tais elementos.

Diante da percepção das antíteses apresentadas pelos sujeitos melancólicos,

torna-se necessário retomar as proposições levantadas por Benjamin no que se

refere ao fato de existir uma associação entre o planeta Saturno, o deus Cronos e a

condição melancólica. De acordo com o conhecimento mitológico, para os gregos,

Cronos é o deus marcado pela dualidade. Por um lado, ele é um deus benéfico da

agricultura, que realiza as festas das colheitas; por outro, é um deus sombrio,

solitário, que vive na extremidade mais recolhida da terra. É o deus da morte e dos

mortos, pai dos deuses e dos homens, é capaz de gerar a vida, mas também de

devorar seus próprios filhos; por um lado, é um monstro capaz de ser vencido pela

astúcia mais vulgar, e, por outro, é o deus antigo e sábio, venerado como a

inteligência suprema223.

Assim, conforme argumenta Ginzburg, a posição do planeta Saturno, as atitu-

des de Cronos (criar e matar) e as suscetibilidades da bile negra (cuja principal pro-

priedade, segundo Aristóteles, é a inconstância, oscilando entre graus intensos de

calor e frio), por caracterizarem uma articulação de extremos, suscitam também no

melancólico uma vocação para sentimentos extremos224. Tais desequilíbrios tendem

a afastar o melancólico de uma certa média equilibrada, fazendo com que este oscile

entre a ansiedade e o abatimento, desviando da norma regular e rumando sempre

aos extremos. Sendo assim, de acordo com Aristóteles, essa variação de comporta-

mento da bile negra tornaria o melancólico um ser “polimorfo”, que agiria e sentiria

de maneiras diversas e contraditórias, capaz de oscilar entre a atimia, o desapego à

vida, e as manifestações eufóricas225: “para resumir, pela razão de que a eficácia da

bile negra é inconstante, inconstantes são os melancólicos”226.

Ginzburg ainda aponta para os estudos de Romano Guardini, Jean-Pierre S-

challer e Oliver Pot ao tratar da existência do dualismo no sujeito melancólico227. Em

Guardini, o comportamento dual do melancólico acontece em função da coexistência

paradoxal de dois instintos do sujeito: a afirmação de si, em busca de uma ascensão,

223 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984. p. 172.224 GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinteanos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 50.225 ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema XXX, I. 1998. p. 99.226 Idem. Ibidem. p. 107.227 GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinteanos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 55.

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e a renúncia à existência. Para esse autor, a dualidade ocorre em função do sujeito

melancólico, em meio à sua tristeza, ao buscar transcender suas próprias limitações,

não conseguir devido à sua precariedade. Assim, seus valores são relativizados, suas

referências passam a ser duvidosas e incertas, de modo que o sujeito sente-se deso-

rientado consigo mesmo. Em Schaller, o dualismo do melancólico é visto como uma

frustração em decorrência da oposição entre as expectativas deste e sua realidade

frágil. O melancólico é alguém inquieto diante da finitude das coisas e aspira vencer

suas limitações; entretanto, frustra-se ao perceber os próprios limites. Por sua vez,

Pot vê a melancolia como um estado de passagem, como o reconhecimento da cons-

ciência do mover-se de uma faixa etária para outra. Em função disso, a melancolia se

apresentaria dual, pois resultaria de um processo de passagem entre dois estados228.

Outra característica significativa observada na narrativa de Quatro-olhos e de

Em câmara lenta refere-se à questão problemática da comunicação de seus narra-

dores, provavelmente desencadeada pela perturbação de suas mentes. A respeito

dessa particularidade, em Quatro-olhos, pode-se observar passagens como:

[n]ão creio que esse gordo aparecesse outras vezes. Vêm à memó-ria, porém, pedaços em que eu falava de calçadas ensolaradas, pi-sadas por pés femininos no fim da manhã. A passagem da donadesses pés interrompeu conversa sobre galinhas, entre duas senho-ras a um portão, e conciliábulo num carro, entre um despachante eseu freguês [...]. Também me surge ao quengo ter escrito sobre cor-redores, espaços abertos em salas burocráticas, em que se concen-travam vida e conversas na firma. Minha mulher apreciava licoreiras,isso posso dizer com certidão; nosso apartamento dispunha de cris-taleira, porta-chapéu e outros testemunhos da época mais auste-ra229.

Através desse excerto, observa-se como a linguagem de Quatro-olhos apare-

ce destituída de organização. Tem-se no fragmento uma mescla entre algumas lem-

branças por parte do narrador de trechos de seu livro original e também vagas memó-

rias da vida cotidiana que levava com sua mulher. A fala do protagonista apresenta-

se problemática, pois a conexão entre as passagens do livro e de sua vida real apre-

senta-se incompleta. Por outro lado, a rapidez com que migra de um assunto para

outro, como quando relata o que lembra de ter escrito em seu original e logo em se-

guida, quando começa a narrar gostos que possuía sua mulher, bem como determi-

228 Idem. Ibidem. p. 55-57.229 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 84-85.

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nados objetos que possuíam em sua casa, demonstra a precariedade de sua mente

para organizar a linguagem e definir como esta deve ser externalizada.

A narrativa de Em câmara lenta também toca nesta questão. A linguagem

inacabada, cercada por reticências e por não ditos dessa obra, ratifica a fragilidade

em que se encontra o ego do sujeito melancólico, denunciando sua quase impossibi-

lidade de organização do discurso:

[u]ma imagem que não é mais do mundo, mas de uma solidão volta-da sobre si mesma. O gesto incompleto, estilhaçado, no momentoem que ela.O barco à deriva foi encontrado por alguns caboclos. A polícia veiover o corpo do piloto, encontrou os livros e o disco. Os serviços desegurança consideraram os livros como altamente subversivos230.

Com base nesse fragmento, nota-se que em um primeiro momento o narrador

não leva seu discurso até o final e o interrompe de maneira brusca quando relata a

cena em que lembra da possível morte de sua amada. Quando a expressão “no mo-

mento em que ela” termina uma frase, que possivelmente teria continuação, entende-

se com isso que o narrador, em função da profunda dor que sofre, ou não quer levar

por vontade própria esse discurso até o final, ou não sabe o que dizer, devido ao seu

desconhecimento em relação a esse episódio. Aqui, tem-se também a mudança de

assunto de maneira muito rápida, e isso acontece em virtude das lembranças frag-

mentadas que surgem numa mente debilitada, impossibilitando uma sequência de

ideias coerentes entre si.

Segundo Kristeva, o discurso fragmentado vai ser o produto final do melancó-

lico, pois é resultado do seu ego que também encontra-se fragmentado231. A frag-

mentação é então um sintoma da condição melancólica em que se encontra o sujeito.

O melancólico não consegue organizar uma espécie de relato lógico e conexo quan-

do sua consciência está perturbada pelo sentimento de perda. O discurso do deprimi-

do surge construído muitas vezes com signos absurdos, com sequências retardadas,

deslocadas, paradas, o que traduz o desmoronamento do sentido no não – nomeável

em que mergulha232.

230 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 43.231 KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. 1989. p. 25.232 Idem. Ibidem. p. 54.

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Na obra Quatro-Olhos, o discurso aparece fragmentado e totalmente desco-

nexo. O protagonista mescla uma série de acontecimentos que ora se confundem

com realidade, ora com delírio, ora com passagens que se encontravam no seu livro

perdido, demonstrando assim a debilidade em que se achava o sujeito e ratificando a

presença da melancolia na vida do sujeito. Por sua vez, Em câmara lenta apresenta

uma narrativa também bastante dificultosa, pois o narrador, com uma linguagem não

menos marcada pelo desânimo e pelo desalento que toma conta de si, expõe histó-

rias que se misturam com seus devaneios e suas desilusões. Fato é que ambas as

obras mergulham profundamente nas raízes autoritárias do Brasil do período ditatorial

e geram narrativas desafiadoras e extremamente desconfortáveis, que fogem do pa-

drão literário canônico. Tais narrativas expõem a olho nu o espírito melancólico e sem

perspectiva, instaurado nos indivíduos, devido às represálias ocasionadas pelo vio-

lento sistema político oriundo da Ditadura Militar.

3.3 Trauma e fragmentação em Quatro-olhos e Em câmara lenta

Havia em mim pedaços mortos, ia-me, aos poucos habituando àsepultura; difícil ressurgir, vagar na multidão, à toa, como almapenada.

(Memórias do cárcere, Graciliano Ramos)

São profundas as marcas deixadas na memória dos indivíduos que passaram

por experiências de violência, oriundas do período ditatorial brasileiro. Durante as

duas décadas, entre 1964 e 1985, em que governo militar esteve no poder, o país

assistiu e também sofreu as mais distintas e hediondas formas de violência. O autori-

tarismo do governo militar lançou mão de estratégias extremamente brutais a fim de

barrar qualquer manifestação, por parte da sociedade, que se mostrasse adversa ao

modo governamental vigente. O rigor com que a repressão passou a dominar a soci-

edade brasileira da época era marcado desde o controle de informações nos meios

de comunicação à censura a produções artísticas e culturais. Sobretudo foi através

de perseguições, prisões, e os inúmeros modos de tortura, que iam desde pressão

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psicológica a agressões físicas, com os mais distintos instrumentos, que a brutalidade

do poder vigente foi mais incisiva e destruidora.

A tortura a que eram submetidas as pessoas suspeitas de qualquer manifesta-

ção que pudesse ameaçar o governo não só provocou dor física nas vítimas, mas foi

responsável pela destruição moral e pelo surgimento de marcas indeléveis no psico-

lógico dessas pessoas. O fato de fazer com que os torturados chegassem ao limite

da dor física e ao extremo de seu emocional é fator determinante para as distintas

sequelas que passaram a habitar o psíquico dos sobreviventes. A tumultuada relação

entre memória e esquecimento, discutida em subcapítulo anterior, exemplificada pela

necessidade de lembrar do passado, prática que entra em choque com a dificuldade

para fazê-lo, devido ao esquecimento que confunde as lembranças, é então marca

proveniente da tortura. Da mesma forma, destaca-se o forte vínculo entre as lem-

branças do passado e a condição melancólica, a qual passa a se fazer presente no

emocional do sujeito em decorrência das perdas desse passado, sejam elas físicas,

como pessoas, ou emocionais, como o esquecimento.

Entretanto, a relação de choque que ocorre entre memória e esquecimento,

bem como o fator perda que desencadeia a melancolia, não podem ser observados

isoladamente. Há uma relação intrínseca entre a questão da memória, a perda ocasi-

onada pelo esquecimento e o estado melancólico, cuja manifestação problemática e

dificultosa vai ser observada através do discurso, dos problemas de linguagem dos

indivíduos que sobreviveram às situações limites. É na linguagem fragmentada, no

discurso truncado, repetitivo e sem logicidade, que se observa quão inapagáveis são

as marcas deixadas pela violência e como podem permanecer, para sempre, impreg-

nadas no psicológico de suas vítimas. Em outras palavras, o que se argumenta aqui é

que a linguagem fragmentada, assim como pode ser observada tanto em Quatro-olhos quanto em Em câmara lenta, é também resultado da experiência traumática

suscitada pelo período ditatorial brasileiro em curso na época.

A escrita dessas obras não pode objetivamente ser classificada na ordem da

realidade, como observação empírica, mas à ordem do “real”, enquanto trauma e co-

mo uma experiência impossível de ser contada do modo como aconteceu. As lem-

branças que habitam tanto a mente do narrador de Quatro-olhos, quanto de Emcâmara lenta, dizem respeito à esfera daquilo que não pode ser simbolizado, perten-

cem ao indizível, à ordem do excesso, encontrado na origem do trauma. Este, segun-

do Freud, configura-se no estado psicológico que fica um sujeito que foi submetido a

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um susto (schreck) para o qual não estava preparado. Segundo o psicanalista, é a

angústia (angst) que coloca o sujeito em estado de espera e o prepara para um peri-

go, mesmo que desconhecido, livrando-o de possíveis neuroses. Entretanto, a prepa-

ração não antecede o susto ou o horror, que ocorre subitamente, originando o trau-

ma233.

Segundo Seligmann-Silva, sobreviventes de situações extremas, como é o

caso da Ditadura Militar, sentem necessidade de narrar o trauma vivenciado, o que se

configura num desejo de renascimento, uma vez que o indivíduo precisa retornar à

sua vida e reconstruí-la234. Esse relato, que ficou conhecido como “testemunho”, nem

sempre é algo fácil de ser concretizado, pois não basta, à vítima, narrar a experiên-

cia, é indispensável a presença de alguém disposto a ouvi-la. A necessidade da pre-

sença de um ouvinte pode ser suprida numa terapia, quando a dor é externalizada

diante desse ouvinte, mas também esse ouvinte não precisa ser necessariamente

uma pessoa, pode ser a própria escrita da experiência. Diante dessa estratégia, mui-

tos são os sobreviventes que apelam à literatura de testemunho como uma tentativa

de transpor a barreira traumática e também de apresentar uma outra versão da histó-

ria, questionando e colocando em xeque a versão oficial dessa história contada pela

classe detentora do poder.

Com base em tais pressupostos, observa-se, nas obras literárias em estudo,

como são representadas as situações de violência a que estavam expostas as pes-

soas da época. Tanto Renato Pompeu, quanto Renato Tapajós, figurantes desta épo-

ca de autoritarismo que o Brasil enfrentou por conta da Ditadura Militar, vivenciaram

situações violentas ocasionadas por este sistema e buscaram, por meio da literatura,

dar testemunho às suas experiências.

Dessa forma, é possível observar, por meio do discurso testemunhal desses

autores, como a violência imperava e de que forma contribuía para a degradação da

sociedade durante o período ditatorial. Em relação a isso, destaca-se um fragmento

da obra Quatro-olhos:

[a] chuva era também objeto de distinta consideração. No meu texto,vinha aos pingos, parecendo nunca repetir-se exatamente sobre o

233 FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: ____. Obras psicológicas completas.1976b.234 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofeshistóricas. Psic. Clin., 2008. p. 65-82.

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mesmo ponto, mas acho que isso era ilusão. A chuva fria, caindosobre a terra seca, fazia flutuar aquele cheiro característico. A gentechapinava onomatopeicamente nas ruas inundadas, a umidade pe-netrando roupa da gente dentro. Cabelos úmidos louros ficavam es-curos e desmanchavam-se, alterando a fisionomia das pessoas;ombros molhados aceitavam guarda-chuva de estranhos e pés a-fundavam n’água, todos andando com muita pressa. É sabido que avelocidade dos pedestres se acelera com a deteriorização do tempo,embora seja esse um conhecimento empírico. Seria necessário pos-tar vários técnicos e cientistas numa esquina, munidos de trena, cro-nômetro e folha de anotações para saber isso com certeza científica.Os pesquisadores determinariam uma distância qualquer, digamosvinte metros a contar de um poste, e ficariam observando quantotempo as pessoas levariam para percorrê-la. Examinando alterna-damente em dias de sol e de chuva, seria possível finalmente de-terminar se as pessoas andam mais depressa com mau tempo ounão. Aí, eu escritor, poderia dizer com confiabilidade a frase: “todosandando com muita pressa”, como está acima235.

O fragmento acima poderia ser visto como a descrição de uma situação trivial

do cotidiano. Entretanto, pode-se inferir, tendo em vista o contexto em que tal obra

fora produzida, que o que esse trecho sugere é um jogo de metáforas para referir-se

à violência praticada pelo poder vigente. A menção à chuva pode ser vista como uma

alusão à repressão, à violência e à tortura. Da mesma forma, a referência aos “cabe-

los úmidos”, que se desfazem devido à chuva e que alteram a “fisionomia das pesso-

as”, pode aqui ser analisada como uma alusão ao pós-tortura, uma vez que as víti-

mas ficavam completamente desfiguradas fisicamente, devido ao elevado grau dos

espancamentos.

O trecho ainda menciona o fato de que as pessoas apressam mais o passo

quando há chuva e que também aceitam a ajuda de estranhos para se protegerem

dela. A situação ilustrada pelo narrador demonstra que, em circunstâncias como es-

sas, as pessoas correm porque têm medo da perseguição e da violência e, por isso,

buscam proteção para ficar a salvo. O sol também é mencionado nessa passagem;

entretanto, de maneira oposta à chuva, pois, ao se referir ao sol, o narrador discute a

questão de que, em dias ensolarados, as pessoas parecem andar menos apressa-

das, o que leva a pensar que essa situação é uma menção a tempos de paz e de

liberdade, em que as pessoas podem andar tranquilamente pelas ruas, sem medo.

Dessa forma, a chuva, como representação do mau tempo, é também sinônimo de

235 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 132.

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tempos difíceis e sombrios, assim como aquele em que as pessoas viviam sob re-

pressão e violência.

Em Em câmara lenta, também é possível perceber a preocupação do narra-

dor em demonstrar, por várias vezes, a situação violenta e degradante em que estava

mergulhada a sociedade brasileira da época. O trecho abaixo ilustra tal colocação:

[o] mundo continua envolto em algodão, os ruídos amortecidos, aspessoas distantes, mas tem um monte de gente, isso distrai um pou-co e é preciso prestar atenção aos gestos normais. Tranquilo comoqualquer pessoa, o rosto só transmite o mesmo alheamento cansadode todo mundo, dos que estão voltando de um dia de trabalho monó-tono e medíocre [...]. Mas não se deve deixar transparecer que nostransformaram em carne moída duma vez só e o rosto não transmitenada [...]. Por isso a gente está cada vez mais isolado, sozinho des-confiado, mas tudo isso nem tem mais importância236.

Através dessa passagem, o narrador apresenta algumas características do

cotidiano de violência e de medo em que estavam mergulhados os indivíduos. Fala

de como as pessoas viviam temerosas, pois o perigo poderia estar escondido atrás

de qualquer rosto, e, atrás da face que menos despertasse suspeita, poderia surgir o

horror. Trata-se, pois, de abordar como os militares infiltravam-se no meio de diver-

sos grupos para poder, com maior facilidade, perseguir e prender os suspeitos ou até

mesmo saber o que estava acontecendo nas diversas esferas da sociedade, para,

assim, coibir qualquer manifestação contrária aos interesses do governo. A menção

aos rostos que nada transmitem refere-se ao silêncio a que deveriam se submeter as

pessoas para que não fossem perseguidas e presas. O importante era não demons-

trar qualquer contrariedade e, mesmo aquelas que o sistema repressivo já havia se

encarregado de “interrogar”, não poderiam deixar transparecer em sua face qualquer

sinal de desfiguração, tanto física quanto moral.

As aludidas referências que ambos os narradores fazem acerca da realidade

ditatorial da época demonstram, pois, a necessidade de dividir com alguém, levar a

um possível ouvinte ou leitor o conhecimento acerca da situação social a que a popu-

lação estava submetida. Segundo Shoshana Felman, a propagação do testemunho

dos tempos de crise e sua onipresença nesta “era dos extremos” apresenta-se como

uma possibilidade de transmissão de conhecimento e direcionamento para o pensar

236 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 19.

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da história enquanto produtora de catástrofes237. Do contrário, argumenta a autora,

ao seguir preceitos teóricos benjaminianos, não buscar nas ruínas do passado res-

postas para o presente é uma forma de aumentar a incompreensão em relação aos

rumos da experiência humana. Jeanne-Marie Gagnebin, estudiosa das teorias de

Benjamin, explica que cada acontecimento histórico do passado espera pacientemen-

te ser reconhecido, cuja descoberta é só uma questão de perseverança e de habili-

dade. A crítica ainda cita palavras de Dilthey, quando diz que a célula original do

mundo histórico é a experiência vivida238. Para ela, só a experiência é capaz de com-

por um continuum histórico aceitável, o que indica que o testemunho, enquanto resul-

tado de uma experiência vivida, torna-se o caminho ou o modelo de narração capaz

de escrever uma outra história.

Seligmann-Silva também comunga da tese de que o testemunho de cenas

violentas extremas apresenta-se como um registro da história, pois pode servir como

um documento para uma contra-história ao apresentar outro ponto de vista discrepan-

te da história oficial239. Contudo, apesar de o testemunho apresentar um considerável

conteúdo para a história e de aquele que sobreviveu uma situação extrema sentir

necessidade de testemunhar e contar o vivido, enquanto estratégia de libertação e

tentativa de retorno à vida, o testemunho é algo que não se dá de maneira tranquila

ou plena de êxito. O sujeito percebe que a linguagem, seja de forma oral ou escrita,

não consegue dar conta da tarefa de narrar o que se propôs, gerando, assim, um

grande conflito diante do querer narrar e de sua impossibilidade em função dos pro-

blemas psicológicos e de memória, ocasionados pelo evento traumático.

Em Quatro-olhos, é possível notar a necessidade que sente o narrador para

retomar um possível “curso normal” da vida. Observa-se como o protagonista debate-

se, através da narração, na busca pelo restabelecimento da ordem que parece ter

sido destruída. Diante disso, destaca-se:

enfim queria dar notificação de que festa é festa, advertir que ou seestá vivo ou morto, morto-vivo não funciona, eia, eia sus, vamos ar-mar grossa farra, vamos impor a ordem nesse caos, sou partidárioconvicto da ordem; faça-se a ordem, pois – alguém dê a ordem, a-

237 FELMAN, Shoshana. Educação e crise ou as vicissitudes do ensinar. In: NESTROVSKI, Arthur;SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. 2000.238 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória e libertação. In: ____. Walter Benjamin: os cacos dahistória. 1982. p. 63.239 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura etradução. 2005. p. 89.

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cione o apito, primeiro o surdo, depois as caixas, tarol, atabaque, cu-íca e tamborim, haja ordem e não o caos desordenado das conver-sas desconexas e isoladas, para fazer isso não precisa haver reuni-ão, fica cada um no seu canto ou cada par na sua cama que nin-guém vai incomodar, é preciso acabar com essa desordem, onde es-tá o mestre-sala, cadê a porta-estandarte240.

Através desse excerto, nota-se como o narrador ansiava pelo restabelecimen-

to da ordem. Tal necessidade demonstra o quão fragilizado se encontrava em decor-

rência de tudo o que havia vivido. Suas ideias encontravam-se desconexas, a ponto

de não identificar, muitas vezes, se estava vivo ou morto. A menção aos vários ins-

trumentos musicais remete à necessidade de provocar a harmonia, pois, assim como

os sons dos diferentes instrumentos musicais geram um só som harmonioso, infere-

se seu desejo de também conseguir concatenar em sua mente todas as lembranças

e informações que se apresentavam confusas e embaralhadas em função do trauma

sofrido.

Da mesma forma, nota-se, no discurso de Em câmara lenta, a preocupação

do narrador pelo restabelecimento da ordem. Assim, observa-se:

os oradores falaram dos interesses do imperialismo americano, daresistência do povo cubano, de socialismo e liberdade. Aqueles con-ceitos que eu já havia lido em algum lugar começaram a tomar con-tornos reais. Eu conheci o mundo pelos livros, só depois aprendi areconhecê-lo na vida. Ali, no sentimento exaltado de revolta, no en-volvimento pela emoção, aquelas palavras, que nos livros eram frias,saltaram para dentro da vida, reais, palpáveis, vibrantes: liberdade,revolução, socialismo. Saí de lá de madrugada, cansado, confuso efeliz. Aquelas ideias haviam se tornado reais, mas estavam todasdesarrumadas, desarticuladas, caóticas. Levei muito tempo tentandoarrumá-las, mergulhando na vida para colocá-las na ordem. E des-cobri que sua ordem é a própria vida241.

Através desse fragmento, nota-se que o narrador é alguém que vê tudo desin-

tegrado à sua volta. Ele se dá conta de que a situação que vivera durante o período

ditatorial o perturbara muito. Os acontecimentos faziam parte de sua vida e ele parti-

cipara de tudo, entretanto, percebe que, por mais que tente organizar em sua mente

e entender de maneira coerente tudo o que estava acontecendo no país, não conse-

gue êxito. O protagonista então percebe que não é possível estabelecer a ordem em

240 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 33-34.241 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 71-72.

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sua mente para entender de forma lógica acontecimentos e situações que já se apre-

sentam destituídos de logicidade e coerência. A busca pela ordem que pode ser infe-

rida com essa passagem demonstra também uma tentativa de restabelecimento de

uma ordem interior, de uma organização de ideias e pensamentos capazes de libertá-

lo do caos psicológico em que se encontrava.

O conflito psicológico e o descontrole dos narradores, o que pode ser obser-

vado nos fragmentos acima, são tratados por Calegari como uma manifestação da-

quilo que representa o desconhecido, o não convencional. Ao se observar a busca

pela ordem como uma recorrente tanto em Quatro-olhos, quanto em Em câmaralenta, pode-se dizer, de acordo com o mesmo autor, que a noção de desordem em

que se encontram os narradores é também a base para a linguagem fragmentada e

desordenada. Estar exposto a ocorrências sociais de grande impacto, como situações

de violência, faz com que a constituição subjetiva do indivíduo seja abalada, proble-

matizando, dessa forma, o próprio ato de narrar242.

A busca pelo restabelecimento de um certo curso normal das coisas é um de-

sejo explicitado por ambos os protagonistas. Porém, de acordo com as formulações

de Seligmann-Silva, a narrativa do testemunho sempre irá dar-se de maneira ambí-

gua e conflituosa. Em outras palavras, por mais que o sujeito se esforce para relatar,

os traumatismos por ele sofridos foram além de sua capacidade de elaboração e as-

similação. O sobrevivente não consegue atribuir legitimidade aos eventos. Dessa

forma, o desconforto diante da impossibilidade de articulação da linguagem dá origem

a um discurso marcado pela fragmentação.

Em Quatro-olhos, o discurso fragmentado e a consciência do narrador diante

da insuficiência da linguagem para narrar perpassam toda a obra. Em relação a isso

observa-se:

complexa rede de interações sociais, pois, como se diz, a palavranunca é alienada, materialização forçosa que é, havia naquele dia seentrelaçado de maneira que me tirava da boca o que tinha a dizer.Muito maior contribuição daria à ciência da estética não quem expli-casse a menor vírgula dos que escrevem, mas o silêncio de quemnão cria. Esse é o problema central, a meu ver.Naquele dia, portanto, o choque permanente de obscuras potênciassociais, a história em movimento, a luta de classes em escala inter-nacional, as contradições entre o homem e a natureza, tolheram i-

242 CALEGARI, Lizandro Carlos. A literatura contra o autoritarismo: a desordem social comoprincípio da fragmentação na ficção brasileira pós-64. 2008. p. 279.

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nexplicavelmente meu astro, que disso não tinha consciência, agen-te mais passivo do que ativo do surdo conflito que o amoldou tal co-mo é. A consciência das massas, durante aquele período de horasclaras no quadro de meridianos e paralelos em que gradativamenteme movimento, parecia particularmente entorpecida, a ponto de, aoperpassar por mim o desejo de prosseguir a obra, não atingiu grausuficiente para me levar a pegar a caneta. Talvez, no entanto, a con-juntura dos dominantes é que estivesse notavelmente intensificada àluz daquele dia. Houve empate e fiquei imobilizado como agente so-cial da produção. É possível, porém, que a realidade esteja sendotransposta às avessas no meu sentir e que exatamente a ausênciade meu papel, a inexistência de meu texto, melhor conviesse, na-quele momento histórico particular, aos interesses do progresso243.

Esse fragmento demonstra o problema enfrentado pelo protagonista no decor-

rer da escrita de sua obra. Ele sente necessidade de narrar alguns fatos que conside-

ra importantes, mas, ao mesmo tempo, depara-se com a dificuldade de organizar as

ideias. O narrador não encontra linguagem adequada para transmitir para o papel as

cenas que se “entrelaçavam” em sua memória. Afora isso, o narrador tem em sua

mente as imagens e o conhecimento a ser transcrito, bem como tem o desejo de es-

crever e levar adiante suas palavras que considera livres de qualquer alienação; con-

tudo, dá-se conta do quão dificultoso se tornou concatenar com certa coerência essas

ideias que se emaranhavam em sua mente. Percebe que não consegue êxito com as

palavras e deixa transparecer em seu texto que, ao não conseguir escrever, mesmo

assim estava contribuindo à ciência, pois o silêncio por nada conseguir dizer é símbo-

lo de sua precariedade e de sua destruição psicológica, como resultado de um siste-

ma opressor e violento.

O romance Em câmara lenta também evidencia a problemática da insuficiên-

cia da linguagem. Em muitas cenas, é possível observar a luta interna do narrador

diante de sua percepção de que as palavras já não podem mais ser usadas com faci-

lidade para expressar tudo aquilo que deseja. Diante disso, observa-se:

[d]e repente o mundo está cheio de algodão, espesso e pegajoso, aspalavras não fazem mais sentido porque não nomeiam coisas – a-penas soam como ecos, prolongados por ouvidos acostumados aclassificá-los244.

243 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 38-39.244 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 15-16.

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O jogo de armar está ai, para quem puder entendê-lo e encaixar to-das as peças. Eu não posso mais – nenhuma coerência quando sedestroem algumas peças: ela e a confiança245.

Ao observar o fragmento acima citado, percebe-se como o narrador encontra-

se deslocado em meio às situações sociais que se apresentam e das quais fora víti-

ma. Seu discurso denuncia a forma como vê o mundo, como algo confuso, o qual ele

não consegue simbolizar, encontrar explicação plausível por meio da linguagem para

a situação em que se insere. A dificuldade para lidar com as palavras, para encontrar

uma linguagem possível de explicar como ele se sente, é expressa com profundo

pesar. O protagonista evidencia que repentinamente “o mundo está cheio de algo-

dão”, o que pode ser entendido como uma espécie de bloqueio mental que o impos-

sibilita de ver com clareza os acontecimentos à sua volta e também de concatenar as

palavras e o discurso. Nota-se, em função da percepção de sua carência de lingua-

gem, a dor que o protagonista sente, a ponto de chegar à desistência e ao abandono

da tarefa de “encaixar todas as peças” na tentativa de assimilar o que acontecera e

que o perturbava tanto.

O problema encontrado pelos narradores de Quatro-olhos e de Em câmaralenta, no que diz respeito à questão da escassez de linguagem para narrar a experi-

ência vivida, é uma questão que pode ser analisada à luz da teoria benjaminiana. É

Walter Benjamin quem observa que a submissão do indivíduo a episódios violentos

acarreta uma problematização na linguagem, e, consequentemente, do próprio relato.

Tais pressupostos teóricos são abordados pelo crítico em seu texto Experiência e

pobreza, quando levanta hipóteses acerca do fato de os combatentes do século XX,

ao retornarem da Primeira Guerra Mundial, apresentavam-se praticamente silencio-

sos, pobres em comunicação, completamente incapazes de narrar o vivido246. De

acordo com os levantamentos do autor, o indivíduo, diante de uma situação de im-

pacto violento, está sujeito a uma desordem mental. Dessa forma, o testemunho, en-

quanto narrativa do trauma vivido, também é influenciado por essa desordem psico-

lógica, refletindo diretamente na representação. Diante disso, a exposição dos narra-

dores de Quatro-olhos e de Em câmara lenta às situações violentas, provocadas

pelo regime autoritário, acaba por causar forte impacto psicológico neles, explicando,

assim, a dificuldade encontrada por eles para construírem seus relatos.

245 Idem. Ibidem. p. 87.246 BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 2006. p.115.

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Conforme discute Seligmann-Silva, a fragmentação textual seria então o pro-

duto final do sujeito diante de sua incapacidade de atribuir sentido à experiência vivi-

da. O evento traumático extrapola os limites de capacidade mental do sujeito, destitu-

indo-o de qualquer condição de assimilação plena247. Dessa forma, sem conseguir

encadear as ideias e distante de qualquer forma plausível de simbolização do trauma,

o discurso acontece em fragmentos.

E é assim, através de fragmentos, que o romance de Renato Pompeu se cons-

titui e contribui no testemunho que se coloca em oposição ao discurso oficial do Esta-

do e às repressões institucionais. A seguir, observa-se um trecho retirado de Quatro-olhos que ilustra como se dá essa narrativa:

não sei se na vila em que crescia a roseira ou se noutra vila dei, acerta altura, para enfiar um incêndio. Havia num extremo da vila umafabriqueta de cera, em cujo muro lateral que dava para o pátio deterra ao fundo da vila, limitado pelo beco de entrada, ocorriam mui-tas marcas sujas de bola. Aquele pátio de terra nua, mais alto que oleito da vila, era chão sagrado para a molecada. Certo sábado à tar-de o pátio ficou coberto de densa fumarada, que se enovelara negra:a fabriqueta tinha pegado fogo [...].A roseira tornou-se meio escura de fuligem do incêndio. A dona decasa em cujo jardinzinho ficava a roseira pôs-se a lavá-la quase pé-tala por pétala, alguma rosa se desmanchou [...]. Em certo momento,falei da moça abandonada, que ocupou um capítulo. Era magra elimpa, a lançar em derredor uma impressão de branco com cheironeutro de anil; formara-se socióloga e lidava com computadores, seutanto presa aos pais a morar com eles, entre begônias e hortências,com seu quarto de paredes caiadas e lençol azul [...].De manhã, ela anunciou que voltaria de imediato a São Paulo. Ficouesperando que ele insistisse em retê-la, mas ele não o fez. Por issoeu a chamava no livro de a moça abandonada. Em verdade, foi comalívio que ela retornou às suas begônias e hortências248.

Os trechos acima mencionados foram retirados do capítulo XII da primeira par-

te de Quatro-olhos. Esses excertos podem sintetizar e exemplificar como se dá a

narração desse romance que se pauta na escrita enquanto estratégia para transpor a

barreira do esquecimento. Esse capítulo, que na obra ocupa em torno de duas pági-

nas, apresenta três histórias diferentes: o incêndio de uma fábrica de cera, a roseira

que fora cuidada por uma mulher estranha e o caso da moça abandonada por um

suposto namorado. O que mais chama a atenção é o fato de que o narrador não con-

247 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão. In: ____ (Org.). História, memória eliteratura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 47-50.248 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 75-79 passim.

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segue contar, dentro de uma certa ordem, as histórias que lembra. Ele migra de um

assunto para outro com muita rapidez, o que deixa o relato truncado. De acordo como

as lembranças vêm à sua mente, o protagonista as lança no romance, sem discernir

o que pertence ao início de uma história e o que faz parte do final. Tudo se apresenta

muito desordenado, quase caótico, reunindo uma série de imagens contraditórias e

confusas. Os poucos fragmentos que lembra das histórias que colocara em seu livro

original, que fora perdido, agora se entrelaçam em sua mente e lhe devolvem uma

série de cenas isoladas e obscuras. Esse universo desordenado que o narrador pro-

jeta em sua narração é, pois, o reflexo de uma sociedade também desarticulada. Di-

ante disso, a integridade racional dos sujeitos é afetada, fazendo com que seja prati-

camente impossível o surgimento de uma narração que não a fragmentada ou desar-

ticulada.

O romance Em câmara lenta, apesar de deter-se em uma quantidade menor

de fatos e de histórias, apresenta também as características de um discurso pautado

na incompletude de informações e, por que não dizer, também do esquecimento. Po-

de-se acrescentar que a obra é construída sob a tensão de ideias incompletas e con-

fusas. De acordo com o exposto, observa-se o seguinte trecho desse romance:

[a]lguma coisa de profundamente errado nesse vazio, no longo can-saço dessa espera por coisa nenhuma. Continuar arrastando os péscalçados em botas de chumbo até o fim. Qualquer fim. Continuarporque a marcha não pode mais ser interrompida. Esperar.Ela olhou o mar e fez gesto amplo, carregado de liberdade e de vida.Correu pela praia até cansar e voltou para ele, molhada de suor, oriso cristalino. Seu gesto era um traço de alegria.Os guerrilheiros pararam. Sujos e cansados, eles ficaram imóveisentre as árvores, os rostos voltados para cima, a respiração suspen-sa. O ruído ritmado das hélices de um helicóptero chegava até e-les249.

O respectivo trecho, acima citado, foi retirado na íntegra como se apresenta no

romance. Diante disso, é possível observar como o narrador, em apenas poucas li-

nhas, se desloca, com muita rapidez, de um assunto para outro. Inicialmente, ele pa-

rece refletir acerca da situação de destruição em que se encontrava, uma vez que

sua organização guerrilheira fracassara. Logo na sequência, narra uma cena em que

lembra de sua amada, quando ela ainda estava viva e, depois disso, direciona o rela-

249 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 72-73.

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to para uma outra cena em que lembra de momentos de treinamento da organização

guerrilheira. A exemplo desse trecho, toda a narrativa se dá através da intercalação

de histórias diversas. Não é possível notar com clareza quando termina um assunto e

começa outro, a narrativa avança conforme os pensamentos, lembranças e ideias do

narrador vêm à sua mente. A dificuldade de organizar o relato dentro de uma certa

coerência e linearidade ilustra como a mente do narrador encontra-se perturbada em

função dos acontecimentos pretéritos marcados pela violência.

A fragmentação textual que caracteriza o discurso de Quatro-olhos e de Emcâmara lenta demonstra a dificuldade em que se encontravam os narradores diante

da problemática do esquecimento e das rupturas psicológicas ocasionadas em fun-

ção do trauma a que foram expostos. Theodor Adorno, ao elaborar suas proposições

acerca da fragmentação formal da narrativa, sinaliza para o fato de que o rompimento

dos princípios formais da arte moderna está diretamente relacionado às experiências

de desumanização e violência em períodos truculentos. Adorno argumenta em favor

da tese de que as obras de arte possuem uma ligação direta com a realidade exterior.

Segundo ele, a existência de uma tensão externa é o que motiva uma tensão interna

na obra de arte, ocasionando uma resposta em termos de estrutura. Em outras pala-

vras, os antagonismos sociais retornariam às obras de arte como problemas imanen-

tes de sua forma250. De acordo com o raciocínio adorniano, a percepção de uma rea-

lidade conflitiva vai levar o artista a também elaborar sua obra com tensão.

Sendo assim, os problemas, os conflitos e as tensões que podem ser obser-

vados na sociedade são motivadores das rupturas com os paradigmas estruturais das

obras de arte. Adorno argumenta que esta última, enquanto autêntica manifestação

do social, irá exibir as “feridas” da luta e as contradições do real, e, por isso mesmo, o

estilo não pode ser harmônico. Assim, em Adorno, o estilo é a ruptura e sua essência

é o fragmento. Fora isso, qualquer possibilidade de harmonia seria falsa, pois estaria

mascarando a lógica da experiência; e a experiência não é percebida como harmôni-

ca251.

Ao se seguirem os pressupostos teóricos levantados por Benjamin de que a

história não pode ser concebida como um acontecimento linear do tempo, mas pen-

sada enquanto experiência e construída sobre as ruínas que se amontoam no tempo

e no espaço, destaca-se o papel da destruição e da falsa aparência da totalidade e

250 ADORNO. Theodor W. Teoria estética. 2008. p. 16.251 Idem. Ibidem. p. 16-20.

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aponta-se para a valorização da ruína e do fragmento. Para o autor, “articular o pas-

sado historicamente não significa conhecê-lo tal como ele propriamente foi, mas apo-

derar-se de uma lembrança na forma em que ela cintilou no instante de um perigo”252.

Dessa forma, a fragmentação é vista em Benjamin como uma possibilidade de leitura

de uma história em camadas, em ruínas, sendo o resgate desses estilhaços deixados

no tempo, a única possibilidade de entendimento e construção da história da socie-

dade.

Quatro-olhos e Em câmara lenta englobam em seu discurso questões rela-

cionadas diretamente à violência e ao autoritarismo oriundos do regime político ditato-

rial e abrem uma discussão acerca dessa experiência traumática vivida por seus pro-

tagonistas e personagens. Desse modo, os pressupostos elencados por Adorno ser-

vem para explicar como os acontecimentos do meio social dos protagonistas foram

determinantes para a produção artística da época, principalmente no que se refere ao

surgimento da fragmentação enquanto forma estética.

Ainda segundo Seligmann-Silva, a fragmentação consistiria numa forma de

apresentar a psique cindida do traumatizado e sua incapacidade de incorporar em

uma cadeia contínua as imagens253. Também Jaime Ginzburg aponta para o fato de

que, na narrativa de testemunho, enquanto linguagem associada ao trauma, pode

haver um abismo intransponível entre o impacto da catástrofe e os recursos expressi-

vos, de modo que, assim, toda e qualquer formulação pode ser imprecisa ou insufici-

ente254. O traumatizado é alguém que podia ter morrido, mas não o fez255, e o fato de

o sujeito ter chegado próximo à morte o deixa, como argumenta Ginzburg, sem uma

identidade segura. Com isso, o desejo da enunciação faz da narração do testemunho

a busca de um sentido que não foi antecipadamente definido. O testemunho, então,

fala e narra o encontro com o “real” enquanto trauma, o encontro com as experiências

do corpo que sofre. Na medida em que a dor corporal é incontornável, ocorre uma

espécie de deslocamento entre mente e corpo, ou seja, ocorre a vontade de abando-

nar o corpo. Para Ginzburg, em um corpo sofrido, a relação entre língua e pensamen-

to é abalada em função da negatividade da experiência. A linguagem, por sua vez,

252 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória e libertação. In: ____. Walter Benjamin: os cacos dahistória. 1982. p. 73.253 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho da Shoah e literatura. 2007. p. 2.254 GINZBURG, Jaime. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Conexão Letras, 2008. p.63.255 BRAUNSTEIN, Néstor. Sobrevivendo ao trauma. s. d.

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passa a ser vista como “traço indicativo de uma lacuna, de uma ausência”256. Com

isso, a experiência não consegue ser assimilada de modo completo, desencadeando,

em função disso, ideias incompletas e a repetição constante, por parte da vítima, da

cena do impacto257.

De acordo com os aludidos elementos teóricos expostos acima, é possível

observar que tanto em Quatro-olhos, quanto em Em câmara lenta, o momento do

choque que ocasionou o trauma nos narradores é uma cena que sempre está retor-

nando às suas mentes. Quanto a essa problemática na narrativa de Pompeu, é pos-

sível notar trechos como o seguinte:

[t]ambém era contado o noivado da mulher com o operário, com cer-veja e pasteizinhos. Em suma, eu fazia completo levantamento davida de subúrbio, que não me apraz repetir aqui. Novelos confusosformam-se em minha mente e não consigo recompor meu escrito.Mas havia algum detalhe, talvez o momento em que a mulher pas-sava base no rosto, enfim havia um detalhe, uma pequena lantejoularedacional, em que eu punha a minha marca de autor. É possívelque fosse a lã no colo da mulher enquanto ela fazia uma blusa parao sobrinho – sim, porque a irmã tinha casado também, com o donode um bar. Mas não me recordo em absoluto258.

De acordo com essa citação, é possível observar como o narrador sempre

está referindo-se ao seu livro perdido. Ao tentar reescrevê-lo, dá-se conta de que é

incapaz, porque lembra muito pouco do conteúdo que nele continha, as referências à

perda de seu original são ainda mais intensas. Os novelos confusos a que se refere

podem aqui ser entendidos como as lacunas deixadas pelo esquecimento em sua

mente em função do trauma. O fato de não conseguir lembrar de seu passado é o

que representa a constante presença da experiência traumática vivida pelo narrador.

A experiência dolorosa que ocasionou não só a perda de sua obra prima, mas tam-

bém o esquecimento, lesionou o psicológico do protagonista e o deixou para sempre

preso ao passado.

No romance de Tapajós, também é percebido com frequência o constante re-

tornar do narrador à cena de impacto, a constante rememoração do passado que o-

casionou perdas significativas ao narrador. Assim, observa-se:

256 GINZBURG, Jaime. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Conexão Letras, 2008. p.64.257 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão. In: ____ (Org.). História, memória eliteratura: o testemunho na Era das Catástrofes. p. 48-49.258 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 131.

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[e] agora outra vez, só que desta vez foi ela, e eu não escapei por-que eu fiquei lá para sempre; o que escapou foi um corpo vazio, umacasca sentada na beira da cama olhando a parede e sabendo que otempo acabou, mas que vai continuar se arrastando e atirando e o-diando [...]. [P]orque eu também morri, lá, naquele dia, no momentoquê259.[...]Uma imagem que não é mais do mundo, mas de uma solidão volta-da sobre si mesma. O gesto incompleto, estilhaçado, no momentoem que ela.O barco à deriva foi encontrado por alguns caboclos. A polícia veiover o corpo do piloto, encontrou os livros e o disco260.

Em Em câmara lenta, o discurso do narrador é marcado pela dor do fracasso

da organização guerrilheira e pela dor da perda de sua amada. O frequente constatar

da ausência da amada faz com que o narrador volte ao passado na tentativa de com-

preender o que realmente aconteceu. Nota-se que o narrador permanece envolto em

uma dor muito grande e que tamanha é sua perturbação em função da perda que

sofrera que não consegue muitas vezes nem levar seu discurso até o final, deixando

frases e trechos da narrativa incompletos. Como no observado acima, o narrador, em

um determinado momento, está falando de uma cena que antecedeu a prisão e a

morte de sua amada, entretanto, de repente, migra para outro assunto e já começa a

falar de acontecimentos com o grupo guerrilheiro, deixando incompleta a primeira

linha de raciocínio que iniciara.

Contudo, é através da repetição da cena que marca a perseguição, prisão e

morte da amada do narrador de Em câmara lenta, que se pode entender com maior

facilidade a questão do retorno do trauma, enquanto um passado que não passa,

mas que permanece atrelado para sempre ao psicológico dos sujeitos. A cena é a

seguinte:

[c]omo em câmara lenta: ela se voltou para trás. Sua mão descreveuum longo arco, em direção ao banco traseiro, mas interrompeu ogesto e desceu suavemente na abertura da bolsa, escondida entreos dois bancos da frente, pouco atrás do freio de mão [...]. O revól-ver disparou, clarão e estampido rompendo o silêncio261.

259 Idem. Ibidem. p. 24-25.260 Idem. Ibidem. p. 43.261 Idem. Ibidem. p. 16.

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Esta talvez seja a cena que melhor ilustra o constante regresso à mente do

narrador da situação a qual ele permanece ligado durante toda a narrativa. Além de

outros trechos que lembram a morte de sua amada, o fragmento acima citado apare-

ce assim, sempre escrito da mesma forma, por pelo menos 6 vezes ao longo da nar-

rativa, sempre intercalado entre uma e outra história da organização guerrilheira. En-

tretanto, a cada vez que surge no relato, essa cena, ao mesmo tempo em que vem

acrescida de mais informações, deixa transparecer a dor do narrador que é intensifi-

cada a cada retorno desta. Na medida em que o protagonista avança com a narrativa,

essa cena ganha maior espaço no relato, até chegar à última página do romance, que

é quando o protagonista coloca, com todos os detalhes como fora a morte, sob cruel

tortura de sua amada. Assim, “como em câmara lenta”, o narrador vê ressurgir, com

insistência, em sua mente, o evento que o abalou. E, da mesma forma, os detalhes

são lançados aos poucos, assim “como em câmara lenta”, para que nada passe des-

percebido aos olhos do leitor.

Freud e Breuer, ainda em 1893, declararam que o estudo dos sonhos pode ser

considerado o método mais confiável na investigação dos processos mentais profun-

dos. Segundo os psicanalistas, é nos sonhos que as neuroses traumáticas caracteri-

zam-se por repetidamente levar o paciente de volta à situação que lhe causara o sus-

to. Dessa forma, a experiência traumática, ao estar continuamente impondo-se ao

paciente, mesmo que durante o sono, demonstra a fixação do trauma na mente des-

se paciente. Para Freud e Breuer, “os histéricos sofrem principalmente de reminis-

cências”262. Conforme explicam os autores, após a fixação de um forte impacto no

subconsciente, o que ficou no nível do inconsciente, deveria tornar-se consciente,

porém isso não é completamente atingível. Dessa forma, o sujeito traumatizado não

consegue lembrar a totalidade do que nele se acha reprimido, e o que não lhe é pos-

sível recordar pode ser exatamente a parte essencial. Ao não conseguir nenhum sen-

timento de convicção em relação à coerência e à exatidão daquilo que recorda, para

entender que sua experiência é parte do passado, o sujeito está fadado a repetir o

conteúdo reprimido como se fosse uma experiência contemporânea, sempre presente

e não como algo pertencente ao passado263.

Conforme explicado também por Cathy Caruth, o trauma, enquanto patologia,

por não ser assimilado pela mente quando acontece, sempre irá retornar como fenô-

262 FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: ____. Obras psicológicas completas.1976b. p. 24.263 Idem. Ibidem. p. 30.

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meno repetitivo à mente do traumatizado264. Assim, enquanto ferida aberta na memó-

ria, e comungando das proposições de Freud, de que o traumatizado sofre de remi-

niscências, Caruth argumenta em favor da tese do eterno retorno, por meio de pen-

samentos, ações repetidas e até mesmo de pesadelos da cena traumática.

A questão da fragmentação do discurso do sobrevivente de uma situação vio-

lenta está também diretamente ligada ao esquecimento provocado pelo evento trau-

mático. A incapacidade de lembrar do passado como ele realmente foi faz com que

as ideias e os pensamentos do sujeito não sejam articuladas de maneira satisfatória.

Em Quatro-olhos, esse é um problema recorrente, pois o narrador tem consciência

do quanto sua memória está abalada pelo esquecimento e como seu texto fica preju-

dicado em função disso, pois não consegue ordenar a narração de maneira linear. A

respeito disso, observam-se as seguintes passagens retiradas do romance de Pom-

peu:

[c]reio que no livro falei alguma vez de cenouras, brilhos carnudoslaranja a alongar-se finos. Mais certo é ter contado a história do ra-paz embriagado que se perdeu com seu carro; tinha visto a antiganamorada a circular com outro num saguão de grêmio de faculdade[...]. Também no livro creio ter feito referência vadia a pernas moças,a brilhar em contracapa de revista num anúncio de cigarro. A moçado anúncio vestia maiô marrom, ao lado do jovem também de maiômarrom que lhe oferecia cigarros num barco a vela.[...]Deixei a moça assim sob a chuva na calçada ou pus alguém à jane-la, a imaginá-la nus sob o vestido grudado ao corpo, não posso es-clarecê-lo de memória.[...]Memória não guardo entrementes de capítulo ou trecho, apenas ba-tem no cérebro miniaturas em que me lembra ter posto o dedo, co-mo cabeleiras douradas numa réstia de poeira brilhante de sol ougorgolejos estertorados de um velho a lavar a boca, rostos encardi-dos do pó de fábrica ou imagens de Nossa Senhora de manto azulcheio de estrelas. De tudo isso dei conta e dou fé, mas a maravilhamarmórea que fui recortando só em pedaços a esmo me relampejana cachola265.

Segundo a citação reproduzida, percebe-se a dificuldade do narrador para

recordar-se de fatos do passado e sua consciência em relação a essa sua dificulda-

de. Nota-se o esforço que faz para buscar na memória eventos que ele possa simbo-

264 CARUTH, Cathy. Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da memória). In:NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. 2000. p.111-120.265 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 75-112 passim.

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lizar de maneira coerente. Porém, essa tarefa não se apresenta possível de concreti-

zação, e os diferentes tópicos surgem entrelaçados na mente do protagonista, dificul-

tando o surgimento de um relato íntegro. Diante disso, o narrador parece perdido em

meio às vagas lembranças que surgem em sua memória e divaga em torno de pistas

de acontecimentos e episódios que aludem ao seu passado, sofrendo, no entanto,

com a falta de memória que lhe acomete a mente.

Condição semelhante é observada no relato de Em câmara lenta. A questão

do esquecimento não é apresentada de maneira explícita pelo narrador, entretanto,

através de suas atitudes, é que se torna possível a percepção dessa problemática,

uma vez que se nota como o desconhecimento de certas situações apresentado pelo

narrador é resultado do esquecimento que lhe perturba. Para tanto, pode-se obser-

var:

[o] gesto continuava estilhaçado, espalhado aos pedaços pelo chãoda casa e é impossível reunir as peças para reconstituir seu sentido.Para restituir a forma ao jogo de armar. Os elementos acumulados eordenados pelo tempo se arrebentaram, explodiram em mil fragmen-tos no momento em que ela. No momento, mas não só por causadisso. Estopin, espoleta, detonador duma carga também acumulada,dum elemento de destruição que cresceu junto com a coerênciaconstruída, para negá-la. Talvez a coerência fosse falsa e tudo o quese criou em torno dela, um artifício [...]. Então agora: tudo muito derepente, tudo de uma só vez fragmentado e não há mais tempo paranada. O espelho foi de novo colocado, mas agora ele está trincadoem mil pedaços e devolve uma imagem partida266.

Através dessa passagem, é possível notar como o protagonista sente-se per-

dido diante daquilo que o cerca. Em outras palavras, poder-se-ia inferir que, o que ele

sabe em relação aos acontecimentos passados violentos, dos quais fora vítima, não é

o suficiente para formar um todo coerente em sua mente. Ele percebe que tudo pare-

ce muito fragmentado, que as informações de que dispõem apresentam-se incomple-

tas e confusas. Sua memória não é capaz de lhe oferecer de maneira ordenada os

fatos a fim de que tudo possa ser compreendido. Observa-se como o narrador deixa

o discurso truncado quando se refere à sua amada, pois a morte dela é algo que o

perturba, não o deixando organizar seus pensamentos dentro de uma certa ordem de

causa e consequência. A vagueza com que recorda os episódios é assim transferida

para seu relato e, de repente, o narrador se vê impossibilitado de unir, numa única

266 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 42.

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imagem, os estilhaços que afloram à sua mente, pois as lembranças que se dão em

fragmentos são partes, agora para ele, impossíveis de serem (re)integradas. Essa

vagueza que perturba o psicológico do narrador, que faz com que suas ideias con-

fundam-se, demonstra que algo importante, capaz de completar o quebra-cabeça da

história, foi esquecido ou silenciado, e, sendo assim, a falta de algumas peças desse

“jogo de armar” impossibilitam que o relato seja completo.

Os pressupostos teóricos de Seligmann-Silva apontam para o fato de que o

testemunho, enquanto narração do evento traumático, situa seu núcleo no trabalho

da memória. Entretanto, o trabalho do testemunho permanece centrado entre a ne-

cessidade de lembrar e sua impossibilidade. Em outras palavras, o que acontece não

é uma mera oposição entre a memória e o esquecimento, mas a necessidade de

lembrar é barrada pela impossibilidade da rememoração do sobrevivente, tornando

dessa forma a descrição sempre parcial267. O sobrevivente que entrou em contato

com o “real”, que passou por um “evento” violento e chegou perto da morte, resiste à

simbolização. Esse trauma, que ficou em sua mente como uma “perfuração” na me-

mória, dividiu o sujeito em dois: um antes e outro depois do trauma. Em função disso,

a memória se apresenta cindida, e a ferida aberta na mente impossibilita o sobrevi-

vente de lembrar de tudo o que se passou, configurando, assim, um discurso incom-

pleto e fragmentado. O autor ainda argumenta que a incapacidade de incorporar em

uma cadeia contínua as imagens vivas, exatas da memória do sobrevivente, marca a

narrativa do testemunho como também “uma tentativa de reunir os fragmentos do

passado, que não passa”, em busca de um nexo e um contexto para estes.

A fragmentação observada tanto na narrativa de Pompeu quanto na de Tapa-

jós permite, em um primeiro momento, olhar para essa construção narratológica en-

quanto resultado de fatores patológicos decorrentes das mentes perturbadas dos nar-

radores. A problematização da memória dos protagonistas, haja vista o esquecimento

que perturba suas mentes e que deixa lacunas, impossibilitando uma plena compre-

ensão dos fatos, bem como o surgimento do sentimento melancólico, propiciado pe-

las perdas oriundas de situações de violência do período ditatorial, contribuem para a

impossibilidade de assimilação e organização das ideias, fazendo com que o discurso

surja truncado, destituído de ordem e em estilhaços.

267 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão. In: ____ (Org.). História, memória eliteratura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 45-59.

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A materialização da fragmentação, enquanto produto final do testemunho do

“real”, também pode ser vista como uma resposta ao contexto social desestruturado e

caótico que caracterizou as décadas do período da Ditadura Militar. Assim, enquanto

resposta ao poder autoritário e violento, o fragmento é resultado de uma sociedade

caracterizada pelo dilaceramento e pela experiência social caótica, uma vez que de-

sordenada a conjuntura social, da qual emana a produção artística, a ruptura das

convenções da linguagem e da narrativa é também inevitável. De acordo com os pre-

ceitos adornianos, pode-se inferir que o fragmento, enquanto possibilidade de narrati-

va, é uma forma alegórica utilizada para representar a experiência histórica de destru-

ição que o país experimentou durante as décadas de 60, 70 e 80.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

[...] Pensem que isto aconteceu:eu lhes mando estas palavras.gravem-nas em seus corações,estando em casa, andando pela rua,ao deitar, ao levantar,Repitam-nas a seus filhos.

Ou, senão, desmorone-se a sua casa,a doença os torne inválidos,os seus filhos virem o rosto para não vê-los.

(É isto um homem? Primo Levi)

Desde a antiguidade, a ênfase dada ao texto literário se resumia na preocupa-

ção com a linguagem, deixando em segundo plano o comprometimento com a verda-

de. Já à história era dada a credibilidade de um discurso que se queria sempre objeti-

vo e comprometido com a verdade factual de um determinado evento. Entretanto,

com base nos apontamentos de Hayden White268, observou-se uma certa descons-

trução desse conceito, quando o autor defende que a história não podia mais ser vis-

ta como uma ciência exata, de fórmulas pré-concebidas e única depositária de fatos

verdadeiros. Tal argumento filia-se ao fato de que a história não é neutra, pois, como

parte integrante da vida da humanidade, está diretamente relacionada à natureza do

homem e à sua constituição social. Nesse sentido, ela sempre será utilizada de acor-

do com uma determinada ideologia, geralmente de acordo com a ideologia do poder

dominante, dos vencedores, glorificando alguns eventos, mas encobrindo outros fatos

importantes que, se expostos, poderiam colocar em xeque a versão oficial. De acordo

com os pressupostos de White, história e ficção estão sempre entrelaçadas, uma vez

268 WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. 1992.

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que a história não deixa de ser uma forma de ficção e o romance uma forma de re-

presentação histórica, principalmente quando se referir à literatura de testemunho,

enquanto produção narrativa memorialística ou autobiográfica.

Ao se tratar da literatura de testemunho, olha-se para essa produção como

uma forma encontrada pelo sujeito para tentar compreender a si mesmo e a sua vida.

Esta pode ser considerada um relato de alguém que perdeu sua própria identidade,

que não consegue mais se reconhecer ao sobreviver uma experiência traumática, e

que busca, através do relato, reintegrar-se socialmente e, por que não dizer, recupe-

rar essa identidade perdida. Assim, o trabalho com a literatura de testemunho pauta-

se no reconhecimento dos sujeitos deixados à margem pela história oficial, bem como

na “escuta” das vozes que foram abafadas. Olhar para a literatura de testemunho é,

antes de tudo, um compromisso de cidadania para com aqueles que sobreviveram,

bem como um ato de respeito em relação àqueles que foram impossibilitados de dar

a sua versão dos fatos em relação às adversidades e às barbáries que assinalaram

os tempos.

O século XX marcou profundamente a história da humanidade. Nesse período,

por um lado, observou-se a intensificação de conquistas no âmbito técnico, a ideia de

progresso e de desenvolvimento, por outro, impondo-se paradoxalmente a essas i-

deias, mas já as acompanhando, surgiram a dominação, o poder, a barbárie e a dor.

Esses episódios que caracterizam a história da humanidade em nível mundial servem

para exemplificar a série de conflitos que também fez parte da história brasileira des-

se século, em especial, daquelas décadas entre 1964 e 1985, em que o país ficou

sob atuação do governo militar. As considerações a respeito do autoritarismo e das

práticas de violência levantadas ao longo deste trabalho servem para elucidar como o

país enfrentou aquele nebuloso período de proibições, repressão e tortura, e como os

artistas buscaram meios para conseguir driblar as imposições da censura.

Os procedimentos narrativos observados nos romances em estudo, Quatro-olhos e Em câmara lenta, incorporam a dimensão histórica coletiva da época, bem

como testemunham, acusam e condenam a história do país, uma história comum a

todos ou a muitos. Na medida em que dão testemunho, os protagonistas de ambos

os romances fazem-se ouvir enquanto detentores de um saber que deveria ser de

todos, mas que nem sempre é exposto pela versão oficial da história.

O que pode ser observado nas obras que fizeram parte desta pesquisa é a

dimensão alcançada pelas estratégias autoritárias. A fragmentação apresentada por

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ambas as narrativas é o resultado da manifestação de mentes perturbadas pelo es-

quecimento ocasionado pelas práticas violentas e pelos conflitos psicológicos diante

do trauma vivenciado. As particularidades observadas tanto em Quatro-olhos como

Em câmara lenta, como a memória, o esquecimento, a melancolia, o trauma e, con-

sequentemente, a fragmentação narrativa, articulados, fornecem uma ampla visão de

como a situação política autoritária influenciou diretamente nas formas de manifesta-

ção artísticas da época. Tais romances produzidos na década de 70 estabelecem

uma estreita relação entre realidade e discurso narrativo, fazendo com que a experi-

ência histórica seja um elemento formador capaz de possibilitar o conhecimento de

uma etapa da história brasileira. Assim, tanto o livro de Pompeu quanto o de Tapajós

apresentam características que os situam dentro de uma vertente específica de críti-

ca e de protesto contra o regime ditatorial brasileiro de 64. Os aludidos traços de for-

ma e de conteúdo observados nessas obras permitem classificá-las, portanto, como

textos que não só procuraram ultrapassar as barreiras impostas pela censura, mas

atuar como forma de resistência às cadeias que prendem os indivíduos a um sistema

opressor.

As regras sociais e de conduta, ditadas pela Ditadura Militar, puderam ser sen-

tidas na produção literária desse período que, por apresentar-se tão caótico, violento

e confuso, influenciou diretamente os romances que, produzidos nesse meio, não

tinham como fugir de determinadas características. Assim, a produção ficcional que

surgia incorporada por elementos externos buscava não só uma possibilidade de

compreensão para tal situação, mas uma possível resposta ao caos do momento.

Diante disso, a literatura de testemunho – considerada literatura “par excellence da

memória”269, não de qualquer memória, mas da memória do choque, do trauma –

surgia incompleta e também muitas vezes incerta, dando origem a um discurso entre-

cortado, repleto de rupturas e de fragmentos. Enfim, o discurso testemunhal, por for-

mar-se a partir da recordação da dor, da morte, da destruição e da desumanização,

resulta fragmentado, pois é fruto de uma memória também em ruínas.

Entretanto, essa memória em estilhaço é resultado de práticas violentas oriun-

das do autoritarismo. Assim, a fragmentação literária que caracteriza Quatro-olhosem Em câmara lenta representa, pois, a destruição social em que viviam imersos os

sujeitos do período ditatorial. Porém, esse não é o único fator de destruição que pode

269 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A catástrofe do cotidiano, a apocalíptica e a redentora: sobreWalter Benjamin e a escritura da memória. In: DUARTE, Rodrigo; FIGUEIREDO, Virgínia. (orgs.).Mímesis e expressão. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p. 365.

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ser percebido. A questão da memória e do esquecimento é também considerada um

fator problemático. A dificuldade encontrada pelo narrador de Quatro-olhos para

lembrar de seu passado demonstra quão debilitada estava sua memória. A tentativa

de escrever para lembrar e organizar o pensamento é uma estratégia que não encon-

tra sucesso diante não só do esquecimento imposto, mas da impossibilidade para

encontrar linguagem adequada para ilustrar tudo o que se passara. Com algumas

diferenças, no entanto, por serem as semelhanças de maior peso, assim, em Emcâmara lenta, o protagonista é alguém que da mesma forma apresenta sua impossi-

bilidade de narrar de modo linear. A narrativa não só apresenta rupturas como tam-

bém é fortemente marcada pelo ziguezaguear das lembranças desse narrador.

A melancolia, apesar de ser mais sentida em Quatro-olhos, apresentou-se

evidente em Em câmara lenta. Em ambos os romances, pode-se observar o surgi-

mento desse sentimento em função das perdas sofridas, da ideia de finitude, da falta

de perspectiva em relação ao futuro e do medo. No primeiro romance, pela perda do

livro, da mulher e da memória. No segundo, em função da perda da amada, do fra-

casso da organização guerrilheira e, com isso, a perda de um ideal. Diante da irrecu-

perabilidade de tudo isso, os narradores não encontram mais perspectivas para um

futuro melhor, e perante esse sentimento de desconforto e de medo, tornam-se desi-

ludidos e melancólicos. Em ambos os livros, a condição melancólica é também moti-

vada pela condição histórico-política vigente na época.

Tendo em vista esses apontamentos, cabe ressaltar ainda que a questão da

linguagem é tida em ambos os romances como um caminho para uma possível liber-

tação da experiência traumática, mas também é vista como um problema. Ou seja,

através da linguagem, o sujeito vê a possibilidade para dar seu testemunho, para

passar adiante a experiência vivida. Contudo, essa mesma linguagem é questionada,

pois os autores não conseguem usá-la satisfatoriamente para narrar aquilo que preci-

sa ser narrado. Diante disso, seja em função da memória obscura, do esquecimento

ou da melancolia, o fato é que a linguagem usada pelos protagonistas não se apre-

senta organizada nem completa, representando, assim, a externalização dos proble-

mas psicológicos que afetavam a mente dos narradores. Em outras palavras, esse

problema com a linguagem, ou para melhor esclarecer, com a falta dela, configura-se

na representatividade de um mundo que se apresentava estilhaçado, impossível de

ser compreendido em sua totalidade, logo, inenarrável. Isto é, tornou-se impossível

simbolizar através da linguagem fatos que não podiam ser assimilados pela mente.

Por isso, o deslocamento de frases, as interrupções, as reticências, os fragmentos.

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A pesquisa pautada na memória e no esquecimento, na observação do senti-

mento melancólico e no relato fragmentado de Quatro-olhos e de Em câmara lenta,

não se quer aqui exaustiva e definitiva. Diante do significativo número de obras que

surgiram durante os anos do regime militar, a presente investigação tem interesse em

provocar e apontar para novas indagações. Tal intenção parte do princípio de que um

período tão enigmático e sombrio como foi aquele entre os anos de 64 e 85 tem ainda

muito a ser explorado, principalmente no campo das manifestações artísticas, dentro

do qual se destaca, em especial, a literatura de testemunho por ser capaz de possibi-

litar uma leitura da história a “contrapelo”.

Assim, os elementos apontados nos romances que integraram o corpus dessa

pesquisa podem ser encontrados em outras obras que surgiram no mesmo período.

Problemas semelhantes aos observados em Quatro-olhos e em Em câmara lenta,

assim como distúrbios psicológicos apresentados pelos narradores, dificuldade com a

linguagem e, ainda, a problemática do relato fragmentado, podem ser encontrados

em romances como: Baú dos ossos (1972), de Pedro Nava, Confissões de Ralfo(1975), de Sérgio Sant’Anna, Zero (1975), de Ignácio de Loyola Brandão, A festa(1976), de Ivan Ângelo, O que é isso companheiro? (1979), de Fernando Gabeira,

só para citar alguns cujo campo investigativo pode ser semelhante ao já exposto nes-

sa dissertação.

Entretanto, para não limitar somente a esse campo e apontar para distintas

investigações, destacam-se ainda outras obras oriundas da década de 70. Tais narra-

tivas – ao tratarem da mesma situação social e histórica, ou seja, o regime militar –

servem para elucidar um maior número de elementos composicionais estéticos e te-

máticos dos romances dessa época, bem como para ratificar os problemas ocasiona-

dos pelo autoritarismo e pela violência já observados nos romances que fizeram parte

da pesquisa que ora se apresenta. Assim, chamam atenção ainda algumas obras

merecedoras de investigação: Solo de clarineta (1973), de Erico Verissimo, um livro

também de memórias; A república dos assassinos (1976), de Aguinaldo Silva, Porque Claudia Lessin vai morrer (1978), de Valério Meinel, ambos romances jornalís-

ticos; O caso Morel (1973), de Ruben Fonseca, Bebel que a cidade comeu (1968),

de Ignácio de Loyola Brandão – esses dois expõem questões de violência, de massi-

ficação e da miséria das grandes cidades –; As meninas (1973), de Lygia Fagundes

Telles, que trata da visão individual das pessoas acerca dos acontecimentos pós-

golpe; Reflexos do Baile (1976), de Antonio Callado, Pessach (1967), de Carlos

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Heitor Conny e O senhor embaixador (1965), de Erico Verissimo – estas, em âmbito

geral, consideradas obras de ataque à opressão política do país.

Enfim, poder-se-ia citar uma extensa lista de romances que abordam questões

referentes ao período ditatorial brasileiro e às mazelas por ele desencadeadas. So-

bretudo, poder-se-ia levantar um amplo número de romances que trazem em sua

composição as cicatrizes da censura de um tempo regido pelo autoritarismo e pela

violência que não só fez ruir os pilares políticos, econômicos, históricos e sociais de

uma nação, mas abalou profundamente as estruturas pessoais e emocionais dos in-

divíduos. Diante disso, as possibilidades de investigação são infindas, e o que se traz

aqui são apenas algumas ideias que apontam em direção ao (re)conhecimento do

passado, à compreensão do presente e, consequentemente, à projeção de um futuro

mais correto.

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ANEXOS

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Figura 1 – Angelus Novus, de Paul Klee

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Figura 2 – Melancolia I, de Albrecht Dürer