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AS DUAS GLOBALIZAÇÕES
PUCRS
PONTIFÍCIA
UNIVERSIDADE CATÓLICA
oo R1o GRANDE oo SuL
Chanceler: Dom Dadeus Grings
Reitor: Joaquim Clotet
Vice-Reitor: Evilázio Teixeira
Conselho Editorial: Ana Maria Tramuntlbmios
Antônio Hoh((eldt Dalcidio M. Cláudio
Delcia Enricone Draiton Gonzaga de Souza
Elvo Clemente Jaderson Costa da Costa
Jerônimo Carlos Santos Braga Jorge CamQOS da Costa
J01ge Luis Nicolas Audy (Presiden te) Jurem ir Machado da Silva
Lauro Kopper Filho Lúcia Maria Martins Girq{Ta Luiz Antonio de Assis Brasil
Maria Helena Memw Barreto Abrahiio Marília Gerhardt de Oliveira
Ney Laert Vi/ar Calazans Ricardo Timm de Souza
Urbano Zil/es
EDIPUCRS: Jerônimo Carlos Santos Braga -Diretor
J01ge Campos da Costa - Editor-che(e
~ EDIPUCRS
EDIPUCRS- Av. lpiranga 668 1, prédio 33 Caixa postal 1429 - 90619-900 - Pmto Alegre - RS - Brasil
Fone/Fax: (51) 33320-3523 - www.pucrs.br/edipucrs e-mail: [email protected]
2007
Edgar Morin
AS DUAS -GLOBALIZAÇOES COMPLEXIDADE E COMUNICAÇÃO
UMA PEDAGOGIA DO PRESENTE
COLEÇÃO COMUNICAÇÃO 13
---------------------"lA~Eorç-kCJ----
~ EDIPUCRS
Joaquim Clotet Juremir Machado da Silva (org.)
Editora Sulino
©Edgar Morin, Joaquim Clotet e Juremir Machado da Silva, 2001
Capa: Vitor Hugo Turuga Revisão: Patrícia Aragão Projeto gráfico: Daniel Ferreira da Silva Coordenador da coleção: Jurem ir Machado da Silva
Coordenação editorial: Luis Gomes
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO ( CIP)
BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL: DENISE MAR I DE ANDRADE SouZA CRB I 0/1204
M958d Morin, Edgar As duas globalizações: complexidade e comunicação, uma
pedagogia do presente I Edgar Morin. Joaquim Clotet e Juremir Machado da Si lva- 3' Edição- Pono Alegre: Sulina, EDIPUCRS, 1007 85 p.
ISBN: 978-85-105-0469-7 (Sulina) ISBN: 978-85-7430-625-4 (EDIPUCRS)
I. Sociologia da comunicação. 2. Filosofia. 3. Jom<:~l i smo. 4. Complexidade- Fi losofia I. CICiei, Joaquim. li. Si lva, Juremir Machado da. II I. Titulo
-----------------------------------------GD~300----------------------
306.4 170
CDU: 070 101 316.77
Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA MERIDIONAL E A EDIPUCRS.
Av. Osvaldo Aranha, 440 cj . 101 Cep: 90035- 190 Porto Alegre-RS Tel: (Oxx51) 33 11-4082 Fax: (Oxx5 1) 3264-4194 www.editorasulina.com.br e-mail: [email protected]
{ Abri l/2007 I
IMPRESSO NO BRASIL/PR!NTED IN BRAZIL
SUMÁRIO
Apresentação ............................... ............................. 7
Joaquim Clotet Ciência mutilada? .......................... ............................ 9
--~;)'uremir-Machado-da--8ilva,---
Pensar a vida, viver o pensamento ......... .................. 13 Em busca da complexidade esquecida II .............. ... 21
Edgar Morin As duas globalizações: comunicação e complexidade ......... ... ... .. ........... .. ..................... ..... 39 Da entrevista no rádio e na televisão ......... .. ........ ... . 61
Breve relato biográfico ............................................ 81
Obras de Edgar Morin ....................... ............ ... ....... 85
APRESENTAÇÃO
Este livro, resultado de vários trajetos existenciais e de uma série de relações intelectuais, alcança uma nova edição. Nada mais desejável e instigante. Há sempre um personagem central: Edgar Morin, hoje com 85 anos. Uma situação especial a ser lembrada: a concessão a ele, em 1 o
de setembro de 2000, do título de Doutor Honoris Causa da Pontifícia Universidade Cató-lica do Rio Grande do Sul, por iniciativa da Faculdade de Comunicação Social.
Há também um conjunto de textos e de diálogos que já provaram a sua validade. O atual reitor da PUCRS, Joaquim Clotet, então vice-reitor, saudou o homenageado, num artigo publicado no jornal Zero Hora, com uma reflexão sobre a "ciência mutilada". Edgar Morin, em conferência, manteve-se fiel ao seu compromisso com o pensamento aliado à atualidade e abordou, com sua conhecida erudição, o tema da globalização. Para este volume, buscou-se também um ensaio de Morin publicado, em junho de 1968, no Jornal do Brasil, sobre a arte da entrevista. Homem de conversação e de dialógica, Mmin sempre apostou no contato como um método e um caminho para desvendar os mistétios do homem.
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Edgar Morin é o pensador das interfaces. Nada mais adequado, portanto, do que inseri-lo numa relação de alteridade: o intelectual e seus interlocutores. Da mesma forma, nada mais interessante do que reproduzir um documento de valor histórico e metodológico em que o homem do diálogo teoriza, através dos complexos mecanismos da entrevista, o momento de encontro entre o entrevistador e o entrevistado, ou seja, entre dois atores em cena provisória.
Decidiu-se também incluir aqui o discurso proferido em homenagem a Morin durante a cerimônia que o tomou Doutor Honoris Causa da PUCRS. Por fim, um ensaio sobre a complexidade, numa tentativa de comentar alguns aspectos relevantes da obra de um pesquisador e teórico que, em razão da influência do seu trabalho, dispensa maiores comentários, mas exige, cada vez mais, interpretação, esse horizonte incontornável da aventura cogitante.
Entrar num corpo de idéias é sempre uma aventura que requer engajamento, esforço, prazer, curiosidade e paixão. Este pequeno volume situa-se, justamente, na encruzilhada entre todos esses elementos. Antes de tudo, apresenta-se como a conseqüência de uma admiração. Esta, porém, não elimina necessariamente o distanciamento para uma nova e mais produtiva aproximação. A admiração pela obra de Morin aparece aqui como uma busca sucessiva de iluminação. Uma admiração que não pára de crescer. Cinco anos depois de uma cerimônia de afeto e de cultura, os efeitos continuam disseminando-se e este pequeno livro permanece verdadeiro e fundamental.
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Juremir Machado da Silva Março de 2007
CIÊNCIA MUTILADA?
JOAQUIM CLOTET
REITOR DA PUCRS
A presença do eminente pensador francês Edgar Morin em Porto Alegre tem motivado uma nova aproximação à sua vasta produção escrita. O interesse pela sociologia e a política permeia os seus trabalhos e per-
_mite~ s_egundQD_p_rópriD autof~_llma melhor compreen=. são do conhecimento científico. Quem não está admirado do grande poder da ciência em nossos dias? A genética molecular, por exemplo, vem desafiando, entre outros, os padrões tradicionais da reprodução dos seres vivos e da terapêutica humana. No Brasil, afortunadamente, a produção da vacina de DNA contra a tuberculose já está sendo testada em cobaias, prevendo-se não tardar muito a sua aplicação em seres humanos. Os potenciais benefícios do uso de células-tronco para a produção de tecidos humanos enche de entusiasmo, mas também alerta a população, não apenas os cientistas e intelectuais. O estado atual da pesquisa embrionária humana é motivo de estudos e debates nos mais diversos foros nacionais e internacionais.
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Edgar Morin, felizmente presente entre nós, devido à outorga do título de Doutor Honoris Causa por uma das nossas universidades sul-rio-grandenses, está também interessado na biologia e nos seus problemas, pois dedicou um período de estudo e pesquisa no Salk Institute for Biological Studies de San Diego. A ciência e a filosofia se enriquecem mutuamente quando ambas se comunicam. Este tem sido um dos paradigmas deste paladino do Conselho Nacional da Pesquisa Científica (CNRS) e do Centro Internacional de Estudos Bioantropológicos e de Antropologia Fundamental (Ciebaf) que mais tarde passou a ser o Centro Royaumont para a Ciência do Homem na França.
A antropologia do novo século não pode prescindir de uma reflexão sobre a biologia molecular. A civilização temológica hodierna parece estar conse uindo dominar o cosmos, contudo corre também o risco de prejudicá-lo. Estas reflexões de Edgar Morin, acompanhadas de um certo ceticismo e ironia de raiz nitidamente filosófica, têm um valor extraordinário no dia de hoje. A ciência não é a deusa benfeitora exaltada pela renascença, pelo iluminismo e pelo neopositivismo lógico. Ela tem, sim, uma função capital: estar a serviço da humanidade. Isto seria, segundo o novo Doutor Honoris Causa em terras gaúchas, censurado ao mesmo tempo pela sociedade burguesa e pela corrente stalinista em outras décadas, um dos traços do conhecimento científico, que ele próprio denominou com a sugestiva e apropriada expressão de "ciência com consciência" (1982). Ciência sem consciência é uma realidade muti-
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lada e mutiladora. O progresso científico, os avanços da genética molecular, a experimentação embrionária humana não podem ser realizados à toa. Na medida do possível, a sociedade como um todo, o que infelizmente constitui uma aspiração ainda irrealizável em nosso país, assim como em muitos outros, deveria intervir no uso e na prática conscienciosa ou eticamente adequada dos resultados das novas tecnologias em benefício da vida planetária e particularmente da vida humana.
Numa visão social mais ampla e abrangente, sempre procurada por Edgar Morin, o progresso científico já alcançado deveria apresentar concomitantemente, aqui, os benefícios da tecnologia e o direito aos serviços de saúde para a classe social mais pobre e esquecida. Cabe aos governos dos diferentes países e Estados, às organizaçôes__não~go\'effiamentaiS_(_ONGs) e a toda pessoa consciente do seu exercício da cidadania, o esforço e o compromisso em manter e incentivar uma ciência tecnológica que não seja mutilada nem mutiladora nas suas possíveis aplicações.
ll
PENSAR A VIDA, VIVER O
PENSAMENTO
JUREMIR MACHADO DA SILVA
DouraR EM SoCIOLOGIA, JORNALISTA E
PROFESSOR FAMECOS/PUCRS
(discurso em homenagem a Edgar Morin, proferido por ocasião da entrega do título de Doutor Honoris Causa, a ele concedido pela PUCRS, por iniciativa da Faculdade de Comunicação Social, em cerimônia realizada em 1 o de setembro de 2000)
Por delegação do Magnífico Senhor Reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e do Conselho Universitário, coube-me fazer a saudação a Edgar Morin neste momento solene em que lhe é atribuído o título de Doutor Honoris Causa desta Universidade. Trata-se para mim de uma honra sem precedentes, pois Morin é meu mestre. Mestre na arte de fazer caminhos ao caminhar.
No Regimento Geral da PUCRS, prevê-se a concessão do título de Doutor Honoris Causa a personalidades ilustres que tenham se distingüido por seu notório saber e expressiva contribuição ao desenvolvimento do conhecimento em benefício da humanidade. É exatamente o caso de Edgar Morin, pensador da complexidade, do imaginário, da compreensão e de uma sociologia do cotidiano e do presente.
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A parte está no todo, assim como o todo está na parte. Edgar Morin é um pensador hologramático, formado na tradição complexa de Pascal. Para ele, a vida está no pensamento que pensa a vida. Fora disso, o rato silvestre não sacode as tapeçarias e nada resta da silente legenda. Eliot ecoava a certeza de que no princípio está o fim e alertava que "todo o nosso conhecimento nos aproxima da ignorância/Toda a nossa ignorância nos avizinha da morte". Morin, cuja reflexão vence a prosa dos dogmas, dialoga com a poesia. Se "as casas vivem e morrem", como denuncia Eliot, o tempo de construir, de viver e de conceber pode ser o mesmo, contrariando as previsões do grande poeta. Mas o mesmo é sempre um múltiplo.
No rastro de Edgar Morin, intelectual, historiador, antropólogo, sociólogo, filósofo, epistemólogo, pensador interdisciplinar, seguem as palavras de outro poeta, poeta de sua predileção: "Caminhante não tem caminho ... ". Resistente ao invasor nazista, opositor de primeira hora ao stalinismo, humanista por excelência, Morin aprendeu cedo, lendo Rimbaud, que o "eu é um outro". Tomou-se, então, o analista generoso do cinema e do homem imaginário, das estrelas e da morte. Sem ressentimento, sem lições a dar, tecendo junto com outros uma leitura sensível, apoiada numa razão aberta, capaz de acender lâmpadas serenas onde outros só enxergam os fogos da tempestade.
Caminhante pelos caminhos do conhecimento, em busca, como certos gigantes, da "morada do ser", Morin descobriu que o fundamental está na reforma do fa-
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zer científico. Quer, de fato, "tecer junto", de acordo com a origem latina da palavra "complexus". Na sua vasta trajetória dialógica marcada pela publicação de cerca de 30 livros, ele sempre se pautou pela busca da contextualização, do sentido de uma totalidade polissêmica, movediça, e da inter-relação das peças que formam o imenso puzzle das práticas sociais.
Pode, entretanto, um intelectual ser crítico sem anunciar o apocalipse? O francês Edgar Morin, nascido em 1921, aposta que sim. Sem vender ilusões nem utopias imutáveis, continua a acreditar que a "renúncia ao melhor dos mundos não significa a renúncia a um mundo melhor". Quando o elogio da especialização, levado ao extremo, produz separação e ausência de diálogo entre construtores do saber, Morin atreve-se, citando Ernesto Sabato, a pegar a contramão e gritar: "Precisamos de mundiólogos".
Preocupado com temas da Educação, das Ciências Humanas, da Filosofia, da Epistemologia, da mídia, da cultura de massas, Edgar Morin quer comunicar. O c ientista e o sábio não podem eximir-se do esforço de alcançar a clareza. Tudo é comunicação para Morin. A dialética, contudo, foi substituída pela dialógica, em nome da articulação do simples e do complexo, da ordem e da desordem, do separável e do não-separável. Conhecer é uma aventura inigualável que leva ao coração do homo sapiens, ludens, demens,faber.
A reforma do pensamento capaz de evoluir da lógica clássica à dialógica complexa consiste na superação das especializações estanques que distanciam as
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várias áreas da pesquisa e impedem a conexão essencial entre campos aparentemente destinados ao isolamento. No abandono das certezas teóricas absolutas, operação de contestação do paradigma científico moderno, reside a sua maior luta epistemológica. Biodegradáveis, as certezas perecem a cada dia. As teorias nascem e morrem. Os verdadeiros pensadores permanecem.
Nem só de verdades científicas alimenta-se o homem. A obra de Morin reconhece o valor da religião, da arte, dos mitos. Não há humanidade sem imaginário. O sonho também move o homem. A utopia só não pode, segundo a expressão tomada de empréstimo a Karl Korsch, tomar-se "reacionária", ou seja, fechar-se à sua própria mudança.
O caminhante, que se orgulha de não pertencer a nenhum grupo ou escola, escolheu o caminho da solidão: "É quase instintivamente que, diante de qualquer idéia, busco o seu contrário", diz. A contradição é seminal. A exemplo do brasileiro Gilberto Freyre, Morin sabe que a vida é um "equilíbrio de antagonismos". Na caminhada, que se pretendia solitária, muitos se juntaram ao caminhante, dispostos a partilhar sol e poesia, saber e esperança, fábulas e conhecimento, tolerância e descoberta.
Morin defende a reforma educacional que permita à universidade ocupar lugar decisivo na formação de homens voltados para a liberdade. Deve-se enfrentar todo tipo de conformismo, inclusive o que se pretende inconformista. Depois das modas que anunciaram a mmte do Homem e do Sujeito, M01in continua a professar sua crença na hu-
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manidade, no indivíduo, na sua capacidade de manter-se uno no múltiplo e múltiplo na unidade.
A chegada de um novo milênio não o afastou do compromisso com a transformação: o futuro povoa o imaginário dos homens e cobra projeções que revelam, no mínimo, preocupações legítimas com o bem-estar das gerações do amanhã. Sofre-se no presente a antecipação do devir. A humanidade experimenta hoje a decadência de um tipo de idéia de futuro. Cabe construir uma nova concepção de porvir passível de acolher uma confluência de sonhos. O amanhã é um rio que corre desde sempre na mente de cada ser banhado pelo sol da igualdade. Morin é um deles.
Fugir do racionalismo para alcançar a racionalidade, eis a aposta de Morin. Esse elogio da racionalidade nunca deixa de salientar os limites desse instrumento mágico que possibilita o diálogo com o desconhecido, mas não apresenta respostas para tudo. Sociologia do presente, filosofia da incerteza, epistemologia da complexidade, teoria do acaso fundador, abertura ao imponderável, anseio radical de elucidação, paixão pelo diálogo, cruzamento de disciplinas, amor pelo saber: a obra de Edgar Morin é um convite à experimentação das dores e das delícias da "imprecisão", no sentido imortalizado pela poesia de Fernando Pessoa, cuja paráfrase moriniana poderia ser: compreender não é preciso, mas muito necessário.
Observador da vida que experimenta e faz, ocaminhante constrói seu olhar, como uma narrativa que descreve o caminho feito pelo prazer de caminhar. Os
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quatro volumes de "O Método", obra-prima de Edgar Morin, ultrapassam os limites da metodologia para configurar uma teoria e um imaginário do conhecimento. Essa apologia da compreensão vertiginosa supõe um infindável jogo de posições. A complexidade negocia com a incerteza, não para exorcizá-las, o que é impossível, mas na perspectiva do estabelecimento de pontes provisórias entre o ser que busca e o desconhecido.
A informação, vista como a finalidade suprema deste final de milênio, acaba por esconder ou negligenciar o sujeito da troca de signos. Informação para quê? Informação para quem? Os meios de comunicação não podem tomar-se sujeitos de si mesmos. A informação fetiche desconsidera a humanidade dos homens. Simplificar não pode mais ser a palavra-chave da mídia.
Tampouco a tarefa primordial do "cientista" se alterou: transformar o conhecimento em sabedoria. Morin nomeia o "grande paradigma" e aponta os seus males: a vida, com suas paixões e sentimentos, reduzida ao cálculo, engolida pelo império da racionalização. Na era da informação, a comunicação não pode ser um simulacro, um fantasma, uma ausência, uma recusa, uma quase impossibilidade. Deve ainda, e sempre, manifestar-se o sujeito da contestação, o homem da alteridade, o ser da exclusão.
Intelectual, contudo, para Morin, não são apenas o pesquisador, o professor, o cientista e o escritor; os jornalistas, no sentido amplo da palavra, também o são. Intelectuais que não podem abdicar do prazer e da obrigação de repudiar o si lêncio. A mídia não pode distan-
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ciar-se da complexidade. A crítica da mídia deve englobar a própria mídia. Produtores e produzidos por um imaginário que os envolve, os meios de comunicação, para serem examinados em profundidade, devem ser · submetidos a complexas radiografias à luz do paradigma que os justifica.
Edgar Morin é um amigo das idéias que conserva a força da rebeldia. A complexidade implica afrontar as verdades caseiras, as certezas confortáveis e, por vezes, até mesmo os ideais mais caros e aparentemente generosos. A irreverência sábia vai além dos compromissos ideológicos e significa a exegese de todas as ideologias. Exercício constante de dialógica: colocar em relação o exame dos pressupostos de um projeto, de uma idéia, de uma posição, deslegitima as pretensões universais intemporais e fundamenta a evolução paradigmática. Edgar Morin simboliza o eterno retomo da dúvida.
A Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul honra Edgar Morin com o título de Doutor Honoris Causa. Caro Mestre, somos nós que nos sentimos honrados com esta distinção para a honra. Seria preciso narrar-lhe o entusiasmo com que nosso reitor, Irmão Norberto Rauch, acolheu nosso projeto. Seria preciso também falar-lhe do belo artigo de nosso vicereitor, Joaquim Clotet, publicado na Zero Hora, do entusiasmo de nossos pró-reitores de Pesquisa e de Graduação, Monsenhor Urbano Zilles e professor Francisco Jardim, de nosso diretor da Faculdade de Comunicação, professor Jerônimo Braga, da Faculdade de Letras, professora Solange Medina, da Faculdade de
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Educação, do Serviço de Orientação Pedagógica, Valdemarina Bidone e, enfim, de todo o Conselho Universitário. Todos abraçaram a concessão deste título com alegria. A iniciativa da Faculdade de Comunicação encontrou cedo a acolhida do coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Antonio Hohlfeldt, do vice-diretor da FAMECOS de então, Francisco Menezes, e sempre, com convicção, do professor Jerônimo Braga.
Ao ler a sua obra, caro mestre, não é possível deixar de pensar em outros versos de T.S. Eliot: "O tempo presente e o tempo passado/Estão ambos talvez presentes no tempo futuro". O senhor, com certeza, já está inscrito no futuro de nossa instituição.
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EM BUSCA DA COMPLEXIDADE
ESQUECIDA 11* JUREMIR MACHADO DA SILVA
Só se esquece o que nunca se chegou a realmente possuir. O esquecimento do complexo diz mais sobre os mecanismos de produção do saber no mundo mo derno do que inúmeras obras relativas à natureza desse tema. No esquecimento da complexidade, afirma-se a simplificação que rege procedimentos sofisticados, porém incompletos. A busca do complexo orienta um aventura, nunca uma finalização. Na encruzilhada da memória com a herança, a procura do complexo que suplanta o esquecimento e supera, ainda que provisoriamente, a redução, sempre à espreita, fundamenta uma nova relação do sujeito com o objeto. Nela, tudo é rede.
Todo texto se trai ao cristalizar-se. Assim, o tecido de ontem exige a revisão de hoje. A rede amplia os seus nós, diversifica os seus links, destaca as incorreções, exige esclarecimentos, enfatizao que não está em fase, sublinha a falta de sintonia, cobra o movimento das idéias que defendem o movimento. Obra em construção, o ensaio tem sempre uma dimensão de ensaio. Repetição para teste, simula o dito que ainda não foi dito, o qual ,
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ao ser dito, restará imperfeito, logo pedindo novas versões.
Edgar Morin gosta de citar uma passagem de Pascal: "Toutes choses étant causantes, aidées et ai dantes, médiates et immédiates, et toutes s' entretenant par un lien naturel et insensible qui lie les plus eloignées et les plus différentes, je tiens impossible de conna!tre les parties sans conna!tre le tout, non plus que de conna!tre le tout sans conna!tre particulierement les parties".<I> Essa reflexão densa serve-lhe de base para a fundamentação da epistemologia da complexidade. Exposições e entrevistas mais longas levam-no quase sempre a recorrer a essa chave de seu pensamento.
O pensamento, leia-se na passagem anterior, possui uma chave, mas nunca uma chave definitiva, categórica, simplificadora. Abrir significa ampliar as possibilidades de sentido, logo impossibilitar a estação de chegada. Nisso não reside um relativismo absoluto, mas um absoluto desejo de pôr em relação permanente o começo e o fim, o processo e a conclusão, o fazer e o já feito. Morin escolhe à caminhada ao caminho. O método consiste na descrição do caminho percorrido ao longo da caminhada empreendida.
Complexo não é o complicado. Ao contrário, na complexidade abriga-se o simples traduzido de maneira profunda. Já se disse que o difícil não é escrever difícil, mas escrever fácil. Da mesma forma, o complexo não reside na concepção complicada, nebulosa, obscura, mas na percepção transparente, aberta por um mecanismo de síntese. O humor tem essa capacidade de
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condensação, ao qual o riso surge como resposta epidérmica ao estímulo da inteligência formulada como provocação. Edgar Morin, por isso mesmo, é um complexo pensador da alegria. Alegria de pensar, ainda que as misérias do mundo exijam circunspeção e crítica.
Criticar significa pôr em crise. Um pôr em crise que não deve ser traduzido como viver para a crise. Vivese de crise, não para a crise, embora pela crise. O pensamento simplificador costuma ver na crise uma anomia. Já a perspectiva complexa, holista, encontra na crise um fator de alimentação. A evolução nutre-se de crise, tanto quanto a crise alimenta-se de evolução e de regressão. Edgar Morin trabalha, por exemplo, o paradoxo do saber que, ao aprofundar-se, abre as janelas da existência e, ao especializar-se para aprofundar-se, fecha as portas do conhecimento aos que não são especialistas.
O fundamental para ele está na reforma do fazer científico como a ti v idade social e imaginai. Alain Touraine define-o como um intelectual interdisciplinar e incontornável: "Peut-être ne faut-il pas chercher un lieu central dans l'oeuvre d'Edgar Morin, tellement sa richesse et sa séduction viennent de sa capacité de répondre à toutes les grandes interrogations du monde contemporain". (2) Todo ato de conhecimento funciona como uma gestação coletiva. Mas o indivíduo permanece um fertilizador indispensável e incontornável.
Intelectual, pois a figura se impõe na discussão, tal qual um fantasma em busca do seu autor, refere-se ao inseminador, o fertilizador que polinizao saber. Não há, contudo, fertilização sem um ato de amor, mesmo
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da natureza, impensado, inconsciente, poético, criativo, natural. O complexo transforma a prosa do cotidiano em poesia da vida. Na primeira, o drama devasta o carpe diem. Na segunda, o trágico acentua o viver intensamente o possível, tentando construir o impossível. O intelectual deve ser um problematizador, facilitador e construtor da possibilidade do impossível. Não se trata de mero jogo de palavras, embora jogar com as palavras seja uma delícia intelectual, mas da gestação do ainda não existente.
Para Aonde vai o engajamento do intelectual? Na chamada pós-modernidade, o vácuo das utopias foi substituído pelo vazio das propostas imediatas? No tempo de Jean-Paul Sartre, intelectual engajado, os vendedores de certezas encantavam o mundo e afirmavam-se como gênios da reflexão devastadora. Passada a época das utopias racionalistas, que prometiam o paraíso,--mergulhadas no irracionalismo metafísico e na arrogância de uma cientificidade insustentável, espalhou-se que não havia mais grandes intelectuais para estudar a complexidade da vida. Magnífico erro. Edgar Morin nada deve aos mestres de 30 anos atrás. Vence-os, certamente, em humildade e tolerância.
Morin, porém, não vende ilusões. Homem de saber enciclopédico, tomou-se enfim uma referência no pensamento europeu. Traz no coração e na mente a convicção de que "le renoncement au meilleur des mondes n' est nullement le renoncement à un monde meilleur". <3l
De fato, a renúncia ao melhor dos mundos não significa a renúncia a um mundo melhor. Implica, contudo, uma concepção movediça do social e de suas perspectivas.
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O melhor é um lugar que não existe, embora deva sempre ser buscado. Mudar não é preciso (em tempos de incerteza), mas é fundamental. Homem comprometido com a justiça social, Morin não cessa de refletir sobre as noções de pátria, nação, universalismo, identidade, ecologia, política, comunidade, etc. Interessa-lhe dissecar os mecanismos para a compreensão da intrincada rede cultural contemporânea. Nessa linha, os fenômenos da globalização e do fortalecimento dos nacionalismos xenófobos, elementos paradoxais para um mesmo período histórico, encontram finalmente explicação fora das teses redutoras.<4l
Combatente atento das simplificações, Morin enfrenta os procedimentos científicos lineares e enraizados, que recorrem a princípios finalistas mutiladores e à lógica binária cartesiana da separação arbitrária dos componentes de um conjunto fenomenológico secular. "Edgar Morin propose d'envisager la culture comme un systeme faisant communiquer; dialectisant une expérience existencielle, vécue, et un savoir constitué''. <SJ Toda comunicação, para Morin, funciona a partir de um desejo. Essa falta gera a busca do incompleto, daquilo que não se fechará pelo excesso de presença. Elogio da racionalidade aberta.
Em Meus demônios, obra na qual resume o seu percurso e as idéias obsessivas que o dominaram ao longo de uma vida de aventura intelectual, Edgar Morin conta como descobriu, durante a II Guerra Mundial, o marxismo. O encantamento durou pouco. O ser da desconfiança já estava em ação. O marxismo não podia mais
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seduzi-lo por ter-se convertido, segundo a expressão tomada de empréstimo a Karl Korsch, numa "utopia reacionária".<6l As asperezas do percurso underground incentivaram-no a investir na originalidade absoluta. Comelius Castoriadis sintetiza: "L'unité et la singularité de la démarche de Morin découlent d'une intuition pro f onde et vraie de la spécificité de chacune des spheres de l'être en même temps que de leur solidarité indestructible".(7) Singularidade que se expressa na conversão da verdade profunda em profunda explicitação das suas fragilidades.
O errante descobriu as delícias do extravio e da singularidade: "Je vis sans cesse l'assaut des vérités contraíres, des impératifs contraires".<8l Intelectual, sugere, A quem através do ensaio, do texto de revista ou do artigo de jornal, com riqueza de informação, trata das grandes questões humanas e explora até as últimas conseqüências a articulação confiança/desconfiança. Os especialistas, costuma repetir com acidez, são, com freqüência, homens de saber alheios à dialógica da complexidade que não passam de gafanhotos; simpáticos, quando isolados; predadores, em bando. Grande parte das dificuldades que enfrentrou, antes de ser reconhecido como um pensador de primeira grandeza, são explicadas por sua disposição em atacar os intelectuais: "Je ne respecte pas la loi du milieu".<9l O meio, porém, muitas vezes, não perdoa a divergência, não suporta a discrepância, impõe a "espiral do silêncio" .
O silêncio maior se consuma por excesso de fala, a qual elimina a escuta. Quando todos se comunicam, a
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comunicação toma-se um enorme ruído. De onde a complexa noção de subnutrição informativa na era da informação. Tudo circula, nem tudo se assenta. Na aceleração do verbo, imperativa, perde a doçura do tempo parado. Morin está entre os que ainda clamam pela necessidade do tempo perdido, o tempo que se rouba da produção, do utilitarismo, da eficiência, do resultado.
VIVER A IMPRECISÃO
Em 1962, após o período de hospitalização em Nova York, Morin sentiu necessidade de escapar à podridão da comunidade intelectual, certo de que um indivíduo não deve afundar-se na caricatura da própria vida. Conhecedor de manobras corporativas, com as quais nunca concordou, sofreu as perseguições e o repúdio de uma categoria corroída, na época, pela mediocridade e soldada em nome do Progresso, do Saber, da Verdade, da Ciência e de outros termos de fundamental importância, mas também de conhecida manipulação. Na contramão de todos os credos científicos, jogou a carta da incerteza em oposição às leis históricas jamais demonstradas, recuperou o risco e o imprevisível como vetores naturais e recusou-se a aceitar o messianismo das esquerdas duras e desejosas de uma linearidade salvacionista.
Sempre a complexidade. Sempre a procura do algo mais, da vida na vida, do cruzamento do imaginá1io com a investigação. Necessidade imposta pelo avanço do
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pensamento tecnocrático, pela ameaça dos fanatismos religiosos e pelo esquecimento da dimensão humana do Ser. Para Morin, adversário de todos os totalitarismos, respaldado por sua biografia de resistente ao nazismo, os meios de comunicação de massa e as universidades representam muitas vezes o papel de oponentes vigorosos da compreensão profunda dos dilemas sociais. Não se trata de um ataque gratuito ou ideológico à produção crítica acadêmica. Ao contrário. Morin defende a reforma educacional que permita à universidade ocupar lugar decisivo na formação de homens voltados para a liberdade.
Pesquisador sem tabus temáticos, Edgar Morin debruçou-se sobre os problemas da cultura da massa. A imagem, por exemplo, é um de seus assuntos prediletos. Michel Maffesoli observa: "Receptáculo dos sonhos, o cinema constitui o elo mágico por excelência, pois sua estrutura, como analisa com pertinência E. Morin, permite o jogo de sombras, do sortilégio, da passividade, coisas que, como sabemos, são constitutivas da vida social".0°> Esse espaço do irredutível, do inútil, tem o seu preço. Os intelectuais e cientistas positivistas, embriagados pelo saber acrítico acumulado, adoram denunciar o cretinismo dos meios de comunicação de massa e dos incultos sem jamais admitir que os espíritos simples possuem também um saber e a capacidade de participar intensamente de emoções (a imersão num filme, por exemplo) e ainda assim estabelecer a diferença entre ficção e realidade. Os intelectuais, afirma, são alienados, através de uma ideologia abstrata, típica do
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fetichismo moderno, que não podem suportar a alienação dos outros pelas telenovelas ou pelo futebol.< 11
>
Gozar não é estar de acordo. Irônico, Morin salienta o essencial: os intelectuais positivistas atacam o conformismo e os estereótipos e esquecem que eles mesmos formam uma subcultura convencional, cheia de estereótipos, conformista e preconceituosa. Além disso, arrogante. Nenhuma moda lhe escapa: estruturalistas, marxistas, althusserianos, eliminadores da idéia de Homem e de Sujeito, crentes de toda a sorte, recebem a sua parte. Solitário, Morin sabe que pouco pode contra os representantes da elitização de um saber impotente em relação à complexidade existencial, mas poderoso enquanto mecanismo de dominação.
Maffesoli sustenta que não existem enganados e enganadores, "mas uma atitude global".02> Morin persegue o ponto de intersecção entre as perspectivas opostas, o núcleo indefinível da ambigüidade, a encruzilhada dos inconciliáveis. Caminhada de confronto, segundo as suas próprias palavras, em duas frentes: contra a baixa cretinização gerada pela mídia e, na outra ponta, contra a alta cretinização alimentada pelos intelectuais prepotentes.<13
> A guerra só poderia ser devastadora. De um lado, a abstração conceitual falsamente elucidativa (os ismos de todos os tipos). De outro, a recusa de teorias absurdas dando conta da morte do homem e do fim da noção de sujeito. Morin não se dobrou jamais: "J'ai été souvent solitaire parce que je ne pense pas selon les alternati ves et les évidences de la c as te intellectuelle". <
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A luta intelectual de Morin nunca foi, porém, contra todos os intelectuais. Esse tipo de generalização seria uma contradição devastadora que não encontra abrigo em sua filosofia de vida. Ser intelectual é, para Morin, como ser cientista, sábio, erudito, algo nobre, essencial, digno de todas as honras. Intelectual é quem pensa o hoje com vistas a um amanhã de compreensão. Intelectual é quem semeia para uma colheita de idéias capaz de saciar a fome de todos, sem nunca, porém, arrogar-se o direito de pensar sozinho ou em nome de uma sociedade que lhe concedeu tal delegação.
As misérias do Terceiro Mundo, é compreensível, fazem com que a tentação salvacionista reacenda a cada dia o mito, nem sempre confessado, da revolução nos corações inconformados com o capitalismo. Os leitores de Morin perceberão que para ele a construção do presente passa pela descoberta de um novo amanhã e pela ruptura com o projeto nostálgico de recuperação de um passado fracassado. Todo intelectual permanece um sonhador do social.
Sociólogo de uma era de nebulosa, conforme Fages, Morin descobre que a profunda crise civilizacional exige uma "sociologie du présent".05l Se a cientificidade não é uma garantia de lucidez política, a racionalidade, sistema aberto às contradições fundamentais do homem lúdico, produtivo e exposto constantemente à esquizofrenia societal, aparece como a mais elevada forma de conhecimento humano. Ao contrário da racionalização, fechada e calcificada logicamente, a racionalidade conjuga esforços
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argumenta ti vos, de verificação, de crítica e de autocrítica e, mais do que tudo, rejeita argumentos de autoridade e de sujeição.C16l O postulado de Morin declina-se num "penso, logo dialogo".
A METODOLOGIA DO MÉTODO
A obra de Edgar Morin é um instrumento de compreensão dos paradoxos da era da informação. Os quatro volumes de O MétodoC 17l situam com perfeição o intelectual sempre em busca do caminho desconhecido e inovador. J. J. Le Moigne, exímio conhecedor da obra de Edgar Morin, toca o aspecto decisivo: "Une pensée qui sait qu' elle peut relier et que les liens qu' elle construir peuvent former ce prodige de l'esprit qu'est le entendement humain".CIBl Quando a atomização espreita, marca assustadora de sociedades performáticas e escravizadas pela burocratização dos saberes e dos poderes, a superação, ainda que sempre parcial, do esfacelamento intelectual pressupõe a valorização do conjunto, da totalidade multidimensional.
Estratégia da desintegração para a reconstrução, a complexidade desmonta a totalidade totalizante, clássica e monolítica, com a preocupação teórica de estabelecer uma nova totalidade aberta, circular, precária e em permanente intercâmbio com as suas partes. Morin está muito longe de ser um apologista da fragmentação categórica ou das virtudes da ausência da finalidade. Os finalismos deterministas, porém, não o convencem na
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medida em que ele questiona a própria finalidade da finalidade. Tudo o que concorre para a realização da vida não pode desviar-se da pergunta sobre a finalidade última do vi ver.
O grande perigo da obsessão finalista perversa está em que "cette rationalisation finalitaire devient symétrique à 1' ancienne causalité élémentaire, car, comme elle, elle chasse 1' incertitude et la complexité". Não se deve esperar da complexidade, enquanto meio de entender os fenômenos, uma arma para enfim eliminar a incerteza, descobrir os verdadeiros fins e estabelecer sem margem de erro a trama precisa dos objetos. A informação, vista como a finalidade suprema deste final de milênio, acaba por esconder ou negligenciar o sujeito da troca de signos. Informação para quê? Informação para quem? Os meios de comunicação tomaram-se sujeitos de si mesmos. A informação fetiche desconsidera a humanidade dos homens. Simplificar é a palavra-chave da mídia.
"Ainsi l'idée de finalité s'impose. Mais il faut non seulement tempérer 1' enthousiasme piagétien: il faut relativiser et relationner l'idée de finalité".0 9l Morin não é o único a enfrentar as distorções da cientificidade moderna. O "Grupo dos 10", formado entre outros por Jacques Robin, Henri Atlan, Jacques Attali, Henri Laborit, Michel Serres, Joel de Rosnay e, claro, Morin, empreendeu nos anos 1960 uma cruzada contra o cartesianismo. Rosnay destaca a importância da "separação" cartesiana na edificação do esplendor científico atual, mas socorre-se de Morin para enfatizar que a in-
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teligência parcelada, fruto do fracionamento dos problemas, resultou no estilhaçamento da complexidade do mundo.
Implodir a fortaleza das verdades consumadas continua a ser o maior desafio dos adeptos de uma nova visão sistêmica: "Indispensable pour fonder la science, la démarche analytique ne suffit plus pour expliquer la dynamique et l'évolution des systemes complexes, les rétroactions, les équilibres, 1' accroissement de la di versité ou 1' auto-organisation. Il était donc nécessaire qu' émergent de nou velles méthodologies d' organisation des connaissances face à la complexité du monde".<20l
Caos e auto-organização entrelaçam-se. A ordem nasce da desordem. A desordem origina-se na ordem. Ordem e desordem geram o irreconhecível, o imprevisível. Nenhuma síntese acabada é possível.
Tomar, portanto, as ciências da complexidade como portadoras da salvação remete ao passado e trai a lógica desses aportes plenos de inconformismo. A complexidade só permanece complexa na medida em que reconhece os seus limites e rejeita a burocratização. O Método é um grito contra as tentações tecnocráticas do "metodologismo": "La stérilité menace tout travail qui ne cesse pas de proclamer sa volonté de méthode".<2 tl
Edgar Morin conhece o valor do método, o que, de resto, não seria razoável contestar, nas difíceis veredas da pesquisa científica. No entanto, a exemplo de Paul Feyerabend, entende que "a ciência é um empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo teorético é mais humanitário e mais suscetível de estimular
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o progresso do que as suas alternativas representadas por ordem e lei".<22>
O mundo confunde-se com os seus mitos. A ciência, altar da razão, mistura-se com as suas fantasias. Morin e Feyerabend foram longe nas denúncias contra a barbárie do conhecimento tecnocrático. A tarefa primordial do "cientista" não se alterou: transformar o conhecimento em sabedoria. Urge quebrar a arrogância dos metadiscursos, fomentar a interpenetração dos campos de investigação, relativizar o alcance de certas descobertas, estimular a curiosidade pura, acionar a máquina da desconfiança, multiplicar as perguntas, sonhar sempre com novas verdades, combater as velhas verdades injustas, etc .
Na era da comunicação a informação é quase uma impossibilidade: "La techno-science se forme, se rarnifie, s'institutionnalise dans les universités, puis les entreprises industrielles, puis l'État. En deux siecles, elle passe de la périphérie au coeur de la sociéte".<23> Onde pode ainda se exprimir o ser instado a tudo dizer? Em que esferas pode ainda se elevar o discurso do tribuno do nada, a voz do excluído, a frase do poeta maldito, a música dos "homens sem qualidades"?
Mesmo que as brechas sejam mínimas, Morin não as despreza. Os intelectuais, os formadores de opinião, precisam retomar o trabalho de discussão. Forjar idéias é fundar universos dialógicos. A dialógica não existe sem pluralismo, sem desvio, sem contestação, sem contra-informação, sem comunicação de sentimentos. A nmmalização, expressão máxima do conformismo, paralisa os
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intelectuais, arranca-lhes a originalidade, tira-lhes a autonomia, impede-os de pensar por conta própria. Tudo é previsto, das palavras permitidas às teorias defensáveis:
"Aussi peut-on voir, dans les hautes spheres intellectuelles universitaires, des exemples superbes de conformisme, qui n'y sont reconnus qu'apres quelques générations"<24l. Intelectuais que há muito abdicaram do prazer e da obrigação de repudiar o conformismo. A mídia quer distância da complexidade. A simplificação é mais rentável. Edgar Morin não deve ser entendido como o inimigo dos intelectuais. Verdadeiro amigo das idéias, conserva a força da irreverência. A complexidade implica afrontar as verdades caseiras, as certezas confortáveis e, por vezes, até mesmo os ideais mais caros e aparentemente generosos. A irreverência epistemológica vai além dos compromissos ideológicos e significa a exegese de todas as ideologias.
Ao contrário dos que trocam de posição para sustentar as mesmas atitudes, Edgar Morin nunca se converteu no oposto de si mesmo. Não lhe parece que a vida seja um retrato em preto e branco, tampouco uma querela ideológica circunscrita ao lugar de cada um na esfera produtiva. Direita e esquerda permanecem noções de referência, embora topográficas, matizadas por novos conteúdos. No essencial, claro, a esquerda continua a centralizar a crítica da exclusão, enquanto a direita encama o conservadorismo. No entanto, Morin mostra o quanto pode haver de direitismo na esquerda e de anticonservadorismo na direita. Nenhuma posição está isenta do que a nega e compromete.
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A barbárie habita o coração da civilização. A frase, mesmo apocalíptica, esconde uma interpelação necessária. O bárbaro não é o outro, a alteridade, o exterior, o estrangeiro. Civilizado, a não ser numa concepção etnocêntrica, não pode ser quem designa a diferença como barbárie. Pensar o outro na sua especificidade reclama a relativização do sujeito da enunciação. O outro não é o eu com outras vestes, mas um outro integral, cujo pensamento pensa aquele que o pensa com outras categorias. Da transfiguração do eu em outro nasce a descoberta da particularidade do próximo, num processo de estranhamento capaz de tirar o véu do familiar e o medo do estranho.
As teorias precisam do estranho para crescer. Abertas, bebem na diferença a seiva que as revitaliza. So-
----tmnen te-as-d-eu t-r-i-nas---teme-ID:---6-contra ~a-rgu-ms a-te, a contestação, a disparidade. Fechadas, escondem o contraditório, sufocam o complexo, asfixiam a liberdade de expressão. O teórico nunca faz parte de uma seita. Coletor de dados que confirmem ou neguem as suas idéias, aplaude o novo, sempre em busca das aproximações sucessivas da verdade.
Pensar é algo que se pensa num estado permanente de pensamento. No pensar existem palavras num jogo infinito de articulações sinuosas. O pensamento, às vezes, pensa o pensador que pensa pensá-lo. Feito um domador de verbos selvagens, o pensador retoma a cada dia a labuta do adestrador de vertigens. A complexidade é uma atriz extraordinária que encama todos os papéis ao mesmo tempo. Tão rica e poderosa que pode
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apresentar-se sob as vestes de uma camponesa. Edgar Morin, porém, não é um pastor. Apenas um semeador satisfeito com a semeadura.
NoTAs
* As primeiras versões deste texto foram publicadas em Castro, Gustavo, Carvalho, Edgar de Assis e Almeida, Maria da Conceição (orgs.), Ensaios de complexidade, Porto Alegre, Sulina/EDUFRN, 1997.
<'> MORIN, Edgar. La méthode 1. la nature de la nature, Paris, Seuil, 1977, p. 7.
<21 TOURAINE, A. "Edgar Morin et les chances de la liberté''. In: Les jardins de la connaissance, Paris, Université Euro-arabe Itinérante, n° 2, outubro de 1995, p. 29.
<J> MORIN, Edgar. "La pensée socialiste en ruine". In: Le Monde, Paris, 2110411993, p. 2. Nesse artigo extraordinário, Morin lembra que para Marx: "la science apportait la certitude", sendo o mundo determinista; de resto "ni I' imaginaire-ni le-mythe ne fai.saient par:tiede la réalité humaine profonde". Em oposição a isso, Edgar Morin sustenta que não se pode "opposer un futur radieux à un passé de servitudes et de superstitions. Toutes les cultures ont leurs vertus , leurs expériences, leurs sagesses, en même temps que leurs carences et leurs ignorances".
<41 Ver MORIN, Edgar. Terra-pátria, Porto Alegre, Sulina, 1995. Uma das epígrafes do livro, colhida na obra do escritor Ernesto Sabato, já diz muito sobre a maneira de pensar de Morin: "Precisamos de mundiólogos" (p. 5).
<SI F AGES, J. B. Comprendre Edgar Morin, Paris , Privat, 1980, p. 159. ' 61 MORIN, Edgar. Mes démons, Paris, Stock, 1994, p. 246. 01 CASTORIADIS , Cornelius. "Morin !e cheminant". In: Les jardins
de la connaissance, op. cit ... , p. 39. . <B> MORIN, Edgar. Mes démons, op. cit .. . , p. 83. '91 Idem, p. 96.
<' 01 MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente, Rio de Janeiro, Rocco, 1984, p. 65 .
'" 1 MORIN, Edgar. Mes démons, op. cit .. . , p. 263-264. ' ' 21 MAFFESOLI, M. A conquista do presente, op. cit ... , p.llü. "
31 MORIN, Edgar. Mes démons, op. cit ... , p. 21 7. ""
1 Idem, p. 258.
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<15> FAGES, J. B., Comprendre Edgar Morin, op. cit ... , p.123. <16
> Sobre esse aspecto, ver. MACHADO DA SILVA, Juremir. "Entretien avec Edgar Morin, penseur de la complexité". In: Les jardins de la connaissance, op. cit .. , p. 22-27.
<17> Ver MORIN, Edgar. La méthode 1; la nature de la nature, Paris,
Seuil, 1997, v. t. _.La méthode 2; La vie de la vie, Paris, Seuil, 1980, vol II. _.La méthode 3; la connaissance de la connaissance, Paris , Seuil, 1986, v. III. _. La méthode 4; les idées, leur habitat, leur vie, leurs moeurs, leur organisation, Paris, Seuil, 1991, v. IV
<18> LE MOIGNE, J.J., "Une pensée qui relie ... ". In: Les jardins de la connaissance, op. cit .. , p. 34.
<19> Idem, p. 267.
<20> ROSNA Y, J oel de. L' homme symbiotique; regard sur le troisieme
millénaire, Paris, Seuit, 1995, p. 37-38. <21
> BARTHES,Roland, apud JEANNENAY, Jean-Noel. Une histoire des médias; des origines à nosjours, Paris , Seuil, 1996, p. 9.
<22> FEYERABEND, Paul. Contra o método, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977, p. 17.
<23> MORIN, Edgar. La méthode; les idées, leur habitat, leur vie, leurs moeurs, leu r organisation, op. cit .. , p. 228.
--------~24~Idem, -~. ~-------------------------------------
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ÁS DUAS GLOBALIZAÇÕES:
COMUNICAÇÃO E COMPLEXIDADE
EDGAR MüRIN
O que chamamos de globalização hoje em dia é o resultado no momento atual de um processo que se iniciou com a conquista das Américas e a expansão dominadora do ocidente europeu sobre o planeta. A primeira modernização no princípio do século XVI é a globalização dos micróbios, porque os micróbios europeus, como a tuberculose e outras enfermidades chegaram às Américas ao longo dos anos. Porém, os micróbios americanos, como os da sífilis, chegaram à Europa. Esta é a primeira unificação mundial danosa para todos.
Entretanto o dano principal foi para os conquistados. Podemos dizer que há um processo com múltiplos eixos, porém de onde podemos tirar dois eixos principais. Dois processos principais e ao mesmo tempo antagônicos. Primeiro, o da escravização das populações conquistadas, a dos negros que foram transportados para as Américas e a dos povos colonizados. A dominação da Europa ocidental no século XIX é sobretudo uma dominação da Inglaterra na Índia, na Ásia, no Canadá, em vários pontos do Globo.
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Essa dominação começa a mudar com o século XX. Este é um século de globalização e nesse sentido pudemos viver duas guerras mundiais, que começam no solo da Europa e se expandem e influenciam todo o planeta. Depois da última guerra mundial começa o processo de descolonização ou a emancipação relativa dos povos dominados. E, ao final dos últimos dez anos, com a derrubada do Muro de Berlim e o fracasso do império soviético, tem-se a hegemonia, sobretudo a partir do centro norte-americano, do mercado mundial, com a dominação tecnológica e econômica do Ocidente.
A segunda globalização, que é o negativo da primeira, é uma globalização minoritária. Começa no próprio coração das nações dominadoras. Primeiro com a concepção de Bartolomeu de las Casas, padre espanhol que provocou uma controvérsia, uma disputa teológica, ao dizer que os índios das Américas eram humanos como os ocidentais e que tinham uma alma, Quase ao mesmo tempo Montaigne tem a mesma idéia, de que se devia considerar todas as culturas e civilizações não unicamente como inferiores em relação à ocidental, mas como também tendo suas virtudes e suas qualidades.
Também acontece como que uma autocrítica minoritária. Por exemplo, Montesquieu, escritor francês do princípio do século XVIII, escreve as Cartas Persas, imaginando um persa que vai a Paris e considera como um antropólogo os costumes dos franceses, vistos como uma população exótica. Este momento de autocrítica, de relativização de si mesmo culmina no
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século XX com as concepções do antropólogo francês Lévi-Strauss. Ele disse que as culturas pequenas, mais antigas, chamadas primitivas, têm virtudes e qualidades humanas.
Esta é uma coisa muito importante porque descobrimos que havia conhecimentos que não conhecemos, conhecimentos sobre as qualidades de plantas e animais, como muito bem sabem algumas populações indígenas da Amazônia. Agora se faz nas faculdades pesquisas e cursos de etnofarmacologia, da farmacologia dessas populações. Considera-se que o modo de curar dos xamãs não é unicamente ilusão, mas prática psicossomática de curar enfermidades. Considera-se também que os analfabetos não são pessoas sem cultura, mas que têm a cultura oral, tradicional, velha, muito antiga, como também sábia. Cada cultura tem verdades, conhecimentos, sabedoria, como também ilusões, equívocos.
Então, esse movimento da segunda globalização que tende a considerar com respeito e atenção os outros continua com as idéias dos direitos humanos, que a revolução francesa havia difundido, com as idéias do humanismo, com as idéias antiescravagistas - que provocaram no final do século passado a abolição da escravatura, com uma guerra civil como foi nos Estados Unidos- e com a reação dos intemacionalismos do século passado e início deste.
Em todos estes fenômenos, do final do século XX até hoje, há uma coisa nova: são as manifestações da cidadania planetária, que aparecem nas várias associações de médicos sem fronteiras, que vão curar gente
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de todas as religiões, de todas as opiniões, nas associações como a Anistia Internacional, que em todos os países denunciam as torturas e o descumprimento dos direitos humanos.
Também nos países ocidentais há Survival International, que defende as diferenças das pequenas nações, como na África e nas Américas, mas também na Ásia e em outros lugares; Greenpeace e a problemática da auto-salvação, da salvaguarda da nossa biosfera, que é vital, é também uma associação planetária. Há fenômenos de mestiçagem, que não são fenômenos de homogeneização, mas de criação de nova diversidade, como o demonstra muito bem a civilização brasileira, em que sínteses culturais fazem seus intercâmbios.
Podemos ver os dois eixos. Não há uma única globalização (ou modernização?), mas duas que são ligadas e antagônicas. E há fenômenos quase ambivalentes, como o desenvolvimento das comunicações. Por que ambivalentes? Porque o desenvolvimento das comunicações, sobretudo nos últimos anos, com o fax, o telefone celular, internet, a comunicação instantânea em todos os pontos do planeta, é um fenômeno notável no sentido que pode ter efeitos muito positivos , que permitam comunicar, entender e intercambiar informações.
Mas não devemos confundir comunicação e compreensão, porque a comunicação é comunicação de informação às pessoas ou grupos que podem entender o que significa a informação. Mas a compreensão é um
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fenômeno que mobiliza os poderes subjetivos de simpatia para entender uma pessoa como uma pessoa que é também sujeito. Por exemplo, se eu vejo uma pessoa chorando. Como explicar? Devo fazer uma investigação para chegar à explicação.
Eu posso pegar algumas lágrimas e fazer uma análise química. Mas a análise química das lágrimas não vai dar o resultado do que significam as lágrimas. Precisa-se mobilizar a compreensão. Se me recordo de quando estou sofrendo. Se tenho este fenômeno de simpatia para entender esse sofrimento, isso gera a compreensão. Então, estamos num planeta de tantas comunicações e pouca compreensão. Não unicamente pouca compreensão de uma parte do globo a outra parte do globo. Podemos ver que em uma mesma família, em uma mesma igreja, em uma mesma faculdade há muita incompreensão de pessoa a pessoa, que não vê que tem do outro uma visão pejorativa. Há filhos que não entendem os pais e pais que não entendem os filhos. Tudo isso é um problema. Há um problema fundamental no mundo da comunicação: não basta multiplicar as formas de comunicação, também é preciso a compreensão.
E também vemos outro fenômeno que podemos chamar de ambivalente, que pode ter vários aspectos: é o princípio nacional. Na história humana se inserem cidades, impérios, mas o fenômeno nacional é um fenômeno que vem da Idade Média, na Europa. Significa um poder que pode unificar etnias diversas e transformálas em regiões. É um processo de séculos, com o
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desenvolvimeto de uma administração com leis comuns, língua comum.
Mas a nação necessita para a concretização uma coisa maior que uma organização estatal. Necessita do que podemos chamar um mito fundamental. Mito, digamos no sentido que podemos elucidar quando consideramos a palavra pátria. Vejam a palavra pátria. Começa com Pa, de padre, paternal. E se acaba com Tria, feminino, maternal. Nós dizemos mãe pátria. Eu diria que na pátria há uma substância maternal de amor e há uma substância paternal. Esta é a autoridade do Estado ao qual devemos obedecer.
Isto significa que há cidadãos e cidadãs de uma pátria, que não têm nenhuma relação familiar e genética, têm um sentido em momentos importantes, quando há uma ameaça à pátria, como se fossem irmãos. É o que dizem as primeiras palavras da Marselhesa: "Em frente, filhos da pátria ... ".
Neste sentido de comunidade há uma pátria e não uma nação, no sentido integral. Podemos dizer que as nações do Ocidente têm dominado o mundo. Mas a emancipação do mundo se faz com a apropriação pelos dominados das idéias que levam ao interior do Ocidente e não ao exterior.
Por exemplo, na Inglaterra gerou-se um modelo de democracia e de direitos humanos durante os séculos XVIII e XIX, mas não havia democracia nas colônias inglesas. Os colonizados utilizam as idéias de liberdade, emancipação, direitos dos povos e nação. É por esta razão que ocorreu a multiplicação das nações. Primeiro
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na Europa, porque na Europa havia impérios como o otomano, austro-húngaro, czarista.
A luta pela emancipação se deu com a constituição de novas nações. Nas Américas, começou nos Estados Unidos e, no século XIX, a emancipação das nações da América Latina. Entretanto, no final da 11 Guerra Mundial é um fenômeno geral, por todo o planeta. Digamos que o fim do colonialismo é a constituição de novas nações. Fenômeno positivo porque sabemos que a nação é um quadro de civilização. Mas também um fenômeno negativo porque nesta época de globalização, em que há problemas tão graves, o poder absoluto das nações concentra, como os Estados Unidos, toda decisão importante.
Também sabemos que na França temos duas palavras: patriotismo e nacionalismo. Falar em patriotismo significa um amor justificado pela pátria. Nacionalismo significa, ao contrário, um orgulho com desprezo pelos outros, uma hostilidade, uma agressividade. Há os fenômenos nacionais. O pior é o nacionalismo, a agressão contra os outros. O melhor, o patriotismo.
Quando vemos esses fenômenos, vemos um pouco sua complexidade. Não basta ver direito. A complexidade é cada vez uma cumplicidade de desconstrução e de criação, de transformação do todo sobre as partes e das partes sobre o todo. Há influência do todo sobre as partes e das partes sobre o todo. Tomemos os casos das guerras do Iraque, da Bósnia, problemas do Oriente Médio, fenômenos locais, de pequena importância mundial e que provocam a intervenção da maioria das po-
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tências . O mundo atual não se pode conceber como um sistema organizado, racional. É um caos, é uma vertigem em movimento. É muito difícil de entender o que se passa. É exatamente como disse Ortega y Gasset: "Não sabemos o que passa. E é isso que se passa".
Esta dificuldade de entender o mundo é uma coisa muito angustiante porque quanto mais estamos nesta possessão do mundo sobre nós menos somos capaz de entendê-lo e de atuar. Ademais, devemos dizer que o mundo se encontra cada vez mais uno e cada vez mais particularizado, digamos, cortado em pedaços. Uno no sentido de que cada parte do mundo faz parte cada vez mais do mundo em sua globalidade. E que o mundo em sua globalidade encontra-se dentro de cada parte.
Isto vale também para os indivíduos. Tomemos um europeu médio. De manhã, liga seu rádio japonês, toma café da América Latina, põe a camisa de algodão da Índia, uma calça de lã da Austrália, uma carteira de réptil africano. TemrumdaMartinica, tequilamexicana, saquê e talvez cachaça brasileira. Escuta sinfonia alemã, com a direção de um maestro coreano ou japonês. Nas misérias das favelas africanas, asiáticas e da América Latina também há presença do mercado mundial, porque é o mercado que afeta o custo do cacau, do açucar, do café.
Isso determina fenômenos negativos que punem os povos. Na Áflica, por exemplo, a monocultura industrial toma o lugar dos camponeses, que se transformam em suburbanos, buscando trabalho, domicílio, utilizando instrumentos de alumínio, de plástico, que bebem cerveja e coca-cola, que aspiram a uma vida de
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bem-estar que pode ser vista na publicidade do Ocidente. São objetos do mercado mundial, mas também sujeitos do Estado criado sobre um modelo ocidental, mas nem por isso democrático. Assim, cada ser humano, rico, pobre, do sul, do norte, do leste ou oeste, tem sua singularidade mesmo no planeta inteiro. Falo também de um mundo cada vez mais uno, com esses fenômenos das comunicações, mas cada vez mais cortado em pedaços. Há uma conexão entre estes dois fenômenos antagônicos. Primeiro porque o desenvolvimento da multiplicação dos Estados nacionais fecha-se demais em s1 mesmo.
Nesse fenômeno há duas motivações fortes: há a vontade de manter a continuidade da identidade ancestral dos pais e esta necessita rechaçar os processos de homogeneização que vêm do Ocidente, como o processo civilizacional que faz desaparecer as línguas, os modos tradicionais de dançar, de comer, de outros. Há a resistência que vem nos momentos em que se tem medo de perdê-las. Esta vem dos velhos, mas sobretudo dos jovens que querem continuar fiéis às tradições.
Outro fator é que estamos numa situação de perdição do porvir, do futuro, porque o mundo vi via com a ilusão de que o progresso é uma necessidade histórica, determinada, de que os progressos técnico, mecânico, industrial levavam ao progresso humano, ao bem-estar da compreensão. E havia a idéia de um futuro muito bom, ideal, não unicamente no mundo soviético, com o futuro radioso, o porvir feliz, mas também um ideal no mundo ocidental de desenvolvimento, de democracia,
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de técnica industrial. Hoje em dia se vê que não há o futuro feliz. Há a incerteza sobre o futuro. Estamos como em uma navegação na noite e na neblina.
Quando se perde o futuro, o porvir, e se percebe que o presente é de angústia, de incerteza, então no que se pode segurar? É no passado, é o movimento ao passado, buscar as verdades no passado e não mais a verdade de futuro. E nessa situação há a ressurreição da força virulenta de muitas religiões em conexão com os nacionalismos agressivos. Há conflito entre as religiões. Entre laicismo e religião, modernização e tradição, democracia e ditadura, ricos e pobres, jovens e velhos, países velhos e jovens.
Ainda mais quando os interesses das grandes potências estabelecem zonas específicas no globo, como o Gfiente Méàie, onde há o choqu~de todos os antagonismos mundiais, concentração de dificuldades de negociar, enfim de finalizar o acordo de independência dos palestinos. É uma situação tão grave porque não se tem todavia as possibilidades de pensar o contexto e o global porque isto vem do mundo da educação sistematizada pelo ocidente que tem permitido um grande desenvolvimento científico. Mas com a hiperespecialização das disciplinas, os projetos são concebidos fora dos contextos. Por exemplo, quando houve no Egito a decisão do coronel Nasser de fazer a barragem do Canal de Suez, do ponto de vista técnico, era uma necessidade de energia elétrica para as populações e também de regular o curso do rio Nilo. Sem considerar o contexto social e humano, a batTagem impediu o assentamento do húmus
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fertilizante. A perda de grande parte do húmus fertilizante, que a cada ano fazia a refertilização do vale do Nilo, comprometeu as colheitas de trigo, dos alimentos, dos vegetais que nutriam os camponeses egípcios. A barragem também impediu a pesca no vale baixo do rio, ocasionando a falta de alimentação aos camponeses.
Houve uma migração massiva dos camponeses, tomando as cidades gigantes. Aumentou a miséria, com gente vivendo nos túmulos dos cemitérios. Também devemos considerar que a extensão de terra afetada pelas inundações não era tão ruim, pois durante dois, três anos, permitia a ampliação das zonas de cultura de trigo e outros vegetais. Ademais hoje em dia vemos que o peso dos fertilizantes sobre a barragem é um perigo. Para todos os peritos, há problemas.
Não s-eu engenheiro,-não posso dizer o que--f-azer. A única coisa que se pode saber é que é necessário conceber, quando se faz um projeto técnico, as conseqüências humanas e sociais. Este foi o equívoco gigante da União Soviética que fez várias coisas desastrosas para ela própria. É preciso contextualizar e não apenas globalizar. Conceber não unicamente as partes, mas o todo. Esta é a razão pela qual somos cada vez mais incapazes de pensar o planeta. Realmente, temos a necessidade do que chamo uma reforma do pensamento e da educação, que permita desenvolver o mundo de conhecimento, através das relações e dos contatos globais.
No caos atual do mundo vemos que há três ou quatro motores associados que fazem com que a nave espacial seja hoje em dia um Titanic voador. Estes motores
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são a ciência, a técnica e a economia. Havia um motor muito importante, o Estado. Basta pensar na energia atômica: foram os Estados Unidos que permitiram o desenvolvimento da indústria atômica. Não significa que a utilização principal da energia atômica seja para bombas. Hoje em dia a ciência vale sobretudo para o desenvolvimento da nova biologia, na conexão máxima das pesquisas biológicas, nas técnicas de intervenção e manipulação e no comércio e na indústria de consumo.
Por esta razão é mais difícil poder intervir nesses assuntos. A ciência, que foi um fenômeno muito marginal no princípio do século XVII, hoje é uma coisa central, não unicamente em cada sociedade, mas no porvir de todas as sociedades. A ciência, a técnica, a economia e o Estado são as forças. Temos hoje os perigos fundamentaisaa ciênciaâo conhecimento. O perígnliífl:lc;struição dos humanos com as bombas atômicas, que têm uma difusão muito grande. Não basta pensar que não há mais a Guerra Fria. Pode-se pensar na existência das guerras quentes em muitas partes do mundo.
Há o problema da biosfera, decorrente do desenvolvimento por si mesmo. Assim, não podemos pensar que tudo que significa desenvolvimento e técnica tem que ser bom. É ambivalente. Esta idéia de ambivalência é muito difícil de entender porque muito do pensamento que temos é um modo de pensamento que quer a resposta, visão simples: bom ou mal. Há os que dizem ser a ciência muito boa - "vejam a medicina, as coisas úteis, a salvação dos doentes". Há os outros que dizem ser muito má, por causa do poder de destruição, de manipulação.
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Por que esta dificuldade de unir duas noções tão contraditórias? Temos na história do pensamento ocidental uma tradição que passa por Heráclito, por Pascal, Hegel, Marx e outros, Lupasco, que diz que duas verdades contraditórias podem valer ao mesmo tempo. Pascal disse que o contrário de uma verdade não é um erro, é outra verdade. É o mesmo que dizia o grande físico Bohr, um dos pais da rnicrofísica: o contrário de uma verdade profunda é outra verdade profunda. Esta é uma coisa muito importante: comparar duas verdades profundas, ou seja, considerar a ciência como ambivalência.
Ambivalência também de todos os processos das duas globalizações. Por esta razão, temos de considerar o século passado sinônimo de progressos gigantes em tantos campos, mas também de regressões e perigo. A barbárie antiga de novo se desenvolveu, com violência, massacres, destruição, ódios, em uma aliança entre a velha barbárie, que não havíamos extirpado, e uma barbárie nova, fria, oriunda da ciência e da tecnologia, alheia aos problemas humanos. A velha barbárie utiliza a nova barbárie, o que os filósofos de Frankfurt chamavam de razão instrumental, que não é a racionalidade, mas a utilização do poder racional com as forças de opressão e de destruição. Então é a ambivalência geral que gerou o desafio fundamental do século atual.
Se há correntes dominantes, não unicamente das barbáries, mas das tendências à degradação da vida e da qualidade da vida, da qualidade da vida e da compartimentalização, homogeneização e marginalização de todos esses tipos de fenômenos, existem também contra-
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correntes, que são reações aos movimentos dominantes. Primeiro a corrente ecológica. O crescimento do desmatamento, das degradações e a aparição de catástrofes como Chemobyl contribuem para a consciência ecológica sobre a biosfera.
A qualidade avança em luta contra o produtivismo e a lógica da quantidade. Em vários países cultiva-se o desenvolvimento dos vinhos de qualidade, artesanais, e não mais o vinho de produção padronizada. Esse fato também se verifica na Europa do Sul, onde podemos encontrar bons vinhos cabemet. Em muitas partes do mundo há essa reação, o que se vê também na alimentação biológica. Cada vez que há uma catástrofe alimentar, como a da vaca louca na Europa, há um salto de conscientização. Há uma busca qualitativa em todo o mundo, no_modo de_\Lestir=.Re_, de_yiycr, de p_as_sar férias - não mais o turismo para ver as coisas de fotografia, mas viver as experiências dos nativos, experimentar o local. Há uma resistência a uma vida unicamente utilitária que se manifesta na busca de uma vida mais intensa, poética. Porque se pode dizer que na vida há dois eixos: o prosaico e o poético. O prosaico são as coisas que devemos fazer por obrigação, para comer, estudar e outras necessidades vitais. A qualidade poética vem das coisas feitas com gosto, amor, prazer, paixão. Também podemos encontrar poesia nos jogos, nos campos de futebol, nas festas, nos carnavais e em outros.
Então, há correntes de resistência à compulsão do consumo padronizado com duas ações: uma na busca da diversidade e outra na busca de uma certa fuga à
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maneira de viver dominada pela sociedade de consumo. Há um momento de resistência contra a mercantilização da vida.
Temos primeiro o ciclo geral da homogeneização·, da dominação dos problemas econômicos. Depois, um segundo ciclo, o dos problemas humanos, com a idéia de que o mundo não pode ser considerado como uma mercadoria. É uma corrente de emancipação contra a tirania onipotente do dinheiro, porque se percebe aredução da parte de gratuidade da vida. O que significa a parte de gratuidade da vida? É a parte do serviço mútuo, que se faz pela amizade e que não deve resultar em dinheiro: "Sabe onde fica esta rua? Sim, senhor. Tem um real?" É a ação de solidariedade e também a busca de relações de amizade.
Penso que há corrent~ contudo, pequenas, que reagem contra a generalização da violência para resolver todos os problemas. Onde há uma situação de democracia, a expressão é permitida, os partidos, os sindicatos e outros atuam livremente. Privilegia-se a vida. Matar é uma violência que somente pode se justificar em uma situação de opressão, de ditadura, de ocupação por um país estrangeiro. Hoje há tanta violência por todas as razões que se deve fazer nascer uma ética da pacificação das almas, uma ética da não-violência.
É neste sentido que se considera a herança de Gandhi, com sua política de não-violência. Há sempre grandes aspirações humanas que, no século passado, encontraram expressão, aspiração, a mais libertária, a mais comunitária, a mais fraterna, a mais igualitária,
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primeiro nas idéias democráticas e nas idéias socialistas. As idéias do socialismo - de base comunitária e emancipação - são princípios fundamentais que os seres humanos têm de si mesmos.
Mas a utilização dessas idéias na União Soviética foi exatamente o contrário da ideologia, com a exploração dos trabalhadores, sem direito de greve, e a dominação de uma casta que detinha o poder total. Hoje há também essa aspiração, o que se vê nas idéias de solidariedade planetária, nas correntes de vanguarda como Greenpeace e outros. Na França, durante o terrível isolamento de Sara vejo, surgiram espontaneamente vários movimentos de ajuda. Temos isso quando assistimos a um flash na televisão de um desastre, uma inundação, um terremoto, um movimento de solidariedade por gente de outro continente de outras etnias.
Há pessoas que dão dinheiro, roupas, comida. Porém é um flash pela televisão, em que um desastre é esquecido por outro; mas temos a potencialidade em nós com a presença da televisão que nos dá a possibilidade de ver os desastres humanos e a compreensão imediata do que significa sofrer. Então, o século vai encontrar problemas graves, fundamentais, que são os problemas dos seus motores essenciais.
Esquece-se a ciência que se desenvolveu fora de toda a ética, porque a sua liberdade era não considerar as conseqüências éticas de seu conhecimento. Hoje, a conseqüência dos conhecimentos mais desenvolvidos, que são poderes gigantes na física e na biologia, é a obrigação de fazer uma relação ciência-ética; não bas-
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tam os pequenos comunicados de bioética que são vistos pelo mundo. Contudo, necessita-se em todos os países de cidadãos com uma consciência forte dos problemas que tratam da ciência.
É necessário também que as autoridades internacionais imponham a interdição das armas químicas, das armas biológicas. Tem de ser uma coisa mais forte e grande sobre as conseqüências dessas tecnologias. Ver, examinar, porque as conseqüências das aplicações, por exemplo na genética, são ambivalentes. Podem ser aplicações de genes bons em lugar de genes que provocam o mongolismo. Podemos também fazer a normalização dos genes para criar pessoas padronizadas. Então, necessitamos de um exame muito racional, ético, dos poderes da ciência.
Segundo problema: domesticar a tecnolo ia ou ser domesticado para ela? Parece uma utopia. A internet é um sistema quase neurocerebral, sobretudo uma rede neurocerebral artificial. Para o planeta é um modo de comunicação maravilhoso, mas a internet não é unicamente comunicação e informação, e, sim, computação, trabalho de computadores. Hoje se preparam computadores de nova geração, mais inteligentes. A inteligência dos computadores é limitada à indução, dedução, operações de lógica ou investigação. Não tem sentimentos, alma. Entretanto, a superioridade dos humanos é a mesma que a inferioridade dos humanos. A inferioridade dos humanos é ter sentimentos, que podem ser loucos. Pode ser muito simples, como uma loucura de amor. Percebe-se que a pessoa é maravilhosa, como Dom
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Quixote, alucinado. Também o amor e a paixão podem ajudar a entender a inteligência humana. Os computadores não têm paixão.
A teoria diz que um autômato muito desenvolvido tem o poder de fazer a reprodução gráfica de si mesmo e a capacidade de produzir os instrumentos capazes de reproduzir a si mesmo, segundo os planos de sua organização, deste modo, podendo realizar a replicação dos computadores, dos robôs e dos autômatos. É algo previsível.
Há também o desenvolvimento das nanotecnologias, microfísicas, de pequenos grupos de atores que têm poderes ativos de pequenos robôs e com a possibilidade futura da reprodução em série, da auto-reprodução. Se existe a idéia da reprodução dos robôs, autômatos, computadores, então se comprova o poder gigante da tec-
___ _!onologia. É ROr esta razão que escrevi um arti o, há alguns meses, sobre "Por que o Futuro Não Necessita de Nós?". Porque neste momento os humanos serão inúteis. É o momento de liquidação dos humanos.
Hoje muitas das idéias fantasiosas da ficção científica têm um nicho de previsibilidade. Há o paradoxo da ciência que permite realizar sonhos impossíveis e ao mesmo tempo é o maior perigo de morte que se encontra na humanidade.
O paradoxo deste século é viver essa aventura terrível, que necessita de consciência mais avançada. Alvin Toffler, em seu artigo sobre o futuro , disse que podemos ter uma possibilidade de simbiose muito boa com as tecnologias. Elas fazem muitas coisas. Nós podemos pegar os livros. Mas, disse Toffler, isto necessi ta um
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desenvolvimento intelectual, cerebral, ainda não feito. O problema é o desenvolvimento da inteligência, o desenvolvimento da ciência, desenvolvimento também da responsabilidade que temos com o futuro.
Existe um princípio de responsabilidade. O autor disse que esse princípio da responsabilidade não representa unicamente a responsabilidade que temos com os outros, mas com as gerações futuras. Somos responsáveis pela degradação do planeta. Essa é a velha responsabilidade prolongada no tempo, de modo que me parece muito necessária.
Podemos considerar hoje a existência de processos de metamorfoses no gênero humano. Metamorfoses, por exemplo, no campo da biologia, ecologia, na relação tecnologia/ser humano e da época planetária, porque a situação com as duas globalizações, com a multiplicação das comunicações, é uma situação que permite considerar a possibilidade de fazer uma unidade geral humana, não um governo mundial, mas uma confederação das nações, uma instância de decisões para os problemas vitais como as armas de destruição, a ecologia, a economia que necessita de regulação. Não é necessário um governo de controle. Isto significa que no planeta deve-se fazer uma sociedade do tipo nova. Fui a um congresso de sociólogos de língua francesa em Quebec sobre o tema "Existe uma sociedade-mundo?". Inclusive fizemos a pergunta: existe um fenômeno que pode efetivamente fazer uma sociedade, como as comunicações? Com todas as comunicações, fizemos uma sociedade? Existem todas as possibilidades orga-
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nizativas de uma sociedade-mundo. Significa que não haveria mais a possibilidade de guerra, de luta, de destruição, de dominação e opressão.
O que falta é evidente: as consciências ética e política. Elas necessitam de um sentido que pode se chamar de pertencer. Precisam deste fator de comunhão que existe na palavra Pátria. Este é o sentido de pertencer à mesma comunidade humana, à mesma diversidade. O sentido de unidade humana e comunidade de destino, porque todos os problemas de vida e de morte sobressaem agora. Temos necessidade desse sentido e este sentido aponta para o desenvolvimento dos sentidos ético e político e da reforma epistemológica, em essência uma reforma do pensamento.
Estamos em um momento em que se pensa nas co i-sas.-E quando_se_pensanas_coisas__.os princípios são muito pequenos, dispersos. Nos primeiros tempos da religião cristã, os discípulos, um pequeno grupo, ficavam na Palestina e eram totalmente desconhecidos da maioria dos romanos e, em dois séculos, esse movimento, com a disseminação das idéias, da idéia de Cristo, se tomou a religião mais importante do mundo antigo e foi a religião do império romano. O mesmo ocorreu com o Islamismo. Era o profeta Maomé com muito poucos discípulos e que em pouco tempo expandiu-se para Leste e Oeste. As idéias do socialismo, de pequenos pensadores, profetas, ganharam partidos social-democratas e depois, o partido bolchevique. Quer dizer, no princípio as coisas parecem sempre improváveis de se realizar, e sempre na história os fatos mais impmtantes foram os fatos improváveis.
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Quando eu tinha 20 anos, durante a ocupação da França, com o desastre militar e a dominação nazista sobre a Europa, o provável era pensar que a dominação nazista duraria por muito tempo- 50 anos- e o império do terceiro Reich seria por mil anos. Mas em dois anos tudo mudou. Tudo mudou com a resistência de Moscou e o inverno de 41/42, com o ataque de Pearl Harbor que provocou o desenvolvimento do gigantesco poderio industrial norte-americano. O destino do mundo mudou.
Não se pode fazer a previsão do futuro em função do presente. Há esta amplitude no presente, mas à idéia do improvável permanece a idéia de que quando cresce o perigo cresce a salvação, palavras do poeta Holderlin. Quando se tem essa idéia, se pode ver, com vontade e coragem, a vida e a ação no futuro do planeta.
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0QUEÉ
DA ENTREVISTA NO RÁDIO E NA
TELEVISÃO
EDGAR MORIN
A entrevista é uma comunicação pessoal, realizada com um objetivo de informação. Esta definição é comum à entrevista científica, feita em psicologia social,
eâentrevistaâe imprensa, radio, cinema e televisã--o.-A diferença só aparece quanto à natureza da informação. A informação em ciência sociais entra em um esquema metodológico, hipotético e verificador. Nos veículos de comunicação entra nas regras jornalísticas e, muito freqüentemente, tem um fim sensacionalista. Enquanto a informação interessar a apenas um pequeno grupo de pesquisadores , a entrevista é científica. Mas, se for dirigida a um grande público, ela passa a ser um elemento de comunicação de massa. Portanto, a entrevista no radiocinema e televisão é uma comunicação pessoal, suscitada com um objetivo de informação pública, e até mesmo espetacular.
No entanto, há na entrevista algo mais do que a simples informação. Este algo mais é o fenômeno
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psicoafetivo constituído pela própria comunicação. Ele pode perturbar a informação, falseando-a deturpando-a (daí o problema técnico metodológico colocado pela validade ou fidelidade da entrevista).
O fenômeno psicoafeti v o pode, ao contrário, provocar a informação. Ou, então, provocar uma mudança: um certo tipo de encontro, sob o ponto de vista clínico, tem um efeito libertador, purificador ou mesmo - em psicopatologia - de cura. Principalmente no rádio e na televisão, a entrevista pode ter um efeito psicoafetivo que vai além da própria informação.
A entrevista é sempre uma intervenção orientada como comunicação de informação. Mas seu aspecto mais importante é, sem dúvida, a reação psicoafetiva que se processa paralela à informação. A primeira vez que apareceu como elemento de-Informação nas ciências humanas foi nos Estados Unidos. Tanto na psicoterapia como na psicotécnica. Em ambos os casos, a informação é ligada a um fim prático. No primeiro caso, a informação recolhida servirá para curar o entrevistado; no segundo, ela é mais importante para o entrevistador.
ÜS TIPOS DE ENTREVISTA
Desde 1940, e ainda mais depois de 1945, o emprego da entrevista estendeu-se e intensificou-se. Ela deve responder a exigências cada vez mais precisas, o que leva a um enorme trabalho metodológico; e vai-se
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desenvolver em dois principais ramos: a entrevista extensiva e a intensiva.
A primeira é feita através de questionários, adaptada à exploração grafomecânica, baseando-se em amostragens representativas das populações, para chegar a uma formação estatística dos resultados. Neste sentido são feitas as pesquisas de opinião, nas grandes populações, que interessam às grandes firmas comerciais e indústrias, aos partidos políticos, aos órgãos de informação e aos governos.
A entrevista intensiva, ao contrário, pretende aprofundar o conteúdo da comunicação. Nela estão interessadas as grandes firmas para conhecer os movimentos inconscientes dos consumidores e responder a eles pelos estímulos adaptados: é a corrente dos estudos de motivação.
A nova psicologia social caminha neste sentido. É quando o tête-à-tête torna-se o elemento central da entrevista; quando ocorre o que se poderia chamar de revolução rogersiana- o desenvolvimento da entrevista não-dirigida, no campo da psicologia social.
Entre as duas tendências extremas da entrevista, há um antagonismo. De um lado, a entrevista aberta, sem questões colocadas pelo entrevistador. Do outro, a entrevista fechada, feita por questionário ao qual basta responder sim ou não. De um lado, as respostas complexas e numerosas; do outro, as respostas claras e simples. De um lado, uma entrevista de longa duração; do outro, um questionário rápido. Sob um aspecto, as pessoas implicadas- entrevistado e entrevistador- têm uma
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importância capital, assim como a natureza psicoafetiva do encontro. O outro tipo de entrevista (questionário) dá importância à resposta, e não só à pessoa. De um lado, a dificuldade extrema de interpretar a entrevista e tirar dela os resultados; do outro, a possibilidade de estabelecer uma amostragem representativa e de tratarestatisticamente os resultados. Assim surgem dois tipos opostos de entrevistas. Um deles é aprofundado e eventualmente não-dirigido- nele há um interesse clínico e entrará em toda metodologia, baseada na eficácia do método clínico, referindo-se aos casos extremos e aprofundados, e não só a séries e médias; ele entrará mesmo como elemento, às vezes, elemento-chave, nas técnicas de ação- isto porque solicita a intervenção ativa do entrevistado.
O outro tipo extremo de entrevista será feito a--partir de um questionário preestabelecido e permitirá o trabalho sobre as grandes massas, pelas sondagens de uma amostragem representativa. Estes dois tipos extremos podem competir: o pesquisador terá de escolher entre o risco da superficialidade (questionário) e o risco "ininterpretabilidade" (entrevista aprofundada); entre dois tipos de eno, entre dois tipos de verdade.
Cada um destes tipos de entrevista convém, de acordo com os objetivos da pesquisa. E podem ser combinados: as entrevistas aprofundadas preparam a elaboração de questionários que serão utilizados de acordo com as sondagens de opinião; inversamente, as sondagens por questionário podem permitir a seleção dos assuntos que serão submetidos a entrevistas menos superficiais.
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Por outro lado, há toda uma gama de entrevistas, entre esses dois tipos extremos, cada um com uma problemática e eficácia próprias.
Portanto, podem-se distingüir: - entrevista clínica do tipo terapêutico; - entrevista em profundidade, na qual se pode in-
troduzir o encontro não-dirigido (Rogers) desenvolvido no campo psicossocial, mas que não se limita somente ao método não-dirigido. A entrevista em profundidade é utilizada nas pesquisas de motivação, porém pode ter numerosas aplicações;
-entrevista centrada (jocused interview), em que, depois da formulação de hipóteses sobre um tema preciso, o pesquisador conduz livremente o encontro, de modo a que o entrevistado fale com toda sua experiência pessoal sobre o -probl-ema colocado pelo entrevistador;
-entrevista de respostas livres: na qual o entrevistador permite ou provoca a liberdade de improvisação nas respostas;
-entrevista de perguntas abertas -em que as questões são colocadas e escritas previamente e devem ser formuladas de acordo com uma ordem precisa; a liberdade do entrevistador tomou-se restrita, mas a liberdade do entrevistado ainda é grande em relação ao quadro das perguntas formuladas;
- entrevista sobre respostas pré-formadas: as diversas possibilidades de resposta já foram formuladas oferecendo ao entrevistado a liberdade de escolher entre as diversas respostas;
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- entrevista de perguntas fechadas: compreende um questionário, ao qual o entrevistado responde por sim ou não, favorável ou desfavorável.
As DIFICULDADES DA ENTREVISTA
Instrumento essencial na psicologia social, a entrevista traz toda a dificuldade da verdade nas relações humanas; ela suscitou e suscitará ainda um enorme trabalho crítico e metodológico, seja na entrevista sobre o questionário ou a entrevista não-dirigida. O problema essencial é o da validade da entrevista - sua adequação de acordo com a realidade que se tentou conhecer. O mínimo operacional da validade é a fidelidade que vai ser posta à prova quando for verificada a concordância dos resultados obtidos por entrevistadores diferentes.
A entrevista se fundamenta na fonte mais rica e duvidosa de todas, a palavra. Ela traz, quase sempre, o risco da dissimulação e da fabulação.
A pergunta fechada impõe um esquema, um risco de erro máximo. Por outro lado, a colagem, a interpretação, a exploração oferecem garantias máximas à entrevista. A questão aberta, a resposta espontânea (sobretudo na análise profunda) traz à fabulação um sentido autêntico, uma riqueza significativa: mas, desta vez, o maior risco de erro se situa ao lado do entrevistador, na sua aptidão em decifrar a mensagem do entrevistado; na possibilidade de estabelecer uma comparação;
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em transformar os dados científicos em documentos humanos.
O que parece cada vez mais absurdo é fazer questionários fechados sobre problemas que, na verdade, escapam à consciência clara do interrogado - em que as respostas são, em geral, racionalizadas e querem justificar alguma coisa. Da mesma maneira, as respostas pré-formadas são incapazes de explicar a motivação profunda em numerosos domínios. Assim, as perguntas do tipo "por que você vai ao cinema?" e as respostas tais como "para me divertir", "para
me instruir", "para passar a noite" são incapazes de explicar a motivação profunda e verdadeira do entrevistado.
Por outro lado, a experiência revelou que a formulação da pergunta tinha um papel decisivo na orientação da resposta. Uma palavra, aparentemente anódina, pode modificar asTespostas. Sabe-se também que a ordem e o número das questões influem sobre as respostas.
Em suma, tudo na entrevista depende de uma alteração entrevistador - entrevistado, pequeno campo fechado onde se vão confrontar ou associar gigantescas forças sociais, psicológicas e afetivas.
Diversos fatores podem perturbar o entrevistado. Entre eles, por exemplo, os tabus. Tanto em relação ao sexo e à religião como em política. Nesse último plano as desconfianças serão mais ou menos grandes, de acordo com o regime do país em que as perguntas são feitas -se é ou não liberal, de acordo com o caráter minoritário ou não, subversivo ou não, e de acordo com as opiniões políticas do entrevistado. Fora dos tabus, as considerações de prestígio social podem falsear as respostas.
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Um outro fator é a questão de opinião e crença- a consciência se enfraquece à medida que se penetra, mais adiante, na motivação. Esta é, quase sempre, obscura no entrevistado, ou, mesmo, encoberta por um sistema de racionalização.
De maneira bem diversa, de acordo com a situação social, histórica, determinação psicológica, clima e caráter da entrevista, os entrevistados reagem por:
-Inibição: que se traduz no bloqueio puro e simples, ou por uma fuga (resposta de lado).
- Timidez e prudência: o entrevistado conduz as respostas de delicadeza e boa educação, de acordo com o prazer que elas dão ao entrevistador. Elas se traduzem pela tendência em responder mais por sim do que por não; pela tendência (prudência) a optar por um número do meio, quando uma e~colha de porcentagem é-proposta.
-Atenção ou desatenção: (nas respostas pré-formadas, tendência a escolher o ponto de vista que abre a entrevista ou o que a encerra).
-Racionalização: dar uma justificação ao próprio ponto de vista, uma legitimação aparente que esconde a natureza verdadeira do entrevistado.
- Os exibicionismos que trazem sinceramente fabulações e comédias.
-Defesas pessoais. Um dos fatores perturbadores da entrevista é o da
aparência do entrevistador. É necessário que o entrevistado sinta uma perspectiva de distância e proximidade em relação a ele. Da mesma maneira, o máximo de
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projeção e identificação com o seu entrevistador. Sua figura deve ser simpática e despertar confiança. Muitas vezes, a entrevistadora será melhor comunicadora que o entrevistador. O que ambos precisam, antes de tudo, é um controle de autocrítica. Constatou-se que sua opinião e suas previsões influíam inconscientemente nas respostas do entrevistado. Sua atitude, no decorrer da entrevista, suas reações, mesmo que pouco perceptíveis, têm alguma influência. É preciso também que o entrevistador tenha um interesse profundo pela comunicação e pelo outro. Não basta parecer simpático - ele precisa sentir simpatia.
Finalmente, observa-se que quanto mais importância tenha o entrevistado - e ele é mais importante à medida que a investigação é mais profunda - mais importante é a posição do entrevistador.
A pessoa que faz a entrevista deve ter os dons da objetivação e participação subjetiva em alto grau. Deve ser uma pessoa moral e intelectualmente superior- como se fosse um confessor leigo da vida moderna.
É neste ponto que surge uma dificuldade, no momento insolúvel, no sistema das ciências humanas (salvo em psicologia clínica). A entrevista é, quase sempre, um ganha-pão subalterno, uma profissão para mulheres um tanto cultivadas, uma etapa para futuros pesquisadores. É o trabalho inferior do qual se livram os chefes de equipe.
O fator humano, em princípio anulado pelas tendências técnicas e estatísticas da entrevista, reaparece triunfante no fim da análise metodológica e crítica.
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A entrevista provoca (porque é uma intrusão que pode ser traumática e agressiva) um complexo sistema de defesas. Mas, ao mesmo tempo, se dirige a uma enorme necessidade de expressão.
A descoberta genial e infantil de Rogers consiste em quebrar o sistema de defesa do indivíduo, pela necessidade que ele tem de se exprimir sobre ele mesmo.
A ENTREVISTA NÃO-DIRIGIDA
O encontro não-dirigido, utilizado primeiramente com psicoterapia por Rogers, foi estendido ao campo psicossocial. Ele visa, antes de mais nada, a destacar a percepção do indivíduo. Não é, contudo, um encontro livre levado pela improvisação da conversa. Exige-uma disciplina rígida da parte do entrevistador, no não-comentário e não-intervenção, e, também, uma disponibilidade enfática.
O grande princípio de Rogers- nossa tendência a julgar, a medir, a aprovar, desaprovar - constitui a pior barreira à comunicação. O que a favorece, ao contrário, é a atenção simpática, a compreensão profunda.
Assim, efetivamente, Rogers se baseia na necessidade de expressão, na necessidade imensa e talvez não satisfeita no nosso mundo daqueles que não têm o Grande Ouvinte- nem seu mediador católico, o padre; em que só os neuróticos se beneficiam do não-confessor, que é o psicanalista.
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O interesse da entrevista não-dirigida vai além da informação. Primeiro, porque dá a palavra ao homem interrogado, em vez de fechá-la em questões pré-formuladas. Esta é a implicação democrática deste tipo de entrevista. Em seguida, ela pode ajudar a viver, provocando um desbloqueio, uma liberação. Pode ainda contribuir à auto-elucidação, a uma tomada de consciência do indivíduo.
A ENTREVISTA COMO "PRÁXIS"
No encontro não-dirigido, o caráter informativo da entrevista está ligado, estreitamente, a um caráter humano global e multidimensional e dele depende. A entrevista é-uma práxis - o uso, a rotina.
O encontro não-dirigido constitui um dos ramos atenuados do encontro freudiano. Este encontro é baseado sobre a não-diretividade extrema. Ele provoca processos psicoafetivos intensos, principalmente o da transferência, e finalmente esta catarse que é a cura. O modelo freudiano domina então a prospectiva nãodirigida. Freud destacou ao máximo as possibilidades enérgicas fantásticas que poderiam existir na "procura de si mesmo solicitada por um interlocutor".
Os discípulos dissidentes de Freud reformaram, de várias maneiras, o diálogo analítico. Para muitos, o analista deve parar de ter um papel mudo, estático; especialmente para representar um papel intervencionista, estimulante e provocador.
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Em psicologia social, os métodos provocadores foram testados principalmente na entrevista com personalidades. O entrevistador pode mesmo conduzir um encontro polêmico com o entrevistado. Isto é de grande eficácia no caso em que os entrevistados são muito seguros deles mesmos, muito habituados à palavra (entrevistas com advogados). Há também uma fusão possível do método dos testes projetivos e da entrevista. A entrevista pode provocar situações imaginárias, histórias a se completar, de maneira que o fluxo psicoafetivo realiza-se fora da zona do sistema de defesas.
A liberação da energia psicoafetiva que a entrevista profunda provoca, seja não-dirigida, provocadora ou projetista, se traduz por um fluxo de comunicação, no qual o imaginário e o real podem estar intimamente ligados. O indivíduo dirá ao mesmo tempo_que_eie_é, o que ele pensa ser ou aquilo que ele gostaria de ser. O fluxo da comunicação pode ser uma torrente de comédia-sinceridade. Aqui se coloca novamente o problema da verdade, mas em nível da pessoa total.
Á ENTREVISTA NO RÁDIO, NA TELEVISÃO E NO CINEMA
A entrevista é um tipo de informação que apareceu com a imprensa. Antes de mais nada, é necessário fazer uma distinção entre a origem da entrevista como meio de informação, surgido de uma fonte individual, da declaração oficial que é um discurso unilateral düigido ao público, através do jornal ou rádio. A entrevista
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busca a comunicação pessoal. Sua sorte está ligada ao desenvolvimento da cultura de massa que procura, em todos os domínios, levar à satisfação do público, o human touch, e, mais amplamente, à individualização dos problemas. A entrevista vai se desenvolver em direção das superindividualidades que reinam no mundo dos veículos de comunicação. Personalidades políticas em primeiro lugar, que serão entrevistadas a cada descida ou subida de avião, a cada acontecimento, mas também os olimpianos, vedetes com as quais tenta-se multiplicar o contato direto - estes deverão responder sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo.
A entrevista também se desenvolve de um outro lado. Ela procura o homem na rua, o passante anônimo a quem fará uma pergunta à queima-roupa.
No encontro com um homem da rua, delineia-se uma tendência brechtiana que tende a provocar no espectador-ouvinte uma distância em relação à sua vida cotidiana. A entrevista tomou recentemente o caminho dos problemas da vida privada. Por isso tomou-se cada vez mais familiar e íntima, tanto na procura de histórias fúteis como na tentativa de diálogo. Há também um tipo de entrevista sob a forma de debate em grupo- propõese um modelo dialético de formação da verdade, pelo confronto de opiniões contrárias.
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ENTREVISTA "ESPETACULAR"
Como na psicologia social, a missão oficial da entrevista é recolher informações, e a entrevista espetacular poderá trazer também uma energia afetiva considerável. Mas, na psicologia social, a energia afetiva será utilizada para permitir uma informação mais profunda, ou para ajudar o indivíduo a viver. Na entrevista de rádio e televisão ou no cinema, ela será captada para ser projetada sobre o espectador, para dar-lhe emoções, além de informações.
Aqui surge a primeira grande oposição entre a entrevista nas ciências humanas e a entrevista comunicada pela televisão: a primeira terá um caráter não-público, mesmo secreto; se há exibição de sentimentos, eles só servem ao entrevist-ador. o-segundo~ipo se dirige a-todos - situa-se no fórum telecomunicativo moderno.
No entanto, a maior oposição entre a entrevista em psicologia e a entrevista telecomunicada pode tornar-se a maior proximidade, precisamente onde uma e outra são mais intensas. Elas se ligam no ponto em que o problema da amostragem representativa perde todo o sentido, em psicologia social. Isto porque a segunda diferença radical entre os dois tipos de entrevista é que na entrevista para a psicologia social há uma grande preocupação metodológica e técnica, na sua preparação. Ela busca também que o entrevistado seja representante de uma certa população. No rádio e na televisão, não há nenhuma regra. A entrevista nos meios de comunicação busca uma pseudo-representatividade. Por exemplo,
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quando se entrevista o homem da rua, é necessário fazer um esquema de idade, de profissão, de opiniões, buscando mais o pitoresco do que a verdade.
A entrevista nos meios de comunicação visa ao pitoresco, ao divertido, ao espetacular e se preocupa pouco com a validade da informação. A outra procura a fidelidade e se baseia no método.
As duas só vão juntar-se no momento em que uma ou outra possam ser aprofundadas.
Ü FENÔMENO DA MICROCÂMARA
As entrevistas mais profundas são geralmente registradas por um gravador. Pode-se notar que a força inibidora do gravador é igual à sua força exibidora. Isso quer dizer que, se ele aumenta a tendência do entrevistado de se defender contra a entrevista (o medo surge do fato de as palavras serem registradas), ele aumenta, também, a sua tendência à expressão, ao lançamento de sua mensagem ao mundo.
O gravador no rádio, televisão e cinema registra "para todos e para ninguém", segundo a fórmula de Nietzsche. O gravador não é só quem escuta- pode ser também o instrumento daquele que não sabe escrever para falar de si mesmo. Quem escuta é o entrevistador e, além dele, o público anônimo.
A televisão e o cinema trazem a câmara. Num certo sentido, a câmara permite ao mundo (espectadores) ouvir e ver alguém. Mas a câmara é também um olho-
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mais, ainda, um olhar de natureza mal conhecida, mas de uma intensidade prodigiosa. Como no gravador, tanto pode aumentar as forças inibidoras como as exibidoras. E dispõe de um potencial extralúcido, podendo obrigar o entrevistado a dizer a verdade. Isto pode levar a uma comédia mentirosa, porque é quando se tem a vertigem no limiar da verdade que lançamos, mais facilmente o corpo perdido na fabulação.
Assim, graças ao poder do gravador e da câmara, a televisão e o cinema- reinos da falsa comunicação ou da comunicação imaginária - têm imensas possibilidades de comunicação, mais ricas do que na vida.
O gravador e a câmara de rádio, televisão ou do cinema trazem o público neles mesmos. A grande originalidade da entrevista telecomunicada é que a energia afetiva que ela provoca não se resume no diálogo entre entrevistado e entrevistador. Ela é comunicada para cada ouvinte ou espectador.
Por outro lado, a comunicação pode ser absorvida como espetáculo - absorvida como um filme de ficção -transposta em uma emoção estética. Neste momento, o conteúdo real da comunicação foi perdido e a energia afetiva é substituída pela satisfação de ter visto um espetáculo bonito e interessante. Ou, então, a comunicação é recusada, e o espectador dá as justificações desta recusa: "É falso". "É truque".
A comunicação pode ser também libertadora para aqueles que se reconhecerão e se sentirão menos sozinhos- ela será reveladora para aqueles que descobrirão o outro. Com efeito, na nossa sociedade, a comunica-
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ção pela entrevista profunda é a mais freqüentemente enfraquecida em relação ao campo estético de cada espectador e recusada como falsa; raramente, ela traz uma nova compreensão.
Á ENTREVISTA NA POLÍTICA DE COMUNICAÇÃO
A entrevista nas ciências humanas e a entrevista nos meios de comunicação, desde que deixem a zona de frivolidade, revelam, uma e outra, uma extraordinária necessidade de comunicação. Esta necessidade teria aumentado pela individualização crescente, que isola cada um de nós, e nos dá vontade de revelar o nosso ser autêntico?
A verdade é que a comunicação entre os seres humanos é medlcla pelas conversas, essa troca desaJei aaa das palavras convencionais, pontuadas de sorrisos delicados e risos espasmódicos, de solilóquios cruzados, entre os quais, às vezes, surge uma pequena luz. Na vida cotidiana, a comunidade é bloqueada, atrofiada, desviada- daí o sucesso da comunicação imaginária dos filmes e dos romances.
Mas, neste mundo moderno, pobre em comunicação (antigamente ainda mais pobre, no entanto os homens acreditavam na comunicação com o Cosmos ou com a Transcendência), a civilização tecnocientífica oferece novos instrumentos. Tanto na psicologia social como nos meios de comunicação existem alguns princípios básicos do que poderíamos chamar de uma política da comunicação:
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- procurar uma comunicação profunda com o ou-tro;
-procurar a fórmula de um diálogo. O entrevistado deve ser quem escuta e quem provoca, ao mesmo tempo;
-procurar transformar a assimilação do espectador em compreensão. Ele pode abandonar facilmente seu egocentrismo e etnocentrismo no imaginário: então ele se interessará, verdadeiramente, pelo outro. No entanto, ele vai ser retomado pelo etnocentrismo, egocentrismo e todos os demônios mesquinhos na vida real. Não há, na televisão e no cinema, uma falha entre o imaginário e o real, pela qual poderia se introduzir a entrevista? Ela não se tomaria operatória, se permitisse, ao mesmo tempo, a objetivação e a subjetivação?
Por objetivação entende-se a possibilidade de o espectador se objetivar em relação a ele mesmo- de se distanciar dele mesmo, de acordo com um desdobramento que permite a auto-análise e também a autocrítica.
Por subjetivação compreende-se a tendência do homem a considerar o outro como o objeto, isso quando a entrevista nos faz conscientes da presença subjetiva do outro.
Por outro lado, o diálogo fecundo é o diálogo no qual o estranho toma-se um outro eu, em que eu me tomo o estrangeiro para mim mesmo- processo múltiplo e contraditório que compõe a dialética da comunicação com o outro, a qual não é possível sem a ênfase de uma comunicação de si para si. A imagem do vídeo e
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do cinema permite essa forma de dialética de uma maneira vertiginosa.
Dar uma nova dimensão existencial à democracia. A psicologia social, na sua tendência não-dirigida, traz em si um princípio democrático literal e que se estende além da zona, hoje bem estreita, da política: dirigir a palavra. Graças à técnica da televisão, pela primeira vez, a palavra pode ser dirigida a um desconhecido, e repercutida e transmitida a milhões de seres humanos.
Não estamos, no entanto, nem no início do que poderia ser chamado de política de telecomunicação, que seria provocar a palavra profunda de um indivíduo, de um grupo, dentro da sociedade.
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BREVE RELATO BIOGRÁFICO
Nascido em Paris, em 8 de julho de 1921, Edgar Morin graduou-se em História, Geografia e Direito (1942). Homem de idéias e de ação, engajou-se na "resistência" ao invasor nazista, entre 1942 e 1944, durante a ocupação da França pelos alemães. Os resistentes, na II Guerra Mundial, tiveram no jovem Morin (pseudônimo que Nahoum adotou na clandestinidade) um militante dedicado, entusiasta e corajoso. Subtenente das Forças Francesas Combatentes, vinculado ao EstadoMaior do lo Exército Francês na Alemanha (1945), depois chefe do Serviço de Propaganda do Governo Militar Francês ( 1946), Morin esteve em várias frentes na luta contra o nazismo.
Finda a guerra, o apetite intelectual tomou o lugar da ação. Nascia o pesquisador interdisciplinar, curioso, interessado em tudo, da história à epistemologia, da sociologia ao cinema, da cultura de massas à filosofia erudita. Em 1950, Edgar Morin entrou para o Centre National de Recherche Scientifique (CNRS), o presti-
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gioso centro de pesquisa da França, ao qual ainda permanece ligado, tendo recebido o título de diretor emérito de pesquisas.
Espírito tentacular, inter, trans e multidisciplinar, Edgar Morin foi, entre 1973 e 1989, co-diretor do Centro de Estudos Transdisciplinares, sediado em Paris, responsável pela publicação da revista "Communications", a qual Morin dirigiu pessoalmente até 1990. De 1956 a 1962, porém, o interesse pelos temas da cultura, da sociedade de massas e da indústria cultural já se fizera notar. Nessa época, Morin dirigiu um periódico de grande influência no meio intelectual, a revista "Arguments".
Edgar Morin é um dos pioneiros nos estudos da comunicação desde o ponto de vista da sociologia compreensiva. Com seu olhar ao mesmo tempo crítico, gene-
----frnose,e---*j3-l-iGativ-~mpreen&iw~c.re-v.eu-alglmS ''clássicos" contemporâneos desse campo do conheci-mento, entre os quais "O Cinema e o Homem Imagi-nário" (1956), "As Estrelas" (1957), "Para Sair do Século XX" (1981) e "Cultura de Massas no Século XX: o espírito do tempo" (1962). Autor de mais de 30 livros, Morin atingiu o apogeu com os seis volumes de sua obra-prima "O Método": Volume 1: "A natureza da natureza" (1977); volume 2: "A vida da vida" (1980); volume 3: "O conhecimento do conhecimento" (1986); volume 4: "As idéias" (1995), volume 5: "A humanidade da humanidade" (2001) e o volume 6: "Ética" (2004).
Presidente da Agência Européia para a Cultura e da Associação pelo Pensamento Complexo, Edgar Morin já recebeu o título de Doutor Honoris Causa das uni-
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versidades de Perugia, Palermo, Genebra, Bruxelas e Praga, além de inúmeros prêmios e condecorações, como o Laus Honoris Causa do Instituto Piaget, de Portugal, e a Medalha da Câmara dos Deputados da República Italiana. A França concedeu-lhe o grau de oficial da "Légion d'honneur".
Em 1998, foi nomeado por Claude Allegre, ministro da Educação da França, para coordenar uma comissão de estudos para a reforma do ensino secundário francês. Em meio século de vida intelectual, Edgar Morin tornou-se uma referência no campo da Educação com suas propostas de reforma do pensamento, do ensino, da universidade e dos paradigmas acadêmicos de formação dos homens.
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OBRAS DE EDGAR MoRIN
O Método (Editora Sulina) Vol. 1. A natureza da natureza, 2002. Vol. 2. A vida da vida, 2001. Vol. 3. O conhecimento do conhecimento, 1999. Vol. 4. As idéias, 1998.
-------~~umarun~hu~ad~~---------------Vol. 6. Ética, 2005.
Complexidade Ciência como consciência, 1982. Ciência e consciência da complexidade, 1984. Sociologia, 1984. Argumentos para um método, 1990. Introdução ao pensamento complexo, 2005 (Editora Sulina).
Antropologia fundamental O homem e a morte, 1951. O cinema e o homem imaginário, 1956. O paradigma perdido: a natureza humana, 1973. A unidade do homem, 1974.
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Século XX O ano Zero da Alemanha, 1946 (no Brasil sairá em 2007 pela Editora Sulina). As estrelas, 1957. O espírito do tempo, 197 6. A metamorfose de Plodemet, 1967. Maio de 68: a brecha (com Claude Lefort e Cornelius Castoriadis ), 1968. Para sair do século XX, 1981. Da Natureza da URSS, 1983. A rosa e o negro, 1984. Pensar a Europa, 1987. Um novo começo (com Gianluca Bocchi e Mauro Cerutti), 1991.
Política Introdução a uma política do homem, 1965. Em busea dos funclame-H:005--f'effi.i-6es: textos sobre o marxis mo, 2002 (Editora Sulina).
Etapas Autocrítica, 1959. O vivo do sujeito, 1969. Diário da Califórnia, 1970. Diário de um livro, 1981. Vidal e os seus, 1989 (em colaboração com Verônica GrappeNahoum e Haim Vida Sephila). Diário da China (a sair no ano de 2007 pela Editora Sulina).
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ESTE LIVRO FOI CONFECCIONADO ESPECIALMENTE PARA
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