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As controvérsias sócio-científicas recentes e as concepções de alunos acerca da ciência e dos cientistas

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As controvérsias sócio-científicas recentes e as concepções de alunos acerca da ciência e dos cientistas

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ACTAS DO X ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS – APRENDIZAGEM FORMAL E INFORMAL

AS CONTROVÉRSIAS SÓCIO-CIENTÍFICAS RECENTES E AS CONCEPÇÕES DE ALUNOS ACERCA DA CIÊNCIA

E DOS CIENTISTAS

Reis, P.1, Galvão, C. 2 1 E.S.E. de Santarém e Centro de Investigação em Educação da F.C.U.L. 2 Centro de Investigação em Educação da F.C.U.L.

RESUMO Este artigo apresenta um estudo essencialmente qualitativo do eventual impacto das controvérsias

recentes em torno de questões científicas e tecnológicas nas concepções acerca da natureza da ciência

de um grupo de alunos portugueses que frequentavam a disciplina de Ciências da Terra e da Vida do 11º

ano em duas escolas dos arredores de Lisboa. Através da análise dos enredos de histórias de ficção

científica sobre o trabalho de cientistas, redigidas pelos alunos, pretenderam-se identificar possíveis

ideias acerca do empreendimento científico e do trabalho dos cientistas passíveis de posterior

clarificação, aprofundamento e discussão através de entrevista semi-estruturada. Tanto as histórias de

ficção científica como as transcrições das entrevistas foram sujeitas a análise de conteúdo visando uma

análise qualitativa pormenorizada. A partir dos resultados obtidos, são apresentadas algumas

considerações finais e implicações educativas.

INTRODUÇÃO Quase diariamente, os meios de comunicação social abordam questões sócio-científicas controversas:

utilização de antibióticos na produção animal, clonagem, experimentação em animais, efeitos adversos da

utilização de telemóveis... Estas controvérsias, para além de terem desencadeado reacções fortes na

população portuguesa (medo, revolta, histeria, contestação), poderão ter influenciado as suas

concepções sobre a natureza da ciência e, consequentemente, os SEUS pensamentos, discursos e

decisões sobre questões sócio-científicas.

Dada a pertinência e a relevância desta temática, esta investigação pretendeu estudar: a) as concepções

dos alunos portugueses acerca da natureza da ciência; e b) o eventual impacto das controvérsias

recentes em torno de questões científicas e tecnológicas – divulgadas pelos meios de comunicação social

– nestas mesmas concepções. Para tal, recorreu-se à análise e discussão de histórias de ficção científica,

redigidas por um grupo de alunos do ensino secundário, sobre o trabalho de cientistas. Acredita-se que o

enredo das histórias inclui indícios das concepções dos alunos acerca do empreendimento científico,

nomeadamente, no que respeita ao conceito de ciência, às interacções entre ciência, tecnologia e

sociedade e às características dos cientistas e da sua actividade. A partir dos resultados obtidos, são

apresentadas algumas considerações finais e implicações educativas.

QUADRO DE REFERÊNCIA TEÓRICO Ao longo de várias décadas, têm sido realizadas investigações com o objectivo de se estudarem as

concepções dos alunos acerca da natureza do empreendimento científico, ou seja, do que é a ciência, de

como ela funciona, de como os cientistas trabalham como grupo social e de como a sociedade influencia

e é influenciada pelo empreendimento científico (Lederman, 1992). Muitos destes estudos recorreram à

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aplicação de questionários com itens de escolha múltipla ou de resposta aberta (Lederman, Abd-El-

Khalick, Bell e Schwartz, 2002; Ryan e Aikenhead, 1992) ou à realização de entrevistas aos alunos

(Driver, Leach, Millar e Scott, 1996). Outros envolveram a análise de desenhos, representando cientistas,

feitos pelos alunos e acompanhados, por vezes, de uma descrição escrita das figuras desenhadas (Fort e

Varney, 1989; Matthews, 1994; Mead e Métraux, 1957). Estas investigações têm revelado, por exemplo,

que os alunos:

1. tendem a identificar o objectivo da ciência mais com a produção de artefactos

destinados a resolver problemas da Humanidade do que com a produção de

explicações (Aikenhead, 1987; Driver, Leach, Millar e Scott, 1996);

2. revelam uma concepção indutiva da ciência, considerando que as teorias emergem das

observações e são alteradas quando instrumentos mais poderosos permitem a

observação de aspectos até aí ignorados (Aikenhead, 1987; Driver, Leach, Millar &

Scott, 1996; Songer e Linn, 1991; Vázquez e Manassero, 1999). Contudo, os alunos

mais velhos – 16 anos – parecem mais conscientes de que a testagem empírica poderá

envolver a procura de mecanismos ou a testagem de teorias (Driver, Leach, Millar &

Scott, 1996);

3. tendem a tratar a ciência e a tecnologia como um empreendimento unificado (Fleming,

1987; Ryan e Aikenhead, 1992; Vázquez e Manassero, 1997);

4. consideram que os cientistas são pessoas: a) inteligentes, rigorosas, persistentes e

extremamente dedicadas ao seu trabalho (Acevedo, 1992); b) treinadas para serem

lógicas, metódicas e analíticas de forma a serem objectivas (Ryan, 1987); c) que se

preocupam com os efeitos das suas descobertas (Ryan, 1987); e d) que deveriam ter

um papel de destaque na tomada de decisões sócio científicas importantes, na medida

em que estão mais preparados para tal (Acevedo, 1992; Fleming, 1987).

Tanto rapazes como raparigas tendem a representar o cientista como um homem de idade, careca – por

vezes, algo louco ou excêntrico – que usa óculos e bata branca, trabalha sozinho e faz experiências num

laboratório ou numa cave (Matthews, 1994; Mead e Métraux, 1957). Várias investigações, sugerem que

os meios de comunicação são os principais responsáveis pela veiculação desta imagem (Aikenhead,

1988; Fort e Varney, 1989). Por outro lado, alguns autores acreditam que a escola contribui, implícita e

explicitamente, para a construção de concepções limitadas acerca da natureza da ciência (Duschl, 2000;

Monk e Dillon, 2000). A “ciência escolar” ao privilegiar a ilustração, verificação e memorização de um

corpo de conhecimentos perfeitamente estabelecido, não controverso, apresenta a ciência como um

processo objectivo, isento de valores, que conduz a verdades absolutas, inquestionáveis, através da

observação rigorosa de regularidades nos fenómenos e do estabelecimento de generalizações. No

entanto, a “ciência real” é bem diferente. Os especialistas entram frequentemente em conflito, pois as

controvérsias sócio-científicas não podem ser resolvidas simplesmente numa base técnica ao envolverem

hierarquizações de valores, conveniências pessoais, pressões de grupos sociais e económicos...

PROBLEMÁTICA E METODOLOGIA O estudo aqui apresentado insere-se num projecto mais amplo, de índole essencialmente qualitativa,

centrado no estudo do impacto de controvérsias recentes em torno da ciência e da tecnologia na prática

pedagógica de um grupo de professores portugueses de Ciências da Terra e da Vida e nas concepções

que estes professores e os seus alunos têm da ciência e da tecnologia. Teve com principais objectivos:

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ACTAS DO X ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS – APRENDIZAGEM FORMAL E INFORMAL

Diagnosticar as concepções de um grupo de alunos, da disciplina de Ciências da Terra e da Vida

do 11º ano, acerca da ciência, nomeadamente, no que respeita ao conceito de ciência, às

interacções CTS (Ciência-Tecnologia-Sociedade) e às características dos cientistas e da sua

actividade; e

Estudar o eventual impacto das controvérsias recentes em torno de questões científicas e

tecnológicas nestas mesmas concepções.

Nesta investigação participaram os alunos de cinco turmas, de duas escolas secundárias dos arredores

de Lisboa, que frequentavam a disciplina de Ciências da Terra e da Vida do 11º ano. A cada um dos 86

alunos participantes foi pedida, como trabalho de casa individual inserido nas actividades previstas pelas

professoras, a redacção de uma história de ficção científica em que imaginasse um grupo de cientistas a

trabalhar numa situação concreta à sua escolha. Solicitou-se a referência explícita ao trabalho de um

grupo de cientistas com o objectivo de assegurar a recolha de informações acerca das relações dentro da

comunidade científica. Acredita-se que os enredos destas histórias de ficção científica reflectem uma

combinação intrincada: a) das ideias dos alunos acerca da ciência; b) de imagens provenientes dos meios

de comunicação social, de filmes e de livros de ficção científica; e c) do conjunto de elementos que os

alunos identificam como parte integrante de uma boa história de ficção científica. Logo, a sua análise

pretendeu identificar possíveis ideias dos alunos acerca do empreendimento científico e do trabalho dos

cientistas passíveis de posterior discussão através de entrevista. Assim, depois de uma leitura inicial das

histórias pelos investigadores, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas a alguns dos participantes

com o intuito de esclarecer, aprofundar e discutir algumas ideias incorporadas nas histórias. As

entrevistas semi-estruturadas foram aplicadas a dezassete alunos que satisfaziam os critérios seguintes:

(1) terem respondido aos questionários e redigido a história de ficção científica; (2) manifestarem

disponibilidade para serem entrevistados em horário extra-lectivo; (3) possuírem níveis de desempenho

académico variados; (4) pertencerem a ambos os sexos; e (5) terem construído histórias de ficção sobre

temas distintos. Posteriormente, as histórias de ficção científica e as transcrições das entrevistas foram

sujeitas a análise de conteúdo, através de um processo de indução analítica (Bogdan & Biklen, 1992), que

procurou extrair as concepções implícitas acerca da natureza da ciência.

RESULTADOS

As histórias de ficção científica Do total de 86 alunos das cinco turmas participantes, 41 (47,7%) escreveram histórias em conformidade

com as instruções apresentadas e cuja dimensão variou entre uma e quinze páginas A4, tendo a maioria

optado por duas páginas. Os restantes alunos não fizeram o trabalho de casa (43 – 50,0%) ou

construíram histórias bastante desfasadas das instruções iniciais (2 – 2,3%). Das 41 histórias produzidas,

22 foram escritas por raparigas e 19 por rapazes. Os enredos centraram-se, maioritariamente, em temas

de genética e de medicina (26 – 63,4%) com especial incidência: a) na clonagem associada à engenharia

genética; b) na investigação de curas para doenças como a SIDA ou o cancro; c) na produção de tecidos

ou de órgãos para transplantes; e d) na fertilização in vitro. Outros temas preferidos pelos alunos

relacionaram-se com o espaço (queda de meteoros, viagens espaciais e extraterrestres), a investigação

de problemas ambientais associados a várias formas de poluição e as tendências evolutivas da espécie

humana. As acções decorrem, principalmente, na actualidade ou no futuro. A incidência em temas de

medicina e biologia não é surpreendente pois, para além do estudo ter sido efectuado no âmbito da

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disciplina de Ciências da Terra e da Vida, estes temas são utilizados recorrentemente no cinema, na

televisão e nos jornais em virtude do seu teor controverso e das imagens visuais fortes que proporcionam.

Os enredos de algumas das histórias apresentam semelhanças nítidas com: a) filmes exibidos

recentemente na televisão e no cinema (9 – 22,0%); b) a telenovela brasileira “O Clone”, em exibição

durante o período de redacção das histórias (1 – 2,4%); e c) um livro de ficção de uma colecção juvenil

portuguesa (1 – 2,4%). Várias histórias sobre clonagem e engenharia genética integram elementos dos

enredos da telenovela “O Clone” e de vários filmes, nomeadamente determinadas considerações morais e

éticas e até algumas ideias erradas. As ideias erradas mais generalizadas destacam: a) a selecção

genética de características humanas com uma componente ambiental considerável como é o caso da

inteligência, da agressividade, da robustez física e da bondade; e b) a utilização da clonagem para

“ressuscitar” ditadores ou produzir seres humanos com características físicas e psicológicas idênticas. Em

muitas histórias também é nítida a incorporação de conhecimentos construídos nas aulas de Ciências da

Terra e da Vida dos 10º e 11º anos (18 trabalhos – 43,9%), nomeadamente os que dizem respeito a

hereditariedade, clonagem, engenharia genética, desenvolvimento embrionário, desenvolvimento de

cancro, propagação e acção do vírus da SIDA, fotossíntese e respiração celular.

As ideias acerca da ciência e dos cientistas apresentadas nas histórias de ficção científica são

maioritariamente positivas (28 trabalhos – 68,3%). De acordo com estes trabalhos, as finalidades da

ciência são essencialmente instrumentais e humanitárias (salvar a humanidade, encontrar curas para

doenças, desenvolver maquinaria sofisticada...). Algumas investigações têm revelado que esta noção é

particularmente forte nos alunos (Aikenhead, 1987; Driver, Leach, Millar e Scott, 1996). Contudo, as ideias

acerca da ciência introduzidas num número significativo de histórias (13 trabalhos – 31,7%) são bastante

negativas. Nestes últimos trabalhos, as finalidades da ciência são essencialmente individualistas (obter

dinheiro, fama e glória a qualquer custo) ou mesmo destrutivas (matar inimigos, fazer testes nucleares...),

suscitando sérias questões morais e éticas e acabando, frequentemente, em epidemias, guerras e na

eliminação de grande parte da população.

Relações entre Ciência e Tecnologia De acordo com as histórias analisadas, a ciência é um empreendimento marcado por dificuldades,

obstáculos, fracassos e erros, exigindo persistência para ser bem sucedido. A persistência, como se verá

mais adiante, é uma característica que muitos alunos consideram indispensável aos profissionais da

ciência. A ciência encontra-se associada à produção de medicamentos, tecidos ou órgãos para

transplante ou à construção de novos conhecimentos ou de maquinaria diversa. É realizada,

principalmente, em laboratório ou no terreno, podendo, neste último caso, envolver viagens a zonas

distantes: floresta Amazónica, ilhas no Pacífico ou planetas distantes. A ciência recorre,

fundamentalmente, à investigação, à experimentação e à invenção.

Muitas histórias evidenciam alguma dificuldade dos alunos em distinguirem a ciência da tecnologia, o que

está de acordo com outros estudos sobre esta temática (Aikenhead, 1987; Fleming, 1987; Ryan e

Aikenhead, 1992). A grande maioria das histórias faz referência a empreendimentos científicos destinados

a resolver problemas da humanidade ou a produzir substâncias ou maquinaria de grande utilidade para a

população (28 trabalhos – 68,3%) e apenas uma pequena parte refere investigações científicas de base

ou fundamentais (13 trabalhos – 31,7%). Vários cientistas são apresentados como engenheiros e/ou

inventores que trabalham na criação de novos combustíveis, na construção de máquinas de viajar no

tempo ou na construção de naves espaciais. Conforme acontece na sociedade actual, vários dos

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cientistas descritos trabalham para a indústria, nomeadamente a indústria farmacêutica e energética,

sendo alguns dos seus objectivos a criação de máquinas ou substâncias passíveis de melhorar as

condições de vida da população, ser alvo de patentes e representar uma fonte de grandes lucros. O

objectivo do cientista é, cada vez menos, a publicação e a divulgação das suas descobertas à

comunidade científica e, cada vez mais, a obtenção de patentes com a consequente obtenção de lucros

para si próprio e para a indústria onde trabalham. De acordo com Fleming (1989), existe uma tendência

para se identificar a ciência e a tecnologia como um mesmo empreendimento da humanidade, talvez

devida à má compreensão da interdependência entre ambas. Logo, as histórias elaboradas pelos alunos

parecem reflectir uma mudança de orientação nas relações entre ciência e tecnologia, perceptível desde

a segunda metade do século XX e resultante de uma crescente exigência de compatibilidade entre a

investigação científica e as finalidades tecnológicas. A ciência parece estar cada vez mais ao serviço da

tecnologia.

As Interacções entre Ciência, Tecnologia e Sociedade As interacções entre a ciência, a tecnologia e a sociedade (CTS) implícitas nas histórias de ficção

científica situam-se mais no sentido da influência da ciência e da tecnologia sobre a sociedade do que o

contrário. Todas as histórias fazem referência a influências da ciência e da tecnologia sobre a sociedade;

28 histórias (68,3%) referem algum tipo de influência da sociedade sobre as actividades científica e

tecnológica.

As influências da ciência e da tecnologia sobre a sociedade, referidas pelos alunos, são tanto positivas

(28 – 68,3%) como negativas (13 – 31,7%). Geralmente, as influências positivas estão relacionadas com

a diminuição do sofrimento e a melhoria das condições de vida da humanidade, através da descoberta de

curas para doenças, da resolução de problemas ambientais e da invenção de maquinaria sofisticada. As

influências negativas apresentadas pelos alunos estão associadas a efeitos secundários indesejáveis e,

por vezes, catastróficos resultantes de determinados tratamentos médicos ou da actividade científica de

“loucos” ou de investigadores sem escrúpulos que procuram o conhecimento, a fama e o lucro sem olhar

a meios. Muitas das histórias que relatam efeitos negativos da ciência e da tecnologia centram-se nos

temas da clonagem e da engenharia genética (7 trabalhos – 17,1%) e incorporam cenários catastróficos

apresentados por vários filmes exibidos nas salas de cinema e na televisão e por artigos publicados em

revistas sensacionalistas. Contudo, os efeitos negativos só surgem quando os cientistas revelam

incompetência, não conseguindo controlar todas as variáveis, ou algum défice moral e ético, indiciando a

concepção de que um bom cientista consegue antever e evitar todos os eventuais efeitos secundários

negativos resultantes do seu trabalho.

Estas mesmas histórias, e várias outras, referem também outra dimensão das interacções CTS, ou seja,

as influências da sociedade sobre a ciência e a tecnologia (28 – 68,3%). As influências descritas ocorrem

a diversos níveis. A mais referida diz respeito à influência das necessidades humanas (por exemplo, a

necessidade de encontrar a cura para determinada doença) como estímulo da investigação em

determinadas áreas da ciência e da tecnologia (28 – 68,3%). Contudo, também são descritos outros tipos

de influência social, nomeadamente o papel extremamente importante dos valores individuais e da

sociedade em geral na definição dos tipos de investigação e de aplicação científica e tecnológica

considerados úteis e lícitos (11 – 26,8%). Assim, algumas histórias incluem considerações acerca da

influência da ambição e da falta de escrúpulos de algumas pessoas ou instituições na utilização abusiva

(por exemplo, para fins militares) das descobertas científicas e tecnológicas. Noutros enredos são os

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próprios cientistas que, preocupados com eventuais efeitos negativos ou utilizações abusivas das suas

descobertas, chegam ao ponto de as destruir.

Várias histórias referem também a influência dos valores dos cientistas e da sociedade em alguns

aspectos da investigação científica, como a utilização de animais e de “cobaias humanas” em

investigação. Geralmente, as considerações morais e éticas são acompanhadas de alusões à importância

do papel desempenhado pelo Estado ou por determinados grupos de cidadãos (associações profissionais

ou de defesa dos direitos animais) no controlo da investigação científica e tecnológica. Várias histórias

parecem indiciar o apoio dos seus autores a um controlo estatal da actividade científica que garanta a

correcção de linhas de acção; parece que os cientistas nem sempre são considerados como as pessoas

mais indicadas para decidirem o que deve, ou não, ser objecto de investigação. No entanto, algumas

histórias (3 trabalhos – 7,3%) admitem a possibilidade de se realizarem investigações bastante

controversas desde que se disponha do financiamento necessário (eventualmente, disponibilizado pelo

Estado) e se possa trabalhar em segredo (“fora do controlo da sociedade”) em laboratórios isolados.

Algumas histórias chegam ao ponto de questionar a idoneidade do Estado como elemento controlador da

actividade científica, apresentando-o como financiador de investigações controversas contrárias aos

valores éticos e morais de muitos cidadãos: uma ideia frequentemente veiculada em filmes de ficção

científica exibidos pela televisão portuguesa.

Constata-se, assim, que os alunos participantes nesta investigação admitem outras formas de influência

social sobre o trabalho dos cientistas para além da pressão no sentido de encontrarem soluções para

problemas da Humanidade. Contrariando resultados doutros estudos (Acevedo, 1992; Aikenhead, 1987),

parecem reconhecer a influência de dimensões subjectivas (valores morais e características individuais)

na produção do conhecimento científico e tecnológico.

Características Pessoais dos Cientistas e do seu Trabalho A análise dos diferentes enredos permitiu identificar indícios das possíveis concepções dos alunos acerca

das características dos cientistas. A maioria dos cientistas descritos é do sexo masculino, à semelhança

do sucedido em várias investigações anteriores (Fort e Varney, 1989; Matthews e Davies, 1999), e de

idade indeterminada. Do conjunto das histórias analisadas: a) vinte e seis descrevem apenas cientistas do

sexo masculino, metade das quais escritas por raparigas; b) seis referem grupos de homens e mulheres;

c) oito não especificam o género dos cientistas; e d) apenas uma faz referência a um único cientista do

sexo feminino (escrita por uma rapariga). Apareceram poucas menções relativamente à idade dos

cientistas, surgindo apenas uma referência ao estereótipo de cientista velho (que, no entanto, integra uma

equipa com colegas bastante mais novos) e cinco referências a cientistas bastante jovens (estagiários ou

que acabaram de terminar a sua licenciatura). Várias histórias apresentam o cientista como um herói,

extremamente corajoso e valente, que chega a colocar a sua vida em risco para bem da Humanidade (8 –

19,5%). A sua dedicação e persistência à investigação científica são muito grandes, traduzindo-se em

longas horas de trabalho ao longo de anos e numa alimentação muito escassa e desregrada. Por vezes,

esta dedicação extrema leva-o a ignorar a família. Contudo, constata-se que na perspectiva dos alunos a

persistência dos cientistas se reduz a alguns meses ou anos (no máximo dois anos) e nunca se prolonga

durante décadas, o que se compreende pela ainda diminuta idade dos alunos. As histórias indiciam,

também, a concepção de que a dedicação, a persistência e o esforço dos cientistas competentes e

íntegros são sempre recompensados com o sucesso. Nenhum relato de insucesso ou de catástrofe

descrito pelos alunos envolve cientistas com estas características. Este facto não é surpreendente pois a

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ciência apresentada na escola refere apenas cientistas competentes, dedicados e persistentes que foram

bem sucedidos.

Frequentemente, o cientista é descrito como uma pessoa brilhante, um “iluminado” com grandes

capacidades intelectuais (6 – 14,6%) que se destaca pelo rigor, pela curiosidade e pelo bom desempenho

académico desde jovem. No entanto, em algumas histórias, o cientista é ganancioso (3 – 7,3%) ou um

pouco louco e excêntrico (3 – 7,3%), o que o leva a desrespeitar a ética e a moral. As descrições com

recurso à imagem estereotipada do cientista louco baseiam-se nas personagens apresentadas em filmes,

séries de televisão ou livros. Por exemplo, numa das histórias envolvendo um cientista louco é notória a

presença de elementos do enredo da obra “Dr. Jekyll e Mr. Hyde”.

De acordo com o conjunto das histórias, são várias as motivações dos cientistas. A motivação mais

referida é de carácter humanitário: visa diminuir o sofrimento, ajudar o próximo, salvar familiares ou

amigos, salvar a Humanidade ou resolver problemas ambientais (15 – 36,6%). Para os seus autores, a

realização pessoal parece alcançar-se através do bem-estar da sociedade. Outros alunos referem

motivações distintas: o desenvolvimento do conhecimento científico (8 – 19,5%), a obtenção de

reconhecimento pela sociedade e pela comunidade científica (6 – 14,6%), a ganância (3 – 7,3%) e o

desejo de criar um ser perfeito, vencer uma guerra ou clonar um familiar falecido.

Muitas das características pessoais atribuídas aos protagonistas das histórias de ficção científica

analisadas neste estudo têm sido detectadas em várias investigações envolvendo alunos (Acevedo, 1992;

Matthews, 1994). Frequentemente, os cientistas são descritos como pessoas inteligentes, rigorosas,

persistentes e dedicadas ao trabalho que envolve, essencialmente, experiências em laboratórios.

As histórias revelam, também, vários indícios do que poderão ser as concepções dos alunos acerca da

actividade dos cientistas, nomeadamente no que respeita aos métodos, equipa e local de trabalho.

Geralmente, os enredos descrevem a ciência como um processo que recorre, fundamentalmente, à

investigação, à experimentação e à invenção. Algumas das investigações descritas evidenciam uma

concepção experimental-indutiva da actividade científica, retratando-a como um processo faseado

envolvendo (1) a observação e a recolha de dados, (2) a formulação de uma hipótese explicativa do

fenómeno em questão e (3) a sua testagem laboratorial em cobaias, eventualmente humanas, de forma a

avaliar a sua “veracidade”. Por vezes, as histórias indiciam uma interpretação ingénua das teorias

científicas, considerando que estas emergem por “descoberta simples” através da observação directa dos

fenómenos naturais (3 – 7,3%). Outros trabalhos apresentam uma ideia bastante elaborada da ciência

que congrega: a) uma variedade de actividades como, por exemplo, pesquisa bibliográfica, observação,

experimentação, intercâmbio e discussão de ideias; b) fracassos e sucessos; c) diversos actores,

nomeadamente cientistas de várias nacionalidades e áreas disciplinares; e d) uma determinada realidade

sócio cultural que influencia e é influenciada pela actividade científica (4 trabalhos – 9,8%).

Os cientistas descritos trabalham, principalmente, em laboratório (24 – 58,5%), no campo (6 – 14,6%) ou

noutro planeta/espaço (3 – 7,3%). O trabalho em laboratório envolve a realização de experiências em

animais e a utilização de maquinaria sofisticada (ecografia, incubadora...), de preparações e culturas de

células, de material de vidro (provetas, tubos de ensaio, frascos...) e de microscópios. As investigações

mais controversas ou perigosas decorrem em laboratórios secretos e isolados.

Apesar de ter sido solicitada aos alunos a redacção de uma “história de ficção científica acerca do

trabalho de um grupo de cientistas”, um número considerável de trabalhos acabou por recorrer à ideia

estereotipada da ciência como ocupação solitária em que as grandes descobertas são efectuadas pelo

trabalho individual de grandes cientistas (14 – 34,1%). Várias investigações têm revelado que esta ideia é

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comum entre os alunos (Fort e Varney, 1989; Matthews e Davies, 1999; Mead e Métraux, 1957). Esta

visão estereotipada do cientista isolado, imerso no seu trabalho secreto de laboratório, continua a ser

veiculada pelos meios de comunicação social. A título de exemplo, refira-se a telenovela brasileira “O

Clone”, exibida pela televisão portuguesa, na qual um único cientista produz um clone sem que ninguém

tenha conhecimento de tal facto (nem colegas de trabalho, nem família, nem mesmo a hospedeira do

bebé) e acaba atormentado pelas eventuais consequências da sua experiência. Contudo, a maioria dos

alunos descreveu o trabalho de equipas de cientistas constituídas: a) exclusivamente por portugueses (6

– 19,5%); b) exclusivamente por estrangeiros ou pessoas de nacionalidades imaginárias (7 – 17,1%); c)

por portugueses e estrangeiros (3 – 7,3%); e d) por pessoas de nacionalidade não especificada (7 –

17,1%). A importância do trabalho em equipas pluridisciplinares e da comunicação dentro da comunidade

científica é bastante valorizada por alguns trabalhos (4 trabalhos – 9,8%).

As entrevistas As entrevistas aos alunos pretenderam clarificar e aprofundar aspectos das histórias de ficção científica

relacionados com a natureza da ciência. Procurou-se, por exemplo: a) avaliar até que ponto os enredos

das histórias correspondiam a ideias reais dos alunos acerca do empreendimento científico e das

características e actividades dos cientistas ou se determinados aspectos tinham sido incluídos apenas por

serem considerados adequados a uma boa história de ficção científica; e b) discutir os sentimentos dos

alunos relativamente à evolução do conhecimento científico e tecnológico.

Quando questionados acerca dos enredos das suas histórias de ficção científica vários alunos

reconheceram terem sido inspirados por filmes (9 alunos), livros (2 alunos) e séries televisivas (3 alunos)

de ficção científica. No entanto, justificam a opção por determinados aspectos não só pela sua adequação

a uma boa história de ficção científica mas também por corresponderem a algumas das suas ideias

acerca da ciência e do trabalho dos cientistas. Para a componente científica das histórias, os alunos

utilizaram informação: a) das aulas de ciências naturais e de físico-química (6 alunos); b) de programas

televisivos, nomeadamente noticiários (4 alunos); c) de conversas com familiares (2 alunos); e c) de

revistas (1 aluno).

Através das entrevistas constatou-se que as ideias dos alunos acerca da actividade científica são, por

vezes, pouco claras e superficiais. Em vários casos, ficou a impressão de que os alunos, até à altura da

entrevista, nunca tinham reflectido sobre este assunto. Referem que a actividade científica está associada

à “descoberta” de factos acerca do mundo, nomeadamente de soluções para problemas humanos (8

alunos), à “pesquisa” (5 alunos) e ao “avanço do conhecimento” (5 alunos). Contudo, a maioria dos alunos

revela-se incapaz de explicar as metodologias envolvidas nestes processos (10 alunos) limitando-se, por

vezes, a repetir de forma vaga os termos “pesquisar” e “descobrir” como se o empreendimento científico

consistisse numa descoberta de factos através da observação directa e atenta de fenómenos naturais.

Outros alunos evidenciam uma concepção experimental-indutiva da actividade científica, retratando-a

como a realização de experiências destinadas a “provar” teorias, hipóteses ou ideias (7 alunos). No

entanto, o termo “provar” parece ser utilizado no sentido da obtenção de resultados experimentais em

conformidade com as teorias, hipóteses ou ideias formuladas e não no sentido da obtenção de provas

definitivas ou de conhecimento definitivo pois a totalidade dos alunos reconhece o carácter provisório do

conhecimento científico. Apesar de algumas dificuldades evidentes na explicitação das suas ideias, a

maioria dos entrevistados identifica “teoria” com uma ideia (8 alunos), uma hipótese (6 alunos), uma

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ACTAS DO X ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS – APRENDIZAGEM FORMAL E INFORMAL

explicação (2 alunos) ou um princípio (1 aluno) aceite pela comunidade científica e passível de alteração

mediante a descoberta de novos dados.

As entrevistas revelaram-se particularmente úteis na discussão das ideias dos alunos acerca dos

cientistas e da sua actividade. Cerca de um terço das histórias de ficção científica inclui ideias bastante

negativas acerca da ciência e dos cientistas, nomeadamente cenários catastróficos resultantes da

utilização abusiva das inovações científicas e tecnológicas por cientistas “loucos” ou gananciosos e pouco

escrupulosos. Algumas histórias chegam a admitir a possibilidade do Estado financiar investigações

bastante controversas, mantidas secretas por se oporem aos valores éticos e morais da maioria dos

cidadãos. Estes enredos, geralmente centrados nas temáticas da clonagem e da engenharia genética,

poderiam indiciar concepções negativas dos seus autores acerca do empreendimento científico que seria

interessante investigar. As entrevistas permitiram esclarecer que tais cenários, apesar de terem sido

utilizados pela sua adequação a uma boa história de ficção científica, reflectem algumas preocupações

reais dos alunos acerca da investigação científica e tecnológica em geral. A maioria dos alunos

entrevistados manifestou apreensão relativamente a eventuais consequências adversas das inovações

científicas e tecnológicas, especialmente na área da genética (10 alunos), realçando a necessidade da

sociedade proceder a uma reflexão profunda sobre as potencialidades e riscos dessas inovações. Alguns

acreditam que a ganância ou a ânsia exagerada e irreflectida por novos conhecimentos levam

determinados cientistas a realizar investigações morais e eticamente condenáveis e a ignorar potenciais

riscos para a Humanidade e para o ecossistema em geral (3 alunos). Outros admitem que o próprio

Estado financie projectos de investigação secretos, realizados por cientistas pouco escrupulosos, (2

alunos) em virtude do teor extremamente controverso das metodologias envolvidas e das aplicações e

impactos produzidos.

Vários entrevistados sentem-se impotentes relativamente às opções dos cientistas e à definição das

linhas de investigação e consideram que o controlo da sua actividade deve ser efectuado pelas pessoas

mais habilitadas: os próprios cientistas. No entanto, outros reconhecem a importância de informar os

cidadãos sobre questões científicas e tecnológicas de forma a poderem participar em processos

decisórios que a todos dizem respeito ou a impedirem utilizações menos correctas dos resultados de

investigação. Contudo, em concordância com a maior parte dos enredos das histórias, os alunos

entrevistados têm uma opinião favorável da generalidade dos cientistas e do seu trabalho. Geralmente,

descrevem os cientistas como pessoas dedicadas à evolução do conhecimento (10 alunos) e à melhoria

das condições de vida da Humanidade (7 alunos). Outras motivações consideradas menos lícitas, como

por exemplo a ganância, são referidas apenas em três entrevistas. Apesar das preocupações já referidas,

a maioria dos alunos sente-se bastante optimista relativamente aos desenvolvimentos científicos e

tecnológicos futuros (14 alunos) que, na sua opinião, permitirão resolver muitos dos problemas actuais.

Os restantes três alunos consideram o futuro incerto e condicionado pela utilização dada às inovações

científicas e tecnológicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS Os resultados obtidos permitem estabelecer três grupos principais de considerações, cada um dos quais

com as suas próprias implicações educativas.

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Quanto à metodologia: A redacção, pelos alunos, de histórias de ficção científica sobre o trabalho de um grupo de

cientistas revelou-se bastante adequada à obtenção de evidências, sobre as suas concepções

acerca da natureza da ciência, passíveis de clarificação, aprofundamento e discussão através de

entrevista.

Numa época em que a pseudociência tende a ocupar grandes espaços dos meios de

comunicação social, confundindo audiências e sobrepondo-se muitas vezes à escola, as

histórias escritas pelos alunos podem desempenhar um papel importante na detecção e

discussão de concepções acerca da ciência. A partilha e a discussão conjunta destas histórias –

em contexto de sala de aula – permitem a análise crítica: a) das concepções dos alunos acerca

do empreendimento científico; e b) do papel desempenhado pelos meios de comunicação social

na veiculação de imagens estereotipadas sobre esta temática. Não se trata de doutrinar os

alunos numa visão particular do mundo de forma a não questionarem os pressupostos em que

se baseia a ciência. Trata-se sim de envolver os alunos no questionamento reflexivo do papel

desempenhado pela ciência e pelos cientistas em situações concretas que eles considerem

pessoal e socialmente relevantes. Estas histórias poderão representar um elemento importante

num ensino que não se restrinja aos aspectos factuais e que inclua os aspectos sociais da

ciência associados a temas que os alunos consideram actuais e relevantes. Para além disso, a

discussão dos temas destas histórias – frequentemente temas sócio científicos controversos –

tem-se revelado positiva na estimulação da interacção social na sala de aula e no

desenvolvimento de capacidades cognitivas, sociais e afectivas (Reis, 1998).

As narrativas elaboradas pelos alunos também podem ser bastante úteis na estimulação da

reflexão por parte dos professores – em contextos de formação inicial ou contínua – em torno de

concepções acerca da ciência e do papel desempenhado pelos meios de comunicação social e

pela escola na sua veiculação. Em fases posteriores do estudo mais alargado puderam

constatar-se as potencialidades destas histórias como pontos de partida para a reflexão sobre

esta temática no contexto da formação contínua de professores de Ciências da Terra e da Vida.

Quanto ao eventual impacto das controvérsias sobre as concepções dos alunos acerca da ciência:

As controvérsias sócio científicas discutidas recentemente em Portugal – clonagem, tratamento

de resíduos tóxicos, consumo de alimentos geneticamente modificados... – parecem ter exercido

algum impacto sobre as concepções dos alunos acerca da ciência e da tecnologia. As notícias

apresentadas nos telejornais, os artigos em jornais e revistas populares, alguns programas

informativos e debates televisivos, sobre estas questões controversas terão contribuído para:

1. A construção de uma imagem da ciência e da tecnologia como empreendimentos

influenciados por hierarquizações de valores, conveniências pessoais, questões

financeiras, pressões sociais...;

2. O reforço da ideia de que a ciência e a tecnologia representam, simultaneamente, uma

fonte de progresso e de preocupação e que devem ser pautadas por princípios éticos e

morais;

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ACTAS DO X ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS – APRENDIZAGEM FORMAL E INFORMAL

3. O reconhecimento da importância da participação dos cidadãos e do Estado no

acompanhamento, na avaliação e no controlo do progresso científico e tecnológico e

das suas implicações; e

4. A transição de um “raciocínio dualista”, segundo o qual existe sempre uma resposta

certa ou errada para qualquer pergunta, para um “raciocínio relativista contextual” que

admite a validade de interpretações diferentes de uma mesma realidade.

Quanto às concepções dos alunos acerca da natureza da ciência: Constata-se que os alunos mobilizaram recursos provenientes de várias fontes para a redacção

das histórias de ficção, sendo evidentes influências dos meios de comunicação social e da

escola. Na ausência de contactos directos com comunidades de cientistas, algumas das ideias

apresentadas pelos alunos denotam influências nítidas de imagens da ciência e dos cientistas

transmitidas, principalmente, por filmes, programas de televisão e livros (facilmente identificáveis)

e, eventualmente, de imagens apresentadas explícita e implicitamente nas aulas de ciências.

Contudo, enquanto que as influências de alguns meios de comunicação social são evidentes, o

mesmo não se pode dizer acerca dos eventuais contributos da escola. As influências das aulas

são particularmente notórias no que respeita aos conteúdos científicos mobilizados nos enredos

das histórias, centrando-se a maior parte em conteúdos abordados nas aulas de Ciências da

Terra e da Vida.

As histórias redigidas pelos alunos põem em evidência algumas limitações dos meios de

comunicação social no seu objectivo de divulgação de temas científicos e tecnológicos a uma

grande audiência. Muitos dos programas exibidos na televisão não têm promovido uma

discussão de grande qualidade sobre o empreendimento científico, centrando-se principalmente

nos efeitos negativos desencadeados por inovações tecnológicas e acabando por veicular

imagens negativas acerca dos cientistas e do seu trabalho. Frequentemente, são transmitidas

imagens distorcidas baseadas na caricatura estereotipada do cientista como um homem

excêntrico que trabalha, isolado e imerso no seu laboratório, em projectos secretos e

controversos. Muitas vezes, ainda, a audiência tem imensa dificuldade em distinguir a ficção da

realidade e adquire ideias erradas acerca das potencialidades e das limitações da ciência. Logo,

torna-se necessária a criação de espaços de discussão crítica, em contexto de sala de aula, das

imagens veiculadas pelos meios de comunicação social sobre a ciência e a tecnologia. As

histórias de ficção científica utilizadas neste estudo poderão revelar-se bastante úteis nessa

tarefa.

O conjunto das histórias elaboradas pelos alunos permitiu obter um quadro rico e complexo das

concepções dos alunos sobre o empreendimento científico, nomeadamente, no que respeita: a)

às finalidades da ciência; b) aos métodos da ciência; c) às imagens estereotipadas acerca dos

cientistas e da sua actividade; d) às potencialidades e limitações da ciência. O teor limitado de

algumas destas concepções salienta a necessidade de se prestar uma atenção explícita, nas

aulas de ciências, à natureza do empreendimento científico. Tal como a aprendizagem de uma

linguagem requer o desenvolvimento de conhecimentos sobre a forma, gramática e vocabulário,

também a literacia científica requer conhecimentos sobre os grandes temas da ciência, alguns

dos seus conteúdos, os seus actores, os seus métodos e os seus usos e abusos (Osborne,

2000). Logo, o desenvolvimento desta literacia científica passa por um ensino das ciências

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menos factual e fragmentado – que não isole a ciência, a tecnologia e os contextos sociais da

sua produção – onde se possa discutir criticamente a produção da ciência contemporânea com

todas as questões políticas, económicas, sociais e éticas que suscita. Torna-se necessária uma

educação em ciências que os alunos considerem actual e relevante e que diminua o fosso entre

a “ciência da escola” – marcada por certezas – e a “ciência dos noticiários e do dia-a-dia”

marcada por conflitos e incertezas.

Para que esta educação em ciências possa ser uma realidade, importa criar espaços de reflexão

e discussão das concepções dos professores acerca: a) da natureza da ciência; e b) das

actividades de sala de aula que se poderão adequar a esta tarefa. Não se trata de impor uma

determinada perspectiva da natureza da ciência, apresentando-a como a “correcta”. Trata-se,

sim, de envolver os professores na discussão crítica de diversas perspectivas sobre o tema,

dando-lhes a conhecer formas distintas de entender a natureza da ciência e o carácter

controverso e provisório destas mesmas perspectivas, à semelhança do que acontece com os

próprios conceitos científicos.

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